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O LEGADO SOBRENATURAL 01

O DESPERTAR DO ELEITO
B. Williams
1a Edição
Giostri Editora
2012
A Deus, que me guiou nessa jornada toda e botou velhos e novos amigos no meu caminho até a
publicação. E aqueles que me apoiaram e deram muita força para que este livro se tornasse
realidade.

Ho je - Eg i t o
O dia já passa da metade, o sol forte queima a areia do Saara, no Egito. James Johnson, famoso
arqueólogo americano, comanda uma equipe em um grande sítio arqueológico, patrocinada pelas
indústrias Kalccune, famosa empresa do ramo tecnológico.
No grupo, integrantes conceituados de diversas partes do mundo se revezam nos enormes buracos,
cavados cuidadosamente e demarcados com fitas brancas. Escavam, investigam, separam peças,
limpam a área com paciência e cuidado, à procura de objetos históricos e significativos.
Alguns desses buracos são ligados por túneis. Em um deles, cerca de trinta trabalhadores se
ocupam em funções diferenciadas, trabalhos que duram dias e noites, sob calor e frio, sol ou
chuva, até que algo acontece.
- Achei, achei, por tudo que é mais sagrado, eu achei...
Miguel Vieira, um português nascido em Lisboa de quase dois metros de altura, de olhos grandes
e cabelos raspados, magérrimo e desengonçado, grita, corre e tropeça por onde passa, sem se
importar com nada. Chuta o que está na frente até a ala central do túnel, onde os trabalhadores
param o que estão fazendo para acompanhar a chegada daquele homem, que corre com as mãos
para cima, segurando o que parece ser uma pequena caixa.
É um baú. O artefato brilha demais, apesar de estar enterrado há séculos. A cor vibrante, dourada,
contrasta bastante com o local escuro, iluminado apenas por algumas lamparinas a gás. Na parte
superior do baú, alguns numerais egípcios.
- Sai da frente, sai, com licença, vamos, sai...
Apesar do sobrenome, Denis Muhlbauer era brasileiro, e um dos melhores amigos de Miguel. Ele
abre espaço entre os curiosos e se agacha ao lado do português. Pelo que Denis entendia, aquele
número egípcio significava um três. A caixa era pequena, mas era única, um presente dos céus,
como sussurrava a maioria, em várias línguas. Bem trabalhada, com ótimo acabamento, tinha
cerca de vinte centímetros de largura e dez de altura, mas pesava como se tivesse meia tonelada
ali. Miguel parece uma criança que acaba de ganhar um brinquedo no natal. Olha sorridente para
todos ao seu redor e se vangloria pelo achado.
Miguel não para de falar e comemorar. Aliás, isso era normal naquele lusitano de quase trinta
anos. Ele era animado e um dos poucos que fazia amizade com todos, se divertia com qualquer
coisa e fazia rir toda a expedição, com histórias mirabolantes da terra natal. Um contador de casos
para fazer inveja a Forest Gump.
- Não acredito... Meu Deus. Mais de cem homens nessa expedição, e eu, que nem sou tão
experiente assim, acho o primeiro treco realmente de valor. Vamos lá, falem... Eu sou demais, não
sou? Olhem, olhem isso, só pode ser ouro puro. Uau, não acredito. — grita, empolgado.
Em pé ao lado do português, Denis larga as ferramentas, tira o pedaço de pano amarrada na calça
e passa na testa para enxugar o suor. O calor naquele túnel era de fazer inveja ao deserto ali fora.
Sem camisa, com a calça e o corpo todo sujo por causa das escavações, Denis nem parece o
brilhante arqueólogo formado numa das mais conceituada universidades americana. A camisa
extra, amarrada na cabeça, impede que o cabelo loiro, um pouco comprido e despenteado, caia no
rosto, dando uma impressão ainda mais largada ao estudioso. Denis se aproxima para investigar
melhor o objeto encontrado pelo amigo.
- Peraí, Vieira, me mostra isso direito... Calma, não vou arrancar da sua mão. Só me mostra...
Cara, realmente, isso parece ser importante. Vale a pena acordar o preguiçoso do Johnson pra ver
isso aqui.
- Vale a pena? É lógico que vale, Denis, pode deixar que eu mesmo vou lá mostrar isso a ele.
Cara, isso é fantástico, e fui eu que achei... Uhu... Ok, da licença, da licença, o mestre da
escavação está a passar - e lá vai Miguel, andando com um ar soberbo e a passos largos. Abre
caminho entre os colegas, direto para a saída, enquanto todos continuam parados e comentando o
acontecido.
- Ei, peraí, Vieira, eu vou contigo. Quero ver a cara do Johnson ao olhar para essa coisinha.
Denis se apressa e corre para seguir o amigo, que já subia numa das escadas para a superfície, com
destino à tenda de James Johnson. Denis alcança Miguel e pula para tentar passar o braço pelo
pescoço dele. Os dois brincam animados e passam tranqüilamente no meio de outras pessoas, que
sem se importar com os amigos, continuam trabalhando. O baú refletia ainda mais com a luz solar.
Era lindo de se ver. Os dois estão a poucos metros da tenda, quando...

BUUUUM

Uma grande explosão no túnel que Denis e Miguel saíram levanta uma grande nuvem de areia,
poeira e fumaça. Do lado de fora, as pessoas caem, correm, gritam, choram e clamam em diversas
línguas, até que...

BUUUUM

Uma segunda explosão. Em outro túnel perto dos dois, segundos depois da primeira, cria ainda
mais pânico entre os trabalhadores. Denis voa para o chão com o impacto da explosão, enquanto
Miguel sai correndo assustado.

BUUUUM

Uma terceira explosão não deixa dúvidas na cabeça de Denis. Aquilo não parece ser por acaso.
"Os três principais túneis em chamas, sem chance de sobreviventes, e agora... tiros? Não pode ser.
Tiros aqui?"
Mas era. Por mais improvável que poderia acontecer. Denis levanta a cabeça, suja de areia, apenas
para ver corpos que caem sem vida ao redor do acampamento. Denis pensa em correr, mas a
perna direita não responde. Ele olha e percebe que um pedaço de ferro está atravessado perto do
joelho.
"Levanta, droga. Não deixa um estilhaço te prender aqui pra morrer".
Novamente, ele se esforça para sair do chão. Abafa um grito de dor quando apoia o pé direito para
se levantar. Mais tiros são disparados e mais pessoas caem enquanto tentam se salvar. Denis está
no meio de todo aquele caos e olha assustado e desnorteado para aquele massacre. Ele vê Miguel,
que corre na direção dele e grita algo. O que seria? Impossível escutar em meio ao pânico geral e
aos tiros de metralhadora e revólveres. Ele parece querer dizer algo importante, mas com todo
aquele barulho, é impossível entender.
Miguel joga o baú na direção de Denis segundos antes de tomar um tiro pelas costas. O atirador,
como a maioria, usa máscara e acabara de sair de uma das tendas. Logo após matar o português,
ele se vira e corre para outra tenda. Denis até pensa em correr alguns passos e pegar o objeto
lançado pelo amigo, mas um tiro no ombro, de outra direção, o faz mudar de idéia.
Ele age por instinto. Esquece o baú, vira e corre na esperança que o próximo tiro não seja fatal.
O tiroteio parece não ter fim. Para onde Denis olha, há corpos, pessoas que sangram sem parar,
homens encapuzados que miram nos alvos mais próximos. Denis não quer fazer parte de uma
contagem de corpos e continua correndo, sempre tentando manter distância de qualquer pessoa
armada. A perna e o ombro não param de sangrar.
"Um buraco? Ótimo. Alguém deve ter começado a cavar aqui hoje, é pequeno, mas dá pra tentar
me esconder" pensa.
Quando se aproxima mais do buraco, do tamanho de uma piscina de uma casa num subúrbio
qualquer, ele escorrega e cai. Ao se recompor, percebe que não foi o único a ter aquela idéia. Há
ali mais duas pessoas. Mas nenhuma viva.
Definitivamente, mais duas vítimas daquela chacina.
Denis não sabe o que fazer. Pensa em gritar por ajuda, mas isso pode atrair aqueles assassinos.
Ele ouve vozes.
- Ei, você, olhe para aquele lado, não deixe ninguém vivo, escutou? Olhe naqueles buracos lá perto
também. — Alguém ali em cima recebe ordens específicas. E Denis agradece em silêncio pelas
aulas de francês da faculdade.
"Francês? Esses malditos são franceses?" pensa.
Mas a hora não era para raciocinar. Era pata se salvar. Mas como? Ele não consegue escalar o
buraco tão depressa e fugir dos assassinos. Não com a perna e o ombro daquele jeito.
O francês se aproxima. Olha em um dos buracos.
Nada.
Olha em outro. Ouve apenas um apelo pela vida, que é ignorado. Três tiros. Mais um morto.
Olha no terceiro buraco e grita:
- Ei, chefe, nada no primeiro buraco, três mortos no segundo e três mortos nesse terceiro. Tudo
limpo.
Coloca o rifle para descansar no ombro e se distancia daquelas três valas comum.
Meia hora se passa até Denis ter certeza que o nervoso realmente tinha diminuído. Os tiros e
gritarias cessaram aos poucos, quase cinco minutos depois do momento em que ele resolveu se
fingir de morto e ficar embaixo dos dois corpos que ali estavam, como se tivesse sido o primeiro a
ser alvejado. O sangue do ombro, que já está em quase toda a pele suja, se mistura com a calça
manchada pelo sangue do joelho direito. Tudo aquilo ajudou a manter a ilusão que já estivesse
morto logo quando aquele francês olhou para o buraco.
Foram momentos agonizantes ali dentro, quieto, esperando tudo acabar. Quando a inanição toma
conta, percebe que é hora de encarar a superfície, seja lá o que houvesse.
Com dificuldade, Denis escala os dois metros que o separam da superfície. A dor no braço e na
perna já não era importante. O melhor é continuar vivo.
Ao sair daquela quase cova, a única coisa que Denis enxerga é areia. Não há vivos ou feridos, não
há tendas, não há marca alguma do que aconteceu. As fumaças em todas aquelas escavações
tinham se dissipado. O clima ainda é pesado, afinal, ali é um verdadeiro cemitério, mesmo sem os
mortos.
"Deus" pensa, "Não pode ser. Quem faria isso? Por quê? Cadê tudo? Todos?".
O relógio marca 18h50min, a areia do deserto já cobriu qualquer vestígio de sangue. O
acampamento fica a quilômetros de qualquer cidade, nenhum curioso ou autoridade realmente
deve ter ouvido o que aconteceu ali. O Jipe com alimentação e remédios chegará somente em dois
dias.
Ele não pode esperar tanto tempo. Aqueles homens podem voltar a qualquer momento. Mesmo
mal, ele não pode abusar da sorte. A melhor coisa é chegar à civilização e trazer as autoridades
para investigar aquela chacina.
Vai ser uma longa caminhada até a cidade mais próxima.

Dois dias depois, Denis acorda sem saber muito bem onde está. Os olhos demoram em se
acostumar com a luz e o ambiente.
Denis tenta se mexer, mas... Fios?
Aos poucos ele percebe que está em um leito de hospital. O quarto, todo branco, com apenas um
sofá, TV e aquela cama, sem contar os aparelhos, não deixa dúvida. O local não era grande, mas
espaçoso para o ir e vir dos médicos. A cortina na janela está semi-aberta, o que dá uma visão
privilegiada para as ruas e a agitação que acontece fora do hospital. Denis percebe o sol escaldante
que sempre cobre o Egito e começa a tentar colocar em ordem os pensamentos. Tenta lembrar
como chegou lá, mas coloca a mão na testa e range os dentes. A dor de cabeça fora do comum
impede qualquer esforço.
- Bom dia, estrangeiro. Se sente melhor hoje?
Com o reflexo ainda lento, Denis demora pra olhar a porta aberta e perceber o médico entrando no
quarto com a prancheta na mão. O arqueólogo tenta acompanhar o monólogo do médico enquanto
ele arruma os aparelhos e analisa a ficha. Aquele jaleco indo de um lado para o outro,
hipnotizando o olhar de Denis, aumentava ainda mais a dor de cabeça.
- É, estrangeiro, você nos deu um grande susto. Deu sorte de encontrar um grupo viajando no
meio do deserto. Dificilmente alguém anda por aqueles lados à noite. E agradeça ao seu Deus por
estar vivo, você perdeu muito sangue. Se eles não tivessem trazido você pro Cairo o quanto antes,
você não iria agüentar. É, parece que tudo está sobre controle, você não corre mais risco de morte.
Parabéns. Descanse e se precisar de algo, toque essa campainha atrás de você. — explica o
médico, com um sotaque americano meio enrolado.
Denis tenta entender tudo, mas os pensamentos se perdem nas palavras do doutor.
"A noite? Ótimo, até que eu andei bastante. Cairo? Legal, Cairo é bom, preciso avisar alguém
sobre o que aconteceu. Preciso levantar".
- Ei, ei, ei, estrangeiro... Calma lá. Você ainda não está em seus melhores dias. Fica deitado aí.
- Doutor... Fala minha língua? Português? Não... ai... tudo bem... Inglês... ai... Doutor... preciso...
da... polícia... morte... ai, minha perna... meu ombro.
- Seu inglês é pior que o meu, estrangeiro, mas tudo bem. Você está delirando, calma, vamos
descansar, é melhor. Qualquer coisa, já sabe. Campainha, está bem?
Com uma mão na nuca e outra no peito de Denis, o médico o deita suavemente e puxa o lençol
até cobrir todo seu paciente. Antes que Denis pudesse dizer algo, ele vai embora, com a prancheta
embaixo do braço.
"Preciso sair daqui, ir à polícia, sei lá. Eles já devem ter visto tudo que aconteceu, tenho que saber
o que houve... Opa, tontura, melhor não levantar agora, deixa pra depois".
Denis fecha os olhos e coloca a mão na cabeça. Aquela dor insuportável não para nunca. Ele
relaxa e adormece logo em seguida.
A lua já ilumina o céu do Cairo. Denis acorda aos poucos, sem saber por quanto tempo dormiu.
Passou mais um dia? Ou dormiu apenas a tarde toda? Pelo menos a dor de cabeça havia passado e
ele se sente mais revigorado. A perna e o braço não doem tanto quanto antes. As idéias já fazem
mais sentido e ele não está tão devagar quanto no momento do encontro com o médico. Tanto que
percebe rapidamente o barulho de passos, que quebram o silêncio do corredor do hospital e
chegam até a porta do quarto.
"Médicas não usam salto alto? Usam?" pensa.
A melhor coisa é virar pro canto e fingir que está dormindo. Talvez aquela mulher nem viesse para
o quarto dele, talvez passasse direto, mas algo na cabeça dele diz para tomar cuidado.
Com um olho fechado e o outro semi-aberto, Denis, deitado, consegue enxergar a porta que se
abre um pouco. Um vulto parece estudá-lo com bastante precaução, a ponto de evitar fazer
barulho ao se esquivar pela porta encostada. Quando o vulto chega perto, Denis pode notar, com a
ajuda da luz que vinha pela janela, a presença de uma mulher linda, maquiada, de vestido longo,
que parece ter saído de uma festa de gala. Mas aquele jaleco quebrava um pouco o estilo garboso
daquela loira fatal de quase um metro e oitenta.
A incerteza reaparece em Denis. O que aquela mulher estaria fazendo lá? Ele continua inerte,
fingindo dormir. Ela se aproxima calmamente, e por segundos admira o enfermo na cama. Abre a
bolsa e tira uma seringa com um líquido azulado.
- Eu sinto muito. Você até que é bonitinho, mas eu tenho que fazer isso. — sussurra a mulher no
ouvido de Denis.
Rápido como uma flecha, Denis abre os olhos e surpreende a mulher. Ele agarra a moça pelo
pescoço e a puxa para a cama. A adrenalina faz Denis esquecer o ombro ruim, pois se mexe e
coloca a outra mão na boca dela, impedindo qualquer direito de resposta.
A seringa voa para o chão. Denis consegue se sentar, ainda segurando a mulher, e termina de
imobilizar a intrusa.
- Qual é a sua, hein? — diz, baixinho, perto dela - Entendi muito bem seu francês, gracinha. Você
quer me matar é? Por quê? Você está com aqueles assassinos né? Fala alguma coisa, droga.
Ao tirar a mão da boca da misteriosa mulher, Denis escuta o que não queria.
- Você já era. Mais gente está vindo. Eu já dei o sinal — diz a mulher, sorrindo.
Antes de conseguir qualquer outra resposta, um homem forte e negro chuta a porta e saca uma
arma. Denis rola pra fora da cama na hora e puxa a mulher com ele. Todos os fios pelos quais
Denis estava ligado são arrancados bruscamente. Os aparelhos caem no chão, fazendo bastante
barulho.
Denis segura o grito de dor.
Livre de Denis, a mulher grita em francês para que o homem não atire. Em vão. Ele apenas mira e
descarrega o revólver.
Pelo menos três tiros acertam o peito da mulher, que morre na hora. Denis, atrás dela, sai ileso.
- O que está acontecendo aqui? — grita Denis.
Pelo corredor, médicos correm para saber o motivo da balbúrdia no hospital. O atirador se vira,
saca outra arma, joga a vazia no chão, e atira nos médicos. Dois deles morrem e outro pula dentro
de um quarto para se salvar.
Agora o pânico é geral pelo corredor.
O atirador volta a atenção para o quarto. Quando se vira para terminar o serviço, Denis acerta um
pesado aparelho no rosto do homem, que cai no chão. Denis pula por cima dele e corre, mesmo
mancando, no meio de outros pacientes e médicos. O homem negro se recupera aos poucos,
balança a cabeça, segura novamente a arma, mas percebe que ainda está zonzo para mirar e atirar.
Com a vista embaçada, enxerga Denis correndo desesperado para a saída de emergência. Ele se
levanta e vai atrás do arqueólogo.
Denis abre a porta das escadas e desce pulando de três em três degraus, com a respiração ofegante.
Percebe a afobação tarde demais quando não consegue puxar o ar. E a perna volta a doer. O
ombro não parece ser um problema tão grande quanto aquela perna, que começa a sangrar
novamente.
Ele ignora a dor, e em meio ao caos em todo o hospital, consegue alcançar a saída, já no meio da
rua, com aquela típica e ridícula camisola de hospital, sabe que logo a polícia iria chegar e percebê-
lo ali. Ele para e olha para os lados, sem saber pra onde correr. Quem passa na rua acha graça ou
estranha aquele homem com um ar desesperado.
Alguém agarra o braço de Denis. Ele vira rapidamente tentando se esquivar.
- Calma. Sou eu. O doutor Al-Berek. Conheço você. Estava cuidando de você hoje cedo,
esqueceu? O que faz no meio da rua, seu maluco?
Denis reconhece o médico e fica mais aliviado.
- Por favor, doutor. Há um maníaco lá dentro. Atirando em todo mundo. Ele quer me matar.
AJ-Berek olha para o hospital e percebe o corre-corre de seguranças para dentro do prédio e de
enfermeiros e pacientes para fora dele.
- Vem, me segue, deixei meu carro aqui perto. — o médico diz.
Denis apenas consente com a cabeça. Os dois correm até o carro, e Al-Berek deixa o local e
acelera pelas ruas da cidade.
- Talvez eu me complique por te dar carona — o médico fala enquanto dirige e olha por todos os
espelhos, preocupado. Denis balança o corpo pra frente e para trás, tentando respirar fundo e se
tranqüilizar. - Mas não poderia te deixar lá perdido. Você realmente tem sorte, estrangeiro. Ei, sua
perna voltou a sangrar é? Estanque com uma camiseta minha, atrás do seu banco. Eu cuido de
você chegando em casa.
Denis está confuso demais. A perna dói, e é melhor fazer o que diz o médico. Ele se apoia no
banco e vira para pegar uma camiseta, mas percebe uma coisa estranha.
Uma tatuagem na nuca de Al-Berek, bem pequena, um Olho de Hórus.
Denis se lembra na hora de ter visto uma igual no braço forte do homem negro no hospital. E
percebe mais. A mulher bem vestida, assassinada pelo homem negro, também tinha uma
tatuagem daquela na mão direita.
Ele pega a camiseta, volta a se sentar no banco como se nada passasse pela cabeça dele e, como o
médico mandou, estanca o sangramento.
- Hã, doutor, é melhor me deixar aqui. Eu me viro, obrigado.
- Que isso, estrangeiro, vocês está sangrando, eu te levo para casa, cuido de você lá, e depois você
parte pra onde quiser.
- Melhor não, você me ajudou bastante. Pode parar aqui, é sério.
Denis tenta abrir a porta, mesmo com o carro em movimento, e força ainda mais a maçaneta ao
perceber que está trancado ali.
- Calma, estrangeiro, não precisa ficar nervoso. Calma.
Não ia adiantar ficar de conversa. Denis joga o corpo em cima de Al-Berek e consegue destrancar
a porta. O médico até tenta segurá-lo, mas ele já abre o lado do passageiro e pula para fora,
rolando no meio da calçada.
Enquanto se levanta, ouve a brecada brusca. Carros buzinam e desviam. Denis sabe que era AL-
Berek parando o veículo. Ele não o deixaria vivo também. Sem olhar para o carro, Denis sai
correndo. Apenas ouve o médico, fora do carro e encostado na porta, amaldiçoá-lo em uma língua
estranha.
"Ótimo... E agora? Preciso sair desse país o quanto antes. Não dá mais pra confiar em ninguém
aqui. Meu Deus. Só tem uma pessoa que pode me ajudar, só espero chegar vivo até lá".

Dois Dias Depois

Nicholas está parado na frente do computador há muito mais tempo que o normal. Ele precisa de
uma boa história, mas as idéias lhe fogem à cabeça. Ele olha para o calendário à esquerda da mesa
e não consegue parar de pensar no que aquele dia representava para ele.
Completava um ano do acontecimento que mudou a vida daquele jornalista para sempre.
Ele não para de lembrar de todo aquele sofrimento, mas sabia que mergulhar no trabalho era a
melhor coisa a fazer. Nicholas ama aquela profissão, sempre tentou inúmeras coisas na vida, mas
era mesmo no jornalismo que se sentia realizado.
Escrever, escrever e escrever. Sem parar. A melhor coisa a fazer.
Dia vinte e seis de agosto, exatamente um ano atrás, uma falha mecânica em um avião que voltava
de Los Angeles tirou a vida de cento e trinta pessoas, entre elas, os pais de Nicholas. Uma perda
que ele não consegue superar.
O jornalista fecha os olhos e se concentra, espera algo que o inspire a começar seu texto, afinal, o
chefe era bem rigoroso com as datas de entrega das matérias, e ele não tinha nenhuma até o
momento.
Nicholas respira fundo, solta o ar e volta a respirar profundamente. Começa a entrar num mundo
particular. Esquece de tudo e se sente sozinho, na busca de alívio para aquele momento e alguma
luz para guiá-lo pelas linhas desconhecidas daquele texto. Não dura muito até ele abrir os olhos por
um segundo e lembrar onde está.
O barulho e a bagunça na redação do maior jornal de São Paulo, o "Foco da Notícia", trazem
Nicholas de volta a realidade.
Aliás, Nicholas adorava aquele clima. Também, só podia gostar mesmo. Afinal, só para chegar ao
jornal já é uma emoção. Pegar a Marginal Tietê lotada de carros, desviar de motoboys malucos,
parar num estacionamento bem suspeito e andar e andar até a ponte do Limão. Dentro do prédio,
mais agitação. Pessoas que conversam e andam de um lado para o outro, tomam café e riem alto.
Gritam ao falar ao telefone. Nicholas é apenas mais um naquele amontoado de computadores e
jornalistas. Mas na sua mesa, Nicholas se sente o único, e adora tudo aquilo.
O chefe de redação, William Skivinatto, é uma figura pública, mundialmente conhecida, que
exigia demais dos subordinados, e de Nicholas em especial, tudo graças às grandes matérias feitas
por ele através dos anos. William já ganhara milhares de prêmios em todos seus trinta anos de
profissão. Hoje, com 57 anos, considera-se mais maduro do que nunca, e como ele mesmo gosta
de falar, 'sou melhor que vinho, meu faro fica cada vez mais aguçado a cada ano que passa'. E
desde o primeiro prêmio de Nicholas, Willian se diz ameaçado pelo melhor jornalista com quem
trabalhou.
William queria uma grande reportagem. Queria que Nicholas subisse cada vez mais na vida, e o
pupilo não poderia decepcioná-lo, mas não havia pensado em nada até aquele momento.
- Ei, Nick, venha até aqui, rapaz. — William abre a porta da sala e grita para Nicholas, que
rapidamente se levanta e corre até ele.
- Fala, Wiski, algum problema?
- Sim — diz enquanto se acomoda novamente na gigante cadeira atrás da mesa — Deus do céu,
Nick. Primeiro, por favor, já falei milhões de vezes que pare de me chamar de Wiski — Nicholas
havia feito uma brincadeira com William há muito tempo. Percebeu que as primeiras letras do
nome e do sobrenome de seu chefe, foneticamente, lembravam a bebida. Mesmo não escrevendo
igual, Nicholas achou que seria uma boa piada. Obviamente, William odiou, o que não impediu
Nicholas de usar esse nome sempre que encontrasse o chefe. E William sabia que o amigo fazia
aquilo para provocá-lo
- E segundo, cadê a minha grande matéria? Quero mais um prêmio pro nosso jornal, Nick.
Nicholas se ajeita na cadeira. Mesmo conhecendo William há tanto tempo, ele ainda era uma lenda
no seu meio, e o respeito é muito grande. Nicholas não queria mentir para o mentor.
- Olha, Wiski, não tenho nada em mente, pra ser sincero. Hoje faz um ano que meus pais
morreram, não consigo pensar em outra coisa, desculpe.
- Um ano?! — William levanta da cadeira e se apoia na mesa — Um ano? E me diz uma coisa, o
que diabos você está fazendo aqui se não consegue pensar em outra coisa? Filho, de verdade, se
você não está com cabeça, vai pra casa. Você não deveria nem ter vindo. Só me faz um favor,
assim que você tiver uma grande reportagem, me avisa. Eu boto fé em você, Nick.
- Obrigado, Wiski, prometo te dar uma grande matéria. Mas olha, posso ficar aqui numa bo...
- Nick, vai já pra casa - William o interrompe e apenas levanta o braço para indicar a saída —
Sério, Nick, descansa e depois faça um ótimo trabalho. Assim todo mundo fica feliz.
Ao ver que não daria para discutir com o chefe, Nicholas levanta, agradece e sai da sala, pega todo
o material e reconhece que o melhor a fazer é ir mesmo pra casa.
Nicholas estaciona na garagem da residência dele, localizada na Zona Oeste de São Paulo, num
bairro tranqüilo, como ele sempre gostou. Bem diferente da balbúrdia que era o "Foco".
Ele para, mas não sai do carro, apenas joga a cabeça para trás e dá um leve suspiro. "E bom estar
em casa, quem sabe alguma coisa boa não acontece e eu paro de pensar naquele maldito
acidente... e consiga escrever algo", pensa.
Depois de alguns minutos, decide sair do veículo, deixando para trás todo seu material,
desapertando o nó da gravata e tirando o paletó, enquanto abre a porta dos fundos e acende a luz
da cozinha. Sem pensar, joga o paletó em cima de uma das cadeiras.
Abre a geladeira e bebe a água direto da garrafa, fecha a geladeira com o pé, enquanto alcança
uma banana na bancada, separa uma do cacho e deixa a fruta na mesa para comer depois.
Caminha lentamente até a sala, desabotoa a camisa enquanto anda no escuro. Ele tateia até achar o
interruptor da luz no outro lado do ambiente, até que encontra o abajur e puxa a corda para clarear
um pouco o local.
- Nick, meu velho, achei que eu ia morrer antes de te dar um olá.
O susto de ver um homem jogado no sofá faz Nicholas derrubar a garrafa em todo o carpete.
Nicholas demora para perceber que o homem ali era seu melhor amigo.
- Putz, cara, olha a sujeira. Molhou todo o tapete. Se bem que meu sangue já fez isso também,
desculpe - e solta um riso, seguido de um grito abafado de dor. Ele tosse.
- Denis, que susto. O que aconteceu? Você está sangrando? Meu Deus, deixa eu te ajudar.
Com dificuldade, Denis tenta explicar a situação, enquanto Nicholas retira uma toalha do armário
e limpa o sangue que escorre sem parar da perna do arqueólogo.
- Desculpa invadir sua casa, mas eu ainda lembro como abrir a janelinha da garagem. Foi só difícil
passar, será que eu engordei? Poxa, não parei de suar e sangrar até agora, e engordei?
- Denis, para de graça, tô preocupado com você, o que aconteceu?
- Foi mal, acho que minhas piadas pioram perto da hora da morte, né? Cof, cof... Cara, só poderia
confiar em você pra cuidar de mim.
- Mas o que houve? Quem fez isso com você?
- Boa pergunta. Não sei responder. Isso aconteceu comigo há alguns dias já. Se eu te contasse que
sobrevivi a um massacre, fui vítima de um atentado, fugi de um hospital, fiz um curativo quebra-
galho na casa de uma velhinha que caiu do céu e me escondeu por um dia, subornei um piloto no
Cairo, voltei a sangrar, parei de sangrar, sangrei de novo, cheguei em São Paulo e sangrei de novo,
e bastante, no seu sofá. Você acreditaria?!
- Calma, calma, muita informação. Como assim? Cairo? O que você fazia lá?
Nicholas levanta e vai até o banheiro do corredor, pega mais duas toalhas, senta em cima da mesa
central da sala, em frente a Denis, e continua a limpar a perna do amigo.
- Então, Nick, eu estava em uma expedição arqueológica. Recebi um convite de um dos maiores
arqueólogos do mundo, mas ele também morreu. Aliás, acho que só eu sobrevivi, e alguém quer
terminar o serviço. Não posso confiar em ninguém.
- Você tá me dizendo que estava naquela expedição no Egito? Onde alguns explosivos foram
detonados por engano e todos os trabalhadores que estavam lá morreram? Eu vi isso no jornal.
- Por engano? Jura que é isso que estão falando? Ainda bem que eu sai de lá, cara.
- Calma. Você tá delirando demais, Denis. Atentado? Massacre?
- Ei, Nick, você é esperto. Vai entender. Ou será que eu recorri ao cara errado? — Denis sorri e faz
uma cara de dúvida para provocar Nicholas.
- Você está achando que foi sabotagem?
- Eu to afirmando, Nick. Alguém sacaneou a gente. Acho que eles estavam atrás de um baú que
um amigo meu achou. Tudo aconteceu logo depois que encontramos aquilo. E eles foram atrás de
mim no hospital, Nick. Eles quiseram me matar, até meu médico quis me matar, e ele tinha uma
tatuagem igual a da mulher que tentou me matar primeiro. E um cara matou ela. Entendeu?
-Médico? Mulher? Cara? E eles se conheciam? Tinham que tipo de tatuagem?
- Não sei se eles eram amigos. Não deveriam ser, já que um matou o outro, né? Que tipo de
amizade é essa afinal? E se quiser eu desenho a tatuagem pra você, mas pode ter certeza, eles
estavam atrás do baú. Só pode ser.
- Tudo bem, eu tento descobrir algo sobre isso, mas primeiro você precisa cuidar desse buraco na
perna. Pelo visto seu ombro também está machucado, não é? Mas não parece tão sério quanto a
perna. Eu vou ligar pra um médico amigo meu, ele vai cuidar de você.
Nicholas se levanta e Denis puxa o amigo pelo braço.
- Não, cara, não chama ninguém, é perigoso. De verdade, eu te explico mais, só que não posso
confiar em ninguém mesmo.
- Tudo bem, Denis, você confia em mim, eu confio nele. Pode deixar, você vai me explicando
pelo caminho, eu ligo pra ele enquanto isso... Vamos! Eu te ajudo a levantar e a gente vai pro
hospital já.
"Dr. Bohmer, Dr. Bohmer ... comparecer com urgência à recepção, Nicholas Collaneri o
aguarda."
A voz abafada ecoa nas caixas de som dos corredores do Hospital próximo a Avenida Paulista.
- Obrigado, você é um amor de pessoa — Nick agrada à recepcionista, que retribui com um
sorriso tímido.
Enquanto bebe água em um copo de formato cônico, Nicholas encosta na parede, bate a cabeça de
leve e pensa onde havia se metido.
Até que Fábio Bohmer, um médico renomado, alto, de cabelos pretos e óculos, entra no recinto
com os braços abertos em direção a ele.
- Nicholas, Nicholas. Nicholas Raulickis Collaneri... Meu bom e velho amigo. Só você pra tirar
meu sagrado horário do café, hein?
Os dois se abraçam, com leves tapinhas nas costas, e Fábio pergunta:
- E então, o que houve para você aparecer aqui e me visitar depois de uns... o que... um ano?
Alguma nova entrevista?
- Quatorze meses para ser mais exato. Aconteceu muita coisa na minha vida, mas não da pra
contar tudo agora. Aliás, desculpa te procurar depois de tanto tempo, mas eu preciso de sua ajuda,
Fábio.
- Ei, amigos não precisam pedir desculpas. São sempre bem vindos. Deu sorte que eu não estava
em nenhuma cirurgia, senão vai saber quando você ia conseguir falar comigo, né?
- Bom... Falando em cirurgia, operar, essas coisas... Huum, é melhor você vir mais pra cá...
Preciso te contar uma coisa, mas preciso de sigilo, ok?
- Ei, confia em mim, Nicholas... Me conta, o que houve?
Nicholas continua a puxar Fábio para um canto, e resume toda a história, sob o olhar cada vez
mais assustado do médico.
- Nicholas — Fábio termina de escutar tudo e afasta o corpo para poder falar melhor — você sabe
que não posso fazer isso, é complicado colocar alguém aqui dentro sem que ninguém saiba. Tem
toda uma burocracia, tenho que dar entrada nos pacientes, remédios, há relatórios, toda aquela
papelada chata, entende?
- Fábio, eu não pediria pra você se não fosse importante. Sei que você ta arriscando sua carreira se
me ajudar, mas, por favor, eu realmente preciso disso.
Fábio respira fundo, esconde os olhos com a mão para pensar melhor no pedido, abaixa a cabeça e
sussurra:
- Droga, eu vou me arrepender disso.
Ele puxa Nicholas para o canto novamente e diz:
- Seguinte, desce para o terceiro subsolo e para perto do elevador de serviços. Lá não tem câmera.
Eu vou deixar uma cadeira de rodas lá para você colocar seu amigo. Você sobe para o quinto
andar, sai do elevador e pega sua direita. Sala 502, entendeu? 5-0-2. Eu vou estar lá e vou cuidar
do seu amigo.
Nicholas sorri, dá um beijo na testa de Fábio, e diz.
- Se você fosse UMA médica, eu juro que te dava um beijo na boca viu, obrigado cara, você não
vai se arrepender - ele corre o mais rápido possível para levar Denis ao lugar indicado.
Fábio apenas respira fundo novamente, vira as costas e chama o elevador. "Espero que eu não me
arrependa mesmo" pensa.
O elevador chega, Fábio entra, aperta o 5o andar e apenas espera a porta fechar, sem perceber que
era observado por um segurança do hospital, grande, gordo e careca, com um crachá torto em um
paletó menor do que ele, escrito "Edgar". O segurança: espera a porta do elevador se fechar e sai
do posto, entra em uma porta de acesso restrito e retira o celular do bolso, aperta 'redial' e diz:
- Alô? Sim, sou eu... O arqueólogo veio pro hospital sim... Sim, sim, pode continuar com o
esquema, eu fico de olho neles... Não, sem problemas entrar no prédio, eu libero vocês, mas tem
que ser rápido, ninguém pode desconfiar... Certo, obrigado... — E desliga o telefone.

O relógio da sala de Nicholas apita dez horas da noite, aliás, era um milagre ainda apitar, depois de
rolar pela escada. Toda a casa de Nicholas está uma bagunça, móveis rasgados e revirados, porta
retratos quebrados, eletrônicos estourados, um verdadeiro cenário de guerra.
Nicholas deixou Denis no hospital e nem sabia o que o aguardava em casa. Ele gira a chave na
porta e a abre, mas algo bloqueia a entrada. Nicholas força e percebe que uma das mesas está no
meio do caminho.
Ele procura o interruptor. Mexe pra cima, pra baixo, pra cima. A luz não acende, mas o terremoto
que sofreu a casa é visível o suficiente para que Nicholas agarre um dos pés da mesa, quebrado,
perdido no chão. Alerta, ele começa a andar pelo lugar. O barulho constante do relógio incomoda
Nicholas, que agacha, aperta o botão e desliga o aparelho, dando fim ao tic-tac. Logo olha para
cima, de onde caiu o relógio. Resolve subir as escadas para ver se encontra mais bagunça no andar
de cima.
Pé após pé, Nicholas sobe aos poucos. Faltam alguns degraus para chegar ao segundo piso. Meio
ressabiado, ele continua. A escada termina. O segundo andar estava pior que o térreo. Nicholas
olha para baixo, passa por cima de roupas, caixas, e olha atentamente por onde anda. É a desculpa
perfeita para não perceber o ataque de um homem forte, loiro, cabelo raspado, que surpreende o
jornalista. Provavelmente, ele veio do quarto.
O homem loiro aponta uma arma para Nicholas. Ele, por instinto, empurra o homem, corre e pula
alguns degraus da escada. Cai de mau jeito, mas levanta rápido, pois ouve as passadas rápidas do
rapaz armado indo atrás dele.
Nicholas olha em direção à escada. O homem já havia descido e estava próximo demais. O
jornalista não pensa duas vezes. Parte em direção ao algoz e o acerta com a única arma que tinha.
O pé quebrado da mesa. O homem desaba no chão. Nicholas se ajoelha em cima na barriga dele e
grita.
- QUEM É VOCÊ, SEU IDIOTA, E PORQUE ESTÁ NA MINHA CASA?
Mal deu tempo de ouvir uma resposta do homem grogue que tenta se recuperar do golpe. Nicholas
percebe que havia mais alguém lá.
Outra pessoa aparece no topo da escada e desce apressado, enquanto grita palavrões para Nicholas.
O segundo homem, moreno, também forte, tira Nicholas de cima do parceiro caído no chão e
agarra o jornalista pelo colarinho. Um soco joga Nicholas no meio da bagunça na sala. Ele sente o
gosto de sangue que invade a boca. Vê que o homem se prepara para chutá-lo. Os segundos
parecem passar em câmera lenta e Nicholas consegue se esquivar. Gira o corpo e rola em cima de
alguns cacos de vidro. Sente que um pedaço perfura as costas de leve, mas sabe que não pode
reclamar de nada naquele momento. Segura um grande pedaço afiado de vidro, vira de volta e
enfia o pedaço na perna do agressor. Nicholas ainda tem tempo de puxar aquele vidro para baixo,
o que abre um grande corte no homem. Ao mesmo tempo, Nicholas se levanta e empurra o
inimigo até a parede. A raiva toma conta do jornalista, que começa a dar socos sem parar no
invasor. Reveza entre estômago e rosto e provoca um estrago maior do que havia recebido.
Nicholas se cansa, afasta e vê o agressor cair no chão enquanto cospe alguns dentes. O homem
loiro, meio grogue, rasteja e procura a arma, mas logo é imobilizado por Nicholas, que volta a
subir em cima dele.
- EU NÃO VOU CHAMAR A POLÍCIA NEM NADA, SEU MALDITO, EU VOU MATAR
VOCÊ COM AS PRÓPRIAS MÃOS SE NÃO ME FALAR AGORA O QUE FAZ AQUI.
O homem loiro apenas cospe no rosto de Nicholas e diz:
- Você é um homem morto. Mexeu com as pessoas erradas.
Ele empurra Nicholas, pega a arma, aponta para o comparsa caído no chão e atira. Vira a arma
para a própria cabeça e puxa o gatilho. Nicholas só tem tempo de fechar os olhos. Ele tenta se
segurar em algo e levanta aos poucos, com a parede como apoio. Não consegue entender porque
aquele rapaz matou o amigo e se matou ao invés de atirar nele. Vai ver queriam só dar o aviso
mesmo.
"Chega" — pensa - "Deus. Definitivamente, vinte e seis de agosto não é o melhor dia do ano".

Três garotos vestem jaquetas e calças pretas e correm pela escada do hospital até o quinto andar.
Há essa hora, apenas alguns médicos estão de plantão e o corredor daquele andar, que passa por
uma reforma, é o mais vazio. Os três correm direto, sem olhar para os lados com medo de serem
observados, para o quarto número 502. Um fica a frente da porta, e dá sinal com a cabeça para os
outros dois invadirem. O maior deles, que beira os 18 anos, abre a porta e tira uma faca da jaqueta.
Era óbvio que Denis teria de morrer o quanto antes.
O segundo entra e acende a luz. Os dois param e olham para a cama...
- Está vazia.
Denis não está lá. Havia sido levado para outro quarto. Tarde demais para descobrir qual.
Ei, vocês. — Chama o segurança, um homem de cabelos brancos e pele queimada de sol,
enquanto joga a luz da lanterna no olho dos três. — O que estão fazendo nesse andar? Não
parecem pacientes e muito menos médicos.
O maior esconde a faca atrás da jaqueta, enquanto outro se aproxima, bem perto do segurança,
inclina para frente e diz:
- Ei, vovô. Melhor você ficar na sua, a gente já tá de saída, você não vai querer encrenca pro seu
lado.
- Olhem aqui garotos, eu tenho mais anos de profissão do que vocês têm de idade, já vi de tudo, e
vocês não me amedrontam - diz com a mão no coldre.
O garoto ainda encara o segurança.
- Quer apostar, vovô?
- Ei. Vocês ouviram o homem. Melhor saírem já. — O segurança chamado Edgar aparece com a
arma na mão, ao mesmo tempo em que deixa à mostra o pulso, que continha a estranha tatuagem.
- Ei, é ele. — sussurra um dos garotos.
- Ok, vovô — fala o outro, enquanto se distancia do segurança — você tá livre dessa. Cuidado pra
não cruzar meu caminho de novo hein? Vambôra moçada, não tem nada de bom nesse andar
mesmo.
Os três saem rápido para as escadas, do mesmo jeito que entraram.
- Estranho esses garotos, não, Ed? Vou avisar a portaria.
- Não precisa, Carlos, deixa pra lá. Vamos, temos uma ronda ainda para fazer.

