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SEMINÁRIO “O PODER C ONSTITUINTE” (5.

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Negri inicia este capítulo destacando a temporalidade como a dimensão mais essencial
da Revolução Francesa. Após ter se desenvolvido em termos espaciais no mundo atlântico, o
conceito de poder constituinte é retomado nos termos maquiavelianos de “fundação absoluta,
ou melhor, uma transformação radical do tempo da constituição. [...]. O tempo maquiaveliano
da mutação, do evento e da fundação [...] está sempre ali, delineando a forma contemporânea
de poder constituinte” (278). Porém, há uma diferença fundamental entre o caso da Itália
renascentista e aquele da França revolucionária: enquanto na primeira “todas as condições de
um princípio e de uma democracia” estão ausentes (148), isto é, enquanto não há sujeito
adequado ao poder constituinte e a “luta de classes dos proletários florentinos tem que ceder à
ideologia razoável e à pacificação dos Médicis” (147), ou seja, ao mito; naquela “as massas,
através de suas “necessidades e utopias, interesses e discursos, vontade de potência e dinâmica
política” (279), são o substrato do “tempo constituinte” (277) da Revolução. Nesse sentido, “a
Revolução é o tempo das massas. É o tempo da multidão revolucionária parisiense, da
mobilização das massas, dos sans-culottes” (278).
A temporalidade revolucionária das massas possui uma característica fundamental.
“Esta temporalidade também é espacial”, o “terreno da temporalidade” é reconstruído como
“espaço público e, portanto, como território temporal para as massas” (279, grifo meu). Com
efeito, o espaço público das assembleias desempenhou um papel central na Revolução Francesa.
No entanto, nosso autor destacará outro território temporal presente no “projeto das massas”,
qual seja, o da produção e do trabalho: “o ataque ao poder constituído inclui a revolta na
produção, contra as determinações espaciais da escravidão no trabalho” (279). Assim, o projeto
das massas romperá a barreira entre as “duas revoluções” (27) segundo uma temporalidade que
se desenvolve “de modo a constituir um encadeamento irresistível de resistência e ofensiva
políticas e sociais, em direção a uma democracia cada vez mais profunda” (279, grifo meu). Tal
desenvolvimento tornar-se-á cada vez mais acentuado no decorrer do processo revolucionário,
com a sucessão de seus eventos: “da tomada da Bastilha às jornadas do germinal, em todo o
arco revolucionário das massas, a temporalidade encaminha-se para a realização integral e
absoluta do processo democrático no político e no social” (280).
Os pedidos de “Pão e Constituição de 1773” são um ponto chave na “voragem de
democracia das massas”. Essa união definitiva entre crítica social e constituição democrática
alerta não só os contrarrevolucionários, mas também os moderados (girondinos e montanheses)
depois deles, e, enfim, as minorias extremistas e utópicas (jacobinos). A burguesia passa a temer
a ferocidade das massas: “os bárbaros estão de volta, o Termidor reage” (281). Assim, enquanto
a revolta contra o Antigo Regime estava do germe da Revolução, o decorrer de seus eventos
moldará a formação de dois sujeitos políticos no interior do Terceiro Estado: a burguesia e o
proletariado. Nesse sentido: “a luta de classes não é a [...] origem [da Revolução], mas o seu
resultado” (281).
A cisão dos insurretos entre burguesia e proletariado tem sua origem no terreno da
produção e do trabalho. A temporalidade constituinte vivenciada pelas massas – essa
“aceleração do tempo”, esse tempo “concebido como potência” ou, ainda, como um “outro
tempo” (284) – vê-se, no terreno produtivo, encerrada na temporalidade burguesa da
organização da jornada de trabalho, um tempo da repetição. Assim, a existência de dois projetos
se revela no decorrer da Revolução. De um lado, “o projeto de codificar em formas abstratas a
superação de uma ordem constitucional inadequada à sustentação do desenvolvimento da
burguesia, o projeto de destruir o Ancien Régime e definir constitucionalmente a organização
social do trabalho” (283). De outro, a recusa em transformar o poder constituinte em poder
constituído, o projeto da continuidade do poder constituinte e de seu exercício pelas massas.
