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2)
Negri inicia este capítulo destacando a temporalidade como a dimensão mais essencial
da Revolução Francesa. Após ter se desenvolvido em termos espaciais no mundo atlântico, o
conceito de poder constituinte é retomado nos termos maquiavelianos de “fundação absoluta,
ou melhor, uma transformação radical do tempo da constituição. [...]. O tempo maquiaveliano
da mutação, do evento e da fundação [...] está sempre ali, delineando a forma contemporânea
de poder constituinte” (278). Porém, há uma diferença fundamental entre o caso da Itália
renascentista e aquele da França revolucionária: enquanto na primeira “todas as condições de
um princípio e de uma democracia” estão ausentes (148), isto é, enquanto não há sujeito
adequado ao poder constituinte e a “luta de classes dos proletários florentinos tem que ceder à
ideologia razoável e à pacificação dos Médicis” (147), ou seja, ao mito; naquela “as massas,
através de suas “necessidades e utopias, interesses e discursos, vontade de potência e dinâmica
política” (279), são o substrato do “tempo constituinte” (277) da Revolução. Nesse sentido, “a
Revolução é o tempo das massas. É o tempo da multidão revolucionária parisiense, da
mobilização das massas, dos sans-culottes” (278).
A temporalidade revolucionária das massas possui uma característica fundamental.
“Esta temporalidade também é espacial”, o “terreno da temporalidade” é reconstruído como
“espaço público e, portanto, como território temporal para as massas” (279, grifo meu). Com
efeito, o espaço público das assembleias desempenhou um papel central na Revolução Francesa.
No entanto, nosso autor destacará outro território temporal presente no “projeto das massas”,
qual seja, o da produção e do trabalho: “o ataque ao poder constituído inclui a revolta na
produção, contra as determinações espaciais da escravidão no trabalho” (279). Assim, o projeto
das massas romperá a barreira entre as “duas revoluções” (27) segundo uma temporalidade que
se desenvolve “de modo a constituir um encadeamento irresistível de resistência e ofensiva
políticas e sociais, em direção a uma democracia cada vez mais profunda” (279, grifo meu). Tal
desenvolvimento tornar-se-á cada vez mais acentuado no decorrer do processo revolucionário,
com a sucessão de seus eventos: “da tomada da Bastilha às jornadas do germinal, em todo o
arco revolucionário das massas, a temporalidade encaminha-se para a realização integral e
absoluta do processo democrático no político e no social” (280).
Os pedidos de “Pão e Constituição de 1773” são um ponto chave na “voragem de
democracia das massas”. Essa união definitiva entre crítica social e constituição democrática
alerta não só os contrarrevolucionários, mas também os moderados (girondinos e montanheses)
depois deles, e, enfim, as minorias extremistas e utópicas (jacobinos). A burguesia passa a temer
a ferocidade das massas: “os bárbaros estão de volta, o Termidor reage” (281). Assim, enquanto
a revolta contra o Antigo Regime estava do germe da Revolução, o decorrer de seus eventos
moldará a formação de dois sujeitos políticos no interior do Terceiro Estado: a burguesia e o
proletariado. Nesse sentido: “a luta de classes não é a [...] origem [da Revolução], mas o seu
resultado” (281).
A cisão dos insurretos entre burguesia e proletariado tem sua origem no terreno da
produção e do trabalho. A temporalidade constituinte vivenciada pelas massas – essa
“aceleração do tempo”, esse tempo “concebido como potência” ou, ainda, como um “outro
tempo” (284) – vê-se, no terreno produtivo, encerrada na temporalidade burguesa da
organização da jornada de trabalho, um tempo da repetição. Assim, a existência de dois projetos
se revela no decorrer da Revolução. De um lado, “o projeto de codificar em formas abstratas a
superação de uma ordem constitucional inadequada à sustentação do desenvolvimento da
burguesia, o projeto de destruir o Ancien Régime e definir constitucionalmente a organização
social do trabalho” (283). De outro, a recusa em transformar o poder constituinte em poder
constituído, o projeto da continuidade do poder constituinte e de seu exercício pelas massas.
Ou seja, para voltar ao tema das duas revoluções, enquanto a burguesia pretende concluir a
revolução política, mas interromper qualquer revolução social, o proletariado conjuga as duas
revoluções através de uma “prática radical” (280): “na continuidade do poder constituinte, e em
seu nome, o espaço social é sobreposto ao espaço político” numa mesma temporalidade (285).
Então, “a novidade introduzida pela Revolução Francesa na teoria do poder constituinte
consiste na reapropriação prática de sua temporalidade – uma temporalidade que rompe toda
intermitência e/ou separação da política e, deste modo, introduz o poder constituinte no terreno
da sociedade e de sua organização, situando-o como princípio da crítica do trabalho” (285).