A correria diária no "Foco da Notícia" não é mais novidade para ger ninguém. Até mesmo quem
entrou há pouco tempo no jornal sabe o que fazer de cor e salteado.
A única coisa que faz todo mundo parar, prestar atenção e começar a comentar pelos cantos é a
entrada triunfal de Nicholas, que deveria estar de folga.
Ele anda ofegante pela redação, de cabelos bagunçados e roupas manchadas de sangue e rasgadas.
Vai direto à sala de William, mas ninguém está lá. Então sai perguntando aos colegas onde ele
estaria.
William aparece por uma das portas, junto de Maurício Galdino, diretor geral da redação.
Maurício é um homem sério, que fica pouco por lá. Os homens o veneram pelo que ele representa
no jornalismo, e as mulheres, por sua beleza. Apesar de seus quase cinqüenta anos, Maurício tem
um físico invejável. É moreno, olhos azuis, alto, de voz grave e firme.
- Uau, Nick... A folga fez bem a você, hein? — brinca William.
- HÁ... Engraçadíssimo. Prometo rir quando eu estiver certeza que ficarei vivo.
- Hein? Que papo é esse, Nick?
- Acho que a gente precisa conversar. Bem sério. Eu tenho a matéria ideal que você precisa.
Nicholas, William e Maurício passam quase uma hora trancados na sala da diretoria.
- Peraí — diz William — só pra entender. Quais as provas que a gente tem que você não sofreu
um assalto, por exemplo?
- Will, nenhum assaltante é suicida. E nenhum diz que eu vou morrer por mexer com as pessoas
erradas. E outra, eu passei a madrugada inteira cercado de policiais na minha casa, todos eles me
interrogaram, perguntaram milhões de coisas, tiraram fotos e impressões digitais de tudo lá. Não
conseguiram me explicar porque eles se mataram. E nada foi roubado, apenas revirado.
- Nick — diz Maurício, encostado na parede, enquanto fuma um charuto - a pergunta é: Porque
eles se mataram? O que estão tentando esconder?
- Ai que tá. Eu também não tenho idéia, mas é isso que pretendo descobrir.
Maurício continua.
- Olha, não tem nenhum fato comprovado que liga esse ataque a você com a tragédia na
escavação, como você disse.
- Tem sim, Maurício. Só pode. Foi só meu amigo aparecer e esses caras apareceram também. E eu
vou descobrir porque ou quem queria esse baú, como eu te falei. Talvez eles reviraram minha casa
porque pensaram que o baú estivesse lá. Ah, ai tem. E eu vou descobrir sim. Eu só preciso do
consentimento de vocês. Eu vou fazer uma baita matéria, e podemos dar um furo. Sei que tem
algo grande atrás disso.
- Ok — levanta William, enquanto se espreguiça — Por mim está tudo perfeito. Eu confio em
você e sei do belo trabalho que pode fazer. Eu aprovo. Eu tenho alguns contatos na polícia que
podem te ajudar. Agora só depende do 'sim' do Maurício.
- Bom, acho que sou voto vencido. — Maurício também levanta, e estende a mão para Nicholas
— Parabéns, Nick, você tem sua matéria. Corre atrás.
Mais tarde, depois de um banho e roupas limpas, Nicholas senta em frente ao seu computador do
Foco da Notícia, tentando vencer o sono com um café após o outro. O telefone toca. Maurício é o
nome que aparece no visor.
- Alô? Pode falar, Maurício.
- Nick, eu andei procurando uns telefones aqui, acho que tenho uma boa ajuda para você. Um
amigo é historiador. Com certeza, ele deve ter histórias de ladrões de tesouros, caçadores de
recompensas, ou sei lá o que você acha que essas pessoas são. O cara é bom e é um nome de peso
para a reportagem.
- Legal, Maurício. Vou marcar uma entrevista com ele. Obrigado de novo.
- Disponha. Como William diz, você é nosso melhor jornalista, não? Tenho que depositar toda a fé
em você. Boa sorte com a entrevista.
A sensação de voltar para casa depois do trabalho é estranha demais na cabeça de Nicholas. Tanta
coisa aconteceu nas últimas 24 horas que ele não sabe até quando pode agüentar. E ainda mais
aceitar fazer uma matéria de suma importância como aquela. Onde ele estava com a cabeça? A
última coisa que Nicholas tinha na mente era tranqüilidade o suficiente para escrever bem.
Nicholas reluta ao encostar o molho de chaves na porta. Ia ser esquisito ficar naquela casa depois
de tudo o que passou, mas pra onde ele poderia ir também? Ele fecha os olhos, tenta esquecer
daquele sentimento ruim e abre a porta. A luz da cozinha está acesa. "De novo, não." Pensa ele.
Dentro da cozinha, Fábio e Denis conversam.
- Ei, Doutor. Olha quem chegou. Grande Nick, bom te ver, velho amigo, desculpa não levantar e
ir ai te abraçar, mas eu tenho que ficar pelo menos uma semaninha nessa linda e maravilhosa
cadeka de rodas. Cortesia do Doutor Bohmer. Pareço ou não pareço o Professor Xavier andando
nisso hein? Venham meus X-men, minha cabeça e perna estão doendo.
Nicholas entra e fecha a porta.
- Será que todo dia que eu entrar em casa, daqui pra frente, vou ter uma surpresa é?
- Poxa, e eu achando que você ia ficar feliz de me ver. — Sorri Denis.
- O que aconteceu aqui, hein? — pergunta Fábio.
- Deixa pra lá. História longa.
- Bom, Nicholas. Seu amigo falante aqui fraturou algumas costelas e levou alguns pontos na perna
e no ombro, vai ficar com lindas cicatrizes em algumas partes do corpo. Fora isso, ele tá bem. É só
não fazer mais esforço do que ele já fez que vai melhorar.
- Viu, Nick, eu vou sobreviver.
- Fábio, não sei como te agradecer. De verdade. Você nos ajudou, e muito.
- Agradeça nunca mais me mandando uma bomba dessas. Eu pedi ajuda de alguns amigos,
operamos Denis e eliminamos qualquer vestígio que ele esteve naquele hospital. Como
conversamos, o levei para um outro quarto, longe do quinto andar, como você pediu.
- Perfeito. Prometo não incomodar mais você, Fábio. Valeu mesmo pela ajuda.
- Sem problemas. Denis já sabe todos os medicamentos que deve tomar e o quanto deve
descansar.
- Sim senhor, senhor — Denis bate continência, fazendo com que o médico sorria de leve.
O arqueólogo falava pelos cotovelos, mas pelo menos Nicholas teria companhia para dormir. E
mais do que ele precisa naquela casa, depois do que passou.
- Ah — diz Denis. — Muito interessante como ficou a casa. Esse estilo jogadão, meio revoltado,
tudo quebrado e tal. Mas não combina muito com sua pose de jornalista sério. Eu demitiria o
decorador se fosse você.
É. Faltava o comentário...

Uma noite de sono nunca foi tão gostosa como aquela.


Na manhã seguinte, o sol brilhando do lado de fora da janela desperta Nicholas, que abre os olhos
com dificuldade, tentando visualizar o relógio e descobrir que horas são. Já passa das 10h.
Nicholas dá um pulo e percebe que perderia a hora da entrevista, marcada para daqui uma hora.
Sai correndo, tropeçando na bagunça que ainda se encontra a casa. Denis levanta, resmungando do
quarto ao lado, ao acordar com o barulho das tralhas pisoteadas pelo amigo.
- EEEEI, não se pode mais dormir, não? — reclama Denis.
- Foi mal te acordar cara, eu tenho que correr, dormi demais. Tenho uma entrevista marcada pras
11h - justifica Nicholas, passando toda hora pelo quarto de Denis, ora com uma calça, ora com
uma camisa, ora com a escova de dente na boca.
-Beleza. Traz uns chocolates quando voltar. Eu to debilitado aqui e mereço — diz Denis, virando
para o canto e tentando dormir novamente.
Nicholas pega todo seu material e sai correndo para a casa de Gustavo Gradícola, o tão importante
historiador.

Enquanto isso, no "Foco da Notícia", o ritmo interrupto na redação contrasta com a calma com
que William se encontra, sentado em sua cadeira, com os pés em cima da mesa, fumando um
cigarro. Pensativo, Willian parece esperar por algo, segura o pequeno relógio da sua mesa,
compara com seu relógio de pulso, volta a tragar seu cigarro e conversa sozinho.
"Nick, Nick... No que nos metemos. Espero que todo esse esforço valha a pena no final. Desculpe
não poder te avisar sobre isso".
O relógio acaba de marcar a hora cheia. 11h.
William apenas abaixa a cabeça e lamenta.
"Deus, me perdoe".
Um carro escuro, com janelas pretas e sem placa, estaciona próximo ao "Foco da Notícia", cinco
pessoas fortemente armadas saem do carro e correm em direção ao Jornal. Antes que os
seguranças na recepção pudessem reagir, são atingidos por inúmeros tiros. Os cinco parecem
totalmente entrosados, cada um sabe o que fazer e pra onde ir. Um tiro certeiro na testa da
recepcionista impede que ela ligue para alguém. Cada um invade uma sala e a única coisa que se
ouve são gritos. Jornalistas, fotógrafos, repórteres, todos esbarrando um no outro, tentando fugir do
massacre. William continua em sua mesa, de cabeça baixa, sem se mexer, apenas ouvindo e
vendo a desordem.

No outro lado da cidade, depois de enfrentar o tráfego na Avenida dos Bandeirantes, Nicholas está
sentado no sofá da sala, esperando ansioso.
A batida repetida dos pés entrega seu nervosismo, ou como ele prefere definir, a "hiperatividade
acumulada". Nicholas pensa muito sobre muitas coisas, mas nada tirava da cabeça o ataque que
sofreu. Mesmo assim, ele está otimista. Prefere crer que a ótima noite de sono não foi fruto do
cansado, e sim um indício que a calmaria iria voltar à sua vida. Mas ele não se sente seguro ainda.
As palavras "você mexeu com as pessoas erradas" ecoam em sua mente. "Mexeu e continua
mexendo, né, seu idiota" pensa Nicholas. Será que tudo vai voltar ser como antes, ou descobrir
quem são essas pessoas que mataram tantos inocentes nos últimos tempos só vai atrapalhar mais a
vida dele? Só tem um jeito de descobrir.
A larga porta no final da sala se abre e um homem bem vestido, alto, forte, loiro, com cabelos bem
aparados, um terno refinado, e visual impecável, caminha em direção a Nicholas, confiantemente.
Dava para perceber que ele valorizava demais a aparência. "Um perfeito narcisista", pensa o
jornalista. Nicholas se levanta e sorri, cumprimentando-o com um movimento de cabeça. O
homem estende a mão para ele e com um aperto forte se apresenta.
- Prazer em conhecê-lo, Nicholas. Eu sou o Gustavo. Maurício me falou muito bem de você.
- O prazer é todo meu, Senhor Gradícola. Obrigado por me atender.
- Não agradeça. Qualquer amigo do Maurício é meu amigo também. No que precisar, eu ajudarei.
- Ótimo. Eu tenho algumas perguntas. Podemos começar?
- Com certeza. Acompanhe-me ao meu escritório? Lá podemos conversar com mais privacidade.
Nicholas segue Gustavo até uma sala reservada na casa. A sala era imensa, cheia de livros.
Obviamente, Nicholas havia gostado de Gustavo. Ele é um homem educado, e parece ser bastante
culto, mas com bastantes jactâncias.
Alguém abre a porta do escritório, o que faz o papo cessar e os dois olharem, curiosos. É uma
mulher que entra no recinto.
- Ah. Desculpe-me. Não sabia que estavam aqui.
Ela ensaia fechar a porta quando Gustavo a convida para participar. Nicholas se levanta para
cumprimentar a mulher que acaba de entrar na sala.
Ruiva como um autêntico pôr-do-sol. Cabelos longos, brilhantes e ondulados, de corpo escultural,
passos confiantes, leves, com um vestido verde, da mesma cor dos olhos. As sardinhas no rosto
deixam a moça ainda mais bonita. Ela vem em direção dos dois enquanto coloca o brinco.
Dá um rápido beijo na boca de Gustavo e sorri, virando para Nicholas.
- E você, quem é?
Nicholas estende a mão.
- Prazer. Nicholas Collaneri. Repórter do "Foco da Notícia".
- Lara Moreau. Professora e historiadora. - Diz, apertando a mão de Nicholas.
- É minha namorada — Interrompe Gustavo — nos conhecemos na Índia, em um congresso, ano
passado.
- Sim, ele não parou de ligar no meu quarto até eu aceitar sair com ele, não tive outra opção, né?
Nicholas sorri e volta a sentar quando Gustavo estende o braço, indicando o sofá à Nicholas.
- Pensei que iríamos almoçar fora, amor - Diz Lara.
- Sim, querida. Apenas vou terminar essa entrevista. Prometo ser rápido.
Nicholas toma a palavra e diz:
- Por que não fica e nos ajuda? Como historiadora, você pode acrescentar alguma coisa também,
não?
- Ah... Eu não quero atrapalhar vocês.
- Não... Não, amor. Fica. Você pode ajudar a gente.
Lara puxa uma cadeira, senta e sorri para Nicholas, agradecendo o convite.
- Então. Onde paramos? — continua Gustavo, enquanto se ajeita na cadeira.
- Bom, eu descrevi o baú que meu amigo achou. E você me disse algo sobre riquezas
inimagináveis. — Nicholas diz, consultando seu caderno.
- Sim. — continua Gustavo, cheio de maneirismo, o que chama a atenção de Nicholas, mas uma
inconveniência que ele resolve deixar para depois - No Egito Antigo, é costume enterrar os
tesouros junto com os faraós. Nas tumbas eram colocadas estátuas e os objetos pessoais da pessoa
morta, para quando sua alma retornasse ao corpo. O povo egípcio era extremamente rico, isso fez
com que milhares de pessoas começassem a se aventurar em busca de uma vida financeira bem
estável. Daí surgiu todas aquelas histórias sobre maldições da múmia, para espantar os ladrões
supersticiosos. É fato que em muitas tumbas, havia armadilhas, mas nada de múmias andando por
aí, por favor.
Nicholas e Lara sorriem, Gustavo continua.
- Mas nem isso afugentou os mais decididos. E até hoje, inúmeros caçadores de recompensas
fazem de tudo para colocar as mãos nesses tesouros, o que deve ser esse baú. Matam, seqüestram,
não há limites para essa gente.
Lara observa atentamente a explicação de Gustavo.
- Reviraram minha casa, me atacaram, disseram que eu mexi com pessoas erradas. Tem idéia do
que isso significa? — pergunta Denis.
- Algumas dessas pessoas formam grupos perigosos em busca de riqueza. Se eles acreditavam que
um desses baús foi parar na sua casa, então é plausível a invasão. — explica Gustavo. — Mas
tenho certeza que são ladrões, em busca de ouro, prata, especiarias.
- Andei pesquisando, todas as expedições no Egito, financiadas pela Kalccune, tiveram problemas.
Sumiços, mortes, explosões. Acha que a empresa tem algo a ver com isso? Ou seria coincidência?
— indaga Nicholas.
- Talvez sim, talvez não. Mas provavelmente é coincidência. Essas pessoas não deixam passar
nada. Se algo é achado, eles atacam, e se há resistência, eles dizimam. Olha, meu amigo,
recomendo que você procure algumas informações na polícia, nacional e internacional. Eles
devem ter prendido esses caçadores de tesouros.
- Obrigado, Gustavo. Acho que já tenho informações suficientes. Se eu precisar de algo, posso te
encher mais um pouco, não? — pergunta Nicholas.
- Lógico que sim. Será sempre bem vindo em minha casa. Deixa que eu acompanhe você até a
porta.
Nicholas se despede de Lara, agradece a atenção e segue Gustavo.
Lara sobe as escadas, mas para no segundo degrau. Olha para a porta e para os dois conversando
ali. Algo a incomoda.
Nicholas se despede, entra no carro e liga o celular, ajeitando suas anotações e olhando novamente
para a casa que havia saído. É uma história interessante. Ladrões de túmulos internacionais,
gananciosos. Gangues, quem sabe. Teria muito o que descobrir ainda. Porque se mataram? Quem
eram realmente?
A distração termina com o toque do celular. Nicholas atende com uma voz serena, diferente da
voz que ouve do outro lado da linha. É Denis.
- Nick, que droga. Porque afinal você tem esse telefone se ele fica desligado?
- Ei, calma, Denis. Fala baixo, o que houve?
- O que houve? Você é o jornalista mais desinformado que existe, sabia. Você jura mesmo que
não sabe o que aconteceu?
- Eu tava em uma entrevista, por isso desliguei o celular. Deus, calma... Me conta o que houve?
- Procura uma TV, liga o rádio, pergunta pra qualquer um na rua. E desencana dessa entrevista, já
que você deve estar desempregado no momento. Afinal, o "Foco" não existe mais.
Nicholas larga o celular e leva a mão à boca. Teria mesmo ouvido Denis dizer a palavra
"massacre"? Teria Nicholas realmente mexido com as pessoas erradas e aquela matéria levado a
morte para todos seus colegas?
- Saiam da frente, saiam, com licença, deixa eu passar.
Nicholas afasta a multidão curiosa que se aglomera na frente do "Foco da Notícia", até chegar ao
cordão de isolamento. Ele engole a seco ao ver a polícia atuando na área. Corpos e mais corpos
dentro de sacos, sendo retirados do local.
Ao que parece, ninguém sobreviveu.
- Nicholas? Nicholas Collaneri?
É um dos investigadores que esteve em sua casa. Sujeito forte, negro, cabelos pretos e bigode,
beirando os 40 anos. Nicholas lembra bem de como ele é severo nas investigações. O homem
cumprimenta Nicholas e pede para que o siga.
- Espero que se lembre de mim. Eu sou o capitão Martins. Já está sabendo o que houve aqui, não
é?
- Bom, mais ou menos — diz Nicholas, abalado.
- Realmente o caso está cada vez mais complicado. Como sabia que você trabalha no jornal, e
como estou cuidando do seu caso, me intrometi na investigação aqui também.
Nicholas ouve e continua seguindo o policial, passa pelos corredores do "Foco da Notícia",
observando toda a bagunça pelo chão e as marcas de sangue por todos os lados.
- Ei, Nicholas. Está me ouvindo. Você está ciente de que terá que confiar em nós, e colaborar
conosco em tudo, não é?
- Hã? Sim, sim, lógico. No que eu puder ajudar...
- Pode sim, e vai. A começar por isso aqui.
O policial abre a porta da sala de William Skivinatto, e a cena que Nicholas presencia é a pior cena
que já havia visto em toda sua vida. Algo que vai assombrá-lo pelo resto dos dias. As pernas de
Nicholas ficam bambas, ele segura no batente da porta e respira fundo, engole o vômito, que
insiste em querer sair, devido à cena e a violência naquele local.
Sem contar o cheiro forte.
- Desculpe te fazer ver isso, Nicholas, mas é necessário. Achei que você poderia nos dizer o que
significa.
Nicholas desvia o olhar, tenta aos poucos se acostumar com o que vê ali. É algo chocante. Alguém
teve o trabalho de tirar toda a pele do seu chefe e pregá-lo nu na parede. Há um corte profundo na
altura do pescoço que ia até o final do umbigo. A gravidade tratou de derramar no chão tudo que
havia dentro do corpo do pobre coitado. Órgãos vitais estão à mostra. O sangue de William
mancha toda a parede. Há uma frase escrita acima do chefe, que diz "CHEGOU A HORA".
- E então Nicholas — diz o policial — o que significa tudo isso? Tem idéia?
- Meu Deus. Me tira daqui. Eu não sei o que significa. Porque saberia? Porque me força a ver isso?
- Sinto muito Nicholas — Martins retira Nicholas da cena e puxa uma cadeira no meio de toda a
bagunça, para que os dois possam sentar. O capitão senta em cima da mesa e Nicholas desaba na
cadeira com as mãos no rosto.
- Olha, sinto muito Nicholas, mas achamos que você saberia do que se trata. Bom, essa era sua
mesa na redação não? Pelo menos achei que fosse, já que tinha uma foto de um casal. O mesmo
casal que vi em uma foto em sua casa também. Olhe aqui.
Antes que Martins pegasse o porta-retrato, caído na mesa, Nicholas se estende e agarra o objeto,
colocando entre os braços.
- Sim, era minha mesa. E essa foto é dos meus pais. Não achei que vocês da polícia fossem tão
indiscretos a ponto de fuçar nas coisas dos outros. — Nicholas esbraveja.
- Desculpe, Nicholas. Mas eu reconheci a foto. Só isso. E desculpe também, porque vi que tinha
mensagens apitando em seu correio eletrônico. Eu ouvi e por isso perguntei sobre William. Quer
ouvi-las também?
Antes que Nicholas pudesse falar qualquer coisa, Martins aperta o play da secretária eletrônica.
Biiiiiiip
"Nicholas, é Mariana. Eu queria agradecer a reportagem sobre o orfanato, ficou muito boa.
Quando precisar, estamos a sua disposição."
Biiiiiiip
"Nick. Desculpe a voz embriagada, eu to péssimo, você sabe quem é. Só você me chama de
Wiski mesmo, não é? Olha. Sinto pelo que vai acontecer. Mas preciso te falar. Não confie em
ninguém. Vá até o fim com a reportagem. Acabe com esses malditos. Ah, e o principal, preste
atenção... quando o rei cai, o príncipe toma seu lugar, entendeu?
Biiiiiiip
"Ei, Nick, você ta aí? Atende. Atende poxa, você ta vivo? Nick, se você morreu, eu juro que mato
você. Nick, Nick, Nick, Nick, Nick, Nick. Atende, droga." Biiiiiiip
"Olá, Nicholas. Desculpe incomodar você, acho que você só vai pegar esse recado mais tarde
mesmo, já que faz uns cinco minutos que você saiu né? O Gustavo tá arrumando umas coisas. Eu
peguei seu telefone na carteira dele. Queria conversar com você. Acredito que tenho algumas
coisas a acrescentar na entrevista. Bom, qualquer coisa me liga, meu número é ...."
Nicholas reconhece os dois últimos recados. Denis e Lara, respectivamente.
O melhor a fazer é fingir que os recados não são importantes. Como William disse, não era para
confiar em ninguém.
- E então, Nicholas. O segundo recado era de William não? Ele estava escondendo algo que só
você poderia saber, não?
- Sim, Martins. Era ele sim, mas o recado não me diz nada. Não sei mesmo quem são esses
malditos a quem ele se refere. E não entendi nada sobre esse papo de rei e príncipe — Nicholas é
sincero na resposta. Sua cabeça está muito confusa para pensar em qualquer coisa.
- Tudo bem, melhor dar um tempo mesmo. Vou pedir pra algum dos rapazes levar você pra casa.
Tem algo aqui importante que você queira levar? Numa boa, Nick. Já estamos tão íntimos mesmo
né? — Martins sorri, tentando quebrar o gelo, mas percebe a impaciência de Nicholas.
- Tudo bem, só vou pegar alguns pertences na gaveta e vou pra casa.
Nicholas abre a gaveta e finge procurar algo. Percebe a distração de Martins com o andamento da
investigação e apaga as duas últimas ligações da secretária eletrônica.
- Pronto. Podemos ir?

Uma Semana Depois

Denis já largou a cadeira de rodas. Anda de um lado para o outro, ainda mancando um pouco,
preocupado.
Nicholas está sentado no sofá.
- Nick. É sério. Tudo isso não pode ser coincidência. É só eu chegar aqui que tudo dá errado? E eu
odeio quando tudo começa a ficar calmo. Tenho certeza que alguma coisa vai acontecer, e eu não
quero morrer.
- Calma, Denis. Você não vai morrer. A gente vai descobrir tudo, assim que a poeira baixar um
pouco, ok?
- Na boa? Pra que descobrir alguma coisa? A gente pode ir embora. Sei lá, fugir pro México,
Bolívia, pode até ser a ilha de Lost. Até o Afeganistão tá mais seguro que aqui. Ou pra Argentina...
Não, não, Argentina não...
- Denis, relaxa. Nunca te vi tão agitado. Só porque ficou muito tempo sentado, agora quer tirar o
atraso? Fica quieto.
- Alguma coisa vai acontecer. Algo me diz isso.
- Deixa rolar. A gente ta protegido pela polícia. Ninguém seria louco de atacar a gente com
policiais vindo aqui diariamente pra fazer perguntas. Agora me dá licença que eu preciso trabalhar
e fazer umas ligações.
- Você nunca me escuta, Nick. Nunca. — reclama Denis.
Nicholas vai até a sala e pega o telefone. Tira um papel do bolso com o número do telefone de
Lara anotado. Reluta alguns instantes, mas liga.
Três toques depois ela atende. Nicholas e Lara conversam como se fossem amigos de longa data e
marcam de se encontrar para que a historiadora possa atualizar a história.
- Você vai mesmo encontrar essa mulher? — Denis está incrédulo depois de Nicholas contar sobre
a ligação. - Você nunca me escuta, Nick, nunca. Isso ainda vai dar muita encrenca. Quer saber,
você quer mesmo ir amanhã se encontrar com a talzinha, né? Então eu vou junto.
- Denis, você ainda não tá 100% pra sair por aí.
- Ei, sem conversa, eu vou e acabou. Estamos juntos nesse barco furado, meu amigo sobrevivente.
Já que você quer ir a fundo, é melhor ter um parceiro ao lado.

A terrível chacina no "Foco da Notícia" ainda rende bons frutos a todos os meios de comunicação,
que levantam questões importantes como segurança, terrorismo, leis criminais para crimes
hediondos. A polícia se empenha ao máximo para mostrar serviço, prendendo suspeitos por toda
parte e interrogando muitas pessoas.
Nicholas era para ser mais uma daquelas vítimas. Foi salvo graças ao encontro com Gustavo e
Lara. Os outros jornalistas que folgaram no dia ou estavam nas ruas e também sobreviveram estão
sob proteção, até a polícia ter certeza sobre o massacre. Ninguém pode ir muito longe, nem
contatar muitas pessoas. É o procedimento padrão no programa de proteção da polícia.
Nicholas pensa na sorte que teve enquanto dirige para o encontro com a historiadora. Denis muda
constantemente as rádios, sem deixar em nenhuma música. Um hábito que irritava Nicholas, mas
que naquele dia, não tinha a menor importância. Algo maior estava para acontecer.
Em um restaurante perto dali, Lara, sentada, bebe seu vinho a espera de Nicholas, que não
demorou a chegar. Ao perceber a entrada do jornalista no recinto, ela acena e o chama.
- Ei, Nick — Denis puxa a ponta do paletó de seu amigo — Aquela é a mulher?
- A própria. — Nicholas fala, com o canto da boca, tentando ser discreto.
- Uau. Porque não encontramos com ela antes, hein?
Nicholas dá um cutucão em Denis e sorri para Lara, que levanta e cumprimenta os dois.
- Olá novamente, Nicholas. Quem é seu amigo?
- Esse é Denis. Ele está me ajudando com a matéria.
- Olá Denis, prazer.
- Tudo bem. Lara, não é? Nicholas não tinha me dito que você era tão bonita.
- Ah, Obrigada. Muito gentil. Vamos sentar? Por favor.
- Bom — diz Nicholas — Desculpe ter marcado com você, depois de tanto tempo desde que você
me telefonou. Mas minha vida tá bem confusa, sabe!?
- É, eu vi o noticiário. O que motivaria tais pessoas a fazer um ato tão ruim?
- Ah, você não tem idéia da metade, viu — sussurra Denis.
- Mas o que importa é que você está bem, não é? — continua Lara - Fiquei aliviada quando você
me telefonou. E espero que entenda, depois que eu explicar tudo, o motivo pelo qual queria te
encontrar sem o Gustavo. Achei esquisito ele não contar algumas coisas bem mais importantes
para sua matéria. Fora a ótima aula de Egito Antigo que ele deu, foi estranho ele nem mencionar a
antiga lenda sobre baús enterrados.
- Lenda?- Denis para de brincar com o garfo e começa a se interessar sobre o assunto. Como
arqueólogo, sabia que muitos dos objetos encontrados eram apenas lendas até se tornarem reais.
Lara continua.
- Sim. Há uma estória que nos leva ao ano 3.500 antes de Cristo. No reino do Alto Egito, havia
um faraó chamado Adabdon II. Não há muito sobre ele nos livros, mas foi um dos mais ricos e
poderosos da sua época. Diziam que ele tinha um pacto com o sobrenatural, que os poderes dele
eram inexplicáveis. Algo de outra dimensão, de outro plano. Ninguém consegue dizer de onde
vinha, mas sabia que as coisas que ele fazia não eram normais.
- Adabdon tinha um segredo.- continua Lara- Um manuscrito mágico, dizem alguns. Um papiro
que fora dado por um algo espiritual, de acordo com a lenda. O próprio diabo, dizem alguns. O
faraó tinha medo que qualquer pessoa voltasse a ler aquelas linhas antes do tempo, pois lá estava
escrito que, fora ele, apenas outra pessoa teria um poder tão forte quanto o dele. E até maior. Seria
o escolhido para governar o mundo quando chegasse o tempo certo...
Nicholas gela ao lembrar da frase na sala de William: "Chegou a hora"
-...Tempos de tribulação. De guerra. De desastres naturais. Enfim, um homem para guiar e
governar o mundo para sempre. Adabdon, como um bom servo, foi escolhido apenas para
usufruir um pouco daquele poder, ser quase um deus na época dele, e mesmo assim conseguir
passar despercebido nos livros de história. E assim preparar o terreno para aquele que viria. O
escolhido surgiria em um ano específico, e só algumas pessoas sabem o ano certo.
O garçom chega com a bebida pedida por eles. O grupo agradece, querendo voltar logo para
aquele conto, que ficava cada vez mais interessante e intrigante.
- Voltando. Adabdon chamou sete confiáveis pessoas. Prometeu a eles o melhor até o final da vida
deles e dos seus. Mas tinham que fazer um juramento. Juntos, dividiram aquele papiro em sete
partes. E fundaram uma irmandade. Passariam as informações necessárias de geração em geração
até que chegasse o momento da volta de todo aquele poder e o mundo poderia ser do escolhido.
- Cada parte sozinha do manuscrito é só um papel velho. Somente juntas elas podem trazer de
volta aquele poder para a Terra. As partes não podem ser destruídas. Não sei dizer se é algum
encantamento, mas nada pode estragar os pedaços. É impossível rasgar, queimar, rasurar. E o dia
que eles estiverem juntos novamente, é melhor estarmos longe.
Lara quebra a tensão e volta a encostar na cadeira.
- Mas é tudo especulação. Cansamos de ouvir casos de pessoas que mantinham rituais sagrados,
sacrificavam animais, plantações e até pessoas, em reuniões secretas, invocavam forças
sobrenaturais. Não sabemos até que ponto são malucos por satanismo ou integrantes reais da tal
irmandade de Adabdon.
- Acredita que o baú encontrado e todos os ataques têm a ver com a irmandade? Esta seria a época
certa? — pergunta Nicholas.
- Eu não sei. — responde Lara. — Só estou te dando outra versão para trabalhar. Gustavo sabia
dessa história, e achei estranho ele não contar e se prender a simples ladrões de tesouros, já que
essa parte é muito mais interessante. Não acho que ele tenha esquecido disso, e não sei porque não
contou. Nada disso é comprovado, mas acho que valia a pena explicar. Olha, Nicholas, não quero
que você publique uma história de ficção. Nem mesmo na nossa área as pessoas acreditam nisso.
Existe um segmento de historiadores que acha tudo meio folclórico, não levam a sério e acham
perda de tempo. Na verdade, são os mesmos céticos que não acreditam em muitas conspirações
históricas, e duvidam até da vida de Jesus, por exemplo. Mas Gustavo está longe de ser um deles,
eu o conheço muito bem. Não sei por que ele não te contou isso.
- Então todo esse papo de manuscritos, sacrifícios, possessões, pode ser somente especulação? -
pergunta Denis.
- Bom, respondam vocês mesmos. Só peço que não descartem o que falei e investiguem também.
Lara tem razão. Os acontecimentos passados pelos dois amigos não são comuns no dia a dia.
Tudo o que ela contou fazia sentido. Até o suicídio na casa de Nicholas. Afinal, pessoas de seitas
malucas costumam se matar sem motivo.
Na frente do restaurante, o único homem sentado no ponto de ônibus levanta e tira o sobretudo,
revelando inúmeras tatuagens no braço, inclusive uma tatuagem no antebraço igual a que Denis
tinha visto no Egito, no médico, na loira e no homem que o atacou. Ele caminha até o restaurante.
Ao entrar no estabelecimento, faz um sinal com a cabeça para um garçom, que se aproxima da
mesa, enrola o guardanapo na mão e dá um soco no rosto de Lara, enquanto acerta Denis com a
bandeja, usando a outra mão. Nicholas empurra a cadeira para trás, assustado. A confusão faz
todos os clientes se levantem e saírem correndo, gritando.
Denis cai e Lara desmaia. Nicholas se levanta para partir para cima do garçom, mas é interceptado
pelo homem tatuado. O garçom carrega Lara com ele.
Um dos homem joga Nicholas em cima de um aquário. O aquário quebra, inundando parte do
restaurante. O tatuado corre e Nicholas não pensa em Denis, apenas levanta e, por instinto, sai
atrás de seu algoz, perseguindo-o pela rua e gritando para que ele parasse. O homem vira uma rua
ao mesmo tempo em que uma van sai de uma garagem. O veículo acompanha o agressor. A porta
da van se abre, o homem joga a historiadora no carro e pula dentro dele, encerrando a perseguição.
Nicholas para, coloca suas mãos no joelho e toma fôlego. Havia sido surpreendido mais uma vez
por aqueles homens que mal conhecia, mas que tinha cada vez mais certeza ser daquela tal de
irmandade citada por Lara.

Um pouco de água gelada jogada em seu rosto faz com que Lara acordasse assustada, se
debatendo. Ela olha para os lados, tentando reconhecer onde estava, e percebe que uma corda
prendia seus braços no banco, dentro da van. Sentado em frente dela estava o homem tatuado,
enxugando o corpo e a cabeça com uma toalha.
Ali também está uma mulher negra, com cabelos rastafari, alta, que olha para o movimento na rua,
e um rapaz jovem, de mais ou menos 20 anos, cabelo curto e loiro. Ele era o único que encarava
Lara enquanto sorria. Um sorriso sacana, de canto de boca. Foi ele quem havia despertado Lara do
desmaio.
A historiadora percebe que há duas pessoas nos bancos da frente, conversando entre si
- Me conta — diz o jovem rapaz, quebrando o silêncio na parte de trás do carro em movimento —
Nicholas falou algo sobre o baú?
Lara ainda está confusa. Demora a raciocinar a frase, mas sua cara já mostra dúvida.
- Ah vai, Lara, ele deve ter falado algo. Nós não vamos machucar você, garota. Me diz. —
continua a falar o rapaz.
- Olha, não sei quem são vocês ou como sabem meu nome. Mas eu não sei de nada sobre baú
nenhum.
- Ta dizendo que Nicholas não falou sobre o baú? - Diz a negra, ao se virar para Lara. Ela tinha
um olhar sombrio e uma voz forte, e portava-se como se fosse esganá-la a qualquer momento. —
Não é possível que ele não te falou do baú. Será que o chefe estava enganado. Ou Nicholas não
sabe?
- Calma, Thai — disse o rapaz loiro, colocando a mão suavemente na perna da mulher, enquanto
volta o olhar para Lara - Não vamos fazer mal a você se você colaborar. Por mim, nós já teríamos
apanhado Nicholas ou Denis, mas parece que algumas pessoas mais influentes da Irmandade têm
outros planos para eles.
Ao citar a Irmandade, o homem tatuado para de secar a cabeça e olha feio para o garoto.
- Vamos. Não faça essa cara de confusa. Só precisamos saber onde está o baú.
Lara resolve jogar o jogo deles e pergunta.
- Tudo isso por causa de um baú? O que tem nesse baú afinal?
- Olha aqui mocinha — A moça negra novamente se dirige a Lara. — Você pergunta demais, e eu
não gosto disso. Aliás, você e seus amigos estão entrando em terreno perigoso. O melhor a fazer é
sair fora do nosso caminho, se quiserem ficar vivos.
- É. A irmandade não perdoa. — diz o rapaz loiro, liberando novamente a ira do homem tatuado,
que fecha a cara com o comentário.
O telefone celular dele toca. Ele atende.
- Sim? Certo. Sim, ela está aqui, sim. Não. Ela não sabe nada sobre o baú. Tem certeza? Ok, farei
o que você manda. Até mais.
O homem desliga o telefone e olha para o rapaz loiro e para Thai, logo depois de sinalizar com a
mão para o motorista parar o carro.
- Liberem a garota. Ordens do chefe.
- O que? Não. Não pode ser — revolta-se Thai.
- Ei, não tem o que discutir. — grita o tatuado — Solte ela. Isso. Pronto, você tá livre, Lara.
Lara passa a mão no pulso, massageando o lugar onde estava a corda.
- Mas o melhor que tem a fazer é esquecer dessa história se quiser continuar viva. — o homem
ameaça - Você, seu namorado, sua família. Sim, não faça essa cara, sabemos tudo sobre você.
Agora saia do carro.
Lara é empurrada para fora do veículo, que parte rápido para longe dali, cantando pneu.

Horas depois, numa delegacia próxima, Nicholas e Denis terminam de prestar depoimento sobre o
acontecido. Mais tranqüilos com uma ligação de Lara no celular de Nicholas dizendo que estava a
caminho da delegacia para ajudar nas investigações. Os dois amigos aguardam sentados, do lado
de fora de uma enorme sala cheia de vidros e cortinas, uma imposição do Capitão Martins, que já
está no local e fala sem parar ao telefone. Ele desliga e sai da sala, batendo forte a porta, o que faz
todos os vidros tremerem.
- Olhe Nicholas, a situação é complicadíssima. Não sabemos o que esses caras são nem o que
procuram. Mas seqüestro, assassinato, tiros a luz do dia. — Martins gesticulava com as mãos,
enquanto andava na frente deles, de um lado para o outro - Não podemos causar um alarde na
cidade e transformar todos esses problemas em um novo "ataque do crime organizado". Já
tivemos um. Chega de medo. Estamos tentando enganar a imprensa de todas as maneiras, mas as
pessoas fazem perguntas. Estão supondo milhares de histórias para cada caso.
Martins para um pouco, estufa o peito, respira fundo e continua andando.
- E parece que você está sempre no meio disso tudo. Meu Deus, Nicholas. Por que? Enfim, sua
amiga Lara está bem e é mais do que óbvio que quem fez isso, fez para assustar, não para
machucar. Melhor vocês deixaram o caso com a polícia. As investigações vão acontecer, mas no
tempo certo. Sem pressa. Não há mais nada que eu posso fazer. São ordens superiores. E você,
fique longe dessas encrencas.
Martins para e aponta o dedo na direção de Nicholas. O jornalista levanta, acompanhado de Denis.
- Tá certo. Entendido. Podemos ir? — diz Nicholas.
Martins joga o braço em direção a saída
- Vou ficar de olho em você, Nicholas — avisa o capitão, enquanto se vira. Entra na sala
novamente enquanto os dois amigos caminham juntos para fora da delegacia.
- Vai mesmo desistir disso tudo? — diz Denis, surpreso.
- Lógico que não. Mas preciso pensar em um jeito de investigar isso mais a fundo, sem que
Martins fique mesmo na nossa cola.
- Ahaaa, uhuuu, boa garoto — comemora Denis, dando um tapinha nas costas de Nicholas —
Seremos como Batman e Robin, Debi e Loide, Kay e Jay, Riggs e Murtaugh, agente 86 e 99. Mas
já aviso, não quero ser a 99, hein? Ei, para de andar rápido. Me escuta, ei, volta aqui... Eeeeei...

Lara chega à delegacia acompanhada de seu namorado Gustavo. Encontra Denis e Nicholas na
porta. Ela abraça um de cada vez, aliviada. Depois de conversar amenidades e relembrar o
acontecido, Lara decide entrar pra falar com Martins. Gustavo, que estava calado até aquele
momento, abre a boca.
- Nicholas, podemos conversar?
Gustavo se vira e anda um pouco, se afastando da porta da delegacia. Nicholas entende o recado.
Troca olhares com Denis, que mexe a cabeça em direção ao namorado de Lara, encorajando
Nicholas. O jornalista caminha e logo alcança Gustavo.
- Olha, Nicholas — diz ele, num tom baixo. Ele resolve ser sucinto e vai direto ao assunto — eu
respeito muito você, entende? Mas vou ser bem claro. Se chegar perto da Lara mais uma vez, e
arriscar a vida dela de novo, acabo com você. Não importa se temos nosso falecido amigo
Maurício como amigo em comum. Vou passar por cima do respeito dele e quebrar sua cara,
entendido? Se quiser conversar com alguém, me procure. Deixe minha namorada fora disso.
Gustavo sorri e sai andando, passa direto por Denis e entra na delegacia.
"Só o que me faltava, mais um pra arranjar encrenca". Pensa Nicholas, colocando a mão no rosto.

A noite demora a passar. Não por causa do ronco de Denis, muito menos os barulhos na rua, que
costumava a ser mais tranqüila.
O jornalista está inquieto por tudo que acontecera. Pensa em muitas coisas. Como sua vida deu
tanta volta em tão pouco tempo? O que William queria dizer na mensagem? Quem realmente está
por trás disso? Ele poderia confiar em Lara, em Martins, no Gustavo, ou, Deus o livre, em Denis?
Todos pareciam tão preocupados ou tão culpados naquela altura.
O calor é demais naquela noite, ou todo aquele suor era psicológico? Nicholas só estava nervoso?
Realmente a noite demora para passar.
Nicholas só consegue pegar no sono pela manhã.
E não dorme muito mesmo. O telefone toca no começo da tarde. A voz inconfundível do outro
lado é de Lara.
- Alô. - Nicholas atende com voz sonolenta.
- Oi, Nick. Eu queria me desculpar por ontem. O Gustavo falou que conversou com você, e acho
que ele foi meio grosso, não é? Desculpa mesmo. E eu queria saber se podemos nos encontrar.
Aconteceram coisas estranhas ontem, queria falar com você sobre isso. Quem sabe podemos
resolver logo esse mistério.
- Olha, Lara, melhor não. Tudo isso está cada vez mais complicado. E não sei se eu estou disposto
a ir adian... — Antes que Nicholas pudesse terminar a frase, Lara já se adianta.
- Olha, Nick, eu sei como tudo está extremamente perturbador, mas só peço pra que você me
ouça. Uma última vez. Eu preciso mesmo contar tudo que sei. Aí você resolve o que fazer, ok? To
indo aí e você me ouve. Beijos.
Click
"Menina teimosa" Pensa Nicholas.

Os minutos parecem dias. Nicholas é curioso, e está ansioso pela visita de Lara. Anda sem parar
pela casa. Arruma qualquer objeto que passe pela sua frente, bate os dedos ritmicamente em sua
coxa.
Denis já está acordado e apenas acompanha Nicholas com a cabeça, indo e vindo. Parecia se
divertir com isso.
A campainha toca, e Nicholas se adianta para atender a porta.
É Lara.
- Entra, entra, por favor.
- Bom te ver, hein. — diz Denis, sentado no sofá de costas para Lara, levantando a mão apenas,
sem se virar.
- Desculpa ter desligado rápido, mas eu quero falar depressa e sair o quanto antes, não quero que
Gustavo perceba que eu ainda insisto nessa história.
- Pois é. Nem eu. Quer sentar? Quer beber alguma coisa? Ou me contar essa história?
- Ontem, ouvi um papo sobre Irmandade enquanto estava naquela van. Contei para o Gustavo,
relembrei a lenda do manuscrito, mas acabamos brigando muito feio. Me tranquei no meu quarto.
Odeio o fato dele não acreditar em mim.
- E não é o único. — sussurra Denis, no sofá.
- Falou alguma coisa, Denis? — Lara se incomoda com a acusação.
- Hã? Eu disse que esse canal é único... Nossa, muito bom, você não tem idéia, assisto sempre. -
mas Denis percebe tarde demais que estava parado em um canal fora do ar. Muda rapidamente,
dando um sorriso sem graça.
- Vocês não acreditam em mim, não é?
- Não é isso, Lara. Eu acho que NINGUÉM É CULPADO ATÉ QUE PROVE O CONTRÁRIO
- Nicholas aumenta o tom de voz, inclinando-se para Denis, que se encolhe no sofá, fingindo não
ouvir a bronca, e continua mudando os canais.
- Lara, eu e Denis temos mais do que motivos para tentar descobrir o que se passa por trás de tudo
isso, mas e você?
- Nick, eu fui seqüestrada, amordaçada, ameaçada de morte. E se essas pessoas acham que isso vai
me fazer calar a boca, eles estão enganados. Eu não vou sossegar até descobrir o porquê de tudo
isso.
- Mas tem mais — continua Lara, fazendo Nicholas cruzar os braços e ouvir atentamente -
Enquanto eu estava no meu quarto, percebi que Gustavo estava eufórico. Andava de um lado para
o outro no telefone, e gesticulava sem parar, falando muito alto. Eu o ouvi dizendo em francês
"Sim, senhor, temos que resolver todas essas questões", e ouvi "a irmandade vai prevalecer". Pode
ser que eu esteja enganada, meu francês não é bom, mas essas frases não soaram legal,
coincidindo com o que estamos passando.
- Francês? Tá aí. Isso não é nada bom — Diz Denis, colocando a cabeça entre os joelhos.
- Peraí, peraí — Nick estende a mão, fazendo sinal para Lara parar de falar. — Você tá insinuando
que seu namorado pode saber algo sobre a Irmandade. Que a Irmandade existe e está por trás de
tudo isso, está contra nós? Para que querem ferrar a gente?
- Eles estão atrás do manuscrito, só pode. A estória é real, não percebe. E eles estão reunindo todas
as partes. Quer saber da novidade? Eu acho que eles pensam que você tem alguma parte dele.
- Ei, espera um pouco. - Nicholas estende a mão novamente, e coça a testa com a outra, pensativo.
- Nick. Escuta.- diz Lara, segurando os braços de Nicholas, que parece estar longe nos
pensamentos — Essa gente, e até Gustavo, acham que você tem alguma parte desse manuscrito.
- Não, eu não tenho.
- MAS ELES ACHAM QUE TEM - Lara se exalta, mas logo se acalma — Olha, não sei o que
eles podem fazer com você. Eu realmente não conheço nada do Gustavo, por exemplo. Achei que
sabia sobre ele, mas tudo foi por água abaixo quando ouvi a conversa.
- Tudo bem - contínua Nicholas, perplexo com a situação - Vou tentar descobrir algo sobre isso,
mas por enquanto, vou precisar da sua ajuda. Descubra tudo o que sabe sobre a ligação de
Gustavo com esse francês. Eu quero nomes, locais, tudo.
- Ta certo. — concorda Lara. - Farei isso e te ligo...
- Não. — Nicholas interrompe. — Deixa que eu entro em contato com você. Não me liga mais.
Pode ser perigoso.
- Ei, peraí — interrompe Denis — Falando em perigoso, se o Gustavo tem contato com essa gente,
a historiadora ai também não corre perigo? Você precisa sair de lá o quanto antes, Lara.
Ela ri. Acha bonitinho a posição de Denis no sofá e a preocupação com o bem estar dela.
- Não. Pode deixar. Ele não sabe do que eu sei. Eu vou pensar em algo, mas até lá, vou continuar
do lado dele, fingindo ser a namorada perfeita.
- Só toma cuidado, tá legal? E obrigado. - agradece Nicholas.
Lara sorri novamente, pega suas coisas em cima da cômoda, e sai tão rápido como entrou.
Denis e Nicholas se olham, sem saber o que fazer.
- Você confia nela? — começa Denis.
- Não sei. Ela parece estar sendo sincera.
- Ainda não confio totalmente nela. Viu como ela se insistiu em saber se você tem um pedaço do
manuscrito?
- Ela foi seqüestrada, Denis. Não tem porque não confiar. Ela anda nervosa, só isso.
- Nick, quando se quer algo, as pessoas inventam várias formas de mostrar que são vítimas,
indefesas. Acho muito estranho tudo isso. Aliás, porque não me disse que tinha uma parte daquela
coisa?
- Ei, eu não tenho. Pelo menos, acho que não.