Ou seja, para voltar ao tema das duas revoluções, enquanto a burguesia pretende concluir a
revolução política, mas interromper qualquer revolução social, o proletariado conjuga as duas
revoluções através de uma “prática radical” (280): “na continuidade do poder constituinte, e em
seu nome, o espaço social é sobreposto ao espaço político” numa mesma temporalidade (285).
Então, “a novidade introduzida pela Revolução Francesa na teoria do poder constituinte
consiste na reapropriação prática de sua temporalidade – uma temporalidade que rompe toda
intermitência e/ou separação da política e, deste modo, introduz o poder constituinte no terreno
da sociedade e de sua organização, situando-o como princípio da crítica do trabalho” (285).
Negri procura demonstrar essa tese na primeira sessão deste capítulo de um ponto de vista
histórico e político, portanto, prático. Primeiro, ao apresentar a disputa das leituras que a
burguesia e os sans-culottes fizeram de Rousseau, a resolução prática de seu enigma (teórico);
e, então, ao analisar as Declarações de direitos redigidas durante a Revolução. Na sessão a que
este seminário se dedica, nosso autor buscará demonstrar essa tese do ponto de vista teórico,
examinando as obras de Sieyès e de Marx.

Para o exame de Sieyès, Negri se vale sobretudo da leitura de O que é o Terceiro


Estado?. Esse opúsculo, publicado em janeiro de 1789, portanto, antes da formação da
Assembleia Constituinte e da Revolução, é dividido em seis capítulos. Os três primeiros,
considerados panfletários e óbvios (308), são rapidamente devorados por Negri. Tais capítulos
consistem nas respostas às seguintes questões: “o que é o Terceiro Estado?” (que dá nome ao
livro), “o que ele foi até agora na ordem política?”, e “o que ele demanda?” (reproduzidas em
PC, 306, 308). A primeira questão é respondida por Sieyès em termos notadamente
econômicos. O autor francês toma a sociedade como a “sociedade comercial moderna”,
apresentando-a como “‘um conjunto laborioso, unido, e compacto’, que se realiza no trabalho
social organizado pela burguesia” (307, grifo meu). Diferentemente das demais ordens sociais,
“o Terceiro Estado contém em si todos os elementos que, em termos econômicos, formam uma
nação, abraça todas as atividades produtivas, é livre e florescente” (306). Logo, considerado
desse ponto de vista, o Terceiro Estado é tudo. E quanto à ordem política? “Se o que faz uma
nação é uma lei comum que, a partir da organização social do trabalho, instaura uma
representação adequada, nada do gênero existe na França” (308). Pelo contrário, há na França
uma ordem política em que a aristocracia usurpa para si todo o comando e toda função de
representação (306). Isso é verificado, por exemplo, na Assembleia dos Estados Gerais que,
com sua divisão tripartite e seu sistema de votação por estamentos ou ordens sociais, funda-se
“em um critério injusto de representação, que não corresponde à ordem social e supervaloriza,
desproporcional e escandalosamente, as minorias” (308). Assim, do ponto de vista político,
eternamente derrotado por 2x1, o Terceiro Estado é nada. Como consequência dessa
contradição, a partir da indignação contra a usurpação da aristocracia, o Terceiro Estado
demandará tornar-se algo. “Pede que os seus representantes não sejam virtuais, mas reais; que
o número de representantes do Terceiro Estado seja igual ao dos outros Estados; que os votos,
nos Estados Gerais, sejam tomados ‘por cabeça’, e não por ordem” (308). Pede, em suma, “que
seja dado um pouco de poder a quem é tudo do ponto de vista social. Que seja dada
representação ao trabalho” (308).