Negri procura demonstrar essa tese na primeira sessão deste capítulo de um ponto de vista
histórico e político, portanto, prático. Primeiro, ao apresentar a disputa das leituras que a
burguesia e os sans-culottes fizeram de Rousseau, a resolução prática de seu enigma (teórico);
e, então, ao analisar as Declarações de direitos redigidas durante a Revolução. Na sessão a que
este seminário se dedica, nosso autor buscará demonstrar essa tese do ponto de vista teórico,
examinando as obras de Sieyès e de Marx.
Até aqui, vimos a prática das massas, a temporalidade dos sans-culottes, romper o
enigma teórico de Rousseau, mas também o encerramento constitucional do trabalho operado
por Sieyès. Mas, não haveria algum desenvolvimento teórico que se colocasse do “ponto de
vista” das massas, de sua prática revolucionária? Sabemos que sim. Vimos no capítulo 1.3 a
inadequação das remissões a sujeitos genéricos (nação, povo, etc.) e o aparecimento de Marx e
de um sujeito material do poder constituinte. A argumentação iniciada lá será retomada adiante.
Para Marx, “o caráter arquetípico da Revolução Francesa reside no fato de que ela põe
o tema da mediação entre o social e o político, fixa o conceito de poder constituinte, introduz a
problemática do ‘partido’ (ou seja, do sujeito que vive e realiza a passagem do social ao
político). A Marx não interessam tanto as causas da Revolução; o que interessa é compreender
como essas causas objetivas foram configuradas subjetivamente, como os movimentos de
massa tornaram-se criadores” (319). A partir dessa hipótese de leitura, Negri percorre os
“períodos” (318) em que Marx faz seu exame da Revolução Francesa.
O ponto de partida de Marx é o da “situação pública” ou o do “espaço político” criados
pela Resolução Francesa. Estes agora celebram “a força da hegemonia burguesa na assim
chamada “emancipação política”, e o faz dando-lhe aparência de ‘poder constituinte’” (319).
Sabemos que o poder constituinte “é uma essência material que se instala e se renova em todas
as dimensões do político e do social, indistintamente” (280). O produto da Revolução, porém,
foi a alteração da dimensão política e a manutenção da dimensão social. A partir dessa “síntese
revolucionária” (320), no sentido de resultado da Revolução, Marx moverá sua crítica,
colocando a solução do enigma rousseauniano não no terreno da prática constitucionalista,
como Sieyès, mas no terreno da prática revolucionária, como os sans-culottes. A condução da
crítica à problemática do sujeito é operada n’A Ideologia Alemã. Lá, a divisão do trabalho
subjaz a crítica como seu pressuposto e o poder constituinte “manifesta-se como comunismo”.
Bem como o poder constituinte, o comunismo é um “movimento real que abole o estado de
coisas existente” (apud 320). Ao deixar intocada a organização social e a divisão social do
trabalho, a Revolução, então, “não deve ser assumida como revolução do trabalho, mas como
revolução ‘burguesa’ do trabalho; ela assume a divisão do trabalho para exaltá-la enquanto tal”
(321).
Dos dois sujeitos políticos resultantes da Revolução, portanto, a burguesia não pode ser
o sujeito adequado (cf. cap. 1.3) do poder constituinte. Ela mantém a base da exploração social.
Será no proletariado que Marx reconhecerá o sujeito capaz desse poder. O exame desse
reconhecimento é feito por Negri a partir da leitura d’A ideologia alemã. Nesse trecho de sua
exposição, Negri praticamente interrompe sua própria fala e o modelo de citações indiretas
dedicado a Sieyès e a outros autores, fornecendo a Marx todo o espaço necessário para
evidenciar seu posicionamento teórico (e político). Aqui, não retomaremos as citações integrais
que Negri faz de Marx. Caso seja necessário, podemos voltar a elas ao fim do seminário.
Limitar-nos-emos a expor que em A ideologia alemã, o proletariado é reconhecido como sujeito
adequado ao poder constituinte porque é visto como 1) classe universal, ou, se quisermos fazer
uma analogia com as considerações sobre Terceiro Estado, o proletariado é tudo; 2) antagônico
à burguesa, isto é, à classe que procura capturar o trabalho, encerrando-o temporalmente; 3)
temporalidade radical, no sentido em que abole o atual estado de coisas em direção a um novo
tempo e, por isso mesmo, como 4) sujeito revolucionário, pois essa transformação só pode
ocorrer com um movimento prática, uma revolução (321-2).
