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RESENHAS  1

Schneider e antropologia: o estudo culturais. Desse ponto de vista, a compreensão que


do parentesco revisitado tem dos sistemas simbólicos é a de um conjunto de
átomos de consciência socialmente compartilhados
SCHNEIDER, David Murray. Parentesco america- por meio de entidades culturalmente definidas e
no: uma exposição cultural. Petrópolis, Vozes, 2016. distinguidas, as unidades culturais.
152 pp. Adotando a linguagem como a principal forma
Breno Alencar de representar essas unidades, Schneider analisa a
“natureza do parentesco” estabelecendo a aplicação
Ainda que desfrute de enorme reconhecimento dos significados das palavras a partir de sua origem,
entre seus pares lusófonos, a primeira obra do an- das leis que governam sua mudança e do modo com
tropólogo norte-americano David Schneider, Ame- que elas se relacionam nos contextos de interação e
rican kinship: a cultural account, chega ao público sociabilidade. Ao fazer isso, ele leva a termo o que
brasileiro com cerca de meio século de atraso. Este Sahlins (2003) chama de “etimologia do povo”, isto
hiato, porém, não afasta a originalidade e a influên- é, a representação que as palavras exercem como
cia que este texto passou a exercer sobre a antropo- constructos culturais baseados na lógica informal
logia do parentesco desde sua primeira edição em da vida real – conforme esta é interpretada por um
1968, como cuidadosamente demonstrou Igor José norte-americano. Isso favorece sua definição de pa-
Machado em trabalho recente (Machado, 2013). rente como “uma pessoa relacionada por sangue ou
Com sete capítulos, o livro é dividido em duas por casamento” (p. 49), como no capítulo 2, em
partes, nas quais o autor valeu-se de sua experiên- que a “forma pura” dos constructos considerados
cia como um “nativo” norte-americano e de dados naturais resultam do significado que os termos de
obtidos em pesquisa realizada em Harvard no co- parentesco norte-americano assumem como exer-
meço de 1950, seguida de um projeto, dessa vez cício de simbolização de duas ordens culturais: a
conduzido em Chicago entre 1955 e 1965, com o ordem da natureza, em que pessoas estão relaciona-
intuito de abordar as unidades e as regras que com- das pelo sangue, e a ordem da lei, em que a relação
põem o que ele chama de “cultura do parentesco se dá pelo casamento (ou aliança), que neste caso
americano”1 (p. 18). A primeira parte é dedicada pode se opor ao primeiro por sua natureza menos
a identificar os símbolos que definem uma pessoa restritiva (isto é, biogenética), impondo-lhe o sen-
como parente nessa cultura, isto é, por um lado, tido de parentesco “por afinidade”. Essa distinção
a carne e o sangue, no que se refere ao significado é acompanhada ainda pela diferenciação entre ter-
atribuído à filiação e à descendência, por outro, a mos básicos (pai, mãe, irmão etc.) e derivados –
natureza espiritual e carnal das alianças e, por fim, composto ou não por um modificador (filho ado-
o coito, que articula esses dois domínios. tivo, primo de segundo grau, sogro etc.) – e pelas
Apesar da tentativa de se afastar da influên- noções de pertencimento (“marido/ex-marido”) e
cia funcionalista predominante em sua época, a distância (“primo de primeiro grau”, “tio-avô”).
interpretação baseada na divisão fundamental do A premissa fundamental desse sistema é crer
universo em duas partes – a da natureza, que é que o sangue seja a substância por meio da qual um
“dada”, e a da lei ou cultura, que se opõe àquela indivíduo compartilha do material biogenético de
por ser criada, inventada e imposta – permite notar seus genitores e calcula com precisão a distância, em
a presença das contribuições intelectuais de Talcott termos qualitativos e hereditários, da relação entre
Parsons, Clyde Kluckhohn e Alfred Kroeber. Sua duas pessoas. Schneider é levado por essa evidência a
aproximação com a antropologia interpretativa de argumentar que o sangue cria uma relação de identi-
Geertz (2008) – em especial o capítulo “A religião dade, pois os norte-americanos supõem que pessoas
como sistema cultural”, de onde extraí sua noção ligadas pelo sangue se “parecem” com seus pais ou
de “simbólico” –, porém, leva Schneider a consi- “puxam” algum traço dos avós, demonstrando a exis-
derar que fatos da natureza são transformados, por tência de uma identidade biológica comum. Por sua
meio da atribuição de significados, em constructos vez, o casamento, que não desfruta do sangue como
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substância material, é uma escolha do indivíduo, um radoura”, cujo caráter é altamente pessoal e cercado