Com Sieyès, “a ideia de uma constituição do trabalho faz seu ingresso solene na
história” (307). Como indicado na passagem que abre essa sessão: “lá onde os [sans-culottes]
buscam, Sieyès encontra” (306). Contudo, diferentemente daqueles, quais a questão do trabalho
aparece como crítica (pois sua temporalidade da repetição choca-se com a temporalidade aberta
e constituinte da Revolução), neste “não se trata tanto de transformar quanto de restaurar uma
ordem do trabalho já existente, pré-constituída, naturalmente justa, que a aristocracia domina,
sem dela fazer parte (307). O atual ordenamento político francês é problemático porque ele não
corresponde à ordem existente da produção e a torna disfuncional (lembrar do projeto da
burguesia em 283). Dessa maneira, “o problema de Sieyès é o de construir uma sociedade
política moderna que represente corretamente as estruturas econômico-sociais do país sem
agredi-las” (308), um problema, dirá Negri, completamente conservador (307, 308).
Devorados os três primeiros capítulos de O que é Terceiro Estado?, Negri passa ao
exame dos três últimos, onde cessam a obviedade e o caráter panfletário do opúsculo de Sieyès.
O quarto capítulo do referido opúsculo é dedicado à discussão das propostas dos governos “em
benefício do Terceiro Estado” (apud 309). As propostas são consideradas “inaceitáveis – em
geral, puras armadilhas, ardis, enganos”. Salvo uma, mais substancial: a de “imitar a
constituição inglesa”, isto é, “introduzir uma Câmara Alta” (309). Qual o objetivo dessa
proposta, todavia, se o clero e a nobreza são já plenamente representados (e, mais que isso,
sobrerrepresentados) na ordem política? O objetivo é o de “reafirmar uma constituição
representativa das ordens sociais” (309), ou seja, a de manter a distorção política da usurpação
do Terceiro Estado pelos demais. Embora seja mais substancial, essa proposta é também
inaceitável para Sieyès e à crítica da constituição inglesa é dedicado todo o último parágrafo do
capítulo quarto. “Mais que ‘exprimir a simplicidade da boa ordem’ [ela] apresenta-se, antes,
como ‘estrutura de precauções contra a desordem’” (310); a divisão representativa em três
elementos é considerada ruim em sua totalidade e na particularidade de suas divisões; os únicos
elementos que fazem dela uma boa constituição – para os ingleses – são aqueles advindos do
social. “A constituição britânica é um produto antigo, do século XVII: não conhece as Luzes,
nem a ciência” (310), mas poderíamos acrescentar, pouco conhece a moderna sociedade
comercial. Se a nação é una e o Terceiro Estado é tudo, “qual é o objetivo de dividir em três
atores a capacidade legislativa? Só uma eleição livre e geral pode fundar um poder legislativo
nacional” (310).
É preciso, então, considerar os avanços mais recentes na construção de uma constituição
moderna. Sieyès pretende fazê-lo no quinto capítulo de O que é o Terceiro Estado?, onde é
respondida a questão: “O que deveria ter sido feito?” (apud 310). Aqui começa a grande
operação sieyèsiana de definição do poder constituinte, feita em três passos. No primeiro, o
autor francês estabelece a nação como fonte última do poder constituinte. Mas a nação só é
consultada através de uma “vontade comum representativa”, de um “governo exercido por
procuração” (apud 310). Aqui, a distinção escolástica entre fonte e exercício do poder,
rechaçada pelo povo no decorrer do processo revolucionário (283), é retomada, estabelecendo
a divisão entre representantes e representados, pois, não obstante a “vontade comum” seja
qualitativamente “plena e ilimitada”, considerada quantitativamente ela só pode ser exercida
“por comissão”. Este primeiro passo “impede desde logo qualquer interpretação extensiva do
poder constituinte e qualquer possibilidade de prefigurar uma organização que não seja a do
trabalho, mas da democracia” (311). O segundo passo consiste na distinção entre as normas
constitucionais e as normas legislativas. Distintas, as normas constitucionais e legislativas têm
como fundamento de seu exercício dois poderes, também distintos: “o primeiro, extraordinário,
é o poder constituinte, o segundo, ordinário é o poder constituído” (311). Este, que atua segundo
as normas do direito positivo, é posterior àquele, que atua de acordo como direito natural, que
só pode ser interpretado pela nação. Portanto, o que se coloca aqui, junto à extraordinariedade
do poder constituinte, é a anterioridade da própria nação: “a primazia da nação é total” (311).