As semanas passam. Nicholas continua escrevendo sua matéria. Mas ainda não tinha nem o
começo. Nada de concreto. Apenas suposições. A conversa que teve com Lara não lhe sai da
cabeça. Enquanto digita sua matéria, pensa em tudo o que havia ouvido e passado. Pensa em seus
amigos assassinados, no reencontro com Denis, na garota perigosa que havia conhecido, na
Irmandade.
Subitamente, Nicholas para de escrever.
Levanta da cadeira e sobe correndo as escadas, passando rápido por Denis, sentado no sofá lendo
uma revista.
Nicholas entra em seu quarto e procura no armário uma caixa que contém alguma das lembranças
de seus pais.
E lá está uma Bíblia. Ele abre em João e vê a chave descansando no meio do livro.
Todo aquele pensamento faz Nicholas voltar alguns anos no passado, mais ou menos uns 12. Ele
retorna ao tempo e enxerga a cena como se estivesse acontecendo ali, na sua frente.
"Deus, como não tinha pensado nisso antes".

Era uma das longas conversas que tinha com seu pai, na mesa da cozinha. Falavam sobre as
viagens que o pai sempre faria, como grande empresário que era. Ele conhecia muita gente
interessante, e uma dessas pessoas se tornou seu grande amigo, e em certa época, havia lhe dado
um presente de valor inestimável.
- Sim, filho. Um baú. Com a história mais incrível de todas, que me marcou completamente. Ele
me deu o baú porque disse que confiava em mim. Ele achou que morreria logo, e parecia
apreensivo quando me contou tudo que estava acontecendo. Ele me fez prometer que eu nunca
diria sobre o conteúdo desse baú, mas é um item de valor inestimável. O homem que me deu esse
presente disse que, um dia, alguém poderia vir atrás dele. Por isso, confiei o baú a um homem
fiel. Se um dia algo acontecer, procure pelo Pastor Marcelo. Ele irá te ajudar. A chave desse baú
está escondida no pertence mais importante para sua mãe.
Tanta coisa acontecera dali em diante que Nicholas se esqueceu dessa chave. Não era algo
importante para a sua vida no final das contas, pensava. Nicholas lembrava de ter separado a bíblia
quando retirou algumas coisas da casa de seus pais. Foi um dos momentos mais dolorosos da vida
dele, mas ele não poderia esquecer da bíblia, o pertence mais importante para a mãe dele.
- Olá? Nicholas? Acorde... Eu ordeno que saia dessa hipnose. Você vai acordar quando eu disser
três — Denis mexe a mão perto do rosto de Nicholas, que está parado, pensativo, e nem percebeu
a aproximação de seu amigo.
- Droga, Denis, é isso — A repentina manifestação de Nicholas faz Denis tomar um susto e saltar
para trás.
- Ei, eu não contei até três — brinca Denis.
- Como eu fui burro. Tudo aconteceu tão depressa, e eu não parei pra associar os fatos. Lógico, o
baú só pode ser esse. Não tem outra explicação.
- Ok. Continua com seu monólogo. Faz de conta que eu não estou aqui mesmo.
- A chave. Esta chave é do baú — Nicholas aponta o objeto para Denis. Uma chave pequena,
dourada, que brilha como o baú que o amigo português de Denis havia encontrado.
- Denis — Nicholas segura forte os dois braços do amigo. — Só pode ser isso. Vem comigo.
- Vou, né. Tenho alternativa? Mas pra onde?
- Para a igreja.

Nicholas está eufórico. Iria começar a maior aventura de sua vida.


Mas antes de sair de casa, tem um desafio pela frente. Para encontrar o Pastor Marcelo, Nicholas
tem de enrolar o Capitão Martins e os agentes dele, que ironicamente, queriam protegê-lo. Martins
havia marcado de pegar outro depoimento com Nicholas naquele dia, e ele teria que ter uma boa
desculpa e um álibi para não estar presente quando o oficial viesse.
E só uma pessoa pode ajudá-lo nisso.

- Você só pode estar brincando, não é? — diz, indignada, a voz do outro lado da linha.
- Por favor. Você é meu amigo. Posso confiar em você. E é minha única esperança.
- Sou tão seu amigo que você não me conta o que está acontecendo? Fica aí, fazendo o maior
mistério? Não vou dizer que passou o dia comigo se não falar o que vai fazer. Eu também tenho
vida sabia? Tenho família, trabalho, não posso me complicar só porque você quer sair por ai
bancando o Sherlock Holmes.
- Diz pra ele que vamos bancar James Bond, explodir umas coisas e tal, quem sabe até beijar umas
mulheres bonitonas por ai. - Denis ouve a conversa e palpita.
- Por favor — implora Nicholas - Prometo contar depois o que é. Mas quebra esse galho pra mim,
por favor.
- Certo. Conta comigo. Faça o que tenha que fazer. E que a força esteja com você.
- Obrigado, Victor.
Victor é amigo de longa data de Nicholas. Apesar de ser alguns anos mais novo, sempre pensaram
parecido e andaram juntos na mesma turma. Victor nunca foi um garoto popular, ao contrário,
sempre usou óculos e roupas fora de moda, tinha o cabelo penteado para o lado, sem nenhum fio
fora do lugar, e adorava seus jogos num videogame portátil do ano. E um homem de gostos
clássicos e sempre foi motivo de chacota entre os garotos mais populares, que nunca perceberam a
pessoa inteligente e legal que ele é.
O tempo passou, e o cabelo melhorou, mas as roupas estranhas, o andar curvado e os óculos, que
sempre insistem em escorregar do rosto, sendo colocados no lugar com o dedo indicador,
continuam o mesmo. Foi Victor quem deu suporte a Nicholas logo quando seus pais morreram, e
a amizade só aumentou. Nicholas sabe que poderia confiar nele sempre.
Nicholas desliga o telefone e avisa Denis.
- Se prepara, cara, que vamos agora pegar aquele baú.

Enquanto isso, do outro lado da cidade, na delegacia, o capitão Martins escreve um email em seu
laptop, olhando para os lados, preocupado, quando dois de seus colegas entram na sala. Marcos
fecha rapidamente o laptop, olha para os dois policias à sua frente e diz:
- Posso ajudá-los, rapazes?
- Capitão — prossegue um dos policiais — Ligaram para nós avisando sobre uma mudança de
planos. Acha que é viável prosseguirmos com eles nisso?
- Com certeza. Logo isso vai acabar.
- Só não queremos sujar nosso nome aqui dentro — diz o outro.
- Deixa comigo. Eu não vou 'queimar' vocês. Fiquem tranqüilos. É só eu conseguir o que eu quero
e pronto, ninguém vai saber que vocês estavam envolvidos, prometo.
- Obrigado, senhor.
Os dois saem da sala, enquanto Martins fica pensativo por um momento, pega o telefone e aperta
o primeiro número, esperando alguém atender.
- Alô? Sim, sou eu. Sim, realmente está difícil. Vamos partir para a segunda parte do plano agora.
Nicholas e Denis chegam ao destino final em menos de vinte minutos. A igreja não ficava tão
longe assim da casa. Sem perder tempo, entram pela porta principal e gigantesca daquela
congregação. Uma igreja com um aspecto antigo, mas bem conservada.
Ao colocar o pé dentro do lugar, Nicholas é bombardeado por inúmeras lembranças do passado.
Ele para no meio daquele enorme santuário e lembra o quanto corria por todos aqueles corredores,
passando pelos bancos que ocupavam a maior parte do piso térreo.
Lembra que brincava de esconde-esconde com seus amigos, enquanto os pais estudavam com o
pastor. Escondia-se entre uma pilastra e outra, enquanto o procuravam embaixo dos bancos ou
atrás do púlpito. Aquela igreja realmente era enorme, e Nicholas, saudosista, deixa escapar um
sorriso entre as lembranças.
- Ei, Nick, acorda. Ta sonhando acordado de novo, é? — diz Denis, fazendo Nicholas voltar ao
normal.
Os dois ouvem passos e percebem a aproximação do pastor Marcelo, saindo dos fundos da igreja,
próximo ao púlpito.
- Posso ajudá-los, rapazes? — diz o pastor, estendendo a mão para eles e recebendo o
cumprimento de volta.
- Pastor Marcelo? — diz Denis.
- Sim. Em que posso ser útil?
Nicholas olha para os lados e volta a dirigir a palavra ao pastor.
- Podemos conversar em outro lugar?
- Lógico que sim, Nicholas.
- Com... Como sabia? - diz Nicholas, surpreso, enquanto Denis olha perplexo para os dois.
- Nicholas, meu filho. Eu leio os jornais, leio suas matérias. Lembro da sua entrevista quando seus
pais morreram. Fiquei triste, mas aliviado que você não estava lá também. Só esperava uma visita
sua mais cedo. Pra conversar, buscar conforto ou uma ajuda.
- A calma dele tá me irritando, Nick — sussurra Denis, puxando Nicholas para perto e dizendo
baixo em seu ouvido.
Nicholas lança um olhar de desaprovação a Denis, enquanto Marcelo continua.
- Por favor, vamos a minha sala, acho que sei por que veio. — diz, estendendo a mão para os
fundos da igreja.
Ao entrar em uma sala, passando por um corredor lateral bem apertado, Marcelo vai direto para
um armário, enquanto Nicholas e Denis sentam em poltronas próximas a porta e esperam.
Marcelo tira um molho de chaves e caminha até o armário adjacente. A sala era cheia de armários
de madeira. Tirando as poltronas e uma mesa central, havia apenas armários com livros. Alguns
estavam trancados. Enquanto Marcelo escolhia a chave certa para abrir a gaveta da mesa redonda
no centro, fala.
- Quando seus pais morreram, pensei em te procurar e te dar o que seu pai deixou comigo, mas ele
me disse que era melhor eu guardar em segurança até você se interessar por isso. É como se
soubesse tudo que aconteceria.
Marcelo retira da gaveta uma pequena caixa e separa mais uma chave do molho, dentre as tantas
em sua mão. Abre a caixa, olha para Nicholas, e continua falando.
- Se você soubesse metade da história, Nicholas. Seu pai fez bem em te proteger até quando pôde.
O conteúdo do baú é de extrema importância, e se alguém deixou na mão do seu pai, é porque ele
era confiável o bastante, e pelo que eu me lembro de você, sempre mostrou ser bem confiável
também. Por isso, vou passar isso aqui para suas mãos, sabendo que você fará bom uso.
Marcelo retira de dentro da caixa uma chave dourada e mostra para Nicholas. Denis se inclina na
cadeira e aponta para a chave.
- Nick, é igual a que você tem.
- É uma cópia falsa - explica Marcelo — Caso alguém descobrisse que o baú estava aqui, iria
procurar a chave comigo, e deixaria Nicholas em paz. A verdadeira chave está com você, certo?
- Sim, Pastor — diz Nicholas, enquanto retira do bolso, com certa dificuldade, a chave correta.
Denis compara as duas com o olhar. Eram praticamente a mesma.
- É tão esquisito ver essa chave e saber que vamos pegar um baú que pode ser parecido com o que
achamos no Egito. Dá até um frio na espinha, como se isso atraísse coisa ruim sabe. — diz Denis,
com a voz embargada.
- E você não está errado, meu filho. Mas temos que ir logo. O baú está guardado no porão da
igreja. Guardado, não. Escondido. Vamos?
Marcelo segue na frente e abre a porta para sair da sala, com Nicholas e Denis atrás dele. Eles vão
conversando no corredor, em direção ao centro da igreja, onde estavam. Nicholas guarda a chave
no bolso de seu paletó.
- Tome muito cuidado com o conteúdo do baú, Nicholas - diz Marcelo, caminhando pelo corredor
e falando por cima do ombro — Pelo menos foi o que seu pai me disse. Sempre tive curiosidade
de abrir aquilo, mas respeitei a vontade de seu p....
Marcelo não consegue terminar a frase. Ao cruzar todo o corredor, sendo o primeiro a surgir no
saguão principal da igreja, é atingido por um tiro, caindo para trás, em cima de Nicholas e Denis.
O barulho do disparo e o corpo do Pastor no chão fazem Denis pular de susto. Nicholas olha para
Marcelo, moribundo, abrindo a boca tentando pronunciar algumas palavras, e com a mão no peito,
bem em cima do ferimento.
- Cuidado... Eles... Estão... Aqui... já começou...
Marcelo morre em seguida.
Nicholas olha para frente e enxerga duas pessoas correndo em sua direção. Um deles aponta uma
arma para o jornalista.
- Nick, corre — diz Denis, pulando para trás do altar, abaixado, tentando se proteger dos tiros que
passam por sua cabeça.
Nicholas também sai correndo, contornando os bancos, em direção oposta a Denis, enquanto os
perseguidores se dividem.
Nicholas abre uma das portas na lateral do saguão e sobe correndo as escadas. "Tomara que as
reformas feitas por aqui não tenham mudado tanto a igreja" pensa ele, sabendo da vantagem que
tem por conhecer cada canto de toda aquela grande área. Nicholas abre a porta do segundo andar e
sai correndo pelos corredores, olhando para baixo, tentando visualizar Denis, mas o silêncio
impera no térreo da igreja. O jornalista consegue apenas ver parte do corpo de Marcelo e o sangue
escorrendo no chão. Um tiro acerta a pilastra ao seu lado, fazendo Nicholas inclinar a cabeça e
protegê-la com as mãos, instintivamente.
Ele continua correndo e olha para trás, percebendo que ainda está sendo seguido, e na mira de seu
perseguidor.
Nicholas abre uma porta do outro lado do andar, vira a direita em um pequeno corredor e sobe
mais um lance de escadas, sempre ouvindo os passos rápidos do homem atrás dele. Chega
cansado no terceiro e último piso da igreja, mas não pode desistir. Tenta abrir uma porta que dá
acesso ao sótão, mas ela está trancada. Corre então em direção à porta do lado. Dois metros
separam as duas saídas.
Trancada também.
Por mais que ele force, ela não abre. Ele vira de costas para tentar mais uma porta, lembrava bem
que dentro daquela última teria um pequeno elevador feito de madeira, montado para carregar
alguns materiais mais pesados que guardavam lá. E com certeza, Nicholas imagina que o elevador
agüentaria seu peso. Era a última chance de despistar aquele assassino.
"Droga, só o que faltava, trancada", pensa ele, forçando sem parar a fechadura. Os passos estavam
cada vez mais próximos e Nicholas decide esquecer aquelas saídas, correndo para uma sala no
final do corredor.
Nicholas entra no local e percebe a bagunça que está ali. Parecia ser um depósito, com inúmeras
caixas, livros, aparelhos eletrônicos, roupas. Percebe o homem que o seguia chegando muito perto
e prestes a entrar naquela sala.
E vê que não há mais para onde correr.
Olha para os lados e agarra um candelabro, pesado o suficiente para o que havia planejado.
Encosta ao lado da porta e calcula o tempo certo em que aquele homem cruzaria o recinto em seu
encalço. Quando percebe a sombra se aproximando cada vez mais, gira todo o seu corpo em
direção ao desconhecido e acerta o candelabro na cabeça do homem, fazendo-o perder o equilíbrio
e cair, desmaiado.
Nicholas, assustado, larga a arma improvisada, marcada com sangue, e olha o homem caído, com
a cabeça aberta. Ele acha que matou o coitado, mas percebe que ele ainda respirava. Decide não
esperar o homem acordar e sai correndo, na esperança de ajudar Denis.
Percorre todo o caminho de volta, cauteloso em cada canto que vira, para ter certeza que não teria
mais surpresas, e finalmente chega ao salão principal. Caminha até o corpo de Marcelo e olha com
uma mistura de tristeza e ódio. Nicholas se sentia culpado pela morte do pastor. Afinal, levou os
assassinos até ele.
Mas Nicholas tinha que ser rápido. Que alguém velasse aquele corpo depois. Lembraria de ligar
para a polícia. Iria orar pelo pastor, que Deus o tenha. Mas se ficasse naquele local, ele poderia ser
o próximo corpo estendido no chão.
A adrenalina corre no corpo de Nicholas. Pelo menos é a melhor desculpa que ele arranja para dar
as costas ao santo homem e correr para pegar o baú, com ou sem a ajuda de Denis.
Anda devagar no porão, sempre ressabiado, cuidando de sua retaguarda. Passa por cima de
algumas caixas de madeira e toma cuidado com os pedaços soltos, com pregos enferrujados
apontando para ele. Chega até o final do porão e descobre outras caixas, debaixo de um tecido
vermelho. A maior dificuldade seria saber em qual daquelas caixas, de vários formatos, estaria o
baú. Nicholas abre uma por uma, o mais rápido possível, e na quarta tentativa encontra o objeto.
Pequeno, brilhante, mas pesado. A numeração em cima era estranha. Algo que talvez Denis
pudesse decifrar.
Com todo o cuidado, Nicholas retira o baú dentre os pertences da caixa, assopra a poeira em cima
dele e fica alguns segundos hipnotizado pelo artefato. Jamais tinha visto tamanha beleza em tão
pequeno objeto. Nicholas coloca o baú em cima do caixote e busca a chave no bolso do paletó.
Leva a chave até a fechadura, vira e ouve um click. Sente uma espécie de medo e ansiedade no
que irá encontrar dentro do baú.
Ele abre.
Consegue apenas ficar boquiaberto com o que há ali. Com todo o cuidado, retira um papel do
outro bolso, enrola e...
- Ei.
Com o susto, Nicholas larga o baú, que acaba se fechando sozinho. Retira a chave da fechadura e
fica estático, esperando um cano gelado em suas costas.
- Calma, Nick, sou eu, pode se virar — fala Denis.
Nicholas respira aliviado, apenas sorri e diz.
- Que bom que está aqui. Mas como conseguiu me encontrar?
- Bom, o Pastor falou sobre o porão. E se você não quisesse ser encontrado, não deixasse o
alçapão escancarado.
Nicholas bate a mão na testa. Como foi tão descuidado?
- E o cara que foi atrás de você?
- Atropelado. Eu saí correndo em direção a rua, por quase um quarteirão, cara. Quando atravessei
uma avenida, ele veio atrás, mas não viu um carro que vinha a toda velocidade. Voltei pra cá
correndo. Não queria continuar lá pra ver. Foi pura sorte.
"Sorte?" Pensa Nicholas. "Essa história está mal contada demais. Não, peraí. Eu tô ficando
paranóico. Não posso desconfiar de todo mundo. Denis tá comigo nessa. Ele sofreu muito para
chegar até aqui. É. Melhor eu esquecer isso."
- E o baú? Encontrou? — diz Denis, tentando olhar por cima de Nicholas.
- Sim, aqui está - Nicholas dá um passo para o lado, revelando o baú atrás dele. Denis se
aproxima, maravilhado. Com todo o cuidado, toma o baú nas mãos e olha como uma criança olha
seu novo brinquedo.
- É lindo. E idêntico ao que encontramos no Egito. Tá vendo isso, esses hieróglifos? São de uma
época muito antiga. Faraônica. Significa "Toda a força para aquele que retornará e tomará o poder
e fará do mundo o lugar dele". Uau. E esse número. É um dois. Antes era um três. Agora é um
dois. Meu Deus, Lara estava certa. São sete baús.
- Denis, desculpa atrapalhar o namoro entre vocês dois, mas temos que sair logo daqui antes que
mais alguém apareça.
Denis parece voltar a si.
- Hã? Ah, é. Vamos, vamos.
- Eu vou ligar para a polícia, não podemos deixar o corpo de Marcelo jogado no meio do salão. —
Nicholas retira o celular do bolso e faz a ligação, sem citar nomes.
- Agora temos que sair daqui rápido, antes que eles cheguem.
Os dois correm em direção ao carro.
Ao sair da igreja, a claridade ofusca os olhos de Nicholas e Denis, que colocam a mão no rosto,
tentando se acostumar com o sol.
Mal percebem que estão numa emboscada.
- Nenhum movimento brusco, Nicholas.
Quando Nicholas enxerga, percebe que está na mira de uma arma novamente. Um homem
grisalho, forte, de pele queimada pelo sol, com um paletó impecável, aproxima-se sorrateiramente
e Nicholas só consegue sentir o aço gelado em suas costas. Ele é puxado de volta para a entrada da
igreja, longe de qualquer olhar curioso. Reconhece também o outro homem, que aponta a arma
nas costas de Denis. É aquele que o havia seguido. Com a cabeça sangrando, a camisa manchada
de vermelho e o olhar de raiva todo para o jornalista.
- Muito bem, me passa esse baú e a chave. — Diz o homem grisalho.
- Chave? Não sei do que você está falando. — Nicholas tenta disfarçar.
- Olha aqui — sussurra o homem em seu ouvido — nós já passamos por muita coisa com vocês e
não estou com paciência. Ou você me entrega o baú e a chave, ou atiro em você e no seu amigo.
Nicholas apenas larga o baú, que estava embaixo do seu braço. O baú cai no chão, e o homem
puxa o objeto com o pé para o lado dele.
- Ótimo, agora a chave.
Nicholas ensaia colocar a mão no bolso, mas é repreendido pelo homem grisalho.
- A chave está no meu bolso. Eu preciso enfiar a mão para pegar, certo? — diz Nicholas, parado,
sem mover o rosto.
O próprio homem bota a mão no bolso do paletó de Nicholas, retira a chave e sorri. Empurra
Nicholas para frente, ainda tendo o jornalista na mira, sem querer chamar a atenção das pessoas
que passam pela calçada, a alguns metros da enorme escadaria que divide a igreja da rua.
O homem grisalho olha para Nicholas. Um olhar profundo que lhe corta a alma e parece durar
uma eternidade. Nicholas havia entregado a única coisa capaz de servir de barganha pela sua vida,
e já espera pelo tiro de misericórdia. Mas o homem começa a rir.
- Há, há, há. Viu, não foi tão difícil. Apesar do trabalho que você nos deu. Agora acabou. Eu devia
matar você, mas não vou. Ainda acredito nos "Eleitos".
- O que? Não foi isso que combinamos. Ele pode trazer problemas. — indaga seu comparsa, sem
tirar a arma da direção de Denis, mas inclinando o rosto para o companheiro.
- Cala a boca, Thomas. Eu decido isso. Escuta Nick. Não sei o que você já sabe, mas não me
interessa. Só peço para que você não continue investigando essa história. Sei que é difícil, mas
tenta voltar para sua vida, ok?
Nicholas concorda, maneando a cabeça.
- Não deveria deixá-lo vivo, Daniel.
- Que parte do "cala a boca" você não entendeu, Thomas? - diz Daniel, agora apontando a arma
para a cabeça do comparsa.
Contrariado, Thomas para de falar. Daniel volta para Nicholas e continua.
- Nick não vai dizer nada pra ninguém. Ele e seu amigo não serão idiotas a esse ponto. Eles viram
que podem morrer e ninguém quer morrer, não é mesmo? Bons sonhos Nick.
Daniel dá uma coronhada na cabeça de Nicholas, e Thomas repete o mesmo com Denis.
Os dois caem, desacordados.
- Olá? Está melhor?
Nicholas tem dificuldades em abrir os olhos, suas pupilas vão se acostumando aos poucos com o
vulto em sua frente, acenando para ele.
É Marcos Martins.
"O sempre onipresente Marcos Martins", pensa o jornalista.
Nicholas olha para o lado. Estava deitado em sua cama, em sua casa. Como chegou até ali, nunca
ia saber. Quanto tempo teria ficado desacordado?
Sabe que está encrencado, já que havia prometido ao oficial ficar longe de confusão. Com a ajuda
do agente, Nicholas se senta e coloca a mão na cabeça, ainda sentindo dores da coronhada.
- Isso vai ficar um galo maior do que já está, não? — Nicholas comenta com Martins.
- Nick, não venha puxar papo comigo. Sabe que eu quero muito bem deixar outro galo na sua
cabeça oca, não é?
- Olha, Martins, sem sermão, tá? Minha cabeça já dói demais.
- CAPITÃO Martins para você. Eu não te dei nenhuma liberdade, e nem devo dar. Você só me
traz problemas. Então. Você quer me contar o que aconteceu? Denis se recusa a comentar sobre
qualquer coisa. Quero saber quem matou aquele pastor? Porque há marca de tiros em toda a
igreja? Temos um homem morto com um tiro e outro atropelado a alguns metros dali, prestes a
morrer no hospital. E algo me diz que tem a ver com vocês. Então só me resta você para me falar
o que está acontecendo nessa cidade.
Antes que Martins continuasse a perguntar, Nicholas interrompe.
- Então, atropelaram mesmo alguém?
- Sim, por quê? Sabe quem ele é?
- Não, sinto muito.
- E porque falou dele?
- Foi a única coisa que Denis disse. Me contou que o homem que perseguiu ele acabou atropelado.
Só isso.
Martins franze a testa. Está há anos na polícia e nunca viu um caso tão complicado como aquele.
Antes que o capitão pudesse dizer algo, Victor entra no quarto, gritando o nome de Nicholas.
- Nick, Nick. Até que enfim você acordou. Me dá um abraço.
Ele se agacha e toma Nicholas nos braços. O jornalista mal consegue retribuir a afeição, e só pensa
no acontecido.
Victor ajeita os óculos no rosto e sussurra.
- Nicholas, eles me pegaram, me descobriram. Eu não consegui mentir. Sou um péssimo
escudeiro. Me desculpe. Fui levado à delegacia e fiquei horas prestando depoimento, tem noção do
que é isso. Onde você estava afinal, hein?
- Viu, Victor — brinca Nicholas — Por isso não poderia dizer aonde eu ia. Afinal, se descobrissem
nosso plano, você poderia me delatar, tá vendo.
- Ei, qual é? Eu agüentaria uma tortura se fosse necessário. Poderiam me bater. Eu não esmoreço
jamais, não dou um piu, e continuaria somente olhando para os olhos deles, e rindo. Nunca falaria
onde você estaria.
Nicholas belisca o braço de Victor, que solta um grito e se afasta, instintivamente. O cientista olha
torto pra Nicholas, enquanto esfrega rápido o local avermelhado.
- Percebi o quanto você é suscetível à dor. — ironiza Nicholas.
- Desculpe, rapazes — interrompe Martins — Mas se já acabaram de brincar, preciso conversar
algo a mais com você, Nicholas. Em particular.
Victor se afasta, batendo o pé como um menino mimado, sob o olhar sisudo de Martins. O
cientista percebe e retribui o olhar, peitando o homem, mas logo perde a pose quando Martins
finge descruzar os braços rapidamente. Victor da um pulo para trás, assustado, e caminha de
costas, até a porta, retomando somente lá a falsa coragem. Olha para Martins e faz um sinal com
as mãos, colocando os dedos, indicador e médio, próximos dos olhos e depois apontando para ele,
como se dissesse estar de olho no policial. Victor bate a porta, enquanto Martins mexe a cabeça
negativamente, lamentando no que se meteu.
- Seu amigo é uma figura. — comenta com Nicholas.
Logo volta ao semblante sério.
- Olha, Nick. É melhor você realmente começar a respeitar minhas ordens ou coloco você atrás
das grades. Quero te ajudar. Pode contar comigo para tudo. Mas preciso da sua cooperação.
Nicholas apenas faz sinal que entendeu o recado.
Thomas e Daniel encostam o carro em frente a uma casa enorme, no bairro de Higienópolis. Um
rapaz forte, de cabeça raspada, vestindo terno e com um porte de segurança, desencosta do muro e
caminha até eles. Sem dizer nada, apenas estende a mão, olhando para os lados. Thomas abaixa e
retira debaixo do banco o baú e a chave. Logo entrega para o homem, que continua plantado no
seu lado, fora do carro.
- Acabou com ele, Daniel? — diz o homem, enquanto observa o baú com as mãos
- Ele não vai mais dar trabalho nenhum, Roberto.
Thomas lança um olhar de desaprovação para Daniel. Sabia que o companheiro mentia.
Daniel continua.
- Depois eu converso melhor com o chefe. Preciso falar sobre tudo o que aconteceu, mas antes
tenho umas coisinhas para resolver.
Roberto agradece, e entra na casa, com o baú, enquanto o carro parte para longe de lá.
- Você ficou maluco, Daniel? Mentir para eles e deixar aquele jornalista vivo? — se exalta
Thomas.
Daniel não diz nada, vira a direita em uma rua sem saída e encosta o carro. Thomas olha para os
lados, sem entender.
- Escute aqui, rapaz. - diz Daniel - Não me diga o que eu devo ou não devo fazer. A alta cúpula da
irmandade está ciente do que eu fiz. Nós vamos trazer o jornalista para o nosso lado, por bem ou
por mal.
- Não é isso que nossa liderança quer. Você sabe muito bem que Tirone vai ficar furioso com isso
tudo, né? — ameaça Thomas.
- Ah não ser que você conte, certo? Mas isso não vai acontecer. — Daniel retira a arma debaixo do
banco, e antes que Thomas pudesse reagir, um tiro certeiro na cabeça faz com que o vidro do
passageiro ficasse manchado de sangue. Daniel abandona o veículo e se mistura com a multidão.
Enquanto isso, Roberto desce alguns lances de uma escada caracol que parece ir para um local
subterrâneo. As paredes, úmidas, pedregosas e sem cor, dão um ar sombrio por todo o caminho
percorrido. Roberto chega a uma porta de ferro, larga e espessa, digita alguns números em uma
pequena caixa preta, imperceptível, e espera a porta abrir automaticamente. Entra e atravessa um
corredor cinzento, afunilado. No final do corredor, uma sala iluminada, enorme, cheia de cadeiras
lado a lado e enfileiradas, como se fosse um auditório. Na primeira fileira, de frente para um palco,
estavam algumas pessoas conversando, sentadas, à vontade, sob a cadeira, no chão, ou ate mesmo
em pé, de braços cruzados. Elas se calam na presença de Roberto, que continua caminhando em
direção a eles, até parar em frente a todos.
Uma das pessoas se antecipa aos demais e vai ao encontro de Roberto. Ele se chama André
Tirone, é um homem alto, calvo, beirando os 60 anos, mas aparentando ser mais velho ainda,
devido às inúmeras marcas em seu rosto, desde rugas, até cicatrizes pequenas, e olheiras
profundas. Vestia um manto acinzentado, como se combinasse com a decoração de todo aquele
local, mas o manto não escondia o volume da arma em sua cintura e o distintivo. Tirone era
policial. Roberto estende as mãos, portando o baú e a chave.
- Desculpe a intromissão, Senhor Tirone. Daniel se antecipou à Barsam e conseguiu o baú do
jornalista. Aqui está. — diz Roberto, se prostrando diante do homem a sua frente, que retira o baú
de suas mãos e se vira, sem dizer uma palavra, enquanto Roberto levanta e caminha para fora do
recinto.
André apoia o baú em uma das cadeiras, sob o olhar atento dos companheiros, que se debruçam
como podem para ver a antigüidade. André encaixa a chave na fechadura e gira, ouvindo o Click.
O sorriso em seu rosto começa a aparecer, mas some rapidamente, quando percebe que o baú
apenas continha um guardanapo enrolado, com um logotipo e escrito "Pizzaria Esperança. O
delivery é por nossa conta".
- ROBERTO — grita André, levantando a cabeça, com um olhar furioso.
Roberto imobiliza. Está prestes a sair da sala, mas o nome dele ecoa no ambiente. Se vira devagar
e enxerga o olhar apavorante daquele homem com o guardanapo na mão.
- Você mexeu nesse baú?
- N-n-não se-senhor. E-e-eu apenas trouxe para o senhor, como me foi entregue.- gagueja Roberto,
percebendo a fúria na voz do líder.
- Traga Daniel aqui, agora. — É a ultima palavra de André, antes que ele fechasse com força o
baú. Roberto não responde, apenas corre para tentar cumprir a ordem que lhe foi dada.

Victor e Denis estão lado a lado na casa de Nicholas. Os dois se conheciam, mas agora parecem
amigos de infância. Sentados no sofá, contorcem o corpo e o rosto numa batalha jamais vista
naquele videogame. Era um contra o outro, até o último suspiro.
No quarto, Nicholas está sentado, quase no escuro, com apenas uma pequena luminária sob a
escrivaninha, clareando pouco um papel antigo e desbotado, que ele tenta, sem sucesso,
desamassar e entender o que lá está escrito. E uma linguagem estranha, esquisita. Por mais receio
que tenha, irá precisar dos conhecimentos de Denis. E hora de confiar em seus instintos e
compartilhar a informação com seus amigos.
Nicholas se levanta e caminha até o início da escada, onde tem uma visão da sala e da guerra
eletrônica e verbal que ali acontece.
- Ei, Denis, Victor. Vocês podem subir aqui um pouco? — chama Nicholas.
Denis pausa o jogo, sob os protestos de Victor, e olha para seu amigo no topo da escada.
- Que? Nem ferrando. Eu to apanhando no vídeogame, quero reverter isso agora — diz Denis,
despausando o jogo para o deleite de Victor.
Nicholas dá meia volta, busca o papel em seu quarto e desce as escadas, com passos firmes,
caminhando até a frente da televisão, onde ganha a atenção de seus dois amigos.
- Ah, Nick. Que isso. Eu tava prestes a vencer. - reclama Victor.
Nicholas abre o pedaço do manuscrito e o estende em frente a Denis, que larga o controle do
videogame e se levanta.
- Ei, peraí. Você não pode sair agora. Eu vou ganhaaaaar. — continua Victor, indignado.
- Onde achou isso? — diz Denis, perplexo, enquanto pega o pedaço e analisa.
- No porão da igreja, dentro do baú. Eu usei a chave e tirei o que havia dentro, troquei por outra
coisa um pouco antes de você me encontrar, e daqueles dois pegarem o baú sem nada de valor
dentro.
- Ahá - Denis comemora, colocando os dois braços para cima, enquanto Victor olha confuso para
os eles. — Eu sabia que você era um gênio, Nick. Eu te amo, cara.
- Ótimo, Denis. Mas preciso de ajuda. Não entendo o que é isso. Você pode me ajudar?
Denis abre espaço no sofá, retirando livros, comidas e os controles. Nicholas se ajoelha
acompanhando o amigo, que abre o papel e passa os olhos pelas palavras. Victor se ajoelha ao
lado de Denis, com uma cara confusa, esperando alguma explicação.
- Isso é um papiro. Muito, muito antigo, e está muito bem cuidado. O papiro é uma planta usada
para qualquer tipo de relato, já que na época disso aqui não existia papel. E extremamente
trabalhoso produzir o papiro para a escrita. Sabia que se utilizava a parte interna do caule, que era
cortado em tiras finas, molhado no vinagre, depois sobreposto e cruzado, para ser prensado por
ultimo. Depois martelado e colado ao lado de outras folhas para formar uma longa fita que era
enrolada no final. Pois é... E isso aqui costuma deteriorar muito rápido. Os últimos que chegaram
até a época atual datam do século dez. É realmente impressionante encontrar um desses em ótimo
estado. E pelo que está escrito aqui, a história que Lara contou faz cada vez mais sentido.
- E o que tá escrito? — diz Victor, mais interessado, tirando as palavras da boca de Nicholas.
- São palavras fortes, que falam basicamente de poder. E como se fosse parte de um ritual,
invocando algo. Olha essa parte, diz algo como "Venha e tome para si todo o poder que lhe é de
direito, conquistador dos espíritos".
- Uau, é de gelar a alma. — arrepia-se Victor.
- Se Lara estava certa, temos que ligar para ela. Quem sabe já não descobrimos algo sobre
Gustavo, também? — diz Nicholas.
- Eu não confio totalmente naquela garota, Nick.
- Sei que não, Denis. Mas em quem mais podemos confiar? Temos que dar uma chance a ela —
diz Nicholas, enquanto se levanta e pega o telefone.

A porta de ferro bate atrás de Roberto, ecoando por todo o corredor e pelo enorme saguão onde
André ainda está reunido com o grupo. O barulho chama a atenção de todos, que vêem Roberto
chegando, correndo, cansado e ofegante, e parando em frente à Tirone. Toma fôlego e diz.
- Senhor, Daniel não foi encontrado por mais ninguém. Ele sumiu, talvez com o conteúdo do baú.
- Impossível. — diz André, rangendo os dentes. — Thomas deveria estar com ele.
- E estava. Encontramos Thomas morto, dentro do carro. Mas não se preocupe, senhor. Tudo está
resolvido. Temos alguns dos nossos no local, junto com o resto da polícia.
André solta um grito, assustando os presentes e amaldiçoando Barsam. Sabia que seu rival na
corrida para subir na hierarquia da irmandade, o Senador Rafael Barsam, poderia ser o único
responsável por aquele golpe. Maldito seja ele. O político estava a pouco tempo no grupo, mas o
que tinha ouvido pelos contatos é que o homem havia conquistado um espaço e respeito muito
grande com a Alta Cúpula. Alguns diziam que Barsam poderia ser um dos eleitos, e quem sabe, a
pessoa que serviria para a volta triunfante daquele que a Irmandade espera há tanto tempo. André
não queria aquilo. Sabia que a luta silenciosa pelos papiros continuava, e que perdera uma batalha,
mas iria lutar até o final. Se alguém fosse escolhido o eleito, seria ele, e não aquele engravatado
metido a besta.
André respira fundo, olhando para o chão, com as duas mãos cerradas em cima da mesa. Depois
de alguns segundos levanta a cabeça, retira o celular do bolso e disca um número. Manda Roberto
embora enquanto espera o outro lado atender. O segurança obedece de imediato, sem olhar para
trás.
- Alô? — diz André, com uma voz tensa — contate Barsam. Quero falar com aquele maldito o
quanto antes. E quero o relatório completo do nosso homem na polícia sobre aquele jornalista. O
que? Ele esta vivo? Eu já imaginava. Sim, sim... Quero o serviço completo. Mate-o. E dessa vez, é
pra valer.

Um carro estaciona em frente à residência de Nicholas. Lara sai do veículo e caminha sorridente
em direção ao jornalista.
Mas ele não retribui o sorriso.
- Você não disse nada a Gustavo, não é?
- Relaxa, Nicholas. — diz Lara, passando por ele sem cumprimentá-lo, e entrando na casa - Ele
está viajando. E eu sou livre para ir e vir quando quiser. Agora, me fala, o que fez você me ligar
tão desesperado? Descobriu algo sobre o baú?
- Que tal isso? — Denis aparece na sala com o papiro em mãos, exibindo-o para Lara.
- Meu Deus. — diz Lara, atônita, se aproximando de Denis com o olhar fixo no tesouro que ele
tem em mãos. — Então... Realmente é verdade? O manuscrito existe mesmo? — Lara diz,
enquanto se vira para Nicholas.
- É o que havia no baú. Sim, você estava certa. Eu tinha mesmo um baú. Eu te chamei porque
achei que pudesse nos ajudar a decifrar mais disso. — diz Nicholas, de braços cruzados, apenas
acompanhando a reação de Lara, que manuseava o papiro, olhando cada detalhe.
- E havia algo mais nesse baú? — pergunta Lara.
- Nada... Apenas isso. — responde Nicholas.
- Uau. Isso é maravilhoso. Quer dizer que as especulações em torno do manuscrito estão corretas.
— sussurra Lara. Logo, olha para Nicholas e diz. — Você tem uma das sete partes, Nick. Deveria
se sentir um privilegiado por isso. Você faz parte da história.
- Não sei se gosto da idéia de participar disso, Lara. Sei que ter esse negócio ainda vai me causar
muitos problemas. Mas também não te chamei aqui somente para que você pudesse admirar esse
achado. Conseguiu alguma coisa? Alguma informação importante? — Nicholas diz,
aproximando-se de Lara, com um olhar curioso.
- Sim. - Lara procura em seu bolso um pedaço de papel. — Aqui está. — ela entrega o papel a
Nicholas, que abre e começa a ler, enquanto Lara continua a falar. — Andei ouvindo mais
algumas conversas de Gustavo. Ele ligou mais três vezes para esse tal "senador", e citou em uma
das conversas o nome "Kalccune", aquela corporação internacional conceituada, que investe em
tecnologia.
- E ciência. — interrompe Victor, que estava sentado no sofá. — Desculpa atropelar o papo de
vocês, mas já ouvi falar bastante dessa empresa. Ela patrocina muitos estudos científicos. Novos
remédios, doenças, produtos.
- E tem mais. — continua Lara. — Depois que Gustavo viajou, eu fui fuçar nas coisas dele. Há um
cofre no escritório. Eu tentei abrir, mas ele havia trocado a senha. Fazia pouco tempo que eu abri o
cofre pela ultima vez, então, como sei que ele nunca teve boa memória, e costuma escrever as
coisas para não esquecer, sabia que aqueles números deveriam estar em algum lugar. Dei uma
olhada em sua agenda, e achei em uma das páginas uma seqüência de seis números, anotados no
rodapé. Tentei e não abriu, tentei novamente, de trás para frente, e deu certo. Havia muitas pastas,
nomes, passaportes, e armas. Armas, Nicholas. Gustavo tem equipamentos de fazer inveja a um
agente secreto. E havia também uma listagem, essa aí que copiei nesse papel, com seu nome e de
outras pessoas. Todas com perfil completo.
- Acha que tem a ver com os baús, não é? — diz Nicholas, sem tirar os olhos do papel, e
adivinhando o que Lara diria em seguida.
- Bom, você realmente o achou, não? Se seu nome está aí, é porque Gustavo sabia que você tinha
o baú. — completa Lara.
- Você tá certa. — concorda Nicholas, tirando os olhos do papel pela primeira vez. — Quando
Gustavo viajou?
- Ontem pela manhã. Disse que ficaria fora uma semana. Ele foi para o Rio de Janeiro. E dá uma
olhada no quinto nome da lista. Larissa Bottin, Rio de Janeiro.
- Então não podemos perder tempo. — diz Nicholas, olhando para seus amigos e distribuindo as
tarefas. — Victor, se bem me lembro dos tempos de colégio, você é o mestre em informática por
aqui. Puxa a lista de todos os figurões que possam ter alguma ligação com essa Kalccune. Deve ter
mais nomes do que Rafael Barsam e Zaed Kamul. Meu Deus, um senador brasileiro e nada mais
nada menos que o presidente francês envolvidos nisso. O buraco é bem maior do que eu pensava.
Denis, abre minha gaveta do lado esquerdo da cama, lá tem um passaporte falso, que eu fiz na
época que viajava para algumas reportagens do "Foco". Compre passagens para nós quatro. A
gente vai embarcar para o Rio ainda hoje. Lara, se quiser ir....
- Eu não perderia isso por nada no mundo — sorri.
- Ótimo, então fica perto do telefone, eu te ligo e você encontra a gente no Aeroporto. Só preciso
fazer uma ligação muito importante antes.
- Desde quando ele ficou tão mandão, hein? — Denis comenta com Victor, que apenas dá de
ombros.