tipo de ligação baseada em um padrão de compor- de considerações sentimentais e morais.
tamento e em um código de conduta que Schneider A essa diferença se soma, em um segundo nível,
sugere estar na ordem da lei, isto é, de regras, costu- os acréscimos ou incrementos que variáveis biológi-
mes e tradições que orientam a conduta dos indi- cas, como a idade e o sexo, desempenham sobre as
víduos. Esse mesmo argumento, porém, é utilizado funções dos membros na família. Neste nível, a iden-
para demonstrar que o parentesco norte-americano tidade de um indivíduo resulta de um constructo
não se restringe exclusivamente aos descendentes e que articula vários domínios da cultura norte-ame-
afins, porque amigos e até mesmo os animais (como ricana, demonstrando que a escolha de um parente é
o cachorro, a quem o autor recorre para dar esse feita por uma pessoa que opera para incluir e excluir
exemplo), em vista de sua escolha e performance, certos indivíduos de suas relações de parentesco.
também reproduzem os padrões de relações que ca- Segundo Schneider, esses constructos resultam da
racterizam o parentesco, como a lealdade, o amor e centralidade que o simbolismo da relação sexual e
a solidariedade. do amor ocupam na família, pois além de definirem,
Sobre a família, Schneider argumenta no capí- em termos abstratos, o que um parente é, revelam
tulo 3 que se trata de uma unidade que representa o conjunto de padrões normativos que orientam
o modo como o parentesco deve ser conduzido e um indivíduo real a agir com base nessas abstrações.
cujos membros são definidos em termos da relação Isso significa que tanto o sangue como o casamento
sexual e do tipo de ligação que mantêm entre si. informam aos norte-americanos quem são seus pa-
Seu átomo é constituído pela mulher, marido e fi- rentes, mas a decisão sobre quem é ou não um pa-
lhos, e todo evento que promova uma ruptura des- rente é tomada com base em critérios que, de modo
se modelo (infertilidade, morte, divórcio ou casa- algum, são puramente questões de parentesco. As
mento) compromete as relações naturais entre seus distâncias física, socioemocional e genealógica têm
membros que lhes permitem “viver juntos”, seja um papel decisivo nesse sentido, pois o valor que o
pela coabitação, como eufemismo para a relação se- parente possui como pessoa é resultado do tipo de
xual, seja pelo convívio, como domínio em que os relacionamento implicado nisso. Schneider aponta
parentes fazem da moradia um “lar”. alguns exemplos, como o “parente famoso”, persona-
Mas família e parentesco não se confundem, gem a quem se recorre nas genealogias para ampliar
razão pela qual na segunda parte do livro Schnei- a importância da linhagem em comparação com as
der aponta os vários componentes conceituais e demais ou traçar relações com o Ego produzindo no-
simbólicos que os distinguem em dois níveis. No toriedade social; o formato de árvore de Natal ad-
primeiro estão o simbolismo do sexo, que, segundo quirido pelas genealogias – no topo está o ancestral
o autor, se baseia nos fatos da natureza e define a fundador e tanto o “tronco” como os “galhos” são
conduta apropriada ou legítima em uma determi- “adornados” por parentes com quem o Ego mantém
nada relação, e o simbolismo do amor, baseado no uma relação consanguínea ou guarda memória; as
relacionamento entre pessoas e que é o símbolo cul- categorias utilizadas para descrever a área indetermi-
tural desse sistema. Em tal nível, a precedência do nada e esmaecida que contém os parentes distantes,
sangue como a substância material torna as relações como “parentes de fralda de camisa”, “parentes de
de filiação e descendência objetivas, permanentes e beijo” e “parentes de velórios-e-casamentos”; e os
involuntárias, produzindo o que o autor chama de mortos, que mesmo ausentes ocupam uma posição
“amor cognático”, enquanto as relações de afinida- ambígua e são lembrados por terem desempenhado
de são subjetivas, perenes e dependem da vontade uma relação significativa em vida.
dos indivíduos, o que se reflete na definição que os No último capítulo do livro, Schneider se
norte-americanos dão ao “amor conjugal”. O amor, dedica a descrever a regra que orienta a aplicação
em qualquer caso, é o ponto de convergência nessa dos termos de parentesco a determinadas pessoas
distinção; ao lado da amizade, desfruta do que Sch- (quem chama “quem” “do quê”?), sugerindo que
neider considera ser uma “solidariedade difusa du- isso se deve ao fato de que elas atuam voluntaria-
RESENHAS  3

mente como parente e mantêm relações de paren- Coincidentemente, traduzida da edição de