Finalmente, com o terceiro passo de Sieyès nos encontramos frente um perfeito silogismo. A
“vontade comum”, isto é, a vontade nacional “está na origem de toda a legalidade”, é poder
constituinte (311). Esta vontade, porém, só pode ser exercida através da representação, é
“vontade comum representativa” (310). Portanto, o poder constituinte é remetido ao poder
constituído. “O poder constituinte é, portanto, ‘um corpo de representantes extraordinários...
[que] não precisa ter a seu cargo a plenitude da vontade nacional; não necessita senão de um
poder especial para essas ocasiões extraordinárias; em sua independência face às formas
constitucionais, ele substitui a própria nação’” (311).
Por fim, Negri examina o último capítulo do opúsculo de Sieyès: “o que resta a ser feito”
(apud 312). Realizada a operação de definição do poder constituinte, suas consequências serão
relativamente simples. O que resta a ser feito é uma assembleia constituinte, isto é, uma
“assembleia que exerça o poder constituinte com base na eleição geral, sem privilégios [que se
oponham à ordem do trabalho], de uma representação da nação” (312).
Este é o exame do pensamento de Sieyès e sua relação à nobreza e o clero. Sob esse
ângulo, ela se revela, diz Negri, uma “formidável máquina de guerra [...] contra o privilégio e
a usurpação”. Mas além disso, essa obra volta-se também às massas. Sob esse ângulo,
“precisamos ver que não se trata simplesmente de teoria a revolução do Terceiro Estado, mas
de organizar uma contrarrevolução preventiva contra qualquer possível atentado à nova ordem”
(312).
Esse segundo aspecto do pensamento de Sieyès está presente já no quinto capítulo de O
que é o Terceiro Estado. Por essa razão Negri nos convida a retornar ao conceito de
representação lá presente. Diversamente das sociedades antigas, em que “a simplicidade e o
imediatismo das relações sociais permitiam a democracia” (312), as sociedades modernas são
descritas pelo pensador francês como “ricas em mediações” (307). Tais mediações, verificadas
no social através da “divisão do trabalho”, devem estar presentes também no âmbito político:
“O ‘concurso mediato’ é típico [...] do ‘governo representativo’. [Nas sociedades modernas], o
governo representativo é a única forma de governo legítimo” (312). Como vimos, isso vale
também para o poder constituinte. Um terceiro poder, então, surge: o “poder comitente”,
“concebido como distinto tanto do ‘poder constituinte’ como do ‘poder constituído’” (312). O
poder comitente, anterior ao poder constituinte (já absorvido pela representação) (Cf. 10-1), é
compreendido como o “conjunto dos cidadãos ativos, individualmente considerados (312). Sua
função teórica é introduzir “critérios rigidamente restritivos na formação da representação”
baseados em elementos naturalistas, aritméticos e censitários, de modo a desenha o corpo
eleitoral para ser uma corporação aberta de proprietários e excluir as massas de sua formação.
Assim, a Assembleia Constituinte torna-se um corpo de “notável”, possuidores, agora, “daquela
soberania absoluta que emanava da vontade geral de Rousseau” (313). Nesse movimento,
também o conceito de nação é invertido. Princípio de todo o poder, o conceito de nação é
duplicado através do mecanismo da representação. Como vimos acima, a nação só pode ser
consultada através da representação. Nesse sentido, a representação torna-se um sujeito jurídico
absoluto, em sede exclusiva da soberania. Não mais a nação, uma “vontade comum” nacional
é a fonte do poder, mas a assembleia constituinte: “o princípio eletivo é proposto como único
fundamento da legitimidade do exercício do poder, como única e exclusiva atividade jurídica
de interpretação da sociedade” (314).