Meia hora se passou desde que Lara saiu da casa de Nicholas. A quietude toma conta daquela rua,
naquele horário. A calmaria é quebrada com a chegada de uma ambulância com a sirene ligada. A
ambulância para na frente da casa de Nicholas, e de trás, salta dois enfermeiros e uma médica.
Denis abre correndo a porta de casa e diz, aflito.
- Ainda bem que vocês chegaram. Rápido, ele está caído na cozinha, rápido.
Os enfermeiros tomam a frente e entram na casa de Nicholas.
Dois homens saem de um carro escuro, parado há horas ali na rua.
Um homem um pouco acima do peso, suando, entra na casa logo em seguida. É Bruno Lucchesi,
um policial destacado por Martins para ficar de olho em Nicholas. Ele faz sinal para que o outro
oficial entre logo atrás dos enfermeiros. Isabella Voguel, a médica de cabelos escuros, presos com
uma presilha, de óculos fino e uniforme impecável, diz, estupefata.
- Quem são vocês? Amigos do dono da casa? Vocês vão ficar aí parados? Ajudem logo.
Bruno toma a frente e diz.
- Senhora...
- Doutora Voguel. — interrompe Isabella.
- Desculpe. Doutora. O que está acontecendo?
Denis corre em direção a eles, e diz pausadamente, enquanto recupera o fôlego.
- Quem... quem são vocês?
- Somos policiais. O capitão pediu para que ficássemos aqui na frente.
- Ótimo... Aff.. Nicholas... Nicholas sofreu algum ataque cardíaco, sei lá... Eu encontrei ele caído
na cozinha, sem cor e nenhuma respiração.
- O que? - diz Bruno, atônito. — Você, ajuda eles — Bruno dá a ordem para o outro policial.
Os enfermeiros saem da casa com Nicholas em uma maca, seguido dos dois policiais. Um deles
diz.
- Sargento Lucchesi, aparentemente o elemento estava mesmo passando mal. - diz um dos
policiais, um jovem com um uniforme bem passado e sem nenhum fio de cabelo fora do lugar,
culpa de algum gel bem poderoso... E luminoso.
- Nicholas é o elemento, é? — sussurra Denis para Bruno, que o ignora.
- Porque aparentemente? — indaga Bruno ao policial.
- O enfermeiro estava em cima dele, realizando um Romeu Charlie Papa (RCP - Ressuscitação
cardiopulmonar), e o QRA em questão não nos deixou averiguar a baixa, como devido, Senhor. -
explica, num tom de voz alto, como se estivesse no exército falando com um superior. Falta
apenas bater continência.
- Como ele fala difícil, não? — sussurra novamente Denis, já irritando Bruno.
Bruno caminha em direção à maca, mas Isabella bloqueia sua passagem.
- Espere um pouco, policial.
- Sargento. — interrompe Bruno.
- Desculpe. Sargento. Vamos checar o estado do paciente, e sua intervenção só poderá atrapalhar
ainda mais sua saúde. Quer visitá-lo? Vá ao hospital. Só seguir a gente. Ele vai ficar lá, sob
observação.
Ela dá a ordem para que coloquem Nicholas, que está desacordado, dentro da ambulância.
- Vocês dois são amigos dele, não é? — diz Isabella, para Denis e Victor, que estão parados no
jardim.
- Senhora, sim senhora. — brinca Denis, imitando o policial que ali está. O agente percebe a
brincadeira e fecha a cara.
- Podem nos acompanhar, por favor, precisamos que preencham a ficha médica do paciente, e nos
auxilie também.
Antes que Bruno pudesse intervir, Isabella levanta o dedo em direção a ele e apenas diz.
- Deus do céu. Você me ouviu. Já sabe onde nos encontrar.
Ela entra correndo na ambulância, seguindo Denis e Victor. Rapidamente, Bruno dá uma série de
ordens para que o colega ligue o carro e siga a ambulância até o hospital.
O sargento telefona para seu departamento.
- Alô? Senhor. Tivemos um contratempo. Nicholas sofreu alguma parada respiratória e está indo
para o hospital.
- O que? — diz Martins, irritado, do outro lado da linha. — Interceptem aquela ambulância, não
me importa o que a doutora disse, Lucchesi. Nicholas é esperto demais e esse problema de saúde
não me parece coincidência. Eu quero o exame completo dele. Quero mesmo saber se ele está mal
ou não. — E desliga o telefone, deixando Bruno falando sozinho.
- Parabéns, Nick. Realmente está me surpreendendo — Martins fala sozinho.
A ambulância abre caminho entre os carros, parados no trânsito da marginal, com o carro policial
em seu encalço, ainda a certa distância. A ambulância vira à direita, saindo da pista principal e
entrando em uma rua menos movimentada. Rapidamente, entra a esquerda em uma pequena rua e
segue a toda velocidade, o sargento logo a alcança, continuando a vigia, a caminho do hospital.
"Porque vieram para um hospital tão longe?" pensa Bruno.
A ambulância entra bruscamente no estacionamento interno do prédio, mas Bruno, ao lado do
colega engomado, é interrompido pelo porteiro do hospital, que fecha o portão.
- Ei, rapaz. Polícia. Deixa a gente entrar. — diz o agente, com a cabeça para fora da janela, falando
com o jovem franzino que fechara o portão.
- Sinto muito. Apenas ambulâncias por aqui, para a segurança e demais carros, tem outra entrada a
50 metros, seguindo essa rua. — diz o porteiro.
Os policiais não discutem, apenas dão ré e seguem, cantando pneu e deixando uma marca no
chão.
A Ambulância estaciona e Isabella abre rapidamente a porta, dando ordens para os enfermeiros
apertarem o elevador e subir depressa com a maca coberta. De dentro do veículo, Denis e Victor
saem, seguidos por Nicholas.
- Para alguém que teve um ataque cardíaco, você está muito bem. — brinca Isabella, pela primeira
vez tirando a feição sisuda do rosto.
- Obrigado, doutora. Agradeça ao Fábio por mim. Sei que ele pode se complicar com tudo isso.
Não quero causar problemas.
- Fica tranqüilo. Eu ainda vou dar uma canseira nos policiais antes de eles descobrirem que vocês
saíram. Acho que vai dar tempo de vocês sumirem. Sabe como é, né. Toda aquela burocracia de
hospital. — sorri.
- Aliás, Nick. Que idéia genial. Como sabia que tinha policiais de olho na gente? — pergunta
Denis.
- O capitão avisou que ia ficar de olho, certo? — Nicholas pisca para ele - Olha, Isabella, obrigado
mesmo, de verdade — agradece, apertando a mão da médica.
- Vão, vão. Deixem comigo. Boa sorte.
Nicholas, Denis e Victor correm em direção a uma porta de emergência, sumindo escada abaixo,
enquanto Isabella anda em direção aos dois policiais, para recebê-los e encaminha-los à sala de
espera. Aonde vão, como o próprio nome já diz, esperar... Por muito tempo.

Uma hora se passa, e Lara caminha de um lado para o outro, aflita, no saguão principal do
Aeroporto ao lado da Avenida dos Bandeirantes. Logo, avista seus três novos amigos chegando,
correndo e desviando das pessoas pelo corredor lotado.
- Ufa. Finalmente. Viemos o mais rápido possível. Temos que ir rápido. — diz Nicholas, ofegante.
- Ótimo. Assim que eu voltar a respirar, a gente vai até o Terminal. — Denis fala, puxando o ar
profundamente, tentando voltar ao normal, enquanto limpa o suor da testa.
- Então vamos logo. E vamos torcer para que o voo não atrase — pede Lara.
Denis da um longo suspiro. Ele odiava ficar correndo de um lado para o outro.
Longe dali, Martins recebe um telefonema. Sua feição muda, e ele não parece nada satisfeito com
o que ouve. Apenas diz.
- Não quero saber se uma doutorazinha conseguiu enrolar vocês. Vasculhem esse hospital e achem
Nicholas. E mande fechar todas as saídas da cidade, o mais rápido possível. Não podemos perdê-
lo de vista. Agora é pessoal. Bote a foto deles onde for. Não vou aceitar mais essa incompetência.
Martins desliga o telefone, furioso.
A polícia age rápido, em pouco tempo, o rosto de Nicholas ganha todos os postos de segurança.
Seja em rodovias ou aeroportos. Mas já era tarde demais. O vôo em que Nicholas está havia
decolado há vinte minutos, com destino à cidade maravilhosa.

Larissa Bottin é uma mulher alegre. Está sempre sorrindo, fazendo piadas, se divertindo com seus
amigos. Trabalha na recepção de um dos hotéis mais famosos no bairro de Copacabana, no Rio de
Janeiro. Como a maioria dos cariocas, Larissa adora tomar sol, o que explica o bronzeado. É uma
garota magra, bonita, olhos e cabelos castanhos, sempre de vestidinhos coloridos, exaltando as
marcas de biquíni. Quando não está trabalhando, fica na praia com os muitos amigos.
Mas naquela tarde, Larissa trabalha. Entre um Check-in e outro, sempre cumprimenta os hóspedes.
- Bom tarde, Senhor Durval, Bom tarde Senhora Carla, Bom tarde Senhora Adriana. - diz, sempre
cordial.
Um homem se aproxima do balcão, e Larissa levanta a cabeça, para atendê-lo.

- Ah, olá Sr. Gustavo, como está hoje. — diz, abrindo um longo sorriso.
- Como vai, Larissa? Eu estou bem, obrigado, e você? — retruca Gustavo Gradícola, vestindo um
terno escuro, sob medida, e uma gravata que combinava com a cor dos olhos. Mesmo
contrastando com o calor daquela cidade, Gustavo está impecável, como sempre gosta de estar. —
Eu tenho uma reunião com um grupo de investidores agora. Até que horas fica por aqui?
- Até meia noite devo estar por aqui, Senhor Gustavo. — responde Larissa.
- Ótimo, a reunião é às 20h, devo retornar antes da meia noite. Se possível, gostaria de conversar
com você sobre uma proposta de emprego. Vejo que você é muito simpática. Gerencio alguns
hotéis em São Paulo, se te interessar, você pode trabalhar em algum deles. — sorri, sem
transparecer a mentira.
- Ótimo, na volta conversaremos então, senhor. — Larissa sorri de volta, educada, e se despede de
Gustavo. Ele sai andando pelo Lobby, acompanhado do mensageiro, que chama o táxi mais
próximo para atender o hóspede. Gustavo dá uma caixinha para o funcionário, que inclina a
cabeça em agradecimento, enquanto inveja o engravatado que saia.
Chique, muito bonito, elegante, rico. E tudo que aquele humilde mensageiro sonha em ser um dia.
Uma hora se passa até que um táxi estaciona na frente do hoteL Lara e Nicholas saem primeiro. E
capricharam no disfarce. Melhor prevenir do que remediar. Ela, com o cabelo amarrado e falsos
óculos de grau, ele, de chapéu. Ambos conhecem Gustavo e não querem colocar tudo a perder.
Victor e Denis saem logo em seguida e entram no hotel. São atendidos por Vivian, uma das
recepcionistas.
- Boa noite, Senhores, bem vindo ao nosso hotel, em que posso ajudá-los? — diz o recepcionista,
com um sorriso estampado no rosto.
- Boa noite. Temos uma reserva em nome de Eduardo Pereira e Nestor Rodrigues. São dois
quartos não fumantes. — diz Nicholas, mostrando os documentos falsos enquanto Lara olha para
os lados, preocupada.
- Sim. Aqui está. Por favor, podem preencher essas fichas enquanto separo a chave dos senhores.
— diz a recepcionista, digitando freneticamente no computador na frente dela.
A porta atrás de Vivian se abre e Larissa sai de lá, com algumas pastas em mãos, enquanto
cumprimenta os quatro.
- Nick. — sussurra Denis.
- Sim, eu vi o crachá. Só pode ser ela. — sussurra, de volta ao amigo.
Lara se antecipa e fala para Larissa.
- Acho que falei com você ao telefone, quando efetuei minha reserva, não foi? - inventa, para
puxar assunto com Larissa.
- Creio que não, Senhora, pois todas as reservas são feitas por outro departamento. Mas estarei aqui
todas as noites, e farei o possível para atendê-la no que precisar.
- Ah, desculpe. É que eu conversei com uma mulher. Achei que tivesse sido você. Acho que era
Larissa também. Larissa Gomes, acho.
- Me chamo Larissa também, mas o sobrenome é diferente. Eu sou Bottin.
- Ah, desculpe novamente. — diz Lara, confirmando, pelo sobrenome, que aquela era mesmo a
Larissa que procuravam.
- Sem problemas. Com licença, Senhores. — se despede Larissa.
- Estes são seus quartos, Senhores. — Vivian entrega as chaves.
Nicholas e Lara ficam juntos em um quarto. Denis e Victor em outro. Eles sobem rápido para não
abusar da sorte. Gustavo não estava por ali. Agora, só resta esperar um pouco e bolar uma maneira
de conversar com Larissa com mais calma. Lara, a única garota do grupo, é a mais indicada para
abordar a recepcionista. Depois de algum tempo, ela desce pelo elevador e caminha novamente até
a recepção, onde encontra Larissa e Vivian. As duas, como sempre, sorridentes e amáveis com
todos.
- Olá Larissa. Tudo bem? — diz Lara.
- Boa Noite, Senhora Lara, em que posso ajudá-la?
- Me responde uma coisa? É uma pergunta meio pessoal... Mas você já jantou?
Larissa realmente estranha a pergunta, mas responde com sinceridade.
- Ainda não, senhora.
- Gostaria de jantar comigo? Queria conversar sobre um assunto delicado com você.
- Desculpe senhora. Mas não sei se conseguirei sair para jantar. Temos muitos hóspedes hoje. Está
bastante corrido, mas obrigada pelo convite. - Larissa já recebera convites antes. De homens e
mulheres. E muitas vezes, o convite era com segundas intenções. Ela sabia como contornar a
situação com delicadeza.
Lara se apoia no balcão e fala, com um olhar sério.
- Eu realmente preciso conversar com você. Se você for Larissa Bottin, filha de Antônio e Paula
Bottin, irmã de Leandro... - Lara é interrompida pela recepcionista, que com os olhos
esbugalhados, diz.
- Como sabe o nome da minha família?
- Posso te explicar tudo na janta. Não vou te tomar muito tempo. - fala Lara, desapoiando do
balcão, mas ainda demonstrando seriedade.
- Fica aqui pra mim, Vivi? Vou sair para jantar, mas volto logo.
A recepcionista só concorda, e Larissa dá as costas à Lara, saindo pela porta dos fundos. Em
segundos, ela aparece por outra porta, que dava acesso ao Lobby, e diz.
- Tem um restaurante aqui do lado do hotel, podemos ir lá?
Lara aceita, e caminha ao lado de Larissa, que não diz uma só palavra até chegar ao restaurante.
As duas se sentam e aguardam o atendimento.
- Muito bem. - diz Larissa, ainda séria - Não costumo sair com nenhum hóspede, mas nenhum
deles costuma falar da minha família. Quem é você, como sabe tanto de mim? O que quer?
- Olha. — responde Lara — Eu não quero te fazer mal nenhum. Eu vim até aqui para proteger
você. Existem pessoas que sabem tudo de você, e muito mais. Só que elas sim, podem te
machucar. Você corre grande perigo aqui. Conheceu um homem chamado Gustavo?
Larissa treme novamente. Aquela mulher sabe o que fala.
- Sim, ele está hospedado conosco no hotel, por quê?
O garçom chega à mesa, Larissa pede uma água e Lara apenas agradece a atenção.
- Ele não é quem quer que tenha dito ser — continua Lara — Ele está à procura de algo que só
você tem...
- E o que seria?
- Um baú. Pequeno. Antigo. Com alguns numerais talhados nele. Singular.
- Não sei do que se trata.
Mas Larissa sabe muito bem. Lembra que seu avô tinha um baú, e passara pra ela antes de morrer,
dizendo para protegê-lo a todo custo, mas que nunca abrisse a caixa. Para ela, era só um baú
velho. Ela era muitas coisas, mas não curiosa. Respeitou o pedido do avô e escondeu o objeto.
- Não mente pra mim, Larissa. Eu quero te ajudar. Gustavo pode fazer mal a você, ele não está
bem intencionado. — avisa Lara.
- Mas eu não sei mesmo que baú é esse.
- Alfredo Bonetti não lhe deu nenhum baú?
Larissa gela ao ouvir o nome do avô. Gustavo nunca fez nada a ela, e lá estava Lara, sabendo
coisas que ela nunca havia contado para ninguém. Se houvesse uma ameaça ali, era aquela
hóspede recém-chegada. Mas passar tanto tempo convivendo com pessoas fez com que Larissa
soubesse ler cada uma delas. E não via maldade nos olhos da mulher que lhe contava tudo aquilo.
Ao contrário. Enxergava inquietação. Lara parece mesmo estar sendo sincera. Seus movimentos,
seu olhar, a preocupação em sua voz. Decidiu então dar créditos a ela.
Larissa abaixa a cabeça, envergonhada por ter mentido.
- Sim, ele me deu.
- O quê? — como Larissa está de cabeça baixa e com a voz fraca, Lara não entende nada do que
ela fala.
Larissa levanta a cabeça, dizendo, desta vez, com firmeza.
- Sim. Ele me deu. Antes de morrer. E você deve saber disso também, não é?
- Morreu dois anos atrás, motivo da morte... Câncer. — diz Lara, consultando seu bloco de
anotações.
Larissa afasta a água da sua frente e se apoia na mesa, em direção a Lara.
- Nunca mais toque nesse assunto. E totalmente doloroso para mim, entendeu?
- Desculpa. — diz Lara, percebendo a falta de tato, enquanto reclina para trás, com os braços
abertos, como se estivesse se rendendo - Não quis ser grosseira. Mas se eu sei tudo isso, é somente
porque consegui roubar todas essas informações de Gustavo. Acredite ou não. Ele é... Ou era...
Meu namorado.
Agora sim Larissa está mais confusa do que de início. Porque aquela mulher prejudicaria seu
parceiro? Mas por pior que tudo aquilo parecia, Larissa decidiu continuar a ouvir a história.
- Eles estão buscando o conteúdo desse baú a todo custo. — continua Lara — Existem sete no
mundo todo, e eles não medirão esforços para consegui-los.
- Mas o que tem de tão importante nesses baús? — pergunta Larissa.
- Você nunca abriu o seu? Nunca teve curiosidade?
- Não. Mas agora preciso saber por que o que tem ali é tão importante.
- Não sei se temos tempo pra isso. Gustavo pode te procurar a qualquer momento.
- Ele saiu. Vai demorar para voltar. Portanto, você tomou muito do meu tempo e me colocou no
meio disso. Eu exijo saber o que tem nesse baú.
- Ta certo. Acho que te devo isso. Se quer ouvir a história, é melhor pegarmos mais do que uma
água. Vamos ficar aqui por mais tempo.
Lara faz um pedido ao garçom e explica tudo para Larissa, que parece mais abismada a cada
palavra que ouve.

Falar novamente sobre aquilo tudo deixou Lara enfraquecida. Cada vez as coisas faziam mais
sentido, e sabia que a lenda deixou de ser lenda há muito tempo e passou a ser uma constatação.
Um assunto perigoso.
E ela estava no olho do furacão.
O elevador abre a porta no 12° andar. Lara caminha até o seu quarto pelos largos corredores
brancos, cheio de mesas enfeitadas com flores. Do lado esquerdo, as portas de números impares, e
do lado direito, as pares. Seu apartamento era o de número 1204, há apenas alguns metros do
elevador, entre o 1202 e o 1206, que era de Denis e Victor. Ao abrir a porta, percebe que os dois
também estavam lá, conversando com Nicholas. Eles olham para ela, esperando alguma boa
notícia sobre a conversa com a recepcionista. Lara joga a bolsa em um canto da cama e desmonta
em outro.
- Bom, eu dei o recado. Espero que ela não faça nenhuma besteira e não chegue perto de Gustavo.
- Mas ela falou do baú? Ela vai entregar para a gente? — pergunta Denis.
Lara senta e se ajeita na cama.
- Eu expliquei toda a história e pedi o baú. Ela não pareceu acreditar no que eu disse, e não confia
totalmente em mim. Nem sabe se Gustavo é mesmo ruim. Mas deixei a dúvida na cabeça da
garota, acho que ela vai nos procurar assim que possível.
- E quanto a Gustavo. Ele falou com ela? Disse pra quem trabalha?- pergunta Nicholas.
- Bom. — continua Lara — Isso ainda vamos descobrir em breve.

A noite cai. Pontual ao extremo, Gustavo entra no hotel acompanhado de um homem calvo e
magro e caminha até a recepção, cumprimentando Larissa, que fica pálida e assustada ao vê-lo.
Larissa não sorriu uma vez sequer desde seu encontro com Lara, e não o faz com aquele homem.
- Boa noite Larissa. Algum problema? — diz Gustavo.
- Não. Não. Desculpe Senhor Gustavo. Não estou me sentindo muito bem hoje.
- E quanto a nossa conversa? — insiste ele.
- Que tal deixar para amanhã? O jantar não me fez bem. — diz ela, virando-se e derrubando uma
pilha de papéis que ali estava. Ela dá um passo para trás e esbarra em uma pequena caixa que um
hóspede havia deixado, derrubando-a no chão também, sob o olhar espantado de Vivian e
Gustavo.
- Realmente você não parece bem. Parece assustada. — diz Gustavo.
- N... Nã... Não. Eu só... Estou cansada mesmo. - Larissa explica, com um sorriso sem graça no
rosto.
Gustavo percebe que Larissa segura uma caneta e suas mãos estão trêmulas. Havia algo de
estranho naquilo tudo.
- Bom, então conversaremos amanhã. Boa noite, Larissa. — despede-se Gustavo, sem ouvir
qualquer resposta da recepcionista.

A hora passa, e os quatro continuam no quarto de Nicholas, apreensivos, tentando descobrir uma
forma de ter Larissa do lado deles e pegar Gustavo sem levantar qualquer suspeita. Continuam
conversando e debatendo, procurando uma solução, até que alguém bate à porta. Victor levanta
para ver quem é e olha através do olho mágico. Enxerga somente um carrinho de restaurante
coberto com um pano. O homem que segura o carrinho está de cabeça baixa.
- Serviço de quarto, Senhor.
Victor se vira para seus amigos e pergunta se alguém havia pedido por comida. Eles se entreolham
e negam. Victor tira o trinco da porta, abre apenas um pouco, dizendo.
- Olha, aqui ninguém pediu servi...
Antes que pudesse terminar a frase, o homem levanta a cabeça e empurra o carrinho em direção à
porta, fazendo Victor perder o equilíbrio. O homem, que havia chegado ao hotel com Gustavo,
retira uma arma debaixo do pano que revestia o carrinho e aponta para todos dentro do quarto, que
levantam rapidamente, sem reação, com as mãos para o alto.
Enquanto o homem calvo invade o recinto, Gustavo aparece logo em seguida, na porta, segurando
Larissa pelo pescoço. A recepcionista está imobilizada. Lara tenta falar algo, mas logo é advertida
pelo namorado.
- Cala a boca. Cala sua maldita boca. Eu só quis te proteger sempre e você quase colocou tudo a
perder. E você, hein, Nicholas. Lembra o que eu disse da última vez? Que te mataria se chegasse
perto da Lara? — diz, apontando a arma para Nicholas, que continua calado, com as mãos para o
alto.
Gustavo fecha a porta com a perna e joga Larissa aos pés de Lara. Larissa chora e pede perdão por
ter contado toda a história.
- Não se desculpe, garota. — diz Gustavo - É difícil mentir quando se está na mira de uma arma.
Da próxima vez, não dê tanta bandeira de que você está escondendo algo, e preste mais atenção ao
sair de seu trabalho, nunca sabe quem estará à espreita, não é?
Nicholas fala pela primeira vez.
- Deixa ela, Gustavo. Ela é inocente.
- Cala sua boca, seu jornalista enxerido. Porque não ficou no seu canto, como deveria, hein? — diz
Gustavo, nervoso, apontando a arma para Nicholas — Nenhum de vocês que entra no caminho da
Irmandade é inocente. Vocês só atrapalham, são piores que pragas, e pragas são eliminadas do
pior jeito possível. Como eliminamos milhares de pessoas naquelas escavações idiotas, e como
eliminamos seus pais também, Nick.
Nicholas gela. Aquela frase o atinge profundamente. Teria sido o acidente de avião totalmente
premeditado?
Victor levantava devagar, com os dedos pressionando o nariz, atingido quando a porta foi forçada,
e chama a atenção do homem calvo. O homem armado aponta o revólver para o cientista. Victor
se escora na parede ao lado do banheiro, e demonstra só querer ficar em pé, enquanto o homem
continua atento em seus movimentos. Victor continua rente à parede, se mexendo devagar, com
uma das mãos longe do corpo, para o alto, enquanto a outra apoiada dentro do banheiro. O que
ninguém desconfia é que o cientista não está se apoiando, e sim tateando e tentando encontrar algo
com que se defender.
- Sim. — continua Gustavo — Nós sabemos toda a história dos detentores dos baús, Nick. Mas
você... Você foi um terrível acidente de percurso. Não foi o primeiro, mas foi um dos mais
irritantes. Porque acha o avião que seus pais estavam explodiu? Havia uma bomba lá dentro. Não
me olha com essa cara. Não foi a primeira vez que fizemos isso. Inúmeras tragédias de avião,
navio, trem, matanças, chacinas, intoxicações, prédios pegando fogo, caindo, pessoas aparecendo
mortas do nada. Acha que não tem o dedo da irmandade nisso? Se alguém ali continha segredos
que não deveriam, o modo mais fácil de calá-los seria um acidente. Dezenas, centenas morrem,
mas e daí? Os fins justificam os meios, não é verdade? Essas coisas acontecem o tempo todo,
certo? Acidentes acontecem. Viram notícia e caem no esquecimento assim que outra coisa melhor
aparece na mídia.
Victor encontra algo pesado na pia e segura com toda firmeza. "Vou me sentir um idiota se isso
for uma nécessaire.", pensa.
Gustavo continua a falar.
- Você foi usado, Nick. Desde sempre. A morte dos seus pais era pra te levar até o baú. Mas você
demorou tanto tempo. Precisou esse idiota do seu amigo implorar por ajuda para você começar a
ligar os fatos. Acha que Denis estava naquela expedição sem querer? Ele foi colocado lá, não era
para sobreviver, mas já que conseguiu sair de lá, que pudesse te persuadir a se mexer então, né,
seu molenga.
Denis está pasmo. Nunca pensou que participaria, sem querer, de uma conspiração contra o
amigo.
Gustavo não para. Parece disposto a humilhar ainda mais Nicholas, que franze as sobrancelhas
sem parar, desacreditando no que ouvia.
- Alguém importante na Irmandade te quer vivo, Nick. Acham que você serve pra alguma coisa.
Mas como eu te disse, acidentes acontecem. Eu tive que matar todos vocês, fazer o que? Chegou a
hora. Aquele que estamos esperando vai voltar, Nick, mas não vai ser com a sua ajuda. Hoje,
vocês morrem. Menos você, Larissa. — diz Gustavo, apontando para Larissa e sorrindo. - Você
ainda é importante para nós.
Gustavo aponta a arma para os outros, que apenas fecham os olhos esperando pelo pior. Victor da
um passo para o lado, puxa o que quer que seja do banheiro e bate com o objeto na cabeça do
homem calvo, que é arremessado ao chão com o impacto.
Era um secador. Victor agradece a Deus por isso.
O tempo é escasso e os movimentos devem ser rápidos. Com o barulho do impacto, Gustavo
desvia sua atenção para Victor, e Nicholas pode correr em sua direção. Cheio de ódio, o jornalista
pula em Gustavo e o leva ao chão. Ali, uma luta começa. Gustavo tenta se desvencilhar do
jornalista, que tenta desarmar Gustavo. Nicholas não ouve nada. Tomado pela raiva ao ser
manipulado e ter a família separada por aquele grupo, ele da uma seqüência de socos no oponente.
O homem calvo, se recuperando do golpe, tenta alcançar a arma, mas Denis se antecipa e a chuta
para próximo de Victor, que se abaixa, pega e segura, apontando para o inimigo, enquanto Denis,
sem piedade, chuta o estômago dele, proferindo palavras grosseiras.
Nicholas e Gustavo têm a mesma força, o que deixava a luta em igualdade. Enquanto rolam pelo
chão do quarto, quebrando móveis e fazendo barulho, Lara levanta Larissa e sai correndo em
direção ao corredor. Alguns hóspedes já estão prostrados em frente a suas portas, curiosos com a
confusão.
Lara aperta interruptamente o botão do elevador, sem perder de vista o embate que acontece
naquele quarto.
Dentro, Gustavo acerta o rosto de Nicholas, fazendo-o sangrar. Nicholas nem percebe a dor e
retribui o ataque com joelhadas e cotoveladas. A briga continua enquanto Victor revista o homem
calvo, desacordado após tantos chutes. Denis corre em direção aos dois homens brigando e acerta
um chute certeiro nas costas de Gustavo, que se inclina de dor. Como se fosse coreografia,
Nicholas acerta um soco no rosto de Gustavo, fazendo-o cair de costas. Nicholas e Denis se
preparam para sair do quarto, quando Gustavo, recuperando as forças, agarra o pé do jornalista,
que cai de cara no chão. Gustavo puxa Nicholas para perto dele, dando socos sem parar. Nicholas
estende a mão para o lado da cama e agarra uma caneta, um dos objetos que caíram com aquela
batalha, gira o corpo e enfia a caneta bem no olho de Gustavo. O ex-namorado de Lara grita de
dor e leva as mãos ao rosto, que sangrava.
Ao longe, sirenes. Alguém havia ligado para a polícia. Sem pensar duas vezes, Gustavo se levanta,
ignora a dor, tenta enxergar com o olho bom e abandona a cena. Não sem antes encontrar a arma e
dar dois tiros no homem calvo que estava com ele. E preciso eliminar testemunhas, mesmo que
seja da Irmandade.
Passando pelo meio dos olhares curiosos, Gustavo corre, tropeçando, gemendo e deixando um
rastro de sangue por onde passa.
A polícia rapidamente toma conta do hotel e de todas as saídas, assustando a maioria dos
hóspedes. Todas as pessoas do andar em que Nicholas estava são interrogadas, e todas confirmam
uma agressão, uma briga, dois homens armados.
Nicholas, Denis, Victor, Lara e Larissa são detidos. Ninguém acha Gustavo.
Os cinco são obrigados a passar horas depondo em uma delegacia próxima do hotel. Larissa,
abalada, pouco fala. Ainda soluça enquanto chora, sentada e com as mãos agarradas ao joelho.
Em uma sala compacta e escura, dentro da delegacia, dois oficiais conversam de porta fechada e
veneziana baixa. Um deles, Matheus Dias, é o chefe de polícia daquele departamento. Um homem
de baixa estatura, barrigudo, com a camisa suada e aberta, deixando alguns pelos a mostra. Em
trinta anos de profissão, nunca havia passado por algo assim. Exigia do outro policial na frente dele
que desse um jeito naquele caso.
- Senhor — dizia o policial para Matheus — um deles disse que pode resolver todo esse problema.
Passou o telefone de um colega nosso, da polícia, em São Paulo. Se quiser, ligamos para o
homem.
- Deixe-me ver — diz o gorducho, pegando o papel com o telefone da mão do poliícia. — Hum.
Marcos Martins, certo? Ligue para esse cara. Esses paulistas não vão ferrar com minha cidade.
Que Martins resolva a situação. Tomara que apodreçam na cadeia.

Martins resolveu.
Contatou algumas pessoas e colocou Nicholas, Denis, Victor e Lara num vôo de volta a São
Paulo.
Assim que o avião pousou na capital paulista, Martins e alguns agentes, que já aguardavam na
pista, acompanham os quatro até as viaturas.
Rapidamente, eles são levados para o prédio onde Martins trabalha, enquanto o capitão separa
alguns documentos e conversa com seus superiores sobre o que aconteceu.
O arranjo físico daquela sala é projetado para maximizar o desconforto dos suspeitos, e é como
Denis se sente, enquanto tenta, sem sucesso, achar uma boa posição em uma das três cadeiras que
ali estava. A sala é pequena, com isolamento acústico, uma mesa e apenas aquelas cadeiras. A
parede tem um tom acinzentado triste, e um espelho dá o toque final ao ambiente, aumentando a
ansiedade dos que ali estão.
- Então é isso? — diz Victor, escorado na parede — ficaremos presos aqui, como se fossemos
culpados de algo? Tratados como bandidos? Eu acho isso demais pra minha cabeça, viu.
- Desculpe ter metido você nessa. — é a primeira palavra que Nicholas diz desde que saiu do Rio
de Janeiro. Os amigos sabem que o jornalista morre de medo de altura e sempre ficava quieto
durante os vôos, mas depois de tudo aquilo, o silêncio era mais do que a tensão com a altitude. Seu
rosto ainda mostra o quanto ele está abalado com todas as descobertas das últimas horas. Logo
depois, Nicholas, sentado, põe a mão no rosto, se lamentando.
- Não é culpa sua, Nick. Todo mundo que está aqui é porque quis entrar nessa. Mas que cadeira
horrível. - diz Denis, ainda tentando se ajeitar.
- Tem alguém olhando a gente naquele espelho ali? — aponta Victor, disfarçadamente.
- Possivelmente — comenta Lara. - Mas para que eles iriam querer nos intimidar? Não fizemos
nada.
- Eles suspeitam de tudo. Eles querem a verdade, não? — deduz Denis.
- Verdade? Que verdade? — Nicholas volta a falar, tirando a mão do rosto, decidindo desabafar de
vez — Alguém aqui sabe a verdade? Porque eu não sei. Eu pensei que sabia, mas a cada coisa que
acontece, eu me confundo mais ainda.
Nicholas abaixa a cabeça de novo, segura o choro, respirando fundo. Fica quieto por um
momento, mas levanta, agarra a cadeira que estava sentado e joga na parede ao seu lado,
assustando a todos.
- Maldita hora que eu resolvi ajudar um amigo — ao completar a frase, Nicholas desfalece no
chão, sentado, colocando sua cabeça entre seus joelhos dobrados.
Denis se levanta e caminha até Nicholas, entendendo sua tristeza. Ele se abaixa e tenta consolar o
jornalista. Nicholas pede que Denis se afaste, e continua ali, sozinho.
Lara levanta e provoca.
- Você é adulto, Nicholas, deve ter enfrentado milhares de coisas difíceis e assuntos complicados
nessa sua vida. Não creio que vai se abater por isso.
É a gota d'água. Nicholas se levanta, caminha até ficar frente a frente com Lara.
- Acha que eu sabia onde estava me metendo? De verdade? Acha que o meu objetivo de vida era
sair por aí brigando, escapando de tiros, procurando tesouros perdidos? Eu só queria ajudar um
amigo, droga. Era uma questão de honra...
Nicholas não consegue terminar a frase, pois é interrompido bruscamente por Lara, que se
aproxima de seu rosto, e se exalta.
- Questão de honra? Ou um capricho barato de seu ego hein? Tava fazendo isso por Denis ou por
mais um troféuzinho na estante, com uma ótima matéria? E agora vai desistir porque a situação
apertou e porque você descobriu coisas desagradáveis sobre seu passado?
Nicholas também se exalta, irritado com as acusações, sob os olhares assustados de Denis e
Victor.
Ele aponta o dedo para a garota.
- Quem é você para dizer uma coisa dessas, nem me conhece direito. Eu sempre fiz de tudo pela
justiça, e sempre me ferrei com isso. E mais uma vez, me ferrei bonito. Aliás, como nunca.
Amigos meus morreram, pessoas que se relacionaram comigo de qualquer forma morreram,
descobri coisas que não me deixaram nem um pouco feliz... — Nicholas aumenta o tom de voz —
EU QUASE MORRI, Lara, você tem idéia disso. E eu não to a fim de morrer.
Nicholas continua andando e intimidando Lara, que recua e ouve atenta.
- Por que acha que não existem heróis espalhados por ai? Porque eles não serão sempre heróis, eles
viram mártires. Eles morrem, Lara. A vida não é um livro com final feliz. Ninguém se mete com
pessoas ruins e sai vivo para contar. A não ser que você tenha peito de aço, o que não é o caso de
ninguém aqui dentro. Quer morrer? Vai em frente, mas não conta comigo nessa. Eu já perdi muita
coisa e não to disposto a perder mais. Em toda parte do mundo tem gente maldosa, não dá pra
mudar isso, entendeu?
Victor comenta com Denis se eles deveriam interromper. Denis apenas sinaliza para ele, com o
dedo nos lábios, para se calar e ouvir.
Lara. não agüenta mais todo o desaforo e volta a falar alto com Nicholas. Era a vez dela colocar o
dedo na cara do jornalista e aumentar a voz.
- Talvez não dê para mudar mesmo, mas se cada um tivesse o mínimo de coragem, coisa que
passa longe do seu vocabulário, seria um começo. Porque acha que eu me arrisquei tanto com
vocês? Porque sei do mal que isso traria para a humanidade. Essas pessoas não estão de
brincadeira e querem despertar algo maior do que eles próprios podem imaginar.
- Achei que tivesse nessa porque queria se redimir da besteira que fez. Provar que não era uma
menininha mimada e superficial ao namorar um cara de caráter bem duvidoso, só porque ele era
rico e bonito. Típico, não?- alfineta Nicholas.
Lara não se segura e dá um tapa na cara de Nicholas. Denis se levanta, mas era a vez de Victor
segurar em seu ombro e pedir, com o olhar, para que ele sentasse e esperasse que os dois
resolvessem a situação.
- É, acho que eu mereci essa. — diz Nicholas, passando a mão no rosto, e continua, com uma voz
mais serena — Olha, Lara, a questão não é coragem para mudar. Acredite, eu tentei mudar o
mundo milhares de vezes, mas sabe o que acontece? Você prende um ladrão, dia seguinte tem três
na rua, mais perigosos ainda. Você denuncia um político, um pior toma o lugar dele. Você salva
uma garota das drogas, no dia seguinte ela se afunda em prostituição.
- ÓTIMO — Lara estava completamente revoltada, nunca esperava tal reação de um homem que
aprendeu a apreciar e respeitar em tão pouco tempo. Ela dá de ombros e continua gritando com
Nicholas - Vamos cruzar os braços e pronto. Você é a pessoa mais cômoda que eu já conheci,
Nicholas. É por causa de pessoas como você que tudo está assim, e nunca vai melhorar. É muito
fácil aceitar as situações, mas é difícil levantar a cabeça, ser otimista, e querer melhorar as coisas,
não é?
Nicholas não retruca, apenas cruza os braços, abaixa a cabeça e se vira.
- Eu sabia. — sussurra Lara. — Quando você resolver sair desse casulo, me procura. Tenho muita
coisa para mudar, e pelo visto, só estou perdendo tempo aqui, com você.
Ela se afasta, deixando Nicholas para trás, com seus pensamentos, abre a porta da sala e sai.
- Aquela porta tava aberta o tempo todo, é? — diz Denis, surpreso.
- Lógico que sim. Ninguém aqui é culpado de nada, é? — lá estava Martins, encostado na porta. -
Queria ver até que ponto vocês iriam aqui dentro. Mas foi bom ouvir algumas coisas. Vocês
mereceram.
- Ei, se ela pode sair, eu também posso? — diz Victor, ansioso.
Martins se afasta da porta, indicando a saída para Victor.
- Eu preciso apenas conversar com você, Nicholas. Se possível. — diz o oficial.
- Tanto faz — é a resposta de Nicholas, sem animação.
- Pessoal — diz Martins, para Denis e Victor — um dos meus homens os levarão para casa.
Aproveitem e descansem bastante.
O Capitão sinaliza para um dos policiais, que caminha em direção a Denis e Victor. Ambos saem,
desejando boa sorte ao amigo jornalista. Martins entra e puxa uma cadeira e indica para que
Nicholas faça o mesmo. Ele senta, mas com a cabeça baixa, braços descansando sob sua perna e
mãos entrelaçadas. Martins se apoia no encosto da cadeira, cruzando os braços, e começa a
conversa com Nicholas.
- Olha, sei que tudo isso tem deixado você muito abalado. Mas preciso da sua cooperação. Vi pela
sua determinação que esses acontecimentos não foram por acaso, mas só conseguirei juntar todas
as peças desse quebra-cabeça se você me ajudar.
Nicholas continua calado, pensativo.
- Quer me contar detalhes do que aconteceu no Rio? Quem sabe eu consiga te auxiliar em algo. -
continua Martins.
- Quer ajudar? — Nicholas diz, ainda de cabeça baixa — Comece prendendo os verdadeiros
assassinos. Gustavo Gradícola e sua gangue.
- Como assim? — Martins parece não entender o que diz Nicholas — Prender Gustavo Gradícola,
aquele famoso professor e historiador? Sob que acusação?
- Ele estava naquele hotel, droga.
- Não há ficha dele lá. Há outros Gustavos, mas não ele.
Nicholas levanta a cabeça e diz.
- Então prenda esse filho da mãe por inúmeros assassinatos e sabotagem do Vôo 1408, que voltava
de Los Angeles, há um ano.
- Tá me dizendo que Gustavo é responsável por aquele acidente aéreo? — Martins indaga, ainda
confuso.
- Não sei se ele é, mas seus comparsas são. Eles tentaram me matar, Martins. Eu realmente tenho a
droga do baú que eles querem.
- Baú? — Martins balança muito a cabeça. Tentava entender o que se passa naquele momento.
Nicholas explica que seu pai havia deixado um baú escondido na igreja. Conta sobre a perseguição
dentro do templo e a perda do baú para os homens armados. Conta da lenda sobre o manuscrito, e
fala de um dos sete pedaços, que está com ele. Conta que foi até o Rio de Janeiro para conseguir
mais um pedaço com Larissa, mas que Gustavo havia chegado antes dele. Nicholas não poupa
nenhum detalhe quando conta o que Gustavo havia dito, enquanto apontava a arma para ele.
- Calma, Nick.- diz Martins, tentando entender tudo — Isso é muito confuso, e muito louco. Onde
está seu pedaço? Preciso ver isso direito.
- Eu te conto sobre a morte dos meus pais, sobre uma conspiração para trazer de volta ao mundo
algo sobrenatural, que é impossível compreender, e você só quer ver um mísero papel? — indaga
Nicholas.
Antes que Martins pudesse se justificar, um dos policiais entra na sala, pedindo desculpas pela
interrupção.
- Perdão senhor, de verdade. Mas você precisa atender uma ligação. É o Coronel, e ele disse que é
urgente demais.
- Nick, não saia daqui por nada, entendeu? Precisamos conversar.
Martins se levanta, e preocupado, acompanha o policial para uma sala próxima. Nicholas fica
sentado, pensativo. Ele não conhece Martins direito, e acha o homem bem enigmático, para ser
sincero. Não quer confiar nele. Não quer confiar em ninguém.
Nicholas toma uma decisão, levanta da cadeira, empurrando-a para trás, e sai daquela sala,
sorrateiramente, sempre de olho em Martins, que continua andando de um lado para o outro, ao
telefone, próximo dali.
Nicholas consegue chegar até a escada, aperta o passo, descendo correndo os degraus, passando
pelo meio de policiais, agentes e civis, que ali estão. Finalmente, alcança a rua, faz sinal para um
táxi parado, próximo à entrada do prédio. O taxista sinaliza de volta e entra no carro para pegar seu
passageiro. Nicholas apenas olha para trás, com a certeza que ninguém o segue. Entra no carro, e o
táxi parte daquele local.
O que Nicholas não percebe é uma kombi escura, estacionada do outro lado da rua. Dentro dela,
um homem de cabelos pretos, com uma cicatriz no rosto que começa abaixo do olho esquerdo,
contorna a boca e termina próxima de seu queixo. Ele apenas segura o celular, avisando que
Nicholas deixara o prédio.
Dentro do edifício, Martins continua esbravejando e se explicando para o Coronel, do outro lado
da linha, quando percebe que a sala de interrogatório está vazia.
- Filho da mãe.
Foi a única coisa que Martins consegue dizer. Rangendo os dentes, ele larga o telefone em cima da
mesa e corre para a sala, certificando-se que estava mesmo vazia. Olha para os lados e todos
continuam a trabalhar tranqüilamente. Sem se preocupar com o telefone, fora do gancho, Martins
corre escada abaixo em direção a rua.
No banco de trás do táxi, Nicholas aproveita cada segundo. É a primeira vez em muito tempo em
que ele podia se esparramar e respirar fundo. Tinha, pelo menos, uns 20 minutos até chegar ao
hotel que havia dito ao motorista. Sabe que não é seguro voltar para casa. Resolve relaxar e
aproveitar cada instante, dentro daquele carro com ar condicionado, longe do barulho de tiros,
confusão, brigas. É apenas ele, o condutor e a música calma que toca no rádio.
O motorista vira para a direita e para em um farol, num cruzamento perto da Cidade Universitária.
É o único carro, e não há ninguém atrás dele.
- Você parece cansado, senhor. — diz o taxista, olhando pelo retrovisor.
- Você nem imagina. Eu só quero chegar logo ao hotel e tomar um bom e demorado banho. —
responde Nicholas.
- Sabe — diz o taxista, virando o corpo para olhar melhor e conversar com seu passageiro —
Conheço um método ótimo para relaxamento. Um dia, minha mulher...
Ele não termina a frase. Fica perplexo ao perceber a velocidade em que um carro havia virado a
rua e que continuava acelerando, sem nem perceber o sinal fechado. Mal tem tempo de avisar, ou
gritar. O carro atinge em cheio a traseira do táxi. Nicholas, no susto, sacode e tenta segurar onde
era possível. Com o choque, o motorista se contorce, machucado, mas tenta recuperar a direção do
carro, que foi jogado para o meio do cruzamento. Mas é tarde demais, Nicholas se ajeita apenas
para enxergar do lado esquerdo da janela onde está o carro, no meio da rua, e a movimentação dos
outros veículos, que desviavam daquele táxi batido, que acabou avançando o sinal vermelho com
o impacto. Brecam, buzinam, mas um deles não consegue fazer uma coisa nem outra. O choque
de uma Mercedes com o carro em que Nicholas está acaba com a parte da frente do táxi. O
motorista voa pelo vidro. Os dois veículos rodopiam. O taxista morre na hora
O caos está implantado. Muitos pedestres param para ver o acidente. Os carros também. Nicholas
mal sente seu corpo, a dor é intolerável. Tenta se mexer, mas com dificuldades.
Não consegue esboçar muita reação quando um homem abre a porta e o arranca de lá, enquanto
outro grita para quem quisesse escutar que levaria quem estivesse machucado ao pronto socorro
mais próximo, dentro de seu carro, parado na calçada. O homem coloca Nicholas dentro da
Kombi estacionada, enquanto o outro para de gritar e senta no banco do motorista, se despede das
pessoas e diz que já chamou a ambulância. Ninguém projeta nenhuma reação, apenas
perplexidade com o acidente.
Os dois homens tomam uma feição mais séria e conversam entre si, enquanto Nicholas tenta
mover o braço, machucado, e estancar o sangue que escorre de sua testa. Sem contar o corte em
sua coxa.
- Pra onde? - diz um deles.
- Lembra do armazém abandonado, a duas quadras daqui? Eles estão lá, esperando.
E nada mais falam, até chegar ao armazém.
É imenso, mas a placa de "Vende-se" e o mau tratamento da fachada denuncia que aquele lugar
está vazio há muito tempo. Uma porta de vidro se abre, e Roberto, o segurança de André Tirone,
caminha até o carro, acompanhado de Bruno, o sargento que montava guarda na casa de Nicholas
quando ele saiu de lá numa ambulância.
"Deus, agora sim eu estou bem encrencado" conclui Nicholas, enquanto é arrancado com força
por um dos homens, de dentro do carro, e jogado aos braços de Bruno.
- Obrigado, rapazes. Ótimo trabalho. Podem ir — ordena Roberto, enquanto Bruno arrasta
Nicholas para dentro do Armazém, totalmente vazio, com apenas umas caixas de papelão para
decorar o local.
Bruno encosta Nicholas em uma parede, no canto. O jornalista se esforça para sentar.
- Chega de brincadeira — diz Bruno — Onde está o conteúdo do baú?
- Já tentou ver dentro do baú? — Nicholas tenta persuadi-los, sem saber quem era Roberto, que se
aproxima dele e acerta seu estômago com um chute, fazendo Nicholas cair de vez no chão, sem
poder respirar direito.
- Eu vou repetir a pergunta — diz Roberto — E espero não ter que repetir mais. Sei que o pedaço
do manuscrito não está dentro do baú. Onde está?
Nicholas sofre no chão, contraindo o corpo e tentando encontrar um pouco de ar.
- ONDE ESTÁ? — Roberto grita, fazendo a ordem ecoar pelo armazém todo.
- Pensei que vocês fossem preferir uma pizza que um pedaço de papel velho com uma mensagem
antiga. — responde Nicholas, com dificuldades.
- Ah, eu perdi a paciência com ele. — Bruno aponta a arma para Nicholas, sendo repreendido por
Roberto.
- Vamos lá, Nicholas — Roberto tenta mais uma vez - Meu amigo aqui não está de brincadeira.
Ele vai mesmo matá-lo. Você pode nos ajudar e ficar vivo, que tal?
- Sabe o que eu acho — diz Nicholas, tossindo e recuperando o fôlego — Vocês vão me matar de
qualquer jeito mesmo. Porque perder tempo. Atira logo.
- Você tá certo, Nicholas — diz Bruno — Mas achei que você iria nos ajudar. Estou decepcionado.
- Eu que estou. Você era para me proteger, não? Não foi o que Martins mandou? Ele também está
envolvido nisso, né? - pergunta Nicholas.
- Desculpe, Nicholas. A Irmandade é mais importante que a droga da sua vida. E você não vai
saber de mais nada.
Bruno coloca Nicholas, caído ao chão, na mira de seu revólver, e engatilha. Nicholas sabe que
nada pode salvá-lo naquele momento. Ele não tem forças para lutar com dois homens armados. Só
fecha os olhos, orando, e esperando que, um dia, seus amigos o perdoem e vinguem sua morte.
Resta o tiro fatal. E ele apenas ouve.
BAM...
BAM...
Denis acorda assustado, no dia seguinte, com o barulho do telefone tocando. Quem poderia ser
naquela hora da manhã? Ele atende com a voz enrolada de tanto sono.
É Victor, perguntando sobre Nicholas. Somente naquele instante, Denis percebe que dormiu no
sofá da casa do amigo, com certeza esperando pelo seu retorno.
Denis se senta, coçando o olho, tentando acordar de uma vez.
- Desculpe, Victor. Não o vi chegar. Talvez esteja no quarto. Posso ver para você
- Relaxa, fica tranqüilo. Depois falo com ele. Era só pra avisar que encaminhei aquela pesquisa
que ele havia me pedido para um amigo do governo. Meu amigo retornou e me passou o nome de
três senadores brasileiros envolvidos com a Kalccune. Além de Rafael Barsam, estão Allan Latuse
e Robson Candegli.
- Ei, Robson Candegli não é aquele senador acusado de desviar dinheiro público? Ele vai ser
julgado daqui a alguns meses se não me engano. Rafael Barsam vai presidir a sessão que pode
cassá-lo, não?
- Isso mesmo. São dois em um lugar só. Precisamos estar lá.
- Tudo bem, eu passo as informações pro Nick, assim que ele chegar, e a gente vê o que faz.
- Obrigado Denis...
Antes que Victor pudesse dizer qualquer outra coisa, Denis desliga e se ajeita novamente, na
esperança de conseguir cochilar um pouco mais. Esperança que some com o toque do aparelho,
outra vez.
- Ah, não, de novo? — esperneia Denis — Alô, caramba.
- Denis. É Martins. Tenho uma notícia péssima para dar a você.
Denis ouve atentamente. Seu semblante torna-se sério, e em certo momento, deixa o telefone cair
entre suas pernas, tamanho era o choque pelo que ouve de Martins.
O agente desliga o telefone, visivelmente abalado, e olha para a pessoa à sua frente. Lara enxugava
as lágrimas, a notícia ainda não estava completamente digerida, não acreditava que Nicholas
poderia ter morrido, tão de repente, e estava ainda mais triste de não poder ter lhe dito tudo o que
sentia, lhe pedido desculpas pela briga que antecedeu a fatalidade.
- Lara. Sei o quanto você está chateada. Ele não merecia um fim assim, não depois de tudo que
passou e descobriu. Mas quem sabe, agora ele encontre paz — Martins tenta consolá-la.
- Desculpe — Lara diz, com a voz embargada do choro, mas rangendo os dentes de ódio — mas
nada nesse momento vai me fazer sentir melhor. O que eu espero, é que toda essa turma seja
caçada e eliminada.
- Eu entendo seu sentimento, Lara. Mas não podemos fazer nada no momento, há não ser esperar
um pouco. A situação está ficando cada vez mais perigosa, e o melhor a fazer é esperar a poeira
baixar. Eles vão cometer um erro, e eu vou pegá-los. Mandei irem atrás de Gustavo, mas ele
sumiu do mapa. Mas prometo, eles vão pagar.
- Espero que sim — Lara se levanta, estende a mão para Martins, cumprimentando-o e se
despedindo. — Espero que sim.
- Obrigado por vir. Nossa conversa foi proveitosa. Só tome cuidado, você pode ser um alvo, agora
que Nicholas morreu.
- Não serei. Eles queriam Nicholas e o que ele tinha. Se eu ficar quietinha, na minha, nada vai
acontecer. Só espero que você cumpra o prometido.
Lara se despede e sai escritório afora, sem a certeza de que a justiça será feita. Martins tira o
telefone do gancho e disca para um número que já sabe de cor.
- Alô... Sim, sou eu... Acabou sim, vamos arquivar esse caso... E vê se da próxima vez, evita
tamanha confusão, não quero mais levantar suspeitas sobre nada... Obrigado... Adeus.
Do outro lado da linha, estava o Coronel André Tirone, que sorri, satisfeito, enquanto desliga o
telefone. Está em uma sala ampla, sentado em uma cadeira giratória, na ponta da mesa, cercado
por inúmeras pessoas, que ansiavam por uma resposta ao telefonema.
- A todos os membros desse conselho: Nicholas Raulickis Collaneri está finalmente morto — diz,
com a felicidade estampada em seu rosto, enquanto girava a cadeira de um lado para o outro.
O conselho comemora a notícia, ora com sussurros entre os mais próximos, ora com suspiros
aliviados, e algumas palmas. Tirone agradece como se estivesse no final de um espetáculo, e
retoma a palavra.
- Mas isso não nos deixa menos ocupados. Daniel, aquele maldito que confiei erroneamente,
deixou Nicholas vivo. Ele desertou para o lado de Barsam. Daniel viu o baú. Sabia que estava sem
o pedaço que interessava e deixou comigo para que fosse motivo de chacota. Idiota. Mas agora a
gente dá um passo adiante. Dane-se essa história de eleitos. Nicholas é uma pedra fora do meu
sapato, e é o que importa. Assim que eu tiver todo o manuscrito e entrar em contato com a Alta
Cúpula, eu serei o escolhido para a honra de receber aquele que todos esperamos. O maldito
papiro deve estar com algum amigo de Nicholas. E nós vamos encontrá-lo. Entendido? Mas por
enquanto, vamos partir para outro estágio. Alguém sabe como anda a busca pelo baú, na Itália? E
a reunião continua naquela tenebrosa sala.
Quatro Meses Depois