tesco por consentimento mútuo. Tendo como base 1980, contexto no qual o autor desfrutava de gran-
a inquietação provocada pela existência de expres- de notoriedade, mas também de severas críticas
sões que servem tanto para representar ligações por seu “radicalismo”, a obra é concluída com um
baseadas em termos formais (pai, senhor, doutor), capitulo em forma de posfácio, no qual o autor
como para justificar a existência de vínculos basea- apresenta, “doze anos depois”, revisões e correções
dos em termos informais ou derivados (“vovozinha” que foram realizadas em trabalhos posteriores à
para a avó de uma amiga, “prima” para a esposa de primeira versão. Entre elas está a afirmação de que
um primo), o autor argumenta que se trata de usos o parentesco não passa de um artefato usado para
simétricos ou assimétricos que servem de guias ou analisar uma teoria falsa; sua crítica ao uso indiscri-
como demarcadores de equivalência e diferença de minado de seus resultados e conceitos em pesquisas
status para um uso apropriado em relação a idade, sobre outras localidades; o reconhecimento de que
o sexo, a posição de classe etc. do interlocutor. Des- os modelos que orientaram sua interpretação dos
se modo, o parentesco norte-americano revela que dados sobre o parentesco eram tratados com base
além dos termos de parentesco e dos tipos ou cate- em valores da classe média urbana e branca; e, por
gorias de parentes, há ainda a presença de volun- fim, o estado de sua teoria sobre a relação entre cul-
tarismo e escolhas de toda ordem nas relações que tura e ação social.
definem uma pessoa como parente.
Em síntese, o desafio de Schneider foi resol-
ver o problema da variação das terminologias no Notas
sistema de parentesco de sociedades complexas,
como a norte-americana. Para isso Schneider ten- 1 Ao longo da obra, o tradutor preservou o termo ameri-
tou demonstrar que o melhor método de resolu- can usado por Schneider na obra original para se referir
ção é interpretar a linguagem que os informantes ao gentílico dos Estados Unidos. Porém, em virtude da
usam para distinguir o parente como uma pessoa, inevitável confusão que a generalização de sua tradução
pudesse causar para os leitores do restante do continen-
procurando identificar a existência de um núcleo
te americano, nesta resenha resolvemos adotar o termo
firme e fixo em torno do qual a diferenciação de “norte-americano” para se referir aos interlocutores
papeis sexuais do sistema de atributos sexuais e a com os quais o autor desenvolveu seu estudo.
diferenciação de classes do sistema de estratificação
definem a pessoa como um parente.
Como modelo de análise, o emprego dessa me-
Bibliografia
todologia radicalizou a interpretação das relações
de parentesco, até então dominadas pelas teorias da
CARSTEN, J. (2000), Cultures of relatedness: new
descendência e da aliança, o que leva o Parentesco
approaches to the study of kinship. Cambridge,
americano a ser reconhecido como um divisor de
Cambridge University Press.
águas para dois movimentos. O primeiro se deve a
_______. (2004), After kinship. Cambridge, Cam-
Marilyn Strather (1988), responsável por inaugurar
bridge University Press.
a crítica do parentesco como categoria ontológi-
_______ & HUGH-JONES, S. (orgs.), About
ca do pensamento ocidental, o que favoreceu sua
the house: Levi-Strauss and beyond. Cambrid-
“desbiologização” e contribuiu para os estudos de
ge, Cambridge University Press, 1995, pp.
gênero e para o fortalecimento do movimento fe-
1-46.
minista. Janet Carsten, por sua vez, espelhou-se nas
GEERTZ, C. (2008), A interpretação das culturas.
contribuições de Schneider para desenvolver seus
Rio de Janeiro, LTC.
estudos sobre a “relacionalidade” e as sociedades de
MACHADO, Igor José. (2013), A antropologia
casa (Carsten, 2000, 2004; Carsten e Hugh-Jones,
de Schneider: pequena introdução. São Paulo,
1995), dando origem ao que se pode chamar hoje
EdUFScar.
de “novo parentesco”.
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SAHLINS, Marshall. (2003), Cultura e razão prá-


tica. Trad. Sérgio Tadeu de Niemayer. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar.
STRATHERN, Marilyn. (1988), The gender of the
gift: problems with women and problems with so-
ciety in Melanesia. Berkeley, University of Ca-
lifornia Press.

BRENO ALENCAR é professor de ciências


sociais do Instituto Federal do Pará e
membro do Grupo Interdisciplinar de
Pesquisa em Cultura, Educação e Política
(Cigep/IFPA). E-mail: bralencar@gmail.com.
DOI: 10.17666/339601/2018

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