O poder constituinte transforma-se, assim, num “poder que estabelece limites [...] que
se referem, antes de mais nada, a ele próprio” (314, cf. também 10-1). Antes poder aberto,
expansivo e permanente, ele é então enclausurado nas amarras da representação e da divisão do
trabalho. Essa operação, sustenta Negri, será acentuada com o decorrer da Revolução até seu
Termidor. “A partir daí, a própria representação não poderá senão ‘repousar no princípio
racional da divisão do trabalho que, aplicado à política, exige que esta seja considerada como
uma atividade especializada, confiada a pessoas esclarecidas e competentes, que disponham de
tempo e de meios para se consagrar a ela’” (315). Ora, mas essa ideia não estaria presente na
proposta de uma Câmara Alta anteriormente recusada por Sieyès? Sim. Portanto, o que ocorre
aqui é uma mudança de curso. Essa mudança é justificada por Negri segundo duas causas: a
“causa formal” residiria na ligação da ideia de constituição às ideias de sociedade econômica e
de organização do trabalho (316); a “causa eficiente” estaria na concepção de poder constituinte
das massas, que obrigaram (do ponto de vista político) um desvio de rota à classe dominante
(315). Somadas às causas aristotélicas, Negri destaca ainda uma razão teórica para tal desvio:
a influência renovada de um estudo de Jean Louis de Lolme sobre a constituição inglesa (315).
A centralidade do trabalho, posta praticamente pelas massas segundo a exposição da
sessão anterior deste capítulo, é colocada, agora, teoricamente. Mais uma vez, “lá onde [a]s
primeir[a]s buscam, Sieyès encontra” (306). Sua concepção, “nunca discutida, nunca exposta à
crítica, mas sempre desenvolvida implicitamente, é a de que o espaço político é a organização
de um espaço social, ou seja, de uma temporalidade determinada e de um modo de produção
específico. A imaginação constitucional registra a dinâmica social. O pensamento de Sieyès é
permanentemente percorrido por essa sólida convergência entre a constituição e a imagem da
sociedade, como se a primeira devesse trazer à luz as normas implícitas e as tendências latentes
na segunda. Sob esse ponto de vista, a constituição de Sieyès é a superestrutura imediata
daquela sociedade comercial da primeira arrancada capitalista, que faz da ordem do trabalho
seu único fundamento” (316). O autor francês, prossegue Negri, dá um grande passo no
pensamento constitucional: “ele faz do trabalho o centro do debate e da construção
constitucional” (316). Esse avanço teórico não deixará de ter consequência políticas. Com o
trabalho no centro do debate constitucional, ou seja, com uma categoria social no centro do
embate político, a luta é aberta no terreno social. É possível, assim, esclarecer algumas questões
apresentadas no capítulo anterior. A temporalidade aberta e constituinte das massas desenvolve-
se de forma antagonista à temporalidade do trabalho encerrada na constituição. Nesse sentido,
“a centralidade do trabalho unifica aquilo que a constituição e a temporalidade revolucionárias
desenvolvem em termos de antagonismo” (316). Além disso, no entanto, “a centralização do
trabalho separa as potências que são definidas em torno do trabalho”, as duas
“autoconsciências”, nas palavras de Hegel, aquela que pretende encerrá-lo temporalmente e
aquela que pretende manter aberta a temporalidade, a burguesia e o proletariado. Tratar-se-á de
decidir “quem é hegemônico no mundo do trabalho” (316)

Até aqui, vimos a prática das massas, a temporalidade dos sans-culottes, romper o
enigma teórico de Rousseau, mas também o encerramento constitucional do trabalho operado
por Sieyès. Mas, não haveria algum desenvolvimento teórico que se colocasse do “ponto de
vista” das massas, de sua prática revolucionária? Sabemos que sim. Vimos no capítulo 1.3 a
inadequação das remissões a sujeitos genéricos (nação, povo, etc.) e o aparecimento de Marx e
de um sujeito material do poder constituinte. A argumentação iniciada lá será retomada adiante.