Um ano vai embora. Outro chega. As festas não foram tão animadas como antigamente.
Gustavo sumiu e nunca mais deu as caras. Lara, Victor e Denis estão cada vez mais próximos. O
que não mudou é a falta que Nicholas faz.
Denis ainda se sente culpado por ter envolvido seu amigo em tudo aquilo. Agora, Nicholas está
morto e Denis é o único que pode desvendar todo aquele mistério envolvendo os papiros. Victor e
Lara também estão sedentos por uma resolução no caso, mas Denis não sabe até quando os dois
agüentarão tanta aventura. Não pode culpá-los, se desistirem. Denis só tem certeza de uma coisa.
Ele não vai parar jamais.
Nunca.
Há tempos não vê Martins. Ele sumiu, e quando procurado, diz que anda ocupado com as
investigações. Denis duvida.
O arqueólogo viajou à Brasília para tentar descobrir algo sobre os senadores e a empresa
Kalccune.
A sessão que poderia cassar um deles, acusado de corrupção, aconteceria naquele dia. Denis
queria pegar Barsam primeiro.
Rafael Barsam é uma pessoa conhecida e querida por todo o povo brasileiro. Um político que
aparenta ser honesto, que luta pelos ideais da população. Ele já havia participado da cassação de
três políticos envolvidos em corrução, e havia prometido ir até o final, com todas as forças, para
limpar o Brasil da podridão.
O povo o aplaude e idolatra.
O réu da vez é Robson Candegli, político envolvido em desvio de dinheiro público e empresas
fantasmas contratadas pelo governo. Rafael Barsam preside a audiência e fala aos nobres
companheiros de governo como ninguém. Aliás, Barsam tem um poder imenso nas palavras,
passa confiança e atitude. É um dos motivos por ser tão adorado por todos.
Dentro da sessão lotada de gente, Barsam coloca ordem na situação e mostra todas as provas,
repudiando as atitudes alheias, adversas ao bom governo, e liderando a justiça, ao vivo, para todo o
país.
A sessão termina como o esperado. A maioria dos presentes vota para que Robson Candegli
pague pela roubalheira e seja destituído do cargo. Todos aplaudem Barsam, que agradece e
continua seu discurso pomposo.
É hora de agir. Em menos de dez minutos, Barsam estará de volta ao hotel no qual está
hospedado. Denis se encontra no lobby, apenas a espera dele.

Em São Paulo, uma briga acontece num beco escuro.


A batalha é desigual. A rua, sem postes ou lojas acesas iluminando local, esconde os três homens
com roupas maltrapilhas e agasalho com capuz cobrindo o rosto, mal encarados, que acertavam
socos e chutes num homem, deitado no chão, encolhido, tentando se proteger.
- Quem mandou mexer com quem não devia, hein? - diz um dos homens, em meio aos chutes —
Achou mesmo que era só pegar dinheiro do patrão e não pagar é? Achou que ele era bonzinho o
suficiente e não mandaria ninguém atrás de você, é?
- Desculpa, cara. Eu prometo que pago em breve, mas agora to sem emprego, sem poder pagar, de
verdade, pelo amor de Deus — diz a vítima, se defendendo no chão.
- Há. Quem dera que fosse fácil assim — comenta o outro homem, se aproximando, enquanto os
outros dois continuam a chutá-lo.
Espancar aquele rapaz havia se tornado tão prazeroso que os três nem percebem a chegada de um
homem forte, negro, de boné, calça jeans e regata colada ao corpo.
- E aí, vão demorar muito? — o homem berra para ser ouvido e chama a atenção dos outros três,
que param a agressão e se entreolham, imaginando quem seria o maluco de encará-los.
- E ai. Dá pra responder? Vão demorar muito ou não? Eu tenho um assunto para tratar com esse
mané que vocês tão quase matando. — continua falando, em voz alta, o homem negro, enquanto
amarra o tênis, agachado.
- Acho que você está perdido por aqui, negão. Aqui não é seu lugar, e ele não é quem você
procura. Porque não vira as costas e vai procurar algo melhor pra fazer? — ordena um dos
homens, rangendo os dentes e batendo a mão fechada sobre a outra aberta, enquanto os
companheiros sacam um soco inglês e uma faca dos bolsos.
- Negão? — diz indignado o rapaz negro, enquanto se levanta, olhando para os três.
- Você é surdo? Sai fora, mermão. — grita um deles.
O rapaz negro apenas ajeita o boné, coloca as mãos para trás e retira duas armas acomodadas entre
sua calça e seu corpo, rapidamente apontando para os marginais.
Acho melhor vocês saírem fora... E agora.
Os três gaguejam, andam para trás, se desculpando. Não esperavam aquela reação. Saem correndo
e somem beco afora. O rapaz se aproxima da vítima, no chão, que ainda gemia de dor. Tentando
se erguer, ele fala com dificuldades.
- Quem é você? Mais um que veio cobrar alguma dívida? Entra na fila.
- Cala a boca que você não é nem um pouco corajoso — diz o rapaz de boné, estendendo a mão
para que aquele homem ensangüentado possa levantar — Eu vim aqui te procurar. Um amigo
meu quer você dentro de um esquema aí. E olhando você de cima a baixo, juro que não entendo
por que.
- Obrigado pela sinceridade — diz, limpando o sangue na camisa amassada e suja — e obrigado
por me salvar também. Meu nome é Jefferson, e você? — ele estende a mão esperando um aperto.
O outro homem não retribui. Apenas entrega um papel a Jefferson.
-Eu sou Márcio. Toma esse papel, lê o nome da pessoa que quer sua ajuda, e vê se conhece.
Conhece? Ótimo, agora me segue. E vê se não fica muito perto, não quero manchar minha
camiseta de sangue. — Márcio fala enquanto sai andando, sendo seguido por Jefferson.

Rafael Barsam chega ao hotel em meio à flashs dos fotógrafos e gritaria dos jornalistas. Sai do
carro acompanhado de dois seguranças e sua assessora, Renata Marin. Rapidamente, Barsam é
levado para a sala de imprensa, e Renata fica na linha de frente, respondendo a algumas perguntas
dos presentes.
Os seguranças entram na sala programada para a coletiva, dão uma geral rápida, e saem ao
comando de Barsam.
- Obrigado, senhores. Eu vou ficar um pouco sozinho, repassar meu texto, relaxar um pouco. Até
daqui a pouco.
Os dois seguranças, enormes, de terno e óculos escuros, apenas acenam com a cabeça e saem,
deixando Barsam imerso em seus pensamentos.
Com a cabeça baixa, Rafael Barsam respira aliviado por mais uma missão cumprida no Congresso
e relembra o que vai dizer, sussurrando para ele mesmo as palavras.
- Vai incluir alguma coisa sobre a Kalccune na coletiva? Senão eu nem fico para ouvir.
Barsam levanta a cabeça rapidamente, ao perceber a sombra em seu redor. Era Denis, parado do
seu lado, com a mão no bolso, esperando uma resposta a pergunta. Barsam tenta se levantar
rapidamente, mas Denis o recoloca na cadeira, com a mão em seu ombro.
- Sabe que se eu gritar, meus seguranças entram aqui e você fica bem encrencado, não é? —
ameaça Barsam.
- Sei sim, mas sei que você não vai gritar, afinal, eu posso ter uma arma no meu bolso e fazer uma
besteira, não é? — retruca Denis.
- O que você quer de mim?
- Ora, senador. Muito simples. Quero saber seu envolvimento com uma empresa chamada
Kalccune, e o envolvimento dela com a busca por alguns tesouros.
- Não sei do que você está falando. Conheço a Kalccune, mas não tenho nenhum envolvimento
com ela. Tenho amigos lá dentro, só isso.
- E quem são esses amigos? Gustavo Gradícola é um deles? Sabe por que estou curioso, senador.
Eu quase morri por causa dessa empresa. Mas meu amigo não teve a mesma sorte. Por isso, pode
entender porque me incomoda tanto saber o que eles estão buscando.
Antes que Rafael Barsam pudesse dizer qualquer outra coisa, Renata abre a porta do salão de
eventos. Ela se assusta ao ver um homem segurando Rafael Barsam e grita por instinto, fazendo os
seguranças aparecerem rapidamente, apontando armas para Denis.
- Parado, parado — grita um dos seguranças.
Renata sabe da repercussão que causaria aquela história e fecha a porta agilmente, para que
nenhum dos repórteres, prestes a chegar ao local, ouvisse o que acontecia ali.
Denis, sob ameaças, levanta os braços e se entrega, enquanto um dos seguranças se move
depressa, segurando-o por trás e colocando-o no chão.
- Calma, calma. Está tudo sob controle. Pode largar o rapaz. — diz Barsam, enquanto se levanta e
ajeita o terno.
- Senhor, o que houve, quem é esse homem? — Renata, curiosa, se aproxima de seu chefe,
tentando entender a situação.
- Calma, Renata. E um mal entendido. Esse rapaz pensou que eu estivesse envolvido com alguma
coisa que o prejudicou. Foi uma falha enorme, deixar que ele conseguisse chegar até mim — diz,
olhando diretamente para os seguranças, durante sua crítica — Mas tudo bem, já estamos
conversados.
- Estamos, senador? — provoca Denis, mesmo estando preso pelos brutamontes ao seu redor —
Você não me disse nada do que quero ouvir.
Rafael Barsam se aproxima de Denis e olha profundamente em seus olhos.
- O que você quer ouvir, eu não posso dizer. Não tenho nada a ver com isso, e por mais que você
procure, nada achará ao meu respeito. Eu tenho um passado político limpo e me orgulho disso.
Creio que você cometeu um erro. Tudo bem, erros acontecem. Mas eu não serei tão bondoso da
próxima vez que me ameaçar, estamos entendidos? Não gosto de ser acusado por algo que não fiz.
Agora, por favor, retire-se daqui.
O segurança empurra Denis para fora da sala, mas o arqueólogo puxa o braço, se soltando, e
caminha sozinho acompanhado de perto pelo enorme homem de terno escuro, mas sem tirar os
olhos do senador.
- Você está bem, senhor? — pergunta Renata, arrumando a gravata de seu chefe — Se quiser,
posso adiar um pouco a coletiva.
- Não será necessário. Temos muitos esclarecimentos para dar. Chame os repórteres aqui. Vamos
começar logo, pois estou cansado e preciso subir o mais rápido possível para o meu quarto.

Em uma Kitnet sem nenhuma categoria, próximo daquele fatídico beco, Jefferson lava o rosto na
pia do banheiro, limpando o sangue seco e se atentando para cada parte de seu rosto. Em um
espelho sujo, percebe os arranhões, cortes, a perda de um dente e o inchaço no olho direito.
Enquanto isso, Márcio da um telefonema, sentado na cama barulhenta do minúsculo quarto. Ele
conversa com alguém e olha Jefferson, que continua se lavando.
- Tem certeza que é ele mesmo que você quer? — pergunta Márcio, ao telefone — Ele não tem
nada demais, é um negro franzino e baixinho, não parece ser muito esperto. Tudo bem, você
manda. Se insiste tanto que ele pode ajudar a gente, eu acredito. Tudo bem, eu faço isso. Acho que
vai dar certo sim. Até mais.
Márcio desliga e percebe Jefferson ao seu lado tentando ouvir a conversa. Ele se assusta, gritando
com o visitante.
- Qual é a sua, Jefferson. Sai daqui. Desgruda.
- Quem era? Era ele?
- Já se limpou? Tem roupas novas no armário. Se veste que a gente vai sair. Temos um encontro.
- Com ele?
- Ei, olha aqui — Márcio se levanta e aponta o dedo na cara de Jefferson, dizendo firme — Eu
mando, você obedece. Assim a gente se da bem, certo? Não quero ser seu amigo e não quero sua
companhia por muito tempo, então, trata de me ajudar, estamos entendidos?
Jefferson só afirma com a cabeça, com medo de dizer algo a mais. Já havia apanhado o suficiente
para aquele dia.
Denis está desapontado.
Conseguiu chegar tão próximo do senador, mas queimou sua única chance, sem nenhuma
resposta. Já está fora do hotel, de cabeça baixa, mas logo é puxado pela camisa.
- Oi, desculpe — diz Renata, ofegante. - Estava procurando você. A coletiva começou, e eu preferi
conversar com você a ficar por lá. Tem um minuto?
A mulher é linda. Se Denis não estivesse numa jornada e pudesse se dar o luxo de se apaixonar,
com certeza pagaria um drink para ela. Na confusão da sala, Denis não havia percebido o quão
charmosa era aquela assessora. Morena, boca carnuda... "E que peitos. Opa, melhor tirar os olhos
dos peitos". Ele se recompõe e fala.
- Olha, eu não queria fazer mal a ninguém. Eu precisava saber algumas coisas, achei que o senador
pudesse me ajudar. Pode deixar que eu não vou mais interromper. Foi um erro meu.
- Tudo bem. Porque não vamos ali no bar, tomamos alguma coisa e conversamos?
Denis imagina se a idéia de beber um drink com ela teria sido tão forte a ponto de ter acontecido.
Um pensamento que foge rápido da cabeça dele. Só uma coisa importa. Não poderia gostar de
alguém naquele momento. Muito menos de uma pessoa inimiga.
Os dois sentam próximos ao balcão, fazem seu pedido e começam a conversar. Renata toma a
palavra.
- Olha... Denis, certo? Esse é o seu nome? Então, eu trabalho há quase três anos com o senador.
Acompanhei sua ascensão e participei de muitas acusações errôneas. Nada. Nunca na história foi
provado qualquer coisa sobre ele. Ele é um homem integro, te garanto.
- Desculpe duvidar de você, Renata. Mas tenho motivos de sobra para acreditar que esse homem
está envolvido em algo ruim. Provas? Nada que possa te mostrar no momento
- Então você não tem nada que possa incriminá-lo, como imaginei.
- Olha, você é a assessora dele e eu começo a entender o que faz aqui comigo. Eu prometo que
não quero fazer um circo na mídia. Quero apenas descobrir a verdade.
- A mídia é uma coisa espetacular. Ela é capaz de transformar qualquer boato em circo. E meu
trabalho salvaguardar o senador. Impedir qualquer brisa, seja ela real ou não, de se transformar em
ciclones, na mão de sanguessugas que só querem aparecer e buscar audiência. Se você não tem
nada concreto, não tenho porque me preocupar. Renata coloca de lado o guarda-chuvinha que
enfeita o drink e leva o copo à boca. Denis não tira os olhos daqueles lábios. Ela dá dois goles e
continua.
- Ele está se transformando em um herói nacional, Denis. É um 122 homem bom. Vai concorrer à
presidência e com certeza vai ganhar. E sem provas, com uma história absurda, seja ela qual for,
dificilmente vão acreditar em você. Então você me garante que vamos enterrar qualquer começo
de crise aqui, certo? O que você quer? Dinheiro? Fazer uma chantagem?
- Não quero dinheiro. Quero justiça — diz Denis, se inclinando para ficar perto da mulher. E que
perfume maravilhoso ela tinha.
- Já te disse. Rafael Barsam é um homem de caráter. Ele não fez nada. Talvez, você esteja o
confundindo com outro senador.
- Talvez. — reconhece Denis, voltando a encostar na cadeira — Talvez ele não seja o homem que
procuro. Mas talvez seja, já que o homem de caráter mentiu sobre não estar envolvido com a
Kalccune. Se conhece ele tanto quanto diz, sabe que ele está enrolado com essa empresa. Eu fui
prejudicado por pessoas da Kalccune, perdi amigos nessa luta e não pretendo sofrer mais. Vou
descobrir quem está por trás disso, e porque seu chefe, o herói de uma nação, homem justo e
integro, mentiu descaradamente sobre seu envolvimento com a empresa. Vai por mim, Renata.
Abre o olho. Ele não é quem diz ser. Ah, obrigado pelo drinque.
Denis levanta e vira de costas para Renata, caminhando em direção a rua, sem falar mais nada,
encerrando o jogo psicológico e deixando Renata com uma pulga atrás da orelha.

Márcio caminha rápido, sem olhar para Jefferson, que tenta sempre alcançá-lo, apressando o passo
e fitando o enigmático salvador com ansiedade. Não sabe para onde está sendo levado, e por mais
que apanhar daquelas pessoas tenha sido dolorido, a emoção e a aventura daquele momento
superam tudo aquilo.
Márcio para em um prédio alto, antigo, cheio de janelas. Localizado no centro de São Paulo.
Aperta o número 121 e espera a voz feminina perguntar quem é.
- Olá, meu nome é Márcio. Eu tenho uma entrega para o coronel André Tirone.
Ao ouvir a patente, Jefferson gela. Descobre que saiu de uma encrenca para entrar em uma ainda
pior.
- Peraí. Pra que você me trouxe para um coronel. Olha, eu não disse antes, mas tenho alguns
probleminhas com a polícia também. Porque não me deixa ir.
Márcio segura Jefferson pela jaqueta, sem olhar em seu rosto, enquanto espera a porta do prédio
abrir. Jefferson se debate tanto que faz Márcio dar atenção a ele. A ameaça é instantânea.
- É melhor parar de se mexer. Eu disse que tinha um plano e era pra você fazer o que eu mandar,
então, se não quiser o outro olho roxo para fazer companhia a esse outro ai, fica quieto.
E entra no edifício, puxando Jefferson pelo colarinho até o elevador.
Márcio olha calmamente para os números mudando no visor, enquanto segura Jefferson, que
estava inquieto, suando frio. Faltam sete andares para chegar no 12°, e pelo visto, ele não
conseguiria escapar. Márcio desvia a atenção do painel e fala para seu companheiro.
- Posso largar? Você não vai tentar nada estúpido?
- Sim, sim. Pelo visto, eu to ferrado mesmo.
Márcio solta Jefferson, que ajeita sua jaqueta, recuperando a calma.
- Ah... Só me esqueci de mais uma coisa.
Antes que Jefferson pudesse perguntar o que era, Márcio gira rápido o corpo e acerta um soco no
queixo do franzino rapaz, que despenca no chão.
- Ai — reclamava Jefferson — Ce ebro eu ax lar.
- O que? - Márcio, ironicamente, se abaixa para ouvir melhor — Quebrei seu maxilar? Oh,
desculpe. Toma esse pano aqui. Tente não sangrar demais, tá.
Márcio volta a sua posição e espera o elevador abrir no andar indicado.
- Assim você não fala nenhuma besteira e ninguém vai duvidar do que eu disser. Agora, levanta
daí e me segue. Se tentar fugir, eu prometo bater ainda mais forte.
Márcio sai do elevador, enquanto Jefferson levanta com dificuldade, cuspindo sangue e tentando
xingar um pouco. Ouve Márcio falando, longe.
- Ah, e tenta não falar, porque senão piora.
Ao seguir pelo largo corredor, com Jefferson gemendo, tentando alcançá-lo, e entrar pela porta
principal da empresa, Márcio já esboça um falso sorriso, o suficiente para conquistar a simpatia da
secretária, que estava sentada atrás do balcão, com seus óculos esquisitos e sua roupa vintage de
cor laranja.
- Olá, como está? - diz ele, sorrindo — Vim conversar com Tirone.
A secretária sorri de volta e indica o caminho para Márcio.
Ao entrar no grande escritório de Tirone, Márcio logo é recebido pelo chefe.
- Ora, ora, ora. A que devo a honra de sua visita, Márcio?
- Desculpe incomodar, André, mas achei que fosse gostar de conhecer esse cara aqui. Ele trabalha
para Barsam e sabe onde está um dos baús.
- O que? — grita Tirone, visivelmente alterado — Esse maldito trabalha para Barsam.
Jefferson nega com a cabeça e tanta falar, mas apenas consegue gemer.
- Ele não pode falar, senhor. Eu quebrei a mandíbula dele na hora da captura, sinto muito.
Jefferson se desespera. A salvação dele foi uma armação? Ele saiu de uma armadilha e caiu em
outra? Como poderia ter sido tão ingênuo?
- Sabe do que mais? Com esse carinha do queixo quebrado aqui, a gente pode chegar até Daniel.
Eu sei o quanto você quer pegar aquele traidor.
- Lógico que quero. Nada me daria mais prazer. Ele matou Thomas, meu único sobrinho.
- E eu prometo que ele vai pagar pela morte dele. Eu vou conseguir trazer Daniel até você. Aí você
faz o que quiser com ele. Vai ser um golpe e tanto para Barsam, também. Afinal, Daniel é braço
direito daquele lixo.
André anda de um lado para o outro com as mãos para trás, entrelaçadas. Pensa por um minuto e
autoriza o plano de seu funcionário.
- Certo. Faça o que for preciso.
- Sim, senhor.
Com um plano em seguimento, Márcio se despede de André Tirone e carrega Jefferson de volta
ao elevador.
- E... E... peai... - diz Jefferson, ainda com dificuldades.
Márcio para por um instante e se vira para Jefferson
- Peraí? O que você quer? Acabei de livrar sua cara. Você me ajudou e eu ajudei você. E para
provar que eu não sou tão ruim assim, vou te levar para um hospital.
- Poue e toxe?
- Porque eu te trouxe? Deus do céu. Como você faz perguntas, cara. Tirone precisava ver você.
Precisava sentir raiva, lembrar do sobrinho e perder a cabeça. E eu toquei no ponto certo. Além do
ódio por Daniel, a ganância em vencer Barsam e conseguir outro baú. Eu sei, ta confuso né?
Enfim, o soco em você foi por minha conta, não poderia correr o risco de você abrir a boca e
colocar tudo a perder. Já que temos que ir ao hospital, nada mais justo que ter um bom motivo
para isso também.
Márcio sorri sarcasticamente enquanto entra no elevador. Aperta o Térreo e volta à atenção para as
luzes que indicam os andares. Jefferson não entende nada, mas a idéia de sobreviver e ir a um
hospital não é nada ruim.

A coletiva termina como Barsam imaginava. Um sucesso. Sua fama e determinação crescem cada
vez mais e todos querem uma exclusiva, fotos, saber mais da vida daquele político que está
mudando a cara do país e tem um futuro brilhante pela frente.
Mas Barsam está cansado. Foi um dia cheio. Ele se despede dos repórteres e, acompanhado de
seus seguranças e de Renata, sobe para seus aposentos.
- Obrigado. Vocês foram ótimos hoje, tirando aquele incidente com o rapaz. Mas tudo bem, já
passou, foi só um susto, nos vemos amanhã, vou descansar o resto do dia. — agradece o político,
dando um tapinha nas costas de cada segurança.
Os homens de preto se despedem e caminham para seus quartos, no final do corredor. Renata faz
o mesmo, mas é chamada de volta por Barsam, que segura o elevador.
- Renata, espere. Você sumiu durante a coletiva, está tudo bem?
- Sim, senhor. Eu apenas fui resolver umas coisas. Mas agora está tudo certo — omite ela.
- Então está bem. Qualquer coisa você já sabe, não é. Venha me procurar, a qualquer hora. Estou à
disposição para conversarmos.
- Tudo bem. Bom descanso, senhor.
Barsam sorri e larga a porta, que fecha a sua frente.

Márcio e Jefferson aguardam o atendimento na sala de espera do hospital em que Fábio trabalha.
Enquanto Jefferson se contorce de dor, Márcio folheia calmamente uma revista antiga.
- Ai emoa? — pergunta Jefferson, tentando saber se irá demorar a ser atendido.
- O que? Desculpa, eu não te entendo. Fica quietinho, fica. — desconversa Márcio.
Subitamente, o Doutor Fábio Bohmer entra na sala, chamando o nome de Jefferson, que se
levanta rápido, diferentemente de Márcio.
- Olá Doutor. Meu amigo precisa de ajuda, e mandaram procurar o senhor. Sei que é o responsável
por aqui e que deve ter muito para resolver, mas creio que em uma coisa só o senhor pode ajudar.
— diz Márcio, enquanto deixa a revista em cima da mesa e se levanta.
- Eie gui guebou inha andiula — Jefferson tenta acusar Márcio, sem sucesso.
- Desculpe. Jefferson não é? — diz Fábio, conferindo o nome na ficha médica, na prancheta. —
Melhor não falar muito. Vamos cuidar de você.
- Viu, Jefferson, melhor não falar - repete Márcio, lançando um olhar mortal para Jefferson, que se
sente minúsculo e anda rápido, acompanhando o médico até a sala.
Depois de alguns exames, cuidar dos ferimentos e marcar uma cirurgia, Jefferson pode finalmente
descansar, enquanto Márcio conversa em outra sala com Fábio.
- Seu amigo teve muita sorte. — diz Fábio, sentado em seu escritório, de frente para Márcio —
Pelo que você me disse, ele foi atacado por uma gangue, não é? A violência hoje em dia está
tremenda, não?
- Nem me fale. Não sei como alguém poderia bater nele. Ele é uma pessoa tão legal.
- Recomendo descanso para seu amigo, e esses são alguns remédios que irei receitar, para
amenizar qualquer dor. Ele vai passar por uma pequena cirurgia, mas nada sério. Já está tudo
marcado.
- Obrigado, doutor. E novamente, sinto muito ter te tirado de seus afazeres. Mas como te disse, fui
indicado por um amigo em comum. Você conhecia Nicholas Collaneri, certo?
- Sim, sim — Fábio se ajeita na cadeira, tira os óculos e esfrega os olhos — Grande amigo meu.
Foi uma perda sem tamanho.
- É verdade. Ele era uma grande pessoa. Sabe doutor, entre nós - Márcio olha para os lados e se
inclina em direção a Fábio, sussurrando — Ele te deixou uma herança meio incômoda, não? Algo
que faz você acordar a noite, com pesadelos, imaginando o dia em que alguém poderia matá-lo,
como mataram ele, não é?
Fábio ficou perplexo pelo que ouve. Encosta novamente na cadeira, tentando demonstrar calma, e
pede.
- Não sei do que você está falando. Mesmo se soubesse, meu relacionamento com Nicholas era
particular, e eu não quero falar de quem já não está mais aqui. Agora, por favor. Tenho muito
trabalho. Alguém irá te acompanhar até onde está Jefferson, e vocês dois poderão ir. Obrigado
pela atenção.
Márcio não diz nada, apenas levanta e aperta a mão do médico, agradecendo. Sente o nervosismo
de Fábio pelo suor de sua mão, mas se abstém de qualquer comentário.
Isabella Voguel, médica do hospital e amiga próxima de Fábio, esbarra com Márcio na porta, pede
desculpas e entra no escritório, percebendo rapidamente a aflição de seu colega, que estava
sentado, de ombros caídos, com a mão no rosto.
- Fábio, o que houve?
- Algo terrível, Bel. Uma coisa que achei que seria impossível de acontecer aconteceu. Eles me
acharam, e eu corro grande perigo.
- O que? O que você está dizendo, quem te achou?
- Bel, quanto menos você souber, melhor Eu gosto de você e quero preservar sua integridade.
Agora, com licença, tenho alguns pacientes para atender.
Fábio se levanta e sai apressado, deixando Isabella sozinha no escritório.
- Eu também gosto de você, Fábio... Não imagina o quanto. - fala sozinha.

Renata troca sem parar os canais da televisão, deitada em sua cama. As declarações daquele
homem deixaram-na intrigada. Por mais que ela confiasse em Barsam e acreditasse em tudo que
disse para Denis, aquilo tudo a incomodava.
Por quê?
Resolve conversar com Barsam sobre o assunto. Pula da cama, troca de camiseta e sai. Ela tem
uma cópia da chave do quarto de seu chefe, a tão maravilhosa suíte presidencial do hotel. Renata
coloca o cartão no sensor, espera a luz verde, e entra no quarto.
A suíte é gigantesca. Duas salas, dois quartos, três banheiros, é maior que a própria casa de
Renata.
Ela entra sem fazer barulho. Não quer atrapalhar a leitura diária de Barsam. Como assessora, ela já
conhece de cor e salteado toda a rotina de seu chefe. Sabe os livros que ele gosta, os lugares que
freqüenta, os horários que dorme, toma banho, assiste seus programas favoritos. Com certeza,
estará lendo na sala, naquele instante.
Mas Renata é surpreendida, Ele não está lá. Ela acha estranho não encontrá-lo, nunca havia errado
até aquele momento, e resolve então procurar pelo político. Não está em seu quarto, nem no
quarto do lado.
Nesse momento, Renata ouve um murmuro no escritório que tem dentro de outro quarto. A
curiosidade fala mais alto e ela caminha devagar para escutar com quem seu chefe estava
conversando. Chega perto o bastante para conseguir ouvir e ver Barsam sentado na cadeira, em
frente ao notebook, em uma espécie de vídeo conferência com um homem que falava em
português, mas com um acentuado sotaque francês.
- Foi o que eu disse, eu reconheci o homem. Era Denis, amigo do jornalista. Ele estava naquela
escavação, no Egito, lembra? Pra que diabos você me mandou um monte de agentes? Você
garantiu que meu nome não estaria envolvido em nada, que nada iria vazar, como justo ele sabe
do meu envolvimento com a Kalccune e, quem sabe, com a Irmandade? — diz Barsam,
visivelmente nervoso.
- Eu entendo, Rafael. Se eu disse que ninguém vai descobrir algo sobre você, é porque ninguém
descobrirá. Pode deixar comigo. Irei aumentar ainda mais nosso poderio. Denis não tem nada
concreto, e vai continuar sem ter. — fala a voz, pelo computador.
- Olha aqui, escuta bem o que eu vou dizer. Não posso dar o luxo de deixar minha sorte a esmo. É
melhor você delegar para algum dos seus matá-lo, ou eu mesmo o faço.
- Calma, Rafael. Ele não vai descobrir nada. E matá-lo só aumentaria as suspeitas e as
investigações. Meu informante por aí já descobriu que Denis não está com o pedaço do
manuscrito. Sem Nicholas por perto, ele não é mais útil para a irmandade. Mas resolveremos o
problema com Denis bem depois. Primeiro, precisamos focar no objetivo.
- Não gosto de não saber como as coisas caminham. Você sabe disso.
- Eu sei, Rafael. Você e André estão indo bem na disputa por um lugar na Alta Cúpula, mas devo
dizer que ele está mais perto de conseguir a cadeira do que você. Então, é melhor me escutar, ir
com calma.
- Calma? Eu só não matei o jornalista antes porque vocês não quiseram. Aquele papo de eleitos e
sei lá o que pode me custar o que lutei muito para conquistar. Gustavo falhou em trazer o papiro...
- Do Gustavo cuido eu, Rafael, pode deixar. — interrompe a voz.
- Era tão simples. Ele só precisava pegar o pedaço do manuscrito de Nicholas e daquela menina
carioca. Não conseguiu nem uma coisa nem outra. Agora aquela Larissa também sumiu? André
sabe onde ela está? Achei que você pudesse me ajudar também, droga.
- Rafael. Eu te coloquei numa posição privilegiada. Tudo o que vocês está fazendo é apenas para
aumentar ainda mais seu status. Nada vai te ligar à Kalccune nem a mim. Agora pare de ataques e
me escuta. Acabo de receber uma mensagem. É uma pista apenas. Mas se quiser passar na frente
de André nessa corrida, é melhor se apressar. Voe para São Paulo e procure por Fábio Bohmer.
Enviarei as informações para você. Ele pode estar com o que procuramos. Assim que chegar à
cidade.
- Certo. Vou inventa qualquer desculpa e partir para São Paulo somente com os membros do
partido que são da irmandade. Vou procurar esse homem e arrancar o papiro a força, se preciso.
- Mande alguns homens. Não quero que se envolva fisicamente nisso. Rafael, você sabe que meu
nome é importante na Alta Cúpula, mas como um só, tenho direito a um só voto também. Minha
escolha é você. Mas tem gente que prefere André. Não posso ajudar como gostaria, mas quero
muito que vença André nessa disputa e seja o escolhido. Por isso, não perca tempo.
- Obrigado pela confiança. Vou sair daqui o mais rápido possível. O manuscrito será nosso, e todo
o resto também. Chegou a hora.
- E nós continuamos fazendo nossa parte por aqui. Chegou a hora.
Barsam se despede, abaixa a tela do notebook, respira fundo e se levanta. Caminha até o centro da
sala, ficando de joelhos, fechando os olhos, baixando a cabeça e proferindo palavras
desconhecidas por Renata. Não era nenhum idioma do mundo, isso tinha certeza. Ela fica
estupefata ao ver o chefe ali, ajoelhado, com as mãos esfregando a cabeça e dizendo aquelas
palavras.
Ele afrouxa a gravata e retira do bolso da camisa branca um pequeno canivete. Abre o objeto e
dobra a manga esquerda até o cotovelo, deixando à mostra uma pequena tatuagem fora do
comum. 'Tarece um símbolo egípcio" pensa Renata.
Barsam faz um pequeno corte no antebraço, dois centímetros abaixo da tatuagem, deixando o
sangue pingar no chão, enquanto continuava a ditar a estranha língua.
Renata bota a mão na boca e abafa um grito. É uma cena que ela jamais imaginou que ver.
Aquilo era como se fosse um ritual. Bem macabro.
Barsam continua. Usa o dedo indicador direito e desenha algo no chão com o sangue. Pelo que
Renata enxerga, escondida, parece o símbolo da tatuagem. De joelhos, Barsam escorrega aos
poucos e se deita ao lado do desenho, coloca a mão no rosto e sussurra muitas e muitas palavras,
enquanto se contorcia.
Aquilo é demais para Renata, que tenta sair de lá o mais rápido possível. Ao se virar, esbarra em
um vaso em cima de uma pequena mesa, que cai no chão, quebrando e fazendo muito barulho.
Barsam ouve e para o que fazia na mesma hora. Se levanta rapidamente, retira um pano do bolso e
limpa o sangue em seu braço, enquanto caminha até a porta do escritório para ver o que tinha
acontecido. Renata, desesperada, não sabe o que fazer. Se Barsam disse que mataria sem sequer
mudar seu tom de voz, o que faria com ela, que descobriu algum segredo daquele homem. Olha
para os lados. Se correr, Rafael vai ver.
Está sem saída.
Barsam abre a porta devagar, sem fazer barulho, e aparece rapidamente naquele corredor para
flagrar quem quer que fosse.
Não há ninguém lá.
Barsam percebe o vaso quebrado no chão, sem saber se ele caiu sozinho ou alguém o derrubou.
Continua estancando o sangue em seu braço, caminhando pelo enorme quarto do hotel, passando
os olhos por todos os cantos. Não encontra nada. Volta para o escritório, trancando a porta dessa
vez.

Márcio veste sua melhor roupa, afinal, tem um plano perfeito em mente. Na cama, Jefferson se
encontra em sono profundo. Dificilmente Jefferson tinha forças para algo. Acordava, comia, sentia
sono e dormia novamente. Márcio o estava dopando, dando um poderoso sonífero, junto com os
remédios, assim o mantinha sob controle até executar todo seu plano. Ele espera que aquele monte
de remédio misturado não cause nenhum efeito colateral, mas não se importa caso desse algum
problema também. Márcio só suporta Jefferson por causa das ordens recebidas.
Ele caminha até um café próximo dali. Senta, pede a bebida e abre o jornal. Lê a página esportiva
enquanto deixa a bebida esfriar um pouco. Nada diz quando outra pessoa senta na cadeira em sua
frente, na mesma mesa.
- Alguma novidade? — pergunta o homem.
- Quer saber sobre os jogos da rodada ou sobre Tirone? — responde Márcio, ainda lendo.
O homem usa o dedo indicador para baixar o jornal. Era Daniel.
- Não tenho tempo para brincadeira, Márcio.
- Bom dia para você também.
- Encontrou com Tirone?
- Sim, e prometi sua cabeça a ele. O que eu faço agora, hein? — Márcio coloca a mão no queixo e
faz cara de pensativo, ironizando a situação.
- Ou seja, ele confia totalmente em você para o serviço.
- Totalmente.
- Podemos derrubar Tirone então. Ótimo. Barsam vai adorar saber disso. Marque com aquele
coronel inútil onde ele quiser. Com a guarda baixa, vai ser mais fácil armar a emboscada e tirar ele
do caminho de uma vez.
- Deixa comigo. Eu continuo atualizando você.
Márcio levanta e sai andando.
- Ah, pague meu café. E deixe uma gorjeta caridosa para a garçonete, ok?