“A partir daí, a definição subjetividade histórica – isto é, temporal e evolutiva – da força
constituinte, e também a radicalidade de sua obra de fundação”, ou seja, os elementos que
qualificam o proletariado como sujeito do poder constituinte, “não foram senão aprofundados”
(322). Isso ocorrerá em A miséria da filosofia, mas será nos escritos históricos de Marx que a
relação ente o “movimento real” e o “estado de coisas existente” alcançarão uma “altíssima
expressão” (323). Em Revolução e Contrarrevolução na Alemanha “as revoltas proletárias do
germinal do Ano III e de junho de 1848 parisiense tornam-se o símbolo de uma revolução
constitutiva permanente, ou de um poder constituinte permanente, que formam a trama do
século XIX” (323). O tema do retorno aos princípios, da reforma permanente de Maquiavel
(119) é retomado, aqui, em termos revolucionários e vinculado à subjetividade proletária: “em
Marx, a constituição do trabalho [...] abre-se, assim, a uma alternativa imanente e contínua,
caracterizada pela abertura sempre renovada do poder constituinte. O tempo é a dimensão
fundamental desse poder constituinte. Essa temporalidade é requerida em dois sentidos:
extensivamente, ou seja, no sentido da permanência do processo revolucionário e constituinte;
intensivamente, no sentido de um processo que, através de acelerações, momento de crise e de
ofensiva, faz amadurecer os próprios conteúdos do poder constituinte em direção a horizontes
de consistência prática teórica, de consolidação da consciência coletiva e de suas condições de
liberdade, cada vez mais universais. É o tempo das massas que faz o poder constituinte” (324).
Este tempo das massas opor-se-á não somente ao tempo fechado do trabalho, mas
também, evidentemente, ao tempo da constituição que o organiza. A partir daqui, é a própria
sociedade burguesa, produto da revolução, que se vê ameaçada pelo poder constituinte: “em
sua vitalidade, o poder constituinte e o próprio conteúdo progressista das chamadas liberdades
e instituições burguesas ameaçavam a dominação política da burguesia porque – e na medida
em que – o sujeito constituinte simplesmente mantinha a própria ação aberta à temporalidade”
(265-6). Rompido o nexo constitutivo ente poder e potência, isto é, no caso dado, entre poder
constituído e poder constituinte a “catástrofe da liberdade apresenta-se como destino”, ou seja,
como o cume de um movimento contínuo, permanente, que destrói o estatismo, a imobilidade
da situação atual.
Finalmente, o exame marxiano chega ao seu ápice nos escritos sobre a Comuna. “Nesses
escritos, o poder constituinte revela-se conclusivamente em todas as suas características: como
poder de ruptura, ou seja, como poder de refundação radical da organização social”; como poder
expansivo, isto é, como movimento irrefreável que acrescenta aos efeitos sincrônicos da ruptura
os efeitos diacrônicos da continuidade e da capacidade formadora constante; como revolução
permanente e, assim, como procedimento da liberdade e da igualdade” (327). Quanto ao
primeiro ponto, Marx afirma insistentemente, desde o último capítulo do 18 de Brumário que
o proletariado demoliria a maquinaria burocrático-militar da burguesia, em vez de assumi-la.
Quanto ao segundo, a Comuna é descrita por Marx como um poder expansivo que deveria
estender-se também a outros centros industriais, fornecendo a unidade nacional de baixo, e não
“por aquele poder estatal que pretendia ser a encarnação dessa unidade, independente e até
superior à própria nação, enquanto não passava de uma excrescência parasitária” (apud 328).
Quanto ao terceiro, enfim, Marx destaca que “a grande medida social da Comuna foi sua própria
existência operante” (apud 328).
No quadro geral da teoria marxiana, então “a revolução é permanente, a constituição é
um procedimento, a liberação do trabalho é um processo”, mais que isso, um “processo
contínuo” (328). Para ilustrar tal conclusão, Negri retoma a carta em que Marx distingue o
political movement (interpretado por Negri como poder constituinte, potência, mutatio...) e o
political power. Segundo o autor alemão “todo movimento pelo qual a classe operária se opõe
às classes dominantes e tenta coagi-las com pressure fron without é um polítical movement”
(apud 329). “A radicalidade, a expansividade, a continuidade e a permanência do poder
constituinte são, portanto, as características de uma potência que, implantada no trabalho, o
libera” (329). Nesse sentido, Marx está no mesmo terreno de Sieyès, mas no lado oposto.
Enquanto este procura enclausurar o trabalho na constituição, aquele procura liberá-lo por meio
de uma prática revolucionária. Mas, encerra Negri, “o enigma da Revolução Francesa está todo
aqui, nesta passagem do quebra-cabeça rousseauniano a esta nova oposição: a oposição entre
trabalho dominado e trabalho liberado, entre trabalho constituído e trabalho constituinte (329).