Para Marx, “o caráter arquetípico da Revolução Francesa reside no fato de que ela põe
o tema da mediação entre o social e o político, fixa o conceito de poder constituinte, introduz a
problemática do ‘partido’ (ou seja, do sujeito que vive e realiza a passagem do social ao
político). A Marx não interessam tanto as causas da Revolução; o que interessa é compreender
como essas causas objetivas foram configuradas subjetivamente, como os movimentos de
massa tornaram-se criadores” (319). A partir dessa hipótese de leitura, Negri percorre os
“períodos” (318) em que Marx faz seu exame da Revolução Francesa.
O ponto de partida de Marx é o da “situação pública” ou o do “espaço político” criados
pela Resolução Francesa. Estes agora celebram “a força da hegemonia burguesa na assim
chamada “emancipação política”, e o faz dando-lhe aparência de ‘poder constituinte’” (319).
Sabemos que o poder constituinte “é uma essência material que se instala e se renova em todas
as dimensões do político e do social, indistintamente” (280). O produto da Revolução, porém,
foi a alteração da dimensão política e a manutenção da dimensão social. A partir dessa “síntese
revolucionária” (320), no sentido de resultado da Revolução, Marx moverá sua crítica,
colocando a solução do enigma rousseauniano não no terreno da prática constitucionalista,
como Sieyès, mas no terreno da prática revolucionária, como os sans-culottes. A condução da
crítica à problemática do sujeito é operada n’A Ideologia Alemã. Lá, a divisão do trabalho
subjaz a crítica como seu pressuposto e o poder constituinte “manifesta-se como comunismo”.
Bem como o poder constituinte, o comunismo é um “movimento real que abole o estado de
coisas existente” (apud 320). Ao deixar intocada a organização social e a divisão social do
trabalho, a Revolução, então, “não deve ser assumida como revolução do trabalho, mas como
revolução ‘burguesa’ do trabalho; ela assume a divisão do trabalho para exaltá-la enquanto tal”
(321).
Dos dois sujeitos políticos resultantes da Revolução, portanto, a burguesia não pode ser
o sujeito adequado (cf. cap. 1.3) do poder constituinte. Ela mantém a base da exploração social.
Será no proletariado que Marx reconhecerá o sujeito capaz desse poder. O exame desse
reconhecimento é feito por Negri a partir da leitura d’A ideologia alemã. Nesse trecho de sua
exposição, Negri praticamente interrompe sua própria fala e o modelo de citações indiretas
dedicado a Sieyès e a outros autores, fornecendo a Marx todo o espaço necessário para
evidenciar seu posicionamento teórico (e político). Aqui, não retomaremos as citações integrais
que Negri faz de Marx. Caso seja necessário, podemos voltar a elas ao fim do seminário.
Limitar-nos-emos a expor que em A ideologia alemã, o proletariado é reconhecido como sujeito
adequado ao poder constituinte porque é visto como 1) classe universal, ou, se quisermos fazer
uma analogia com as considerações sobre Terceiro Estado, o proletariado é tudo; 2) antagônico
à burguesa, isto é, à classe que procura capturar o trabalho, encerrando-o temporalmente; 3)
temporalidade radical, no sentido em que abole o atual estado de coisas em direção a um novo
tempo e, por isso mesmo, como 4) sujeito revolucionário, pois essa transformação só pode
ocorrer com um movimento prática, uma revolução (321-2).
“A partir daí, a definição subjetividade histórica – isto é, temporal e evolutiva – da força
constituinte, e também a radicalidade de sua obra de fundação”, ou seja, os elementos que
qualificam o proletariado como sujeito do poder constituinte, “não foram senão aprofundados”
(322). Isso ocorrerá em A miséria da filosofia, mas será nos escritos históricos de Marx que a
relação ente o “movimento real” e o “estado de coisas existente” alcançarão uma “altíssima
expressão” (323). Em Revolução e Contrarrevolução na Alemanha “as revoltas proletárias do
germinal do Ano III e de junho de 1848 parisiense tornam-se o símbolo de uma revolução
constitutiva permanente, ou de um poder constituinte permanente, que formam a trama do
século XIX” (323). O tema do retorno aos princípios, da reforma permanente de Maquiavel
(119) é retomado, aqui, em termos revolucionários e vinculado à subjetividade proletária: “em
Marx, a constituição do trabalho [...] abre-se, assim, a uma alternativa imanente e contínua,
caracterizada pela abertura sempre renovada do poder constituinte. O tempo é a dimensão
fundamental desse poder constituinte. Essa temporalidade é requerida em dois sentidos:
extensivamente, ou seja, no sentido da permanência do processo revolucionário e constituinte;
intensivamente, no sentido de um processo que, através de acelerações, momento de crise e de
ofensiva, faz amadurecer os próprios conteúdos do poder constituinte em direção a horizontes
de consistência prática teórica, de consolidação da consciência coletiva e de suas condições de
liberdade, cada vez mais universais. É o tempo das massas que faz o poder constituinte” (324).