Renata treme demais dentro de um armário vazio, no corredor dentro do quarto do chefe. Foi a
idéia mais rápida e mais estúpida que ela teve naquela hora. Pôde ver com clareza, entre o vão na
madeira, Rafael Barsam procurando por alguém. Só conseguiu respirar fundo e agradecer a Deus
após vê-lo desistir da busca e retornar ao escritório.
Renata não pensa duas vezes. Sai o mais rápido possível daquele armário e corre em direção à
porta e para o seu quarto. O que havia presenciado naquele dia mudaria para sempre sua visão das
coisas. Ela só sabe de uma coisa. Denis estava certo, e precisa encontrar novamente com ele.
Após relutar um pouco, sentada em sua cama com as mãos no rosto, se refazendo de tudo aquilo.
Levanta, solta um gemido abafado, mexe as mãos freneticamente como se tivesse se
desprendendo de algo e pega o telefone para ligar para aquele cara. Ainda bem que ele deixara um
cartão com ela antes de ir embora.
- Alô, quem fala?
- Denis. Ainda bem que consegui encontrá-lo. É Renata, preciso falar com você urgentemente —
diz Renata, afoita.
- Olha, eu to indo embora ainda hoje. Não quero mesmo mais problemas.
- Você não me entendeu. Eu realmente preciso falar com você. Por mais que eu odeie admitir,
talvez você esteja certo sobre tudo isso.
É o que Denis precisava ouvir.
- Estarei no hotel em dez minutos.

Márcio telefona para Tirone e conta sobre o plano que tinha em mente.
- André. Fiz com que Jefferson entrasse em contato com Daniel. Ele marcou um encontro.
Lembra aquele casarão abandonado no Tatuapé? Quer melhor lugar para dar fim nele?
- Ótimo, Márcio. Vou levar dois dos rapazes para dar cobertura. A gente pega ele de surpresa.
- Combinado. Ligo depois para dar mais detalhes.
- Obrigado, cara. Bom saber que posso confiar em você.
- Sempre, meu amigo. Abraço.
Márcio desliga o telefone, acerta o relógio e sai pelo quarto, juntando os pertences necessários para
a execução do plano.
- Nós vamos embora?
Márcio ouve a voz de Jefferson, arrastada, sob efeito dos remédios que toma. Ele mal tem forças
de se levantar da cama, e deve ter se esforçado muito para completar aquela frase.
- Sim, vamos, hoje à noite sumiremos daqui. Agora, volte a descansar, Jefferson. — É aprimeira
vez que Márcio trata Jefferson com respeito desde que se encontraram. Talvez, Márcio estivesse
feliz por tudo aquilo estar perto do fim, ou quem sabe até estava simpatizando mais por seu
hóspede involuntário.
Jefferson sorri e desaba novamente na cama, dormindo rapidamente.

Renata está apreensiva. Sentada, bate os dedos coordenadamente no balcão, à espera de Denis,
que chega dois minutos atrasado.
- Oi, Renata. Tudo bem?
Não, não está. Ela encontra-se pálida, gélida.
- Oi. Precisamos conversar urgente.
- Tudo bem. Pode falar.
- Olha, Denis. O que aconteceu na última hora me deixou pensativa. Não sabia se ligava ou não
para você, mas se alguém pode me dar respostas, esse alguém é você. Afinal, só você sabia do
envolvimento de Barsam com a Kalccune.
- Peraí. Você ta dizendo que ele realmente ta envolvido.
Renata resume tudo o que viu. A citação da empresa, do arqueólogo, do jornalista.
Denis se surpreende com o que ouve e encosta de vez na cadeira. O que mais eles devem saber?
- Eles sabem com quem está o papiro? — pergunta o arqueólogo.
- Aí que está. Eu não sei. Mas falaram de um tal de Fábio Bohmer. Conhece?
- Tem certeza do nome? — indaga Denis
- Sim... Fábio. Esse mesmo. E Barsam está indo para São Paulo atrás dele. Ele é perigoso, não o
conheço mais como achei que conhecesse. — Renata fala, com os olhos cheios de lágrimas —
Acho até que ele pode matar quem aparecer na frente dele.
- Renata. Eu vou voltar para São Paulo no próximo vôo. Vem comigo. - Denis queria aquela
mulher como aliada, mas ela era tão linda que o convite é feito para que Denis nunca mais saia de
perto dela.
- Não. Pode deixar. Se eu desaparecer, Barsam pode suspeitar de algo. Ficarei ao lado dele e
tentarei descobrir mais alguma coisa. O que ele está tramando é algo muito ruim. Denis, pode
deixar que eu estou do seu lado agora. — diz, segurando as mãos do arqueólogo. Por um instante,
um frio percorre a espinha de Denis. Aquelas mãos eram tão macias. Ele queria segurar e não
soltar mais.
- Deus do céu. Fico feliz de ouvir isso. E acho que é melhor mesmo você ficar do lado dele. Mas
por favor, tome cuidado.
Tem muito mais do que preocupação nos olhos de Denis.
No meio de uma guerra, ele encontra uma pessoa que pode gostar? Será que pode se dar a esse
luxo, depois de tudo que já aconteceu?
Renata sorri, agradecida. Denis fica feliz de ter quebrado o gelo com a assessora.
Eles se levantam, cumprimentam-se e seguem seus caminhos, sem saber que estão sendo vigiados
por um dos enormes seguranças de Barsam.

- A madrugada está linda. Céu estrelado, uma leve brisa cortando o calor. Me parece um ótimo dia
para matar alguém. — sorri Tirone, limpando sua arma, enquanto conversa com Márcio. Os dois
estão no meio da sala do antigo casarão, apenas combinando os últimos detalhes da emboscada.
- Lembre-se — diz Márcio - Daniel pensa que vai encontrar Jefferson aqui. Espere ele entrar na
sala para atirar. Se você ou um dos seus homens disparar antes, todo o elemento surpresa pode ir
por água abaixo, estamos entendidos?
Antes que Tirone pudesse concordar, o barulho de um carro estacionando na garagem do casarão
chama a atenção dos dois.
- Deve ser Daniel. Vai pra trás daquela parede. Eu vou ficar perto da porta da garagem. Vou cobrir
você, André.
- Rapidamente, Tirone toma seu posto e Márcio desce as escadas. Mas ele não para onde deveria.
Continua descendo até chegar na garagem.
Daniel sai do carro e se assusta com a chegada de Márcio. O homem saca a arma e aponta para ele
- Ei, calma, calma. Sou eu.
- Droga, Márcio. Quer me matar de susto? — diz Daniel, enquanto abaixa a arma.
- Fala baixo. Vejo que trouxe mais um com você. Ótimo. Deixa eu falar bem rápido. Tirone acha
que eu te trouxe pra uma armadilha. Ele pretende te matar assim que você chegar no meio da sala,
procurando por um suposto comparsa seu. Há um dos capangas de Tirone no segundo andar, com
uma arma apontada para a sala. Outro na segunda sala, caso algo dê errado. O esquema é o
seguinte. Seu amigo aí sobe por aquela outra escada. Vai sair atrás do homem na segunda sala. Aí
é só acabar com ele. Eu cuido do cara no segundo andar. Vai atrás do seu amigo e assim que ele
acabar com o segurança de Tirone, vocês invadem a saleta. Vão ter o coronel de bandeja ali,
esperando você aparecer do outro lado.
- Fechado. Vamos.
Cada um segue sua parte do plano. Daniel e o capanga sobem outra escada enquanto Márcio
alcança o segundo andar. Chega por trás do homem que segurava um rifle, mirando a sala. Márcio
retira uma faca e corta o pescoço do homem, que mal consegue reagir ou gritar. Márcio deita o
rapaz delicadamente, evitando fazer barulho. Deixa a arma de lado e saca seu revólver, descendo
correndo a escada.
E espera o resto da ação.
O homem na segunda sala já estava morto, pego de surpresa por Daniel e o colega dele. Os dois
abrem a porta da saleta devagar e enxergam Tirone, de costas, olhando para a sala, esperando o
momento de agir.
Daniel saca a arma e aponta para Tirone. Mas ouve um tiro antes.
Márcio atinge em cheio o comparsa de Daniel, que morre na hora. Tirone se vira e atira. Daniel
pula e rola no chão daquela segunda sala. Ele aponta a arma para Márcio, xingando o negro de
todos os palavrões que conseguia lembrar.
Tirone entra na segunda sala e aponta a arma para Daniel.
Márcio avisa.
- São dois contra um, Daniel. Larga a arma.
- O que? Você traiu a gente, Márcio? Como pode fazer isso?
- Ah, cala a boca. — depois de se irritar, Tirone descarrega todo o cartucho em Daniel, até ouvir o
click vazio da pistola.
- Feliz, André? - pergunta Márcio.
- Bastante. Esse idiota teve o que mereceu. Mas cadê meus homens? Como Daniel conseguiu
aparecer por trás?
- Na verdade, eu avisei eles, André.
- O que?
É a vez de Márcio apontar a arma para Tirone.
- Não devia ter descarregado tudo em Daniel.
- O que... O que... O que você está fazendo, cara.
- Ah, para de gaguejar. Isso se chama matar dois coelhos com uma cajadada só. E é melhor eu ser
rápido, a polícia deve estar a caminho.
Sem mais explicações, Márcio dá dois tiros no peito de André Tirone.
É o fim daquele coronel.

Um Dia Depois
Fábio não tem mais tempo de pensar na encrenca que se metera ao aceitar o papiro de Nicholas. O
amigo havia dado o presente de grego antes de viajar para o Rio de janeiro. Foi como se Nicholas
soubesse, ao visitar o médico, que seus dias estavam perto de um desfecho. Fábio não perguntou
nem contestou nada. Ele gostava de Nicholas, e sabia que era uma honra receber tamanha
confiança.
Agora, o médico tem em mãos uma herança maldita, parte daquele legado sobrenatural.
E aquele homem negro sabia que ele tinha o papiro. A vida dele agora também corre perigo. Seria
ele o próximo corpo na mesa do legista?
Fábio acha melhor esquecer todos os pensamentos naquele momento. O importante agora é salvar
vidas, e ele tinha muitas pela frente graças a um descarrilamento de um metrô na estação MASP.
Muitas das vítimas foram para o hospital que ele está.
São pessoas e mais pessoas chegando em estados diferentes de saúde. Algumas são encaminhadas
para a UTI, outras para a sala cirúrgica, algumas podem esperar atendimento, dando prioridade aos
piores casos, e infelizmente, algumas iam direto para o IML.
Fábio e sua equipe, com a ajuda de Isabella, cuidam dos mais necessitados. Não têm tempo para
sorrir nem conversar, apenas dão ordens uns aos outros e correm para todo lado a fim de arranjar
soluções, mesmo que momentâneas. Todos, sem exceção, estão concentrados em seus afazeres.
- Dr. Bohmer, tem um minuto? — um dos médicos do hospital intercepta Fábio, que saía
rapidamente de uma das salas de operação, com o rosto cansado e o jaleco marcado de sangue.
- Seja rápido, eu tenho mais pessoas para atender — apressa Fábio.
- Eu só gostaria de apresentar ao senhor um célebre médico africano. Ele vai passar um tempo
conosco a pedido da direção. Chegou hoje, em meio ao caos, e está pronto para ajudá-lo.
O médico se antecipa e oferece a mão a Fábio, cumprimentando-o e dizendo em inglês.
- Prazer em conhecê-lo, doutor. Meu nome é Kamau Al-Berek. Estou aqui para o que for preciso
— diz com um sorriso no rosto.
- Ótimo, siga-me até a sala três. Temos uma operação pela frente. - fala Fábio, sem saber que está
na frente de um dos homens da Irmandade.
Renata sai do banho quente, enxugando o cabelo com uma toalha e enrolada em outra. Seu
vestido azul está esticado em cima da cama para o jantar daquela noite, com alguns políticos e
jornalistas. Já está mais calma e preparada para fingir frente à Barsam. Não poderia transparecer
nenhuma desconfiança. Ela conseguiria, afinal, havia feito teatro toda sua juventude, pensa.
Alguém bate aceleradamente na porta. Renata, ainda de toalha, caminha vagarosamente, pedindo
calma para aquela pessoa afobada, seja quem fosse. Ao abrir, colocando apenas a cabeça a mostra,
se depara com Barsam, que carrega um semblante sério.
Renata respira fundo e tenta colocar em prática seus anos de teatro, sorrindo.
- Olá, chefe. Tudo bem? Desculpe a demora, eu estava no banho, Preparado para o jantar?
- Eu não vou. Tenho um compromisso urgente para resolver em São Paulo, e o próximo vôo parte
daqui a duas horas. Preciso arrumar algumas coisas e ir para o aeroporto.
- Entendo. Se quiser, posso desmarcar o jantar, digo que está indisposto. Marcamos outro dia.
Pode deixar tudo comigo, senhor.
- Obrigado, Renata, você é sempre prestativa e atenciosa, não sei o que faria sem você — Rafael
sorri e passa o dorso da mão levemente no suave rosto de Renata. Ela se segura para não vomitar
nos pés dele e apenas abaixa a cabeça, esboçando timidez.
- Faço apenas meu trabalho, senhor.
- Você será recompensada muito em breve, com tudo o que pode imaginar. Basta ser sempre fiel a
mim.
- Sempre que precisar, senhor. - diz, levantando a cabeça e abrindo um largo sorriso amarelo.
- Ótimo. Não precisa se preocupar com mais nada. Eu tenho a passagem, e cuido do resto. Vou
com algumas poucas pessoas. Só cuide dos nossos convidados, quem sabe, remarque para quando
estivermos em Florianópolis, que tal?
- Considere feito senhor. Boa viagem.
Renata faz uma mesura e fecha a porta, respirando aliviada.
Fábio Bohmer, Isabella Voguei, Al-Berek e toda a equipe médica do hospital trabalharam
exaustivamente por horas para salvar vidas e curar os feridos daquela grande tragédia. Já passava
da madrugada, os corredores e as salas mais calmas, os médicos podem respirar melhor e aos
poucos vagar pelo local, indo embora ou dando baixa em algumas pendências. O Hospital,
naquele momento, tem outra cara. Fábio arruma algumas papeladas em seu escritório e chama Al-
Berek, que passava em frente a sua sala.
- Sim, falou comigo? — diz Kamau, voltando e olhando para dentro do escritório de Fábio.
- Falei sim, por favor, entre.
- Há algo mais em que posso ajudá-lo, doutor?
- Não, Kamau, eu só gostaria de agradecê-lo pessoalmente, afinal, seu primeiro dia aqui e já pegou
uma pedreira, não?
Al-Berek sorri timidamente.
- Que isso. Não precisa agradecer. E o trabalho de um médico fazer tudo isso, certo?
- Tem razão, e você é um ótimo médico. Seria muito bom ter você sempre na minha equipe.
O telefone celular de Al-Berek toca, ele pede licença e atende, virado para a parede e sussurrando,
no canto da sala, enquanto Fábio o ignora e continua a arrumação. Al- Berek não se prolonga na
ligação e desliga, voltando sua atenção à Bohmer.
- Bom — diz, batendo uma mão aberta na outra — Acho que terminamos por hoje, certo? Se
quiser, tem um ótimo bar no meu hotel, podemos ir lá, conversar, beber um pouco.
- Beber essa hora? Eu preciso é dormir. Não sei como você tem esse pique todo, Kamau — diz
Fábio, achando graça da proposta.
- Então, deixa eu te dar uma carona, eu insisto.
- Combinado, é só arrumar minhas coisas e pronto.
Fábio dá as costas à Al-Berek e começa a enfiar uma série de papéis em sua bolsa, sem notar que
Kamau chega sorrateiramente por trás, enquanto retira do jaleco uma injeção com um líquido
esverdeado. Astuciosamente, aplica uma gravata em volta do pescoço de Fábio e injeta o liquido
em sua garganta, o efeito é imediato. Fábio esboça uma reação, tenta se debater, mas seu corpo
logo amolece. Ele desmaia.
Na afobação de executar as ordens e capturar Fábio, Al-Berek esquece a porta aberta. Nesse
instante Isabella entra, dissertando o quanto estava cansada e precisando de um bom banho. Ela
para ao perceber o médico nos braços do africano, com uma injeção ainda pendurada no pescoço.
O instinto de Isabella diz para que ela correr dali, mas a única coisa que consegue fazer foi
esbugalhar os olhos, tremer e ameaçar gritar. É logo surpreendida por uma figura que aparece por
trás dela de repente, segurando sua boca e a impedindo de realizar o ato. O homem empurra a
doutora para dentro enquanto aponta uma arma para Al-Berek.
É Márcio, que entra e fecha a porta do escritório com o pé, tampando a boca de Isabella e com Al-
Berek na mira.
- Larga o doutor, AGORA. Ou estouro sua cabeça aqui mesmo.
- Quem sabe eu estouro a cabeça dele antes? — ameaça Al-Berek, retirando de trás do jaleco um
revólver e apontando para Fábio, que continua desacordado.
- Parece que entramos em um dilema, não? — diz Márcio - Mas quer saber. Por mim, pode matá-
lo. Assim você não vai saber sobre o papiro mesmo.
- Como sabe sobre o papiro? — assombra-se Al-Berek, agora apontando a arma para Márcio, que
continua estático.
- Sei sobre muitas coisas. Trabalho para um homem bem influente. E sei inclusive que essa garota
aqui é a única, fora o doutor, que sabe sobre o objeto...
Isabella vira os olhos para Márcio, surpresa.
- ...E se você não soltá-lo. A única maneira de passar pela porta será por mim. E eu mato ela e
você. Pelo menos, assim você não pega o que veio buscar.
- Com quem você está? Com Tirone, é?
- Tirone já é passado. O futuro pertence à outra pessoa.
- Não pode estar com Barsam, porque ele me...
Al-Barak é interrompido com um tiro que faz o vidro do escritório explodir em pedaços depois de
atravessar as costas de Márcio, que larga Isabella e tomba para frente. Isabella grita e a correria
acontece nos corredores do hospital. O atirador ainda segura a arma quente e esfumaçada. Dois
homens que estão com ele entram, um segura Isabella, impedindo-a de se mover ou gritar
novamente e o outro checa Márcio, sangrando no chão.
- Não fale esse nome novamente. Você sabe bem quais são as ordens — diz o atirador em um tom
que faz gelar a alma de Al-Berek.
- Si... Sin... Sinto muito. Ele me confundiu. Achei que estivesse com Tirone.
- Ele está respirando — informa um dos homens, com dois dedos no pescoço de Márcio.
- Deixe assim, quem sabe eu resolva tirar algumas respostas desse filho da mãe, que quase colocou
tudo a perder.
- O tiro vai atrair atenção que não queremos — preocupa-se Al-Berek.
- Estamos evacuando o prédio, Kamau. Vazamento de gás. Assim, ninguém nos interrompe.
Diferente de você, nós sabemos fazer direito.
- Sinto muito novamente. Mas aqui está ele. Intacto, apenas desmaiado, deve acordar em breve. -
diz Al-Berek, mostrando o médico.
- Ótimo. Procura o papiro pelo escritório. Quem sabe ele não o deixou aqui.
Enquanto isso, na rua, Denis sai de um táxi em frente ao hospital. Lara e Victor estão com ele. Os
três estranham a movimentação demasiada para aquele horário.
- O que houve? — pergunta Denis a um dos funcionários que sai do prédio, com sua mochila nas
costas.
- Só o que faltava viu — diz o funcionário, gesticulando, mal humorado — E a polícia. Alguma
investigação. Vazamento de gás,sei lá. Como se eu já não tivesse tido um dia daqueles com todos
os feridos do acidente do metrô, só o que faltava eu explodir junto com essa joça. Não sei o que
está acontecendo ali, mas acho que ouvi até um tiro. Isso não é bom.
Denis agradece a informação e deixa de lado o enfermeiro, que desce a rua, movimentando as
mãos e reclamando.
- São eles, com certeza. — comenta Victor.
- Só espero que não seja tarde demais. - diz Lara.

No escritório, o doutor africano vira e revira papéis e móveis, sob o olhar atento do atirador. O tão
organizado Fábio Bohmer teria uma síncope com toda aquela bagunça, se já não estivesse sem
consciência naquela cadeira.
- Vamos, homem. Nada ainda? — queixa-se o atirador.
- Estou tentando, mas não tem nada por aqui. Não acho que ele deixaria o papiro no trabalho, ele
esconderia muito bem.
- Você não está aqui para pensar nada, Kamau. Se não está aqui, vamos para a casa dele, agora.
Al-Berek segura o médico desacordado com os dois braços, abraçando-o desajeitado, enquanto o
atirador ordena para que o seguissem.
Os homens de confiança do capanga de Barsam estão plantados no corredor já vazio, esperando
seu chefe, e logo agem alertas com o som do elevador que subia para aquele andar. Tiram as
armas do coldre e apontam para a porta do elevador.
Quem quer que saia de lá irá se arrepender.
Al-Berek e o atirador já estão no corredor. O africano segura Fábio abraçado, enquanto o atirador
agarra Isabella pelo braço. Os dois param ao ver os homens em alerta, esperando o elevador
chegar.
Quarto.
Quinto.
Sexto.
Sétimo andar.
O elevador faz um barulho e abre a porta, revelando uma figura masculina, que amarrava o tênis,
vestido com um jaleco do hospital. É Victor, que levanta a cabeça e simula um susto, ficando
rapidamente ereto.
- Desculpa, não sabia que vocês da polícia estavam aqui, eu esqueci meu celular. Sabe como é.
Um médico não é nada sem seu celular.
Enquanto os capangas se distraem com o falante "médico", Lara e Denis abrem a porta da escada
de incêndio, entrando na ponta dos pés, sem serem notados. Lara vai em direção do escritório de
Fábio e Denis, armado com dois grampeadores, tenta uma maluquice. Encosta os grampeadores
nas costas de Al-Berek e do atirador, dizendo.
- Parados, eu estou armado e vou atirar. — o nervoso fala mais alto, mas ele tenta não balbuciar.
Os dois não se movimentam, e a ação de Denis desvia a atenção de metade dos capangas de
Barsam, que se viram para ele apontando armas e gritando ordens para que ele desistisse.
"Porque eu não penso direito nas coisas que eu faço? Como eu vou me livrar disso, agora?" Pensa
Denis.
Enquanto Victor, dentro de um dos elevadores, está com as mãos acima da cabeça, temendo por
sua vida, o elevador ao lado apita, abrindo e revelando alguém que Denis não vê há muito tempo.
O Capitão Martins aparece atirando, saindo da enorme caixa de metal e derrubando um por um os
homens de Barsam, antes que eles pudessem pensar em revidar. Victor, assustado, aperta
freneticamente o botão para que o elevador fechasse com ele dentro, assim, fugiria do tiroteio.
Al-Berek dá um rápido giro e empurra Denis, que cai no chão, derrubando e deixando os dois
grampeadores fora de seu alcance. O atirador joga Isabella para frente e sai correndo pela escada
de emergência.
- Olá, estrangeiro... Nos encontramos novamente, não? — diz Al- Berek.
Aquele sotaque familiar traz péssimas lembranças a Denis, paralisando-o. Ele vai para trás, se
arrastando pelo chão. Al-Berek pôde se abaixar, pegar a arma e apontar para seu paciente de
outrora.
- Você fugiu tão rápido da última vez. Nem pudemos nos despedir. Bom, acho que agora é a hora,
né? — diz o africano, apontando a arma para Denis, que fica sem reação.
- Despeça disso, maldito — uma paulada na nuca com um cabo de vassoura é o suficiente para
que Al-Berek perdesse os sentidos. O executor de tal façanha é um homem de altura mediana,
pele branca, de barba e cabelos compridos, parece ter surgido do nada, como um milagre. Denis
está confuso e demora a reconhecer seu salvador.
- Jesus? Eu morri? — É a primeira tentativa dele. Ele esfrega os olhos e fita a figura novamente,
tomando um susto maior que da primeira vez.
- Nicholas? Não é possível — grita extasiado.
É possível.
Seu grande amigo, que julgara morto, está vivo e bem, apesar da fisionomia diferente.
Martins demora um pouco, mas sozinho dá conta de todos os cúmplices de Barsam. Apenas Al-
Barak estava vivo, mas desmaiado. O Capitão senta em cima de um dos corpos, batendo
levemente a arma na cabeça, como se estivesse pensando em seu próximo passo.
Lara aparece correndo no corredor depois de ouvir o nome "Nicholas". Mal pode acreditar no que
vê. É ele mesmo, plantado ali em pé, sendo apalpado por Denis.
- Cara, é você mesmo? Ou o medo tá me fazendo ver coisas? Se for você, ta parecendo um
mendigo. A morte não lhe caiu bem. — examina Denis, voltando a relaxar e fazer as piadas de
sempre.
Nicholas avista Lara e diz por cima dos ombros de seu amigo.
- Como está Márcio?
- Que? Quem? Que? — Lara ainda está confusa.
- Márcio. Ele está bem, eu ouvi tiros. — repete ele.
- O homem negro aqui dentro? Ta respirando, mas perdeu muito sangue.
Nicholas passa por Denis e por Lara, sem cumprimentá-la direito. Entra apressadamente na sala e
se ajoelha, segurando Márcio nos braços.
- Calma, cara, respira. Você vai sair dessa. - abaixa a cabeça, lamentando, e olha para o corredor,
dando um grito - Isabella. Rápido.
A doutora aparece correndo no escritório e se ajoelha ao lado de Nicholas.
- Por favor, doutora. Depois explico tudo, mas cuida dele. Não o deixe morrer. Fábio vai ficar
bem, confia em mim.
Isabella obedece e carrega o homem negro para uma das salas enquanto procura o celular em seu
bolso para encontrar algum médico no prédio ou próximo dali.
- O que está acontecendo afinal? Como você está vivo? — pergunta Lara, encostada na porta.
- Não quero mais ver mortes por minha causa. — sussurra Nicholas.
- Você não ouviu? Eu te fiz uma pergunta. Tem idéia de quanto sofremos achando que você
estava morto? - grita ela, desencostando da porta e inclinando-se em direção ao amigo.
- A culpa não é dele. Eu o convenci a isso. — diz Martins, adentrando no escritório.
- O que? Como assim? Porque fez isso? — Lara pergunta indignada.
- Eu penso, articulo e decido o que é melhor a ser feito. Acostume-se — diz Martins, rude.
- Acostumar? O que você quer dizer com isso, Martins?
- Ele quer dizer, Lara... — interrompe Nicholas -... que ele vai ficar com a gente e vai nos ajudar a
buscar cada parte do manuscrito. Ele salvou minha vida e é confiável. Mas obrigado pelo carinho
que vocês sempre tiveram comigo — diz Nicholas, com voz afável.
Lara tenta agradecer, mas é interrompida por Victor, que volta ao andar pelo elevador, entra
freneticamente no local, gritando pelo nome de seu amigo e pulando em cima dele.
- Cara, não acredito que está vivo. Que bom, sabia. Putz, você ta parecendo o Hagrid. Que visual é
esse afinal, hein? — diz, dando um soco leve no braço de Nicholas.
- Obrigado por tamanha consideração, Victor. Bom te ver também.
- Olha — fala Martins—Melhor vocês irem agora. Nick, eu tenho umas coisas a resolver com a
polícia. Encontro vocês no local combinado? — manda Martins.
- Nós temos um QG? Animal, cara. — empolga-se Victor.

O grupo de Denis e Nicholas se encontra na casa de Gláucio, um senhor de quase oitenta anos,
mas com uma vitalidade invejável, de cabelos brancos e desarrumados, à moda Einstein, e de
óculos fundo. Ele era amigo de longa data de Martins, e acolheu o oficial e Nicholas em sua casa,
desde a "morte" do jornalista.
Cada um se ajeita em uma parte da sala. Por se tratar de uma antiga sala é grande o bastante para
alojar todos com comodidade.
Denis brinca em uma poltrona de couro, que faz barulho cada vez que ele se ajeita, dando a
sensação de contínua flatulência. Fábio se recupera, sentado sozinho em uma poltrona, inclinado,
com a mão na cabeça e outra apoiada no joelho. Lara e Victor sentam no sofá ao lado de uma
cadeira de balanço, onde fica o anfitrião. Jefferson também está lá. Mais afastado, isolado numa
mesa de jantar, lendo um livro. Ele não se misturou com as novas pessoas, apenas os
cumprimentou em sua chegada.
A tensão e silêncio são quebrados com a chegada de Nicholas pela porta que dava acesso aos
quartos. Agora, o jornalista estava de barba feita e cabelo cortado, lembrando bem o estilo de
outrora.
- Ta quase igual ao Nick que eu conheci. — lembra Denis.
Nicholas sorri e se senta ao lado de Jefferson, que abaixa o livro e fita todos na sala, timidamente.
- Esse é Jefferson, um amigo meu, que vai nos ajudar, de certa forma, na nossa busca pelo
manuscrito. — Nicholas o apresenta para todos.
- Peraí, Nick. Na última vez que eu te vi, você queria distância dessa história toda, não? —
pergunta Lara.
- Tem razão. Eu estava com medo. Vi e ouvi coisas que achei que nunca presenciaria na minha
vida. Mas eu pensei bastante, e você estava errada, Lara. Não era comodismo, faltava apenas
esperança. Esperança de que pudesse dar certo. Eu to pronto para mudar o mundo agora, ou pelo
menos tentar.
- Fico feliz por ouvir isso, Nick — sorri Lara.
- Ah, e continua sendo uma questão de honra... Mas agora quero honrar todos aqueles que
perderam as vidas inocentemente nas mãos desses fanáticos idiotas. Se vocês ainda estiverem
dispostos, eu gostaria de me juntar a vocês novamente.
Lara respira fundo. Seu rosto expressa a satisfação que sente naquele momento. Ela abre os braços
e diz:
- É mais do que bem vindo, Nick.
- Cara, eu tenho muita coisa pra te contar. Mas me diz, você chegou a toda essa conclusão depois
de morto? — brinca Denis.
- Aliás, melhor contar direito essa história de você estar vivo. Ainda não engoli direito, você pode
ser um clone ou coisa parecida. — conclui Victor.
- Te garanto que sou real. E vou contar direitinho o que rolou naquele dia.
Nicholas relembra tudo como se acontecesse naquele instante. Aquela experiência de quase-morte
o marcou intensamente. Ele começa a contar, em detalhes, tudo o que passou, fazendo uma
viagem ao tempo, em sua mente.

...Nicholas sabia que nada poderia salvá-lo naquele momento. Ele não teria forças para tentar
lutar com dois homens armados. Só fechaos olhos, orando, e esperando que, um dia, seus amigos
o perdoem e vinguem sua morte. Resta o tiro fatal. E ele apenas ouve.
BAM...
BAM...
Os dois tiros são mais do que suficientes para matá-lo. Nicholas havia fechado os olhos com força
e estava esperando o momento. Os tiros fazem com que Nicholas se assuste e peça apenas
misericórdia a Deus. Nada mais pode salvá-lo.
Mas Nicholas continua de olhos fechados. Os tiros param e ele está vivo. Seria impossível Bruno
errar naquela distância. Ele abre os olhos, lentamente, e ali, deitado de lado, começa a
reconhecer o corpo de Bruno, caído junto ao seu. Bruno está com os olhos esbugalhados e
sangue sai de sua cabeça, colorindo o chão. Nicholas olha por cima do corpo estendido e
consegue visualizar, aos poucos, um homem caminhando em sua direção. Sua visão finalmente
entra em foco e ele reconhece Martins.
O policial o ajuda a levantar, e Nicholas percebe de onde saiu os dois tiros. Martis está com a
arma em uma das mãos, e Bruno e Roberto, caídos, mortos.
- O que eu te disse, hein? — diz Martins, enquanto limpa a poeira da roupa de Nicholas — Não...
saia... da... sala. Vai ficar me fazendo correr atrás de você até quando?
Nicholas ainda está boquiaberto com a situação que acaba de passar e apenas olha para Martins,
agradecendo. Olha em volta, sem acreditar que está realmente vivo.
- Minha moto está parada ai na frente. Foi difícil te encontrar, sorte que eu sabia bem pra onde
Bruno viria. Nada como trabalhar para a Irmandade, né? — sorri. - Roberto, aquele ali, caído no
canto, também é policial, sabia? A corporação está imunda. Se eu te contar você não acredita.
- Eu acredito em tudo agora, Martins. Mas que papo é esse de você e a Irmandade?
- Eu te explico depois, mas pode deixar. Eu não quero seu mal.
- Você atirou em dois policiais? Está meio encrencado, não?
- Bastante, por isso preciso da sua cooperação, mais do que nunca, nesse momento. Como disse,
a corporação está imunda, mas eu vou desmascarar um por um esses policiais corruptos e chegar
ao cabeça dessa operação toda. Mas você terá que sumir por uns tempos. Vou deixá-lo totalmente
incógnito, em um local onde somente eu e você teremos acesso. Entendeu?
Nicholas continua abismado, olhando a sua volta, e apenas sinaliza com a cabeça.
- É sério, Nicholas. Sem fugas. Você precisa estar realmente invisível nesse momento.
- Tá... Eu entendi. Vamos jogar seu jogo. Pelo menos, ele me mantém vivo.

Nicholas volta ao presente. Está de novo naquela sala do gentil senhor. Percebe que todos olham
para ele, com os olhos e bocas bem abertos, esperando que ele dissesse mais coisas. Lara se
antecipa e fala.
- E vocês agiram à surdina desde então?
- Sim. Morto, eu pude tranqüilamente investigar e apurar todos os fatos. Sem ninguém atrás de
mim, pude descobrir ainda mais sobre a Irmandade e o que eles querem afinal. Martins me
confessou que há algum tempo André Tirone, coronel importante dentro da corporação, estava
fazendo chantagem com ele. Ameaçando sua família e sua carreira caso não acabasse comigo.
Tirone era um nome importante dentro da Irmandade. Ele e Rafael Barsam estavam cotados para
ser o escolhido quando a hora chegasse. Mas só um poderia ser. Por isso, faziam uma competição
para ver quem era o mais digno.
- O fato é que Martins agiu desde então como agente duplo. Prometeu a Tirone me tirar da jogada,
mas me protegia sem que ele soubesse. Por isso trouxe Márcio e Jefferson para o time. Eles
ajudaram a tirar Tirone de circulação definitivamente, além de enfraquecer o grupo de Barsam. Sei
que isso vai deixar o senador ainda mais forte, mas um dos dois tinha que sair da jogada. Optamos
por Tirone, que estava mais próximo da linha de fogo.
- Lembra do que Gustavo nos disse? — continua Nicholas - Você serviu para me atrair, Denis.
Pois bem, alguém que todos os portadores do baú, se possível, vivo. Tem a ver com aquele papo
de eleito. Tentamos tirar algo daquele médico africano, mas ele não fala nada. E nem sabemos por
quanto tempo vai continuar preso.
- Mas se eles te queriam vivo, porque te levaram para o galpão, para te matar? — Lara continua
em dúvida.
- Quando fugi da delegacia, quem me pegou foi Roberto e Bruno. Os dois trabalhavam para
Tirone. O coronel não tava nem ai pra esse papo de eleito. Mais um motivo para acabar com ele
primeiro, certo? Martins disse a Tirone que eu reagi e matei Bruno e Roberto, mas que ele havia
conseguido me matar. Tirone acreditou em provas falsas que Martins apresentou e me esqueceu.
Passou a se concentrar nos outros pedaços do manuscrito.
Nicholas toma uma golada de água e continua.
- Foi aí que eu chamei um amigo que me deve um favor. Márcio. Aquele que você viu sangrando
no hospital, Lara. Ele se infiltrou no grupo de Tirone e no de Barsam. Ganhou a confiança dos
dois. E enganou os dois assim que pôde. Márcio é o melhor mentiroso que qualquer um pode
conhecer.
- Há um ditado que diz — continua Nicholas — Quando há uma matilha de cães nos seus
calcanhares, fuja para uma trilha que passe numa caverna de ursos. Ou seja, transforme o caçador
em caça. De um modo peculiar, Márcio descobriu quem era o cão e quem era o urso.
- A gente não ta mais cego, pessoal. Sabemos bem quem são e onde atacar. Demos um importante
passo, e estamos devolvendo, com juros, cada vida que eles nos tiraram. E vai ter mais. Vamos
ver quem mexeu com as pessoas erradas.
- Posso bater palmas? — comenta Victor, baixinho, sendo repreendido por Lara.
- Nesse tempo em que fiquei, digamos, recluso — diz Nicholas - consegui ir a fundo e descobri
onde podem estar os baús. Sabemos do meu e o de Larissa, mas existem mais cinco. E o paradeiro
deles... Nem queira saber... Mas as possibilidades são inúmeras. Existem marcações pelo mundo
todo. Verdadeiras e falsas, feitas muito antes do nosso tempo, para despistar qualquer um que
descobrisse sobre o manuscrito e seu segredo.
- Mas do que se trata essas marcações? — pela primeira vez, Fábio abre a boca. Parece interessado
no assunto, apesar de tudo que sofrerá até lá.
- Obeliscos. - diz Nicholas, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Todos na sala se entreolham, e Denis quebra o silêncio, descrevendo a marcação com as mãos,
fazendo o formato fálico de um obelisco, para cima e para baixo.
- Aqueles monumentos gigantes, do Antigo Egito, constituídos de um pilar de pedra em forma
quadrangular alongada, que se afunila na parte mais alta. Você fala desses obeliscos?
- Sim, Denis. E obrigado pela aula.
- Calma, Nick.- continua ele - Você quer dizer que aqueles obeliscos estão lá de propósito? Sabia
que o primeiro obelisco é de cinco mil anos atrás? Que naquela época, os antigos Faraós tinham o
hábito de levantar obeliscos para homenagear os grandes atos e feitos heroicos. Quer dizer que isso
era só para disfarçar?
- Sim, Denis. A Irmandade existe desde o começo dos tempos.
- Cara, isso detona tudo o que eu já aprendi sobre arqueologia.
- Arqueologia é a busca por fatos, e não pela verdade — filosofa Victor, sendo encarado por todos
da sala, que tentam entender a frase perdida em meio a discussão. — Ei, qual é? Nunca viram
Indiana Jones, não? - justifica, abrindo os braços.
- O que estamos enfrentando vai além de qualquer ficção. E uma realidade complicada, e muitos
de nós podemos nem voltar vivos se decidirmos encarar de vez aquelas pessoas.
- Peraí - interrompe Denis - Você está incluindo todos dessa sala em uma aventura na busca pelos
baús... Ao redor do mundo todo?
Jefferson abaixa a cabeça e se esconde ainda mais atrás de seu livro ao ouvir aquilo.
- Não estou incluindo ninguém. Quem quiser, pode vir comigo. Acho que todos aqui já estão
bastante envolvidos. Então, temos duas opções. Ou nos escondemos, ou os enfrentamos.
- Eu voto em nos escondermos. — o sempre covarde Victor levanta a mão, afoito, e acaba
tomando uma cotovelada de Lara.
- Voltando aos obeliscos, Nick — Denis está visivelmente preocupado com o que pode acontecer
dali para frente. - Como descobriu tudo isso?
- Martins. Ele fez uma varredura na casa de Gustavo no mesmo dia da minha "morte". E
aparentemente, nenhum sinal de seu ex-namorado, Lara. Com certeza, deve estar protegido pelo
pessoal da irmandade.
- Foco, Nick, foco — reclama Denis, interessado na história dos obeliscos.
- Enfim. Martins entrou no porão. Você já esteve lá, Lara?
- Não, sinceramente, nunca vi nada de interessante por lá. Gustavo só guardava tranqueiras lá
embaixo
- O fato é que ele mentiu. Aquele porão era como se fosse um laboratório particular. Cartas,
anotações, fotos de inúmeros paises e um mapa sinalizando alguns locais. Pelo que pudemos
comparar, com endereços e pelas sinalizações, se trata mesmo de obeliscos.
- Imagine o mundo visto de cima, de certa distância. — ele se levanta, abre os braços, como se
estivesse enxergando um mapa imaginário, e continua - Os obeliscos marcam os lugares
escolhidos como se fossem alfinetes coloridos. E uma ótima referência para aqueles que há anos
procuram os baús. Se alguma cidade contém um obelisco, pode ser que o baú esteja ali. Soterrado,
escondido, ou com alguém. As opções são inimagináveis. E esse é o problema. Não tenho idéia
por onde começar, já que todas as anotações de Gustavo são muito vagas.
- Bom... Acho que eu sei por onde começar sim. - diz Denis, se lembrando de Renata, e sabendo
quão vantajoso era tê-la do lado deles e de Barsam.

Larissa está ofegante.


Continua correndo sem olhar para os lados. A viagem que havia feito foi longa. Ela necessita
encontrar novamente Lara e as pessoas que a ajudaram no Rio. Mas decidiu saltar do táxi e
continuar a pé ao saber que está sendo seguida por dois homens desde o aeroporto. Pensa em
entrar nos estabelecimentos da rua em que está, mas se aquelas pessoas fossem as mesmas do
hotel, ela colocaria inocentes em risco, pois sabia que fariam de tudo para conseguir o que ela tinha
na mochila.
Larissa havia sido demitida, uma semana após o incidente, pela gerente que mais admirava na
vida. O estranho era que sua superior ficava nervosa e evitava olhar para ela, dizia que ligaram e
pediram seu desligamento da empresa, mas não conseguia dar mais detalhes, parecia temer por
sua vida.
Larissa perdeu as contas de quantas vezes viu pessoas estranhas rodeando sua casa. Não dormia,
não comia, não conseguia mais viver em paz.
Certa vez, sua residência foi invadida. Quebraram toda sua casa. Mesmo se mudando para a casa
de amigas, volta e meia era ameaçada por telefonemas e telegramas.
Ela havia chegado ao limite e a única opção era procurar Lara. Mas ela não pensava que seria
seguida até mesmo em outro estado.
Os homens mantêm uma distância segura de Larissa. Se ela anda mais rápido, os homens fazem o
mesmo. Decide, em certo momento, correr. Os homens fazem o mesmo. Sua única alternativa é
parar perto de uma ponte, e perceber que, mesmo arriscado, deveria pular perto das árvores e rolar
no gramado inclinado que ali estava.
Numa oportunidade única, sem hesitar, o faz.
Os homens correm mais rápido e param perto da ponte, sem conseguir avistar a garota. O
desespero toma conta dos dois, que gesticulam entre si, dando ordens para procurá-la. Cada um sai
correndo em uma direção.
Larissa está suja e machucada, mas tem que ignorar a dor, se levantar em meio às moitas e seguir
em frente. Corre para a avenida e entra no primeiro ônibus que para em um ponto próximo dali.
Cansada, mas se sentindo segura, pôde pegar o celular e ligar para Lara, que atende no terceiro
toque.
- Alô. Lara? E a Larissa. Do Rio. Eu estou em São Paulo, preciso ver você urgentemente. Ok,
peraí que estou pegando uma caneta e um papel. Pode falar. Ok, anotei. Vou descer do ônibus e
pegar um táxi. Lara, eu tô muito nervosa, estou sendo seguida, acho que é por causa daquele treco.
Sim, está comigo. Estou indo. Até mais.

O telefone celular rosa, em cima da cama arrumada de um hotel em Florianópolis, não para de
tocar a nona sinfonia de Beethoven. Renata é grande fã de Ludwig, mas reconhece que está
começando a ficar farta daquela melodia. Poucas pessoas ligam naquele número, e na maioria das
vezes, é Barsam. Ouvir a música já a deixa desesperada. "Boa coisa não deve ser", pensa, ainda
mais se Denis tivesse sido bem sucedido em seu plano no hospital.
Ela levanta da mesa onde trabalha, em frente ao computador, e corre para atender a ligação. O
visor anuncia o que ela temia. É Barsam.
- Senhor? Olá, como foi a viagem? — pergunta ela, com a maior cara de pau do mundo.
- Nada bem, Renata. Algumas coisas deram errado e eu estou extremamente irritado.
- Por quê? O que houve? — ela tenta parecer surpresa.
- Renata, se eu precisar me abrir com alguém, não será você. - diz, bravo — Agora, quero que
cancele tudo aí em Florianópolis. Não me importa o que você marcou. Tenho que resolver
algumas coisas de extrema importância. Viajo para a França amanhã.
- França? Mas vai resolver o que, senhor?
- Não interessa, Renata. — grita, já visivelmente desconfortável com o interrogatório - Dê alguma
desculpa e cancele todos os compromissos.
- Está bem senhor, eu vou cancelar sim - Renata cerra os punhos, indignada como está sendo
tratada. Ultimamente, ela adquiriu um ódio mortal de seu chefe, mas tem que continuar fingindo
como combinara com Denis. — Mas caso eu precise contatar o senhor, como faço? Só nesse
telefone, mesmo?
- Que insistência, mulher. Não vai precisar falar comigo. Você se vira por aí. E paga para isso,
droga. Quer saber, toma nota do endereço e telefone do hotel que eu vou ficar, assim você para de
insistir.
Renata coloca o telefone entre o ombro e a cabeça e anota tudo em um bloco de recados.
- Sim, senhor. Anotado. E me desculpe se o deixei mais irritado.
Barsam não responde, apenas desliga na cara de Renata, que olha para o telefone e diz.
- Tomara que caia do alto da torre Eiffel, seu idiota.
Logo em seguida, telefona para Denis, confirmando a viagem de Barsam.

Denis desliga com Renata e conta toda a história de seu encontro com Barsam na capital. O
arqueólogo fala dos próximos passos do político.
Nicholas sobe para o quarto para arrumar suas roupas em uma mala, se preparando para a viagem.
Já havia separado um passaporte falso, e conta com a companhia de Lara, Martins e Denis, que
também acabam convencendo Victor a segui-los nessa jornada.
Fábio bate na porta aberta, pedindo permissão para entrar, e Nicholas movimenta a cabeça
concedendo o pedido.
- Sabe, Nick. Quando você me visitou em casa e pediu para ficar com aquele papiro, antes de
viajar, nunca imaginei que seria o começo
de uma aventura tão perigosa e emocionante. — diz, sentando na cama, dentro do quarto.
- Desculpe te colocar nisso. Não era minha intenção.
- Que isso, homem. Tirando a parte em que eu quase morri naquele hospital, eu adorei cada
minuto. E impressionante. Eu preciso de férias, tenho certeza que Isabella pode cuidar do hospital
por mim. E eu to aqui porque... Bem... Eu quero ir com vocês.
Nicholas para o que está fazendo e olha surpreso para o amigo, que sentado de cabeça baixa,
tímido, segura as mãos enquanto gira os polegares.
- Fábio, você já fez muito por mim. Não quero te colocar em mais encrenca. E sei que não é isso
que você planeja em suas férias.
- É exatamente o que eu planejo, e ponto final. — ele levanta a cabeça, fica em pé e olha sério para
Nicholas. - Tenho meus motivos para isso. E agora sou eu quem precisa de você, certo. Você me
leva de um jeito ou de outro. Sei que posso ser útil. Vou passar no hospital e falar com Isabella,
arrumar minhas coisas em casa e partimos assim que você me ligar. Obrigado — ele sai andando,
sem dar tempo de Nicholas contestar. Para na porta e dá um recado final. — Ah, e Isa me ligou há
alguns minutos. Seu amigo está bem, descansando. Ela vai ficar cuidando dele até nós voltarmos.
— e sai andando.
"Se voltarmos" pensa Nicholas.
- Posso interromper a reflexão? — diz Lara, à porta.
- Oi... Lógico, entra. Vocês tão fazendo fila aí fora, é?
- É, eu vi Fábio saindo. Nem olhou na minha cara. O clima tá meio tenso por aqui, hein?
- Ele veio garantir um lugar na viagem da morte.
- Belo jeito de chamar. Com certeza, todo mundo vai querer ir depois dessa - ironiza ela. Ele volta
a fazer a mala e sorri.
- Na verdade, vim falar sobre a "viagem da morte" também - continua Lara — Denis falou que
Barsam estará na França. Eu quero muito te ajudar, mas não sei se quero ir para lá. Tenho meus
motivos.
- Vocês estão todos cheios de mistério depois da minha volta é?
- Podemos dizer que já fui muitas vezes para lá e não tenho boas recordações. E a ultima coisa que
quero é encontrar Gustavo.
- E o que tem em mente? Vai ficar aqui?
- Lembra da lista? Você e Larissa aqui. São dois baús. Restam cinco. Há muitas marcações. Há
aquele tal de jamie na Nova Zelândia, Leonardo na Itália, Jennifer e Todd nos Estados Unidos e
Tathyana na Espanha, entre outros. Mas só nos Estados Unidos têm dois nomes. O que, na teoria,
aumenta nossa chance, certo? Como aconteceu no Brasil, com você e Larissa.
- Ainda não sei aonde quer chegar.
- Eu não vou para a França. Posso viajar a qualquer outro lugar da lista, mas não para a França. E
pensei que seria uma boa ir atrás desses nomes na terra do Tio Sam. O que acha?
Nicholas para por um instante. Coça a cabeça e diz.
- É uma boa idéia. Melhor que mandar todos os ovos num só cesto. Você tem o endereço dos
americanos, certo? Então vá pra lá.
- Ótimo. Farei isso.
- Mas me faz um favor? Leva Fábio e Victor com você. Com certeza, tudo será mais tranqüilo nos
Estados Unidos, e me preocupo com os dois. Não quero meter Fábio em encrenca, e Victor ainda
está receoso com tudo isso. Excitado, mas receoso.
- Tudo bem. Eu levo. Na boa. Só não quero ir para a França. Afinal...
Antes que Lara pudesse completar a frase, seu celular soa estrondosamente no bolso. Ela sinaliza
com a mão, pedindo um tempo, e atende.
- Alô. Sim, sou eu, quem é? Larissa? Qual Larissa? Ah sim, que bom falar com você, em que
posso ajudar? Em São Paulo? Ta, anota o endereço de onde estou. Avenida Higienópolis, 25c.
Tudo bem, pega um táxi e eu espero aqui. Calma, vai ficar tudo bem. Ele está com você. Então
vem pra cá rápido. Até mais.
Lara desliga e olha atônica para Nicholas.
- Parece que as surpresas não param mesmo. Teremos mais uma visita. E mais problemas.

Larissa toca a campainha, arfando.


Gláucio atende e pede para que entre, com olhar doce e acolhedor. Larissa se sente protegida e
respira ainda mais aliviada ao ver Lara descendo as escadas para encontrá-la.
- Lara, que bom te ver. — sem cerimônias, Larissa corre até ela e a abraça. Lara retribui, sem
graça.
- Ta tudo bem agora. Fica calma. Me conta o que houve, o que te trouxe com tanta pressa até
aqui?
Larissa não diz nada, apenas se abaixa e abre a mala, retirando seu baú de dentro. O baú era do
mesmo tamanho e tonalidade do pertencente a Nicholas, e Lara não tem dúvidas sobre o que
fazer.
- Nick. Nicholas. Nick. - Grita, sem tirar os olhos do objeto.
- Desculpe, Lara, eu estava terminando de colocar umas coisas na mala. O que houve... — diz,
descendo as escadas, mas para de imediato ao ver o artefato nas mãos da historiadora.
- Nick. Olha para isso. É igualzinho ao seu.
- Igual. Mas o baú é o menos importante. O essencial é o conteúdo. Esse sim tenho certeza que é
diferente.
- Bom, vou deixá-lo com vocês. Não quero mais isso na minha vida.
- É o último. — confirma Nicholas.
- O último? Como assim? — Larissa pergunta confusa.
- Vire o Baú, Lara. Assim. Agora olhe no canto esquerdo. Ta vendo, sete tracinhos. Deve
significar o número, não? Como são sete partes, temos agora também a conclusão do manuscrito.
Lara força a visão. Era uma inscrição minúscula, mas eram sete traços.
- Parece um tipo de numeração. Faz sentido. - comenta.
- Bom, o baú agora é de vocês. Não quero mais encrenca com isso — Larissa abre os braços,
aliviada por se livrar do fardo.
- Fez bem em nos entregar a peça, Larissa. — comenta Lara - Vamos protegê-la a todo custo.
- Assim espero. Quero me livrar logo disso e voltar a minha vida de antes. Não quero ser super-
heroína.
- Parece com alguém falando antigamente — sussurra Lara, dando a indireta para Nicholas.

- Viajar pra onde? Você não pode abandonar o hospital desse jeito, Fábio.
Isabella está indignada e ao mesmo tempo preocupada com o companheiro. Não era de seu feitio
ser ríspida daquela maneira, mas tinha que colocar algum juízo na cabeça daquele que tanto
admirava.
- Isa — diz ele, calmamente — eu preciso ajudar Nicholas, e preciso fazer essa viagem, por
motivos que não posso revelar no momento. Mas eu volto logo, prometo.
- Não posso te deixar ir. Seria incoerente da minha parte. Você é apenas um médico, não vai saber
se portar em qualquer ocasião de risco.
- Minha decisão é final, Isa. Só estou te informando que o hospital ficará sob sua supervisão. Vou
apenas me encontrar com os outros na casa onde te falei e vamos viajar.
- Você é teimoso demais, Fábio. Já que eu não posso te convencer, pra onde vai então?
- Eu não sei, mas te ligo em breve. E obrigado por não insistir mais.
Fábio dá um beijo rápido na bochecha de Isabella, que fecha os olhos e aproveita o momento.
Quando o médico se vira e vai embora, ela passa delicadamente a mão aberta em seu rosto,
desejando que aquele beijo fosse dado em outro lugar, em outra hora.

Nicholas não sabe quem tinha ficado mais surpreso de ver Larissa. Victor gritou, perplexo, e Denis
coçou o olho diversas vezes, repetindo "Eu não estou no Rio de Janeiro, eu não estou no Rio de
Janeiro". Nicholas riu com tudo aquilo, sabia que a experiência de combater pessoas mal
encaradas e ficar na mira de armas carregadas não tinha sido das melhores para nenhum deles, e
Larissa ressuscitara aquela lembrança. Ele puxa Denis de canto e diz.
- Olha. Eu conversei com Martins antes de descer para ver Larissa. Ele vai me encontrar em
Perdizes, onde precisamos encontrar uma pessoa, e amanhã logo cedo viajamos. Preparado?
A excitação de Denis diz tudo. Ele deseja aquilo e está cada vez mais envolvido com a "Iniciativa
Sete", como Victor havia denominado aquele pequeno grupo e sua missão. Nicholas, Denis, o
próprio Victor, Lara, Fábio, Martins e o ultimo integrante que Nicholas encontraria. É um grupo e
tanto.
Aliás, Victor adora fantasiar sobre aquilo tudo, mas morre de medo só de pensar em passar por
uma situação como foi aquela no Rio de Janeiro. Por isso, ele fica aliviado em saber que vai viajar
com Lara, sem perigo algum.
Lara planeja para que Larissa fique pelo menos uma semana na casa de Gláucio, esfriando um
pouco a agitação que estava na vida dela. O velho homem gosta de companhia e aceita no mesmo
instante, Jefferson também fica. Márcio, assim que estivesse melhor, poderia se agregar a eles.
Fábio aceita viajar com Lara depois de Nicholas o convencer, usando certa psicologia, que contava
com ele para cuidar da "frágil" garota e de Victor.
Márcio está deitado em seu leito, coberto com o lençol branco até o pescoço, virado do lado
esquerdo. Ao se ajeitar e virar para o direito, dá um sobressalto e quase cai da cama.
- Ah. Que isso, quer me matar de susto? O que você está fazendo aqui?
Jefferson está lá sentado, do lado de sua cama, olhando para o amigo.
- Desculpe — diz ele — Vim te fazer companhia. Afinal, alguém tinha que cuidar de você, já que
todos vão sair numa missão maluca por ai.
- Nick realmente foi atrás dos baús? Ele tá louco. Preciso melhorar logo. Tenho que ajudá-lo.
- Fica tranqüilo. Ele volta rápido. E deu ordens para que eu ficasse com você, fazendo companhia.
- Disse é? Achei que tinha completado minha cota de Jefferson já. Mas ele me ainda me paga por
essa.
- Qual é Márcio. Eu vou te proteger. Você salvou minha vida, e eu estou aqui pra cuidar da sua.
Conte comigo — diz Jefferson, batendo o punho cerrado no peito.
- Eu vou depender de você? To ferrado então. Me deixa dormir, que eu ganho mais, viu.
Márcio vira para o lado oposto e fecha os olhos. Isabella abre a porta levemente, colocando apenas
a cabeça para dentro do quarto.
- Como está nosso herói? — pergunta ela.
- Querendo dormir. Aproveita e tira o voyeur daqui também. — diz Márcio, com a voz abafada
pelo lençol que cobre sua cabeça.
Com um gesto, Isabella chama Jefferson, que levanta cabisbaixo e sai do local.

- Você é mesmo maluco, sabia? — diz Martins, enquanto dirige o carro com Nicholas ao lado,
olhando pela janela — Deu um trabalhão inventar milhões de histórias até agora. No hospital, para
meus supervisores, com Tirone. E você já envolveu um monte de pessoas que sabem da sua
"ressurreição", e elas ainda vão viajar conosco, podendo se machucar e até morrer. Tá ciente disso,
não é?
- Uhum.
- E lembra do que combinamos. Não envolver as pessoas. E você me convenceu de colocar
Márcio e Jefferson nessa, me convenceu de resgatarmos Fábio, e levar todo mundo pra casa do
Gláucio, e agora me convenceu a isso. Sabe que eu to me sinto persuadido a fazer tudo isso, né? E
não gosto de perder o comando da situação.
- Uhum.
- Então você sabe bem que ela será a última. E eu não vou me responsabilizar por mais ninguém
nessa, entendeu?
- Uhum
- Vou com você. Quero ver esses caras pagarem por tudo. Mas não serei babá de nenhuma pessoa
que você, e só você, atraiu para essa encrenca.
- Uhum.
- Nick, você é muito teimoso. Nem parece que está me ouvindo...
- Vira à direita. É aqui. — interrompe.
O carro para em frente a uma casa azul, simples e bonita. Os dois descem e Nicholas toca o sino
em frente à casa, acompanhando o vulto, através da vidraça na porta, que se aproximava.
Uma mulher abre a porta e se surpreende com a inesperada visita.
- Meu Deus... Você? Eu acho que vou desmaiar.
A mulher os convida para entrar, fecha a porta e fica parada, escorada na fechadura, buscando o
que falar.
- Bom te ver, Dani. — Nicholas quebra o gelo.
Danielle Bonini é uma linda garota de 28 anos, altura mediana, cabelos castanhos claros,
ondulados e longos, chama a atenção pelo corpo atlético, mas apesar de todos os atributos, nunca
deixou a simpatia de lado. É jornalista há muito tempo e estava de folga no fatídico dia do
massacre no "Foco da Notícia". Ela perdeu muitos amigos e entrou em depressão. O trabalho
significa muito para ela, e a tristeza havia tomado conta de sua vida até aquele dia. Ao ver seu
grande amigo Nicholas, volta a sorrir.
- Achei que você estivesse morto — continua ela.
- Pois é. Mas eu voltei porque preciso da sua ajuda.
- Ajuda? Nick, Nick, em que você se meteu? Todos os noticiários informaram que você havia sido
morto por bandidos, sei lá. Eu fiquei tão triste. Já não bastava o pessoal do "Foco", e você
também.
- Plantamos a notícia. Méritos de Martins. — diz, indicando o amigo, que reconhece a culpa.
- Mas que bom que você não morreu de verdade. — Danielle se solta e corre para abraçar o
amigo.
- Não sei se você ainda vai adorar me ver vivo depois do que tenho a te propor.
- Qualquer coisa, Nick. Sabe que eu confio em você. — diz, ainda agarrada ao seu amigo.
Nicholas começa a explicar toda a situação, desde o encontro com Denis, o massacre, o baú
encontrado na igreja, a batalha com Gustavo, Tirone, sua "morte", e finalmente convida Danielle a
se juntar ao grupo e ser a última integrante do "Iniciativa Sete".
- O que? Você quer o que? — Danielle larga de Nicholas e dá um passo para trás, falando alto,
perplexa com o convite que lhe era oferecido.
- Você é uma das melhores jornalistas que conheço, e se tem alguém que já me ajudou, e pode me
ajudar de novo, esse alguém é você — diz Nicholas.
Danielle fica lisonjeada com o que ouve, e a possibilidade de voltar a fazer tudo aquilo o que mais
gostava, apurar as notícias e correr atrás dos fatos, a deixa propensa a aceitar.
- E então, Dani — continua Nicholas — O que me diz?
- Como se você não me conhecesse muito bem, não é Nick? Lógico que eu estou dentro.
Nicholas comemora em silêncio. Danielle sempre tratou todos muito bem e fazia amizade muito
fácil, o que lhe havia rendido o apelido de "garota dos contatos", no "Foco". Com certeza, ela será
um ótimo reforço para o grupo...
Danielle faz as malas e abandona sua vida pacata, desde o massacre, partindo com Nicholas. Ele
apresenta a jornalista para todos na casa de Gláucio, que sorri com as piadas de Denis. O clima era
tão leve quanto permitido.
Um luxo que não teriam em breve.
No começo do dia seguinte, os dois grupos viajaram em direções opostas, para começar a busca
pelo manuscrito, na aventura de suas vidas.

Depois de horas de vôo, a aeronave pousa na pista principal do aeroporto Louis Armstrong, em
Nova Orleans, e traz três intrépidos passageiros. Lara, Victor e Fábio estão empolgados pelo inicio
da missão e não tardaram em pegar o primeiro táxi rumo à casa de Todd Kripper, nome no topo
da lista da Irmandade.
Trinta minutos depois, estão na frente da residência do arquiteto, como dizia as informações no
papel. Victor foi o primeiro a correr e tocar a campainha da casa.
- Sigam-me os bons. — diz, excitado com tudo aquilo.
A porta abre o suficiente para que o morador pudesse colocar os olhos para fora e verificar quem é
sua visita.
- Boa Tarde, o que desejam? — diz, em inglês.
- Olá. Estamos procurando Todd Kripper, temos uma informação de extrema importância para dar
a ele. — responde Lara, também em inglês.
- Sinto muito, mas quem são vocês? — diz, ressabiado, o morador.
- Senhor, meu nome é Lara, esses são Victor e Fábio. Viemos do Brasil, especialmente para falar
com o Sr. Todd. Creio que ele corra risco, se não pudermos avisá-lo do que o espera. Ele tem um
baú e algumas pessoas podem fazer mal a ele por causa disso.
A porta fecha na hora. Fábio e Victor se entreolham, sem saber o que fazer. Lara ouve o barulho
de um trinco, A porta é aberta de uma vez e revela o morador desconfiado.
- Melhor vocês entrarem para conversarmos melhor. Prazer, eu sou Todd Kripper — o homem
atlético, de pele clara, olhos azuis e cabelos loiros bem cortados, vestia um terno elegante. Ele
estende a mão para Lara enquanto indica a entrada para todos.
- Por favor, sentem-se e sintam-se à vontade. Querem beber alguma coisa? — continua ele, como
um bom anfitrião.
- Não, obrigado. Estamos bem, Sr. Kripper.
- Por favor, me chame de Todd.
- Olhe, Todd. — Fábio toma a palavra - Não queríamos assustá-lo com toda essa história, mas nos
preocupamos com sua segurança. Você corre grande perigo.
- É verdade, Todd. — completa Lara — Muitas pessoas envolvidas nisso que vamos dizer
acabaram morrendo, e estamos nos esforçando para evitar mais desastres.
- Conte-me mais — Todd senta e se ajeita na cadeira. Ele alisa a barba por fazer, interessado no
que ouve. — Porque corro tanto perigo assim? Quem ou o que me quer mal?
- Nós não sabemos muito sobre eles, mas são como se fosse um tipo de seita, e estão em busca
desses baús. Não vão medir esforços para consegui-los. E não se importam com a vida de
ninguém.
- Nossa, temos que chamar a polícia, fazer alguma coisa. Se o que vocês me dizem é verdade,
melhor a gente não perder tempo. — diz Todd, se levantando.
- Calma. - Lara levanta do sofá ao mesmo tempo que Todd e encosta a mão no ombro do
americano - Não dá pra confiar em ninguém. Pessoas de dentro da polícia podem estar envolvidas
e já investigam você.
- Se não dá para confiar em ninguém, porque confiar em vocês? - indaga ele.
- Pensamos nisso — diz Fábio ao abrir a valise dele e retirar de dentro uma fotografia — por isso
trouxemos para você uma prova. Essa fotografia é do papiro que está conosco. Pode pegar. Isso...
É essa aqui, deixa ver se acho... Pronto, essa é uma cópia do que temos que procurar. Seu nome
está aí, como pode ver, e nomes de outras pessoas que tem alguma parte desse quebra-cabeça.
- Interessante - diz Todd ao manusear atentamente a fotografia e a cópia das informações de
Gustavo Gradícola - Talvez vocês estejam dizendo a verdade mesmo, e se for assim, eu quero
muito ajudá-los. Se me derem um minuto, vou até meu quarto pegar o baú que possuo.
Enquanto Todd pede licença e caminha até a escada, Victor suspira aliviado.
- Foi mais fácil que eu pensava, ainda bem. — comenta, em português.
Todd abre a porta de seu quarto e caminha em direção ao armário. É uma porta branca que se
confunde com a porta de entrada do dormitório. Ele gira a maçaneta e procura o interruptor a
direita.
Ao acender a luz, revela o que continha o pequeno armário. Divisórias com algumas roupas e
sapatos, e sentado no chão, apertado e amarrado, um senhor de meia idade, careca e de óculos,
com o nariz inchado e cheio de sangue no rosto. A boca está selada com silver tape. Ele geme ao
ver que o agressor está de volta.
- Calma Todd — diz o homem que havia tomado a identidade do arquiteto, se agachando perto da
vítima — tudo acaba agora, não vou mais te bater e prometo que você não vai mais sofrer, sabe
por quê? Porque não preciso mais de você.
O falso Todd levanta e retira uma arma da gaveta de um armário, próximo de onde estava parado.
Tira do bolso o silenciador e acopla na arma, aponta para o verdadeiro Todd e atira.
O arquiteto está morto.
- Pronto, Todd. Infelizmente, não dá para existir dois de nós, mas farei bom uso desse baú, pode
deixar.
O homem de falsa identidade retira o baú do armário e desce, como se nada tivesse acontecido,
para encontrar os mais novos amigos.

A campainha da casa de Gláucio toca três vezes antes de Larissa atender a porta, ofegante.
- Desculpa. Estava cozinhando. — diz para o homem do correio, que tinha na mão um envelope
para entregar.
- Tudo bem — sorri ele — Eu tenho que entregar isso ao dono da casa, chama-se... Deixe-me
ver... Gláucio Lima?
- Isso mesmo, mas ele está repousando no quarto? Eu poderia receber o envelope?
- Sim, lógico. Só assinar aqui.
Larissa gentilmente assina o papel da prancheta e a devolve ao carteiro, que confere o relatório.
- Hum... Larissa Bottin. Bonito nome.
- Obrigada. O envelope, por favor?
- Ah, sim, isso é pra você.
Quando Larissa sai da casa e estende a mão para pegar o envelope, um homem aparece atrás do
carteiro e aperta o gatilho da arma. O tiro foi certeiro, bem no meio da testa de Larissa, que cai
sem vida.
O carteiro tira rapidamente o boné e a camiseta, saca um revólver e junto do comparsa, sobe as
escadas atrás de Gláucio. Há dois quartos na parte superior da casa, o homem que estava outrora
disfarçado faz sinal para que o outro entrasse no segundo dormitório, enquanto ele investigava o
primeiro. E assim foi feito.
Ninguém no primeiro quarto, ele olha debaixo da cama, no armário, pela janela.
Enquanto fazia isso, o outro homem partiu para o segundo quarto. Mal entrou e... TUM
A bengala é de metal e acerta em cheio no nariz do invasor. O barulho ecoa pela casa. O homem
cai na hora e sangra sem parar, com o rosto totalmente afundado, culpa da força sobre-humana
que naquele momento tomou conta de Gláucio. O outro invasor corre até aquele quarto e
consegue se esquivar por pouco, ao abaixar e sentir a bengala passar sobre a cabeça. Gláucio é um
homem idoso, e aquela era a única chance contra uma pessoa que tinha metade da idade dele e o
dobro de força e velocidade.
E foi isso que bastou.
Gláucio não consegue voltar a tempo a bengala e mal pode conter o golpe que tira a vida dele. Um
gancho certeiro no queixo quebra o maxilar do senhor aposentado.
O invasor não para por aí. Segue com uma seqüência de golpes até ver Gláucio perder os
sentidos...
... Para sempre.
- Velho idiota. - O homem pensa alto, enquanto levanta e se limpa. Olha o amigo, ferido
gravemente, e opta por deixá-lo lá estendido no chão.
Se sobrevivesse ao ferimento, quando a polícia chegasse, ótimo. Se não, não era problema dele. A
missão estava cumprida. Dois integrantes a menos do grupo de Nicholas. Hora de revistar a casa à
procura do pedaço do manuscrito.

- Desculpe a demora — diz "Todd" — não lembrava onde havia fiílL deixado o baú.
- Olha só — comenta Lara, perplexa - É igual ao do Nicholas. Posso ver?
- Lógico. Pegue.
Victor e Fábio levantam e admiram o baú, idêntico ao do amigo.
- Pelo que eu li nesse papel de vocês, pode existir um outro baú com essa tal de Jennifer, aqui
mesmo, nos Estados Unidos?
- Pode ser, Todd. Nós vamos averiguar também.
- Desculpa a pergunta — interrompe Fábio — mas você já abriu este baú?
O falso Todd demora alguns segundos para responder. Que desculpa dar, já que ele havia acabado
de achar aquele objeto?
- O baú me foi deixado de herança por minha mãe. Como me mudei bastante nos últimos tempos,
ele sempre ficou de lado, no fundo do armário, sabe.
Todd dá um sorriso amarelo, esperando que eles caiam na farsa. Afinal, não tinha encontrado a
chave para abrir aquela caixa.
- Faz sentido - diz Lara, em português - Como foi com Nick e Larissa.
- Bom — Lara junta as duas mãos e diz - Nós precisamos viajar até a capital e nos encontrar com
Jennifer. Obrigado por sua ajuda, se você puder deixar o baú conosco... — mas ela não consegue
terminar a frase. É interrompida por Todd.
- Não vou deixar meu baú com vocês, e pelo que disseram, podem vir atrás de mim, certo? Eu
vou com vocês, posso até ajudá-los como guia até a casa de Jennifer. Só vai levar algum tempo até
Washington. Só vou arrumar minhas coisas, dar alguns telefonemas, e partimos logo cedo, pela
manhã, que tal? Posso preparar uma ótima refeição para vocês, e podem dormir nos quartos vagos
que tenho aqui.
- Santa facilidade, Fábio — Victor se surpreende e comenta com o amigo — O que poderia dar
errado agora? Ainda bem que viemos para cá e não para a França.

Nicholas, Denis, Martins, Danielle. O quarteto mal sabia o que iria enfrentar na França. Sabia que
aquele era o primeiro passo de uma grande aventura, e que muitos poderiam ficar pelo caminho.
Nicholas não queria pensar nisso e se concentrava em Barsam. Era necessário encontrar aquele
homem e saber tudo sobre o que ele e a irmandade planejavam.
Danielle está super empolgada com tudo aquilo. Nicholas chega a ficar com pena, mal sabia ela o
que irá enfrentar.
"Porque coloquei ela nisso, viu" se pergunta sem parar. Mas sabe que ela é um reforço essencial
para a equipe.
Martins, como sempre, está compenetrado. Nicholas não consegue imaginar como ele não perde a
paciência com Denis, que tenta puxar papo o vôo inteiro e faz piadas da seriedade do agente.
Conforme o combinado, o quarteto vai para o hotel onde aguarda instruções de Renata.
Longe dali, outra ligação é transferida para a sala de Rafael Barsam. Ele atende e parece não gostar
do que ouve.
- O que? Tem certeza? Como eles descobriram que eu estava aqui? Maldição. Já imagino. Não,
não, deixa que eu cuido disso. Sei muito bem o que realizar aqui. Eles acabam de fazer uma
viagem só de ida.
Barsam desliga o telefone, muito alterado.
Depois de algumas horas de vôo, Lara, Victor e Fábio chegam à capital dos Estados Unidos, onde
alugam um carro, com Todd como guia.
- Uhuu, Washington, vamos aproveitar e roubar a declaração de independência, como naquele
filme? Sempre quis fazer isso...
Lara sempre se surpreende com a maneira que Victor associa todas as situações e se diverte com
tudo. Aquele novo amigo parece uma criança, por onde quer que fosse, havia um comentário há
fazer. Ela espera que Victor nunca perca essa animação.
- Depois a gente pensa nisso, mas antes vamos procurar outro tesouro. Temos que encontrar
Jennifer primeiro.
Com as indicações de Todd, não demorou muito para que eles chegassem ao escritório da moça
na lista.
Jennifer é uma bem sucedida empresária e trabalha com alguns políticos locais.
Os quatro entram juntos no prédio e procuram por Jennifer na portaria. Não demora muito para
que o segurança libere a entrada do grupo.
Eles sobem pelo elevador, enquanto Victor assobia o tema de "2001, uma odisséia no espaço", ao
ver os números dos andares mudarem de segundo em segundo.
O elevador se abre e a própria Jennifer espera os visitantes na porta. Jennifer é uma mulher
estonteante, loira, com os cabelos presos, olhos claros, bem vestida, um sorriso arrebatador.
- Acho que tô apaixonado. — diz Victor, em português, com a mão no coração.
- Jennifer? — pergunta Lara
- Sim, sou eu. Deram sorte, mais alguns minutos, vocês não me pegariam aqui. Tenho uma
reunião daqui uma hora, mas posso atendê- los por um momento. Em que posso ajudá-los? - diz
ela com uma simpatia única.
- Eu tô apaixonado — Victor levanta a mão para fazer o primeiro comentário.
- Prazer, Jennifer. Meu nome é Todd Kripper. Essa é Lara, Victor e Fábio. Bonita chave essa em
seu pescoço.
A chave brilhante com certeza era o caminho até um dos baús. Seria o dele? Todd é muito
perspicaz, e avistou a chave antes de todos os outros. Algo que alerta Lara. Como Todd poderia
estar tão interessado naquilo tudo tão rápido?
- Ah, obrigada. — diz Jennifer ao segurar a peça. — Foi um presente de família, passado de
geração em geração.
- Eu sei. — é hora de Lara se antecipar — E é por causa dela que viemos.
Jennifer não sorri mais. Aperta a peça em seu pescoço e se transforma em uma mulher mais
ríspida.
- A chave foi um presente, como eu disse, e não sei qual seria o interesse de vocês nisso. Se for
somente por ela, creio que vocês perderam tempo aqui.
- Acho que isso vai fazer você mudar de idéia. - diz Lara. Ela entrega uma cópia do papel de
Gradícola, com informações sobre toda a vida da empresaria.
Jennifer salta os olhos com tudo que continha ali. Surpresa, larga o papel e leva a mão à boca.
- Como assim? O que é isso? Como sabem quem foi minha avó? E minha mãe? Meu irmão que
morreu aos três meses de idade? O que significa tudo isso?
- Calma, Jennifer. — diz Todd, sereno - Eu também me assustei muito quando descobri que
sabiam de toda minha vida. É por isso estamos aqui, o melhor a fazer é ficar conosco, nós estamos
nos juntando e vamos sobreviver a quem quer que nos queira mal.
Jennifer tremia. Como alguém poderia saber tanto sobre ela, e ela nem ter idéia o que ou quem
está por trás de tudo aquilo?
- Essa reunião que você tem hoje... Pode ser remarcada? Não sabemos quando qualquer ataque
pode acontecer, e é melhor se soubermos todos os seus passos — sugere Lara.
- Tudo bem, eu vou à minha sala e marco para outro dia. Vou ajudá-los hoje.
- Bom, eu preciso ir ao banheiro. Tem algum por aqui? — diz Victor.
Jennifer aponta para o final do corredor e vira, cabisbaixa, em direção a sala, para dar o último
telefonema da vida dela.

O telefone do Hotel em Paris acorda Denis, que salta da cama e joga o chinelo no aparelho.
Nicholas repreende o amigo e atende rápido. É Renata.
- Nick, ele acabou de me ligar — diz ela — Vai se encontrar com um amigo num prédio a
algumas quadras do hotel. Tem como anotar o endereço?
- Lógico, pode falar — Nicholas faz sinal para Denis. Ele simula como se tivesse escrevendo no
ar, na esperança que o amigo jogasse uma caneta para ele. Denis balança a cabeça e mexe o corpo
no ritmo da mímica de Nicholas.
- Caneta, Denis. — diz Nicholas, sem paciência.
- Não, obrigado. Não preciso - responde.
Nicholas suspira fundo, e pede para que Renata falasse o endereço. É mais fácil ele decorar do que
fazer o amigo deixar de brincar com tudo.
Com o endereço na cabeça, Nicholas e Denis saem do quarto e vão para recepção. Lá, pedem para
chamar Martins num outro dormitório e Danielle num segundo quarto. O táxi chega rapidamente.
Em menos de dez minutos, eles estão no prédio indicado. É um edifício velho, parece
abandonado.
- Olha, prefiro ir ao Moulin Rouge hein. Bóra? - diz Denis ao dar um passo para trás.
- Isso tá realmente muito estranho, Nick. O que Barsam vem fazer num prédio abandonado? -
pergunta Martins.
- É Nick. Melhor esperar uma outra hora. — diz Danielle, que ainda mede as palavras, por ser a
novata do grupo.
- Nada disso, pode não ter outra hora. E além do mais, nada melhor que um prédio desses pra não
dar na cara se ele for fazer alguma coisa mais obscura, não acha? Vamos entrar.
A porta está semi-aberta. Sem pensar direito em tudo aquilo, inocentemente o quarteto caminha
passo a passo para o desconhecido. O sol de final de tarde ilumina as janelas e mostra o quanto o
ar está empoeirado. O local está silencioso. Será que Barsam se encontra em alguma sala? Não há
tantas naquele pequeno prédio. Uma varredura às escondidas ia acabar com aquela dúvida.
- Cara, isso aqui tá muito surreal.- Denis não para de olhar para os lados. Algo paira no ar e
incomoda os quatro.
O silêncio é rompido pelo barulho de uma rajada de tiros, vinda de três lados diferentes e na
direção do grupo.
Sangue jorra na parede.
- Ok, obrigado. Sinto muito por desmarcar em cima da hora, mas surgiu um imprevisto e eu tenho
que resolver isso rápido. Obrigada mesmo pela compreensão.
Jennifer desliga o telefone, mas algo preocupa a jovem empresária. Ela conhece muitas pessoas
influentes, e lembra que um de seus clientes esteve no escritório dela com um arquiteto. Ele iria
projetar a casa de veraneio dele.
Mas qual era o nome do arquiteto. Seria Todd Kripper?
Sim... Era esse o nome.
Ela é boa fisionomista, e se lembra de encontrar Todd Kriper. E aquele homem que estava à
espera dela definitivamente não se parece em nada com o senhor que ela conhecera.
"O que será que aqueles quatro querem comigo?" pensa.
Jennifer tira novamente o telefone do gancho e finge ligar para outra pessoa. Enquanto conversa
com ninguém, procura no notebook uma foto de Todd Kripper.
Como ela pensava, nenhuma foto era parecida com aquela pessoa. Ela se aprofunda mais na busca
e procura por quase todas as informações que tinha sobre Todd.
Nada.
A foto de Todd mostra um senhor de poucos cabelos, grisalho, óculos. Bem diferente daquele que
está fora da sala. Jennifer respira fundo e pensa no que fazer.
- Com licença, Jennifer. — É o falso Todd. Ele entra na sala, o que faz Jennifer dar um pulo,
assustada.
Ela fecha o notebook, desliga o telefone e sorri.
- Pronto. Lara já pensou no que fazer?
- Infelizmente não. Mas ela perguntou se essa chave é de algum baú seu. — Todd mente e tenta
descobrir algo.
- Baú? Não sei do que você está falando. Nunca vi nenhum baú. Eu só tenho essa chave, e não
posso dar para vocês. Tenho um apego especial por ela. Lembrança especial, sabe? — Jennifer é
sincera na resposta.
- Eu entendo. Também não quis dar meu baú. Aliás — diz Todd, ao fechar a porta e ficar a sós
com Jennifer, o que a deixou arrepiada - Podemos testar sua chave? Meu baú esta aqui. Quem
sabe essa pode ser a que encaixa nele, certo? — Todd tenta a sorte mais uma vez.
Jennifer titubeia, mas retira o colar do pescoço. Segura a chave e tenta encaixar no baú que Todd
colocara em cima da mesa. Para surpresa de ambos, a chave entra perfeitamente. Jennifer gira e
ouve um clique, enquanto Todd não segura o sorriso.
- Perfeito. Quem poderia imaginar que a chave estava tão perto do baú? — diz ele, feliz.
Jennifer retira o papiro cuidadosamente, sem entender o que aquilo significava.
- Precisamos avisar os outros. — diz ela.
Todd hesita antes de falar, e deixa o clima ainda mais tenso. Jennifer não saberia o que fazer caso
o homem quisesse lhe fazer mal.
- Sim, precisamos. Melhor irmos logo — diz ele.
Jennifer respira aliviada.

Jefferson está cabisbaixo. Aprendeu a respeitar e gostar de Márcio, mas parece que ele não é uma
pessoa de muitos amigos. Ele sabe que Márcio confia e ajuda uma só pessoa: Nicholas. E ele
chegava a sentir uma inveja disso. Ele queria falar com Márcio antes de ir embora.
- Você vai mesmo embora? — Isabella interrompe os pensamentos de Jefferson.
- Como sabe?
- Imaginei, pela sua cara. Está pensativo, jogado nesse canto.
- Sabe, doutora, nunca achei que fosse morrer jovem. Sempre quis ter uma família, ver meus
netos. E quase morri... Mais de uma vez. Essa aventura que eles estão entrando... Não é pra mim.
Não é o que quero. Nick me queria nisso, mas não vou entrar nessa. Sinto muito por eles, e por
tudo isso, mas to fora.
Isabella agacha e descansa as mãos no joelho de Jefferson, na tentativa de confortá-lo.
- Olha Jefferson, eu sei bem o que é se sentir indefesa e ficar aflita por quem a gente gosta. Quer
ouvir um segredo? Eu amo o Fábio, e quero que ele saiba disso, e é a primeira coisa que eu vou
dizer quando ele voltar. Sei que considera Nicholas e Márcio, mas os dois escolheram os caminhos
deles. Não há nada do que a gente possa fazer.
- Só queria convencer Márcio de ficar. — diz Jefferson, com a voz embargada. - Eu acabei
gostando daquele rabugento. É um bom amigo. Ele também quase morreu. Odeio ver a morte
rondando a gente.
- Jefferson, se serve de consolo. Eu to aqui, não vou deixar nada acontecer com Márcio. Vou
cuidar dele e de todos quando voltarem, eu prometo.
Jefferson levanta, enxuga as lágrimas, que tentava segurar em vão, e faz um pedido à Isabella.
- Olha, pode mesmo cuidar deles? Eu agradeço. Falo com Nicholas depois. Avisa o Márcio,
quando ele tiver de bom-humor e levantar daquela cama, tá?
Eles se abraçam, se despedem e Jefferson caminha até a porta, para talvez nunca mais voltar à vida
daquelas pessoas.
Lara, Fábio e Victor estudam o papiro, abismados. Era idêntico ao de Nicholas, com algumas
mudanças nas instruções em egípcio. Todos tocam o antigo papel, com uma mistura de
preocupação e angustia pelo final de toda aquela história.
Jennifer, perceptiva, vê que o falso Todd não acompanha a empolgação dos colegas, como se já
soubesse o que esperar. Talvez ela estivesse errada sobre Lara e os dois homens com ela, ou talvez
tudo não passasse de uma encenação. Ela tentaria uma saída daquilo. Seria suicídio se desse
errado, mas subiu tão rápido na carreira ao confiar nos instintos, e deveria continuar assim.
Os cinco decidem que a melhor coisa a fazer é guardar de volta no baú e levá-lo para um lugar
seguro. Todd reluta um pouco sobre isso, mas a missão de Lara está mais do que cumprida. Ela
precisa manter os dois em segurança e voltar para casa com o papiro.
Após descer pelo elevador até o saguão principal, Jennifer pede um momento e corre até o
segurança para dizer, de acordo com ela, que iria ficar fora até o final da tarde.
Ela conversa com o troncudo homem de terno a sua frente, pede uma folha de papel e escreve
uma pequena nota, dobrando-a. Diz mais algumas palavras e volta para o grupo que lhe espera.
- Pronto, podemos ir. — ela fala com um sorriso sem graça nos lábios, o que libera a desconfiança
de Todd.
Sem que ninguém perceba, a jovem empresária passa o papel dobrado para as mãos de Lara, que
a olha surpresa, e recebe um sinal para nada falar, apenas ler.
O carro alugado não demora a parar em frente do prédio. Os quatro entram no veículo prata. Ao
pagar o motorista, Lara, discretamente, abre o papel e lê o bilhete dado por Jennifer.
"Ele não é Todd Kripper"
Lara gela ao entender a mensagem e sabe que tinha colocado todos em perigo. Teria que ficar
esperta em tudo que ocorreria dali para frente.
Ela age rápido e pede um momento para o grupo. Sai do carro e conversa com o manobrista que
está perto do carro e com o motorista. Volta para o veículo sem dizer uma palavra, liga o carro e
parte para a casa de Jennifer, onde daria instruções para que ela ficasse segura.
Todd retira o celular do bolso e manda uma mensagem rápida. Seu semblante é de preocupação e
Jennifer não tira os olhos do impostor. Ela está no banco de trás, com Victor e Fábio, que
conversam sem parar. Mas Jennifer está atenta, e olha pelo retrovisor a feição do falso arquiteto.
Ao virar uma esquina, Lara se depara com um furgão que sai rapidamente de uma garagem e
fecha a passagem. Lara mete a mão na buzina, mas percebe tarde demais o furgão abrir e três
homens armados pular de dentro dele.
Jennifer grita.
Victor se segura onde consegue e xinga o máximo que pode.
Lara, astutamente, dá a ré e pisa fundo no acelerador. Mas em vão. Um carro todo escuro vira a
esquina e acerta em cheio a traseira do veículo de Lara, o que faz os integrantes do carro
chacoalhar dentro. Há braços e pernas machucados.
Entre um gemido e outro, Lara tenta engatar a primeira marcha novamente e desviar pela calçada.
O caos na rua era geral, pessoas gritam e correm de vim lado a outro ao ver homens armados indo
na direção do carro alugado.
Antes que Lara pudesse tentar a manobra, Todd toma a frente e acerta um soco no rosto da
motorista.
Fábio arregala os olhos e, instintivamente, pula em cima de Todd. Fábio começa uma briga
naquele pequeno espaço.
Victor continua a xingar, abaixado, e tenta abrir a porta.
Ao conseguir, coloca metade do corpo para fora, na intenção de fugir e pedir ajuda, mas um dos
homens chuta a porta, o que faz com que ela voltasse no corpo de Victor, machucando-o ainda
mais. Jennifer abre seu lado e corre. E perseguida por outro homem armado enquanto as pessoas
nas ruas buscam abrigo e gritam por ajuda.
Todd acerta uma cotovelada no médico e quebra os óculos de Fábio. O falso arquiteto consegue
tempo suficiente para sair do carro, retirar uma arma da cintura, mirar e dar um tiro certeiro na
empresária.
Ela cai na mesma hora e dá o ultimo suspiro.
- Eleitos o caramba. Não vai me dar trabalho gracinha. — sussurra o impostor, recém descoberto.
Os gritos e o pânico aumentam. Já é possível escutar sirenes ao longe. Todd volta para o carro e
procura o baú na bolsa de Lara, que está desacordada, enquanto os homens retiram Victor, ainda
meio tonto, por um lado do carro, e Fábio pelo outro. Fábio ainda gemia de dor e não tirava a mão
do nariz, que sangrava sem parar.
Todd passa o baú para o outro carro e volta para tentar achar o papiro, que havia ficado com
Jennifer. Não estava em nenhum lugar. Ele volta ao veículo alugado e se irrita enquanto esvazia a
bolsa de Lara e joga tudo para o lado.
- Psiu, não faça bagunça no que não é seu, idiota. — Lara apenas fingia estar desacordada.
Chamou a atenção de Todd e, com um rápido giro, acerta um chute no rosto daquele que a
enganara. Todd despenca para trás e dá chances de Lara abrir a porta rapidamente, e com a arma
na mão, atirar no homem que capturava Fábio.
Lara nunca havia matado ninguém em sua vida, e imaginava que uma morte em sua consciência
pesaria demais, mas a situação se fazia necessária, e aquele pensamento não parece importar
naquele momento.
— Ahhh, Hulk esmaga homenzinhos. - Victor se empolga com a bravura da amiga e empurra o
homem que o mantinha preso. Os dois rolam pela rua. O impacto foi pior para o homem armado,
que respirava com dificuldades.
Victor levanta e corre em direção a Lara, mas não percebe o carro que veio rápido na direção dele.
Lara tenta gritar e avisar o amigo, mas é tarde demais. O carro acelera e acerta Victor em cheio.
Dois homens saem do banco traseiro do carro amassado e apontam a arma para Lara. Em
vantagem, eles ditam ordens de rendição. A historiadora larga a arma e levanta as mãos para o
alto.
Os homens agem rápido, pegam Lara e Fábio e enfiam dentro do carro. Lara se debate, mas a
única intenção era saber como estava Victor, ainda caído no chão.
— Vamos logo. A polícia esta chegando, não podemos perder tempo. - o homem na escuridão,
dentro do carro, sentado do lado do motorista, dava as ordens sem mover a cabeça. — Scott não
conseguiu o pedaço do manuscrito, mas vai cuidar das autoridades.
— Ei, me larga, quem é você? Me larga. — grita Lara. Um dos capangas pega o corpo de Victor
no chão e coloca dentro do carro, o que deixa o veículo ainda mais apertado.
— Vamos embora, rápido. - o homem na frente dá a ordem.
O carro sai velozmente, segundos antes da polícia parar no local. O homem chamado Scott se
aproxima dos policiais para contar uma história tão fictícia quanto sua identidade de Todd Kripper.