Este tempo das massas opor-se-á não somente ao tempo fechado do trabalho, mas
também, evidentemente, ao tempo da constituição que o organiza. A partir daqui, é a própria
sociedade burguesa, produto da revolução, que se vê ameaçada pelo poder constituinte: “em
sua vitalidade, o poder constituinte e o próprio conteúdo progressista das chamadas liberdades
e instituições burguesas ameaçavam a dominação política da burguesia porque – e na medida
em que – o sujeito constituinte simplesmente mantinha a própria ação aberta à temporalidade”
(265-6). Rompido o nexo constitutivo ente poder e potência, isto é, no caso dado, entre poder
constituído e poder constituinte a “catástrofe da liberdade apresenta-se como destino”, ou seja,
como o cume de um movimento contínuo, permanente, que destrói o estatismo, a imobilidade
da situação atual.
Finalmente, o exame marxiano chega ao seu ápice nos escritos sobre a Comuna. “Nesses
escritos, o poder constituinte revela-se conclusivamente em todas as suas características: como
poder de ruptura, ou seja, como poder de refundação radical da organização social”; como poder
expansivo, isto é, como movimento irrefreável que acrescenta aos efeitos sincrônicos da ruptura
os efeitos diacrônicos da continuidade e da capacidade formadora constante; como revolução
permanente e, assim, como procedimento da liberdade e da igualdade” (327). Quanto ao
primeiro ponto, Marx afirma insistentemente, desde o último capítulo do 18 de Brumário que
o proletariado demoliria a maquinaria burocrático-militar da burguesia, em vez de assumi-la.
Quanto ao segundo, a Comuna é descrita por Marx como um poder expansivo que deveria
estender-se também a outros centros industriais, fornecendo a unidade nacional de baixo, e não
“por aquele poder estatal que pretendia ser a encarnação dessa unidade, independente e até
superior à própria nação, enquanto não passava de uma excrescência parasitária” (apud 328).
Quanto ao terceiro, enfim, Marx destaca que “a grande medida social da Comuna foi sua própria
existência operante” (apud 328).
No quadro geral da teoria marxiana, então “a revolução é permanente, a constituição é
um procedimento, a liberação do trabalho é um processo”, mais que isso, um “processo
contínuo” (328). Para ilustrar tal conclusão, Negri retoma a carta em que Marx distingue o
political movement (interpretado por Negri como poder constituinte, potência, mutatio...) e o
political power. Segundo o autor alemão “todo movimento pelo qual a classe operária se opõe
às classes dominantes e tenta coagi-las com pressure fron without é um polítical movement”
(apud 329). “A radicalidade, a expansividade, a continuidade e a permanência do poder
constituinte são, portanto, as características de uma potência que, implantada no trabalho, o
libera” (329). Nesse sentido, Marx está no mesmo terreno de Sieyès, mas no lado oposto.
Enquanto este procura enclausurar o trabalho na constituição, aquele procura liberá-lo por meio
de uma prática revolucionária. Mas, encerra Negri, “o enigma da Revolução Francesa está todo
aqui, nesta passagem do quebra-cabeça rousseauniano a esta nova oposição: a oposição entre
trabalho dominado e trabalho liberado, entre trabalho constituído e trabalho constituinte (329).

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