— Corre, corre.
— Se esconde. Ali, sobe ali.
— Por aqui, vem.
Em meio à chuva de balas, os aventureiros comandados por Nicholas percebem que caíram numa
armadilha. Desesperados, cada um dava uma ordem diferente. Ninguém seguia ninguém nem
ouvia nada por causa dos tiros.
Nicholas desliza para debaixo de uma escada e vê do outro lado do prédio Danielle em posição
fetal. Ela treme e balança escondida num quartinho pequeno. Naquele momento, ela se deu conta
no que se metera.
Denis não está lá. Um frio na espinha toma conta de Nicholas quando ele vê o sangue na parede e
o rastro vermelho escada acima. Ele segue com o olhar, e percebe tarde demais quando um
homem encapuzado desce por outro canto e aponta uma arma para ele.
— Morra, eleito — grita o homem.
Antes que pudesse apertar o gatilho, uma bala estoura a cabeça do rapaz.
Era Martins, que aparece armado e ensangüentado pelo mesmo caminho que veio aquele atirador.
— Cuidado, eleito. — diz ele.
Martins ouve um grito e apenas vê um outro atirador despencar do segundo andar. A queda mata o
homem.
Os tiros cessam.
Faltava mais um, mas onde ele estava? E onde estava Denis?
A pergunta leva ao quarto e penúltimo andar, onde Denis sobe as escadas com dificuldade,
assustado e sem fôlego. O arqueólogo é surpreendido pelo último atirador mascarado, que tomou
um atalho e chegou ao local antes dele.
Denis vira e começa a descer rapidamente, fugindo o algoz. Mas o homem pula em suas costas e
os dois rolam alguns degraus.
O atirador troca alguns socos com Denis, que tenta se defender como pode. Quando tudo parecia
perdido, o homem para com a agressão e relaxa o corpo em cima de Denis. Martins havia atirado
nele e salvado a vida do amigo.
— Martins, nunca fiquei tão feliz em te ver cara. — sorri Denis.
— O que está acontecendo aqui afinal, hein? — indaga, em voz alta, o policial.
— Hum... Desisto. O que está acontecendo aqui?
— Isso não é hora para brincadeira — Martins passa por cima de Denis e desce a escada. O
arqueólogo se recompõe e corre atrás do agente.
Mas eles não esperavam uma coisa. O homem caído não estava morto. Ele levanta, com
dificuldades, e mira na cabeça de Denis.
O tiro faz Denis parar. Martins se desespera. Ele havia baixado a guarda e aquilo poderia ter
custado a vida do amigo.
Mas é o atirador que cai, agora sem vida. Atrás dele, uma mulher aponta uma arma, que acabara
de ser usada. Mais um segundo, e Denis seria a vítima fatal ali.
A mulher era Thai, uma integrante da irmandade. Ela ignora os dois, boquiabertos na frente dela, e
se agacha para checar a situação do atirador. Ele estava realmente morto.
Denis gela ao perceber a tatuagem marcada na nuca de Thai. De cabelos curtos e escuros, o
hieróglifo, todo preto, ficava em evidência na pele da moça. Aquela tatuagem parecia brilhar sob o
olhar temeroso do arqueólogo. Mesmo tomado por um sentimento de gratidão, seu instinto falou
mais forte e considerou a garota ao seu alcance como uma ameaça.
Subitamente, Denis corre o mais rápido que pode e se joga em cima dela, pegando-a de surpresa.
Os dois rolam escada abaixo e caem lado a lado, enquanto Denis geme de dor no chão, Thai
levanta rapidamente, manca e corre para se salvar. Martins desce correndo as escadas e consegue
alcançá-la.
O policial intercepta a fuga.
— Calma, calma. Aonde você vai? — diz ele, segurando a moça.
— Me larga. Consegui sobreviver à Irmandade, não vão ser vocês que irão me matar. Já salvei a
vida de vocês duas vezes hoje, e assim que vocês me agradecem? Sai fora.
Ela arranha a cara de Martins, consegue se soltar e fugir, mas ao abrir a porta, dá de cara com
Nicholas, que com um soco certeiro no nariz, faz a garota perder a consciência.
— S..Se..Senhor. Posso entrar? — diz a voz por trás de uma imensa porta de metal, de uma sala
escura e gigantesca. O jovem aprendiz da Irmandade ainda não tinha se acostumado com a
ostentação do grupo.
Tudo era grande, belo... caro.
Ele aprendia a gostar daquilo, mas ainda tinha medo daquele que foi chamar.
Designaram a missão, e o jovem achou que fosse um teste, uma brincadeira, até estar frente a
frente com a sala daquele que ele nem ousa pensar.
— Entra. Traz boas notícias? — diz, no escuro, o temido homem. Só o tom sombrio de voz dele
faz o jovem tremer novamente.
— Ah... É... Barsam disse que tem tudo sobre controle. Que Nicholas está mesmo vivo, mas não
por muito tempo. Ele e os outros não vão ser mais problemas. E ele exigiu uma audiência com o
Abaddon.
— Ah. Então Barsam acha que pode ver o líder máximo da Irmandade? — diz o homem na
escuridão, sem alterar o tom — Ótimo. Convoque o conselho e chame esse pedante para cá.
O jovem não espera duas vezes. Ele assente com a cabeça e sai o mais rápido possível da sala.
Mesmo com o arrepio na espinha, ele sente que teve o momento mais glorioso da curta trajetória
no grupo quando dialogou com o Abaddon.
Mesmo assim, aquele aprendiz espera que aquele momento não aconteça nunca mais.

Um sonoro sinal indica que era hora de abrir um galpão antigo, a algumas quadras do ocorrido. O
carro que seqüestrara Lara, Fábio e o moribundo Victor entra diretamente até o final do corredor
escuro e estaciona, enquanto o portão se fecha atrás dele.
— Droga, onde a gente está? Deus do céu, quem é você? — Lara não para de se debater e
perguntar um minuto sequer.
— Quer calar a boca? — continua o homem misterioso, no banco da frente, sem sequer olhar para
ela. — Você tem algo que eu quero. E vai me dar, se quiser salvar seus amigos. Victor não morreu
ainda, mas precisa de cuidados rápidos, pois a hemorragia é grave e pode matá-lo antes que você
perceba. Pergunte ao seu amigo médico.
Fábio, com a cabeça pendente para trás, estanca o sangue e só concorda com o que o homem
disse.
— Como sabe tanto sobre nós? — pergunta Lara.
— Todos nós da Irmandade sabemos sobre os envolvidos com as chaves e os baús. E vocês
andam dando um certo trabalho para a gente.
Lara gostou do que ouviu e sorri com o canto da boca. É bom saber que os esforços não são em
vão.
— Certo trabalho não significa nenhuma vitória, Lara.
O sorriso vai embora.
— Agora, porque você não facilita um pouco e me entrega o papiro?
— Porque não está comigo, oras.
Pela primeira vez, o homem vira, e está nervoso agora. A pouca luz no galpão não deixa Lara ver
direito o rosto daquele que os capturou, mas enxerga apenas sua silhueta.
— Olha aqui, Lara. Eu não to com paciência para piadinhas nem enigmas. Ou você me dá o
papiro, ou seu amigo morre, e logo depois vocês.
— Quem me garante que você não vai matar a gente mesmo assim?
Com um sinal feito com a cabeça, o homem misterioso avisa para um de seus capangas tirar do
carro o corpo inerte de Victor. Lara segura a ansiedade e espera para ver o que vai acontecer. Ela
apenas acompanha seu amigo, que é levado para longe.
— Realmente. Ninguém garante. - continua o homem. — Mas se você não confiar em mim, ele
morre. Se confiar, ele pode ser salvo. A escolha é sua.
— Lara, entrega o maldito pedaço. — diz Fábio, com certa dificuldade.
- Escute seu amigo, Lara. Não vai querer a morte de Victor em sua mente vai?
Lara está dividida. Se aquele papel cair nas mãos da Irmandade, sua missão estaria cada vez mais
distante. Mas precisa salvar Victor.
— Tá. Eu falo. Eu deixei no prédio de Jennifer, com o rapaz do estacionamento, seu nome é Peter.
Descobri que Todd não era Todd e quis deixar em um lugar seguro.
Ela percebe a silhueta do homem sorrir, feliz de ouvir aquilo.
— Você é esperta Lara. Seria um grande reforço para nós. E é melhor ficar do lado vencedor, não
esqueça disso.
O homem usa o telefone e dá ordens para que alguém fosse pegar o papiro do baú número cinco.
Ao desligar, fica em silêncio, com a cabeça baixa, por alguns minutos. Ele ignora todas as
perguntas de Lara. O telefone toca novamente e a notícia faz o homem respirar mais aliviado.
Depois de escutar tudo, ele desliga e volta a falar com a garota do carro.
— Você deu ordens para o rapaz só entregar o papiro para você? Realmente me surpreende, Lara.
Sabe que ele foi obediente e não quis dar nada. Infelizmente, a empresa daquele estacionamento
vai ter que contratar outra pessoa.
— Maldito, ele era inocente. — Lara se irrita com o que ouve e o ódio toma conta dela. Ela
consegue soltar o braço do homem que a segurava pelo lado direito e parte para cima daquele
enigmático líder. Ele não está desprevenido e acerta uma coronhada, com a pistola, no rosto de
Lara. A garota desaba no banco novamente.
O homem finalmente acende a luz do carro e revela a identidade.
— Esta doendo né? Isso é para você aprender a não ser heroína. Você é um nada, não esqueça
disso. Agora que já tenho o que eu quero, tá na hora de tirar pelo menos metade desse grupinho
chato do meu caminho. Sinto informar, mas eu menti. Victor vai morrer, lentamente, naquela sala
ali no fundo, mas vocês dois vão perder a vida mais rápido, se serve de consolo.
— Quem é você, maldito. E porque isso? — diz Lara, com muita dor.
— Porque a Irmandade vai dominar esse mundo com toda a ajuda de forças ocultas, e ninguém
pode nos impedir. Meu nome é James Johnson, dono da arma que vai tirar suas vidas. — diz, ao
apontar a pistola para Lara e Fábio.

Thai acorda um tempo depois, ainda desnorteada, amarrada em um quarto escuro, sentada frente a
Nicholas, Martins e Danielle. Denis está de costas, sentado, no canto oposto do quarto.
- Desculpa o soco, mas alguém precisava te parar, não foi por mal - diz Nicholas.
— E me amarrar faz parte da sua bondade? — ironiza ela.
— Só até termos a certeza que você não vai fugir de novo. — Martins toma a palavra.
— Fugir? Um de vocês me agride e quase me mata. O que esperava que eu fizesse? Levantasse e
agradecesse pela nova maneira de descer uma escada?
— Denis só fez isso porque reconheceu essa tatuagem que você tem na nuca.
— Ah. Isso. Todos da Irmandade tem uma. Éuma marca sagrada, se você não sabia.
— Ahaa. Então reconhece que é da Irmandade? — Denis empurra a cadeira, sai da reclusa e vêm
apontando, a passos largos, para Thai.
— Sim, eu era. Mas sai, não quero mais saber da Irmandade. Agora corro risco de morrer. Se
alguém entra na Irmandade, só sai morto.
— Eu não engulo essa história, mocinha. O que você faz aqui, hein - Denis continua acusando.
- Na verdade, vim ver se vocês não querem participar da Irmandade.
Sabe como é, né. Quem conseguir mais membros ganha um bônus de final de ano, e o plano de
saúde é excelente, viu - ironiza.
Denis quase pula no pescoço de Thai novamente, mas é impedido por Danielle, que o tira de perto
da menina.
— E porque você saiu da Irmandade? Enjoou? — brinca Martins.
— É... Tava entediada sabe. Sair por aí buscando um manuscrito sobrenatural não é tão legal
assim.
Martins fecha a cara com o comentário. Nicholas percebe que a garota é totalmente sarcástica e
resolve não enrolar nas perguntas.
— Então me fala. Porque sair, se sabe que pode morrer com isso?
— Odeio a Irmandade. No começo parecia uma ótima idéia mas percebi o quanto eles não estão
preocupados com o todo. Nós só servimos até um certo momento, depois somos descartados. E a
Irmandade é arbitrária, sabia? Muitos falham, e nada acontece. Em compensação, alguns, como
meu namorado, apenas cometem um pequeno deslize, e pagam com a vida.
— Que novidade — comenta Denis, mais calmo - Parece com alguns chefes com quem trabalhei.
— Então tudo isso é por causa do seu namorado? — pergunta Nicholas.
— Eles mataram meu namorado simplesmente porque ele abriu demais a boca. Pergunta pra sua
amiga Lara. Ele comentou sobre a Irmandade quando pegamos sua amiga em São Paulo, lembra?
E só por isso mataram meu namorado. Como se ninguém soubesse do grupo. Malditos.
— Você estava naquela van...
— Sim, estava. E foi seu amigo Gustavo que planejou aquilo. Ele é um dos líderes. A Irmandade
está cheio de líderes pelo mundo. Era só pra ser um susto, sinto muito por aquilo. Foi ele e a
Irmandade que pediram, e eu não entendo o porquê. Nunca sei os motivos desse pessoal. Odeio
todos eles.
Nicholas sabe que poder tirar proveito daquela raiva toda. Até ali, todos seus movimentos foram
desordenados, e ter alguém como Thai de seu lado aumentaria ainda mais suas forças contra
aquele grupo.
— Thai. Você os odeia tanto quanto nós. Que tal um acordo? Nós não deixaremos ninguém da
Irmandade encostar um dedo em você e você nos auxilia na busca pelos baús. Que tal?
Denis ameaça impedir o acordo, mas Danielle o segura e pede calma, movendo os lábios
silenciosamente e levantando as sobrancelhas.
— Eu adoraria apertar sua mão e dizer que concordo, mas estou um pouco amarrada aqui.
— Oh. Desculpe. Pronto, deixe-me tirar esse nó. Agora sim.
Thai estende a mão para Nicholas, que retribui.
— Boa escolha, Nick. Muito esperto. Melhor do que me jogar escada abaixo. — diz Thai, olhando
sob os ombros de Nicholas, direto para Denis, que se enfurece com o comentário.
— Como sabe meu nome? — indaga.
— Todos da Irmandade sabem cada detalhe sobre os portadores do baú e sobre os eleitos. — diz
Thai, esfregando os pulsos, marcados pela corda.
— O que são os eleitos afinal?
- A Irmandade acredita que qualquer pessoa que tem a posse dos baús ou das chaves possa ser o
hospedeiro ideal para a volta daquele que esperam há anos. E como se fossem escolhidos para
aquilo, por destino, sei lá. Essas pessoas são os chamados eleitos. Mas a Irmandade está dividida.
Tem gente que não crê nos eleitos e acha que alguém já foi escolhido desde o início.
Nicholas sente um frio na espinha ao ouvir tudo aquilo. A Irmandade era mais sinistra do que
imaginava. Thai continuou.
— Tirone não acreditava nos eleitos. Ironicamente, Tirone era considerado um eleito. E por isso
brigava com Barsam para subir no conceito da Alta Cúpula. Pelo menos é o que eles acreditavam.
Eu acho que nenhum dos dois seria o escolhido. Existe alguém. Uma pessoa que muita gente
conhece, mas pouca gente sabe que é da Irmandade. E é uma lenda para a maioria do grupo. Esse
sim é o homem que todo mundo deve temer.
— O presidente Zaed? — pergunta Nicholas.
— Olha só, hein... Vocês aprenderam direitinho. Mas como disse, não sei. Pode ser. Mas se for, a
gente tá ferrado.
Cada palavra deixava Nicholas mais perplexo.
— Você acha que apunhalou a Irmandade ao matar Tirone, né? Sim, eu sei que foram vocês.
Enfim, Nicholas, vocês não feriram a irmandade coisa nenhuma. Fizeram um favor à Alta Cúpula.
E mais... A irmandade tem um informante. Em cada lugar, eles têm um informante.
— Você está dizendo que...
— Sim. Alguém que você conhece não está do seu lado, por isso, toma cuidado. - Thai interrompe
sem deixar Nicholas terminar sua frase.
— Só o que me faltava — Nicholas desaba na cadeira onde Thai estava, com as mãos na cabeça.
— existe um traidor na Iniciativa Sete.

Nicholas anda de um lado a outro. Sua cabeça está a mil, não sabe se avisa Lara ou se pode
confiar nela. Ou até mesmo se está com algum dos traidores naquela sala. Ironicamente, aquela
ex-integrante da Irmandade é a pessoa que Nicholas mais confia naquele instante.
Denis sentou-se perto de Thai, que tomava água direto da garrafa.
— Thai. Sinto muito pelo lance da escada.
— Hum — diz Thai, secando a boca com a manga da camisa — Numa boa, sempre legal rolar
escada abaixo. A sensação é deliciosa. Se quiser, eu te empurro um dia pra você ver.
— É sério. Sinto muito mesmo. O que esperava que eu fizesse depois de ter sido vítima inúmeras
vezes de pessoas que usam essa tatuagem maligna.
— Pode ficar tranqüila. Ela não vai te fazer mal. Somente as pessoas que a usam que vão - diz,
sorrindo sarcasticamente.
— Droga, Thai. Precisamos fazer alguma coisa. Preciso avisar meu pessoal na América. Eles
correm perigo. — diz Nicholas, visivelmente alterado com a possibilidade de ter sido manipulado
diversas vezes.
— Nick, sinto muito, nesse jogo de gato e rato, vocês ficaram na frente grande parte do tempo,
mas se a Irmandade agiu certo em alguma parte dessa história e capturou algum de vocês, é
melhor esquecer deles. A irmandade é extremamente influente, e se quiser sumir com alguém do
mapa, ela consegue.
— Então está na hora de virar o jogo novamente e mostrar que a gente ainda ta na parada. — diz
Nicholas, decidido — Thai, você foi mandada naquela emboscada no prédio por Barsam, certo?
— Ela concorda com a cabeça.
— Então ta na hora de fazer uma ligação e dar um aviso para esse filho da mãe.
Thai entende o recado. Retira o celular do bolso e telefona para o mandante da arapuca.
Do outro lado da linha, Barsam atende.
- Alô? Até que enfim, Thai. Sabe quanto tempo eu to tentando falar com algum de vocês? O que
houve? Quero relatórios...
O único relatório que você vai ter... — Nicholas interrompe Barsam — É que seus dias estão
contados, e em breve, você vai morrer de uma forma bem dolorosa.
Barsam estremece. O plano tinha dado errado. Ele não espera mais nenhum diálogo, e desliga o
telefone, preocupado.
- Uau, Nick — diz Denis, estupefato — Nessa até eu me borrei. Ainda bem que eu to do seu lado
cara.
Nick sorri com o elogio do amigo, mas sabe que a situação se complica a cada segundo que passa.
- Olha Nick, admiro seu esforço e coragem. Mas tenho que repetir, se eles pegaram seus amigos,
essa hora eles já estão mortos, e não há nada que a gente possa fazer. Não vai haver provas.
- Deus. Não é possível, Thai. Ninguém tem tanto poder assim. — Nick se desespera, não sabe
mais o que fazer.
- Nick, muito me admira esse seu jeito cético de ser. Um jornalista deveria ser mais aberto. A
irmandade vem agindo em todos os cantos desde que o mundo é mundo. Muita gente já sumiu
misteriosamente. Muita coisa já aconteceu e foi encoberta por histórias mirabolantes. Se quiser
continuar encarando a seita, ta na hora de conhecê-la melhor.
Martins senta de frente na cadeira, abrindo as pernas e encostando os braços no encosto. Ele encara
Thai com um olhar gélido e diz.
- Então está mais do que na hora de você ser nossa professora.

O Começo do Fim
— Nicholas — diz Thai, ao tirar um papel amassado do bolso - Queria que lesse esses nomes.
Reconhece algum deles?
Nicholas pega o papel, abre e começa a ler. Segundos depois, fica branco como a folha em sua
frente.
— O que foi, Nick — pergunta Danielle.
— Maurício Galdino? O que ele faz nessa lista?
- Ótimo — diz Thai — então já temos por onde começar.
— Não, não — interrompe Nicholas — Você não respondeu. Porque esse nome aqui?
— Não parece óbvio, Nick? Por Deus. Galdino faz parte da Irmandade.
— Não, Thai, não é possível. Ele morreu naquele atentado ao "Foco". Muita gente morreu.
— Nicholas — interrompe Thai — Você viu o corpo dele? Viu alguma coisa que prove que ele
morreu? Pois eu vou te contar uma novidade. Ele é um dos que estava por trás daquele massacre.
Nicholas não podia acreditar. Tudo parecia cada vez mais complicado.
— Qual era a relação de vocês? — pergunta Thai.
— Ele era meu chefe. Falávamos muito de trabalho. Nos respeitávamos, apenas. Não éramos
íntimos. Peraí, e William Skivinatto? Também estava envolvido?
— Não. William foi vítima da Irmandade. Ele nada pôde fazer para impedir o massacre. Maurício
ameaçou matar toda a família de William caso ele atrapalhasse. Vocês eram amigos, não?
— Sim, éramos. William era um bom homem.
— Ele nunca deixou nada escapar pra você? Alguma informação importante que possamos usar
em nosso favor?
— Não... nada.
Mas como um raio, um pensamento atinge a cabeça de Nicholas e ele se recorda como se fosse
aquele momento. A chacina no Foco da Notícia havia acabado de acontecer. Martins estava
sentado na mesa de Nicholas e botava a secretária eletrônica para funcionar.

biiiiiiiiiiiiiiip
"Nick. Desculpe a voz embriagada, eu to péssimo, você sabe quem é. Só você me chama de Wiski
mesmo, não é? Olha. Sinto pelo que vai acontecer. Mas preciso te falar. Não confie em ninguém.
Vá até o fim com a reportagem. Acabe com esses malditos. Ah, e o principal, preste atenção...
quando o rei cai, o príncipe toma seu lugar, entendeu?

— Ele nunca citou sobre a Irmandade. Mas deu uma dica que pode ajudar. E só uma hipótese,
Thai, talvez não signifique nada, mas William nunca foi de enigmas. Talvez ele quisesse me avisar
sobre Maurício - diz Nicholas.
Nicholas explica toda a história, e o grupo ouve atentamente.
Thai é a primeira a falar.
— Existe uma chance. E se dermos sorte, vai ajudar muito a busca de vocês. Você disse que
Maurício sumiu depois do atentado. Bom, sei que a Irmandade está reunida aqui, na Europa.
Maurício tem uma casa em Portugal.
— O que estamos esperando? — pergunta Martins — Hora de viajar de novo.

Barsam pediu por aquele momento. Mas ali, parado, pensa. O que ele vai dizer ao Abaddon?
Plantado na porta gigantesca, por alguns minutos, Barsam pensa. Pensa se seria melhor mentir
para o Supremo líder da Irmandade ou falar a verdade e pedir mais uma chance. Oras, ele era o
escolhido, o Abaddon iria entendê-lo e apoiá-lo.
Barsam respira fundo e entra. Toma um susto ao perceber que o conselho estava lá, reunido na
mesa central.
Há anos aquilo não acontecia. Um misto de medo e excitação toma conta dele. Ele sabe que
aquela reunião só pode significa uma coisa: A nomeação dele para o conselho, ou até para ser o
hospedeiro daquele que viria dominar a Terra. - Olá senhores. Fico honrado de vê-los aqui. — diz
Barsam, ao se curvar.
Ninguém responde.
- Esperei por este momento há anos. Gostaria muito de conhecer melhor cada um de vocês, e
principalmente o Abaddon. Ele não veio?
Ninguém responde.
Barsam começa a ficar inquieto dentro daquela sala. As quatro pessoas que o encaram, sentados
do mesmo lado de uma mesa, mostram ser de poucos amigos. Rosto carregado, olhar profundo e
enigmático, postados ali, sem se mover, apenas observam. O senador sabe que está diante do
conselho, mas não reconhece os rostos.
Mal imagina estar em frente de Ciro Fukuyama, um senhor japonês baixo, de cabelos brancos e
bigode peculiar, de extrema importante no círculo da Irmandade; Gustavo Gradícola, ex-namorado
de Lara, que mesmo naquela sala fechada usava óculos escuros, acessório que não largou mais
desde o confronto com Nicholas naquele hotel; e Maurício Galdino, jornalista dado como morto
no famoso massacre do jornal "Foco da Notícia".
O outro homem, na ponta, bate uma bengala no chão, como se contasse os segundos. De
sobretudo, o homem continua de cabeça baixa, e apenas segura a bengala, prateada, com um
símbolo da Irmandade no cabo. O homem era o mais enigmático da sala. Como está de cabeça
baixa e chapéu, Barsam não consegue ver rosto dele. Apenas enxerga o cavanhaque, alisado pelo
homem enquanto continua com aquela batida de bengala que se torna, aos pouco, insuportável
para o político.
Barsam resolve acabar com a gentileza e partir para o ataque, afinal, ele era importante naquele
meio também.
— Tá certo. Ninguém quer falar, então exijo saber. O que significa isso? — disse, com forte
entonação e peito estufado.
— Você exige, Barsam — a voz é de arrepiar. Grossa e imponente. O homem de sobretudo
levanta a cabeça e olha nos olhos do senador, que fica abismado ao perceber quem é ele.
Antes que pudesse falar qualquer coisa, o homem continua.
— Esta é uma reunião com integrantes importantes da Irmandade. Aqui decidimos o que acontece
mundo afora. — explica ele — Se você está aqui, é porque merece. Ou não merece? Sinto que
você quer falar alguma coisa, Barsam.
— Você é o líder máximo da Irmandade? — diz o senador, sem certeza no que fala. Ele nunca iria
esperar que o Abaddon fosse Zaed Kamul. O integrante mais poderoso de todo o grupo, que
poucos têm a autorização de olhar ou falar diretamente.
— Isto é o que você queria me dizer? Melhor pensar nas palavras, e falar o que realmente importa.
— Eu... Eu... eu não sei sobre Nicholas. — Barsam hesita em continuar — É que... Ele ainda está
vivo.
O Abaddon não muda a feição. Continua a olhar para Barsam, mas antes que ele pudesse se
explicar, o Abaddon interrompe.
— Eu sabia que você não conseguiria. Barsam, por muito tempo, você mandou, desmandou e
humilhou pessoas. Esse tempo acabou. O conselho está aqui para julgá-lo.
— Me julgar? Mas... Tudo bem, eu sei que eu errei, mas quero uma nova chance, afinal, sou um
dos membros importantes, não sou? Olha, eu tenho quase certeza que...
— Quase? — diz o Abaddon - Eu não trabalho com quase. Eu trabalho com certezas. Vê esse
champanhe que estamos tomando? O preço disso daria para alimentar a África por anos. Isso é
certeza.
Maurício segura o riso, Gustavo meneia a cabeça e Ciro continua estático. O Abaddon pergunta.
— Rafael, você não ouviu o que eu disse? O seu tempo acabou. Me diga, alguma vez você já se
sentiu manipulado? Sabe o que isso significa? Pobre Rafael... Realmente achou que mandava em
algo? — continuou, com o mesmo tom sereno e sombrio de voz — Nunca lhe passou pela cabeça
que você não é especial. Que apenas fazia parte de um plano elaborado nessa sala, por nós e por
outros que realmente valem a pena? Pobre Rafael... Você não passou de uma marionete em nossas
mãos.
Barsam percebe o quanto estava em desvantagem, e que ninguém naquela sala o queria bem ou
estaria do seu lado. Acabara de descobrir da pior forma possível que não era nada ali, e a vida dele
corria risco a partir daquela descoberta.
Resta fazer uma única coisa. Algo que ele jamais havia feito na vida.
Implorar.
— Eu... Eu sinto muito por ser tão esnobe — Barsam gagueja - Pensei que pudesse ajudar. O que
eu sempre quis foi o bem da irmandade.
— Engraçado, cadê aquele tom prepotente, aquela banca toda? Sumiu de repente, não? É a
realidade batendo na sua cara, Rafael? - ironiza o Abaddon.
— Eu entendo o motivo de vocês. Só quero dizer que estou aqui para ajudar. No que for preciso.
— Barsam se humilha cada vez mais, ao temer pela própria vida.
— Você ajudou, Rafael. Tenha certeza disso. Afinal, você cumpriu bem esse papel. Hoje em dia, é
um homem importante, famoso, reconhecido, adorado. Mas infelizmente falhou nas outras
funções. E já que ama tanto a Irmandade, está na hora de se sacrificar por ela. Em nome da causa,
você morre, vira mártir, e a gente acaba com as pedras no caminho. Algo que você não fez.
— Morrer? Não... Calma aí. — Barsam treme com tudo aquilo. Onde havia se metido quando
aceitou ser um político em nome do grupo? Eles sempre o ajudaram e o formaram dentro do
senado, mas a que preço?
— Não implore pela vida, Rafael. Não ache que eu vou ter misericórdia. Eu já matei crianças mais
corajosas do que você. Seja homem e encare seu papel na história.
O Abaddon levanta, apoiado na bengala. Anda devagar até Rafael, que não consegue se mover.
— Ajoelhe. — manda o Abaddon.
Barsam obedece. De joelhos, ele chora.
— Por favor, não. — implora Rafael.
- É tão patético. Não sei como agüentei você por tanto tempo.
— Não, por favor, pelo amor de Deus...
— Suplicou ao ser errado. Barsam, Barsam, você nunca seria o escolhido. O único eleito com
chances na disputa era Tirone. Você é um nada, Barsam. Mas vou te contar uma novidade. O
conselho chegou a conclusão de quem é o eleito. Adivinha. Está olhando para ele. Adeus...
O Abaddon levanta a bengala e gira o cabo. Ela se transforma numa arma, com um lado
totalmente afiado como uma espada. Com um único movimento, ele corta a cabeça do senador.
O corpo de Barsam tomba, enquanto o Abaddon sorri discretamente. Ninguém na mesa se mexe.
Apenas esperam a reação do líder, que aproveita aquele momento.
O silêncio que sucede após a morte de Barsam dura alguns segundos, que parecem horas. Até
Ciro, outrora inerte, parecia atônito ao ver a satisfação nos olhos do Abaddon e no seu sorriso, de
canto de boca, enquanto limpa o sangue da bengala.
O homem se vira e dá a ordem tão esperada
- Vocês já sabem o que fazer a partir de agora, certo? E mandem alguém para tirar esse lixo da
sala.
Em um movimento sincronizado, os três levantam de seus lugares e partem da sala, para finalizar
o planejado.
Thai, Nicholas, Danielle, Denis e Martins estavam esmagados no pequeno carro que Denis alugou
assim que pousaram em Lisboa.
Nicholas dirigia e Thai estava ao seu lado, mas Martins não se sentia a vontade entre Denis e
Danielle no banco de trás.
— Genial, Denis. Não tinha carro menor pra você pegar, não?- reclama o emburrado Martins.
— Ei, dá próxima vez você vai lá, sargentão. Vocês queriam ir rápido, esse era o carro que estava
em mãos. Ou acha que eu gosto de ficar me roçando em você?
A discussão dura pouco. Felizmente, a casa não era longe do aeroporto. Nicholas para o carro há
alguns metros da residência. O suficiente para ver o que esperava por eles. Todos saem do carro e,
com um binóculo, olham, um por vez, aquela casa.
— Vê, Martins? — diz Nicholas — há dois homens no portão. Enxerga mais algum nas
proximidades?
— Ei — reclama Denis — porque pergunta pro Martins e não pra mim? Só porque ele é policial?
Isso faz dele um agente secreto? Ethan Hunt? James Bond?
— Cala a boca, Austin Powers. O negócio é serio — Martins corta o assunto.
— Pelo menos eu tenho o meu mojo.- sorri Denis, ao comentar baixo com Danielle.
— Ok — continua Martins — Pelo visto, são só dois e pronto.
— Tá longe de um pronto, Martins - Thai, como sempre, mostra a realidade ao grupo — Devem
ser os únicos. Mesmo assim, não conseguiremos passar com dois homens ali. Temos que fazer
algo. Tirá-los de lá.
Thai pensa por um momento e tem uma idéia.
Ela se aproxima de Danielle, segura a camiseta da jornalista e rasga um pedaço, o que deixa a
barriga sarada dela a mostra.
— Uhu. Tô gostando. — comenta Denis.
— Pronto, tá ótima. - diz Thai
— Ótima pra que, posso saber? — Danielle não parece muito satisfeita.
— Eu tenho um plano. Escuta. — Thai conta rapidamente.
O tempo é curto.
Os dois seguranças mal se mexem no portão da casa de Maurício, em Lisboa. Estão assim há
horas. Mas algo chama a atenção deles. Uma mulher, suada e cansada, sobe a rua, em direção dos
dois.
— Olá, desculpe o incômodo — era Danielle. O cabelo solto, a camisa molhada e o umbigo a
mostra chamaram a atenção dos homens. — Meu carro quebrou ali embaixo, e pelo visto, essa
casa é o mais perto do que posso chamar de ajuda. Por favor, eu não entendo nada de mecânica,
será que vocês conhecem alguém que possa ajudar?
— Eu vou. — diz um deles, no segundo que Danielle termina a frase. O mais alto vira para o
amigo e dá a ordem — Fica aqui que eu vou. E já volto.
— Não é melhor chamar o Filipe para cobrir você? — indaga o segurança que ficou próximo ao
portão.
— Relaxa, eu volto em alguns minutos.
O segurança mais alto acompanha Danielle e puxa papo, todo galanteador.
De longe, Thai se vangloria da primeira parte do plano.
— Viu só. Sabia que ia dar certo. Homem é tudo bobo mesmo, não pode ver uma mulher bonita
que esquece qualquer outra coisa.
Martins olha para Denis, na espera de um comentário sagaz.
— Ei, tá olhando o que? Não tem o que dizer, ela ta mais do que certa. Assino embaixo. —
concorda Denis.
— Bom, Martins — diz Thai — sua vez de agir.
Martins corre e desaparece da cena. Apenas Thai, Nicholas e Denis esperam, sem se mover.
Anos de treinamento fazem com que Martins se aproxime sorrateiramente do segurança que
sobrou no portão. Como um flash, o policial aplica um golpe no guardião da casa e faz com que
ele perca a consciência. Martins dá o sinal enquanto arrasta o segurança para o mato. O caminho
estava livre.
Os três correm até o portão, onde Martins já aguarda com a chave do segurança em mãos. Tudo
deu certo, era só abrir passagem.
— Ei, vocês. Parados.
Um novo segurança aparece armado, com os invasores na mira.
— Quem são vocês? O que querem aqui?
Thai olha no crachá do segurança, e pensa rápido.
— Filipe, não é? Será que pode abaixar a arma? Não reconhece o próprio patrão?
— Sr. Maurício? Qual deles? — diz, com dúvida.
Thai blefou, mas conseguiu o que queria. Filipe não conhecia realmente o dono da casa em que
trabalhava.
— Esse aqui — Thai aponta para Denis, que olha sem entender, mas estufa o peito e lança um
olhar bravo para Filipe.

— Sim, sou eu, como não me reconhece? Como aponta essa arma pra mim? E porque o portão
está abandonado?
Filipe abaixa a arma, sem saber o que dizer ao patrão. O posto não estava coberto e ele não sabia
explicar como.
Nicholas se apresenta.
— Olá Filipe, eu sou assessor do senhor Maurício e o táxi acabou de nos deixar aqui. Imagina
nossa surpresa, depois de horas de viagem, encontrar esse descaso na segurança.
— É, o gato não pode sair que os ratos fazem a festa é? Vou mandar todo mundo pra rua. —
gesticula Denis.
Thai pede baixinho para que ele encene menos.
— Desculpe, senhor. Eu vou abrir o portão, espere um pouco. Aqui, o controle. Ótimo, pronto,
está aberto. Sinto muito.
— Ah, só mais uma coisa — pergunta Martins — Fora você e os dois homens que deveriam estar
cuidando do portão, há mais algum segurança hoje?
— Não senhor, eu estava comendo, mas deveria haver dois na portaria. De qualquer forma, vou
verificar...
Assim que se vira, Martins acerta um soco na nuca de Filipe, que cai. Mais um fora de ação.
— Era o que eu queria saber — diz Martins, ao alisar a mão direita, usada para nocautear o
segurança. — Vocês podem entrar. Eu fico aqui fora. Se Danielle voltar antes, eu dou um jeito no
outro. Deixa comigo.
Denis, Nicholas e Thai entram na casa. O tempo continua escasso, e a busca tinha que ser breve.
Todos sabem o que procurar. Ao entrar na casa, cada um vai para um canto em busca de
respostas. O cuidado é grande para que tudo fique do mesmo jeito que encontraram. Eles tiram
uma coisa do lugar e logo voltam o objeto para o mesmo ponto. Maurício nunca poderia saber que
eles estiveram ali.
Thai sabe que o ex-chefe de Nicholas tem um pedaço do papiro com ele. E se estivesse naquela
casa, eles encontrariam.
Denis está na sala. Ele se pergunta quanto dinheiro a Irmandade possui para dar tamanho luxo a
Maurício. Tudo beira ao extravagante, desde a enorme televisão, o som gigantesco, os móveis
pomposos.
Thai aparece na sala com novidades. Ela chama Nicholas.
— Nick, olha isso. Lembra alguma coisa?
O panfleto era do Hotel Pedro IV.
— Quando o rei cai.., - lembra Nicholas.
— Pedro IV não era Pedro I? — pergunta Thai
— Pedro de Alcântara foi o primeiro imperador do Brasil, mas foi o vigésimo oitavo rei de
Portugal também. Governou por apenas sete dias, mas e daí, não importa. Acho que essa ligação
entre Portugal e Brasil foi o que William quis nos dizer. Estamos no caminho certo.
— Mas o que tem o príncipe a ver com isso?
— Ainda não sei, Thai. Mas onde achou isso, afinal?
— No quarto. A cama estava cheia de panfletos do hotel.
Thai pega o telefone e liga para o lugar.
— Alô? Hotel Pedro IV? Gostaria de confirmar se um hóspede está ai com vocês?
— Sim, qual é o nome? — diz o outro lado da linha
— Procure Maurício Galdino.
— Senhora, aqui não nos consta nenhum Maurício Galdino, apenas Maurício Torres.
— Isso mesmo... Torres. Obrigado, pode me transferir.
— Vou fazer imediatamente. O Hotel Pedro IV agradece.
Thai desliga o telefone antes da transferência e olha pra Nicholas, a espera de uma resposta.
— O sobrenome de William era Torres Skivinatto. Maurício usou um nome falso, e justo o de
Wiski. Maldito seja.
— Peraí, Nick — Thai entende tudo — Se Maurício está nesse hotel, pra que uma casa para ele,
cheio de segurança? A casa só pode ser uma pista falsa, e a gente caiu numa armadilha, Nick...
Denis, sem escutar a conversa e sem cerimônia nenhuma, Denis liga a TV numa sala adjacente.
Ele muda os canais. Esportes, Novela, Filme, Esportes, jornal, Seriado, Esportes, Jornal,
Entretenimento. De repente uma frase da apresentadora do telejornal lhe chama a atenção. Algo
que ele conseguiu entender do francês.
— Ela disse "Rafael Barsam foi encontrado morto" em francês? — Denis se pergunta.
Ele continua a ouvir a notícia. A apresentadora chama pela repórter, ao vivo. Denis percebe que
algo estava errado.
A arte no fundo do telejornal ilustra a notícia e confirma o temor. Era uma foto de Rafael Barsam.
— Ah... Pessoal, melhor correrem aqui, rápido. — grita, enquanto aumenta o volume do televisor,
no controle remoto.
Enquanto Thai e Nicholas correm para aquela sala, Denis se acomoda no sofá e assiste ao
noticiário, boquiaberto.
— Rafael Barsam era um notório político brasileiro, famoso por suas lutas contra a corrupção e
desigualdades sociais. Estava prestes a lançar a candidatura para a presidência do Brasil— dizia a
repórter, em primeiro plano, enquanto num telão aparecia o ministério francês.
— O que ela está dizendo, Denis? — Nicholas pergunta.
— Acho que nosso amigo senador morreu — responde.
— O que? - questiona Nicholas.
- ... Foi assassinado dentro da sala de um prédio.... — diz a repórter.
— Sim. Ele realmente morreu. Alguém matou ele. — Denis afirma o óbvio.
— Que? Quem? — continua Nicholas, confuso.
— ... Nesse momento, o presidente francês Zaed Kamul está reunido com membros da
organização, com embaixadores franceses e brasileiros e dará uma nova coletiva mais tarde. Duas
horas depois de terem encontrado o corpo de Rafael Barsam, o presidente falou para a população
mundial pela primeira vez.
A repórter sai de cena e um videoteipe de Zaed aparece na tela. O homem de sobretudo,
cavanhaque e bengala andava até o púlpito. Ele falou em francês, com uma voz grossa marcante.
Todos na sala entenderam graças à legenda.
— É com grande pesar que venho em público comunicar o assassinato deste grande homem.
Ganhador do Prêmio Nobel e político convidado de honra da ONU, além de futuro presidente do
Brasil, o senador Rafael Barsam sempre lutou pela verdade, pela justiça e pela paz e sua morte é
uma grande perda para o mundo. Ele era mais que um companheiro político para mim. Era um
amigo, um irmão, e farei de tudo para que os culpados sejam punidos. Coloquei todos os melhores
homens nessa batalha e ninguém vai descansar enquanto não conseguirmos pegar essas pessoas
maldosas, que tiraram a vida de um dos melhores e mais promissores políticos do planeta.
— Barsam sofria ameaças há muito tempo, mas não esmoreceu e nunca pensou em desistir. Ao
contrário, se dedicou ainda mais no que fazia. Isso lhe custou à vida, infelizmente. Por ter sido
ameaçado inúmeras vezes, Barsam tomou algumas precauções e, graças a isso, descobrimos quem
atirou nele. O estimado senador colocou câmeras em todos os lugares que estaria, e por isso,
pudemos ver exatamente quem foi o assassino. E nada mais, nada menos, do que o famoso
jornalista Nicholas Collaneri.
— O que? Eu? — Nicholas continua confuso com tudo aquilo.
A coletiva de Zaed desaparece da tela e dá lugar a outra imagem. A do assassinato de Rafael
Barsam.
As imagens não eram das melhores, mas mostravam claramente a sombra de um homem que
corta a cabeça do senado, ajoelhado.
Enquanto Barsam caía e o vulto do assassino se virava para sair pela porta, um close da câmera
revela a identidade dele. A televisão frisa a imagem e o rosto do homem é realmente de Nicholas.
— Que? Como isso é possível. Eu não estava lá. — diz Nicholas, assustado e ofegante.
— Eles podem fazer isso. A Irmandade tem contatos em todos os lugares, inclusive na polícia.
Seria fácil forjar qualquer imagem, como essa. Eles só precisariam de qualquer outro vídeo de
Nicholas. É uma montagem, com certeza, mas será muito difícil de provar.
Zaed volta a aparecer na tela e continua falando. Nicholas nem ouve mais, apenas anda de um
lado para o outro, nervoso.
— Ainda não sabemos qual foi a motivação de Nicholas Collaneri. Descobrimos uma mensagem
dele no celular de Barsam.
A mensagem aparece. — "...seus dias estão contados, e em breve, você vai morrer de uma forma
bem dolorosa.". Era a ameaça que havia feito antes.
- Também que foi ele que matou alguns policiais brasileiros e André Tirone, um extraordinário
coronel que sempre esteve ao lado de Barsam. Nicholas trabalhava num jornal chamado "O Foco
da Notícia", que sofreu um atentado terrorista. Tudo leva a crer que ele está envolvido nisso
também. O jornalista está foragido e é extremamente perigoso. Contamos com a ajuda de todas as
pessoas para conseguirmos prender este assassino. Ele não está sozinho, e todos que estiverem
com ele serão considerados cúmplices de seus crimes... Todos ficam perplexos com cada palavra
pronunciada.
— Ou seja, nós somos cúmplices nisso? — constata Denis.
- ... A polícia está autorizada a fazer de tudo para impedir mais crimes. Com certeza, pegaremos
Nicholas e quem mais estiver com ele o mais rápido possível. Sei que muitos de vocês têm
perguntas a serem feitas, e peço para que as guarde até mais tarde. Preciso me reunir com o
conselho e definir os próximos passos a serem tomados. Estou em luto, e sei que a população
mundial, que sempre foi a favor de Barsam e suas idéias, também guardará esse dia. O dia em que
um homem bom foi assassinado, e o dia em que começaremos a caçada contra os que vão contra
nossos ideais de paz. Nicholas será o primeiro, e em breve, todos poderão viver tranqüilamente,
sem medo ou ânsias.
Os aplausos são ensurdecedores, mas Zaed não agradece, apenas abaixa a cabeça e sai de cena.
Denis desliga a Televisão, joga o controle de lado e olha para Nicholas, sem dizer nada.
Nicholas, espantado e sem ação, demora até para piscar novamente. Ao cair em si, não consegue
acreditar em que ponto chegou. Era um criminoso procurado agora. O que faria a partir daquele
momento? Se já estava complicado encontrar os pedaços dos manuscritos sem causar alardes, o
que será depois de ter o rosto estampado em toda parte?
E aquela casa? Deveria ter câmeras também? Será que sabiam que ele estava lá? Como Thai
falou, aquilo era uma armadilha. Nicholas não sabia mais o que fazer. Ele coloca as mãos no rosto,
esfrega, se abaixa e diz, desiludido e desesperado.
- Agora ferrou tudo.

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