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1 - Meu lugar de fala

A minha experiência em sala de aula com a dança começou num período em que eu
apenas reproduzia com as alunas o que eu tinha passado enquanto estudante. Não tenho
certeza de poder chamar meus primeiros anos como professora de “experiência”. De
acordo com o autor ​Jorge Larrosa Bondía (2002)​, há que se dar sentido ao que se é e ao
que acontece conosco. A possibilidade de expressar-se só é possível e completa quando
é vinda a partir da experiência. Larrosa segue explicando que a experiência é algo que
nos passa, que nos acontece. Não é meramente informação que simplesmente perpassa
sem tocar. E a meu ver, a reprodução é justamente essa informação que perpassa sem
tocar. Se eu não pensava a minha experiência, como provocar e levar aos alunos que
experimentassem ​a dança verdadeiramente? Para começar, eu não imaginava que fosse
trabalhar com dança e muito menos que seria professora.

Ao decidir meu curso universitário, não passou pela minha mente em momento algum a
possibilidade de lecionar. Eu queria escrever. Quanto menos contato com pessoas,
melhor. Eu sempre fui aluna de dança, mas a docência chegou em uma hora de
necessidade. Eu já cursava jornalismo e precisava trabalhar. Não conseguia estágio em
minha área, então, um belo dia, recebi a proposta de dar aula de ballet clássico em um
projeto social. As coisas aconteceram da seguinte forma: sempre que uma escola menor,
creche ou projeto necessitava de professores, ligavam para as escolas de mais renome e
pediam indicação. Foi assim, sem pensar muito, apoiada no balcão da escola de ballet
em que eu era aluna, que aceitei o convite por necessidade. Se minha professora
entendia que eu tinha condições de ensinar, ótimo! Apesar de não saber muito bem como
ser professora, comecei a dar aula. Eu fazia exatamente o que faziam comigo em sala de
aula durante meu período como aluna. A Alana professora de 2007 era meramente uma
cópia, estudada às vezes e inconsciente na maioria, dos professores que haviam passado
por ela. Eu reproduzia e não havia sentido em minha reprodução. Agia como se ​meu
emprego como professora fosse passageiro. Eu não queria aquilo para mim. Costumava
trabalhar por quantidade de passos e qualidade de execução sem considerar o vetor, a
matéria-prima: o corpo. Mas o que é o corpo?
Enquanto uma professora que reproduzia, a necessidade e a realidade de entender os
corpos que chegavam para a aula era nula. Só fui prestar atenção nas implicações de ter
corpos tão diferentes em sala quando comecei a trabalhar com mulheres mais velhas.
Não se pode dissociar corpo da mente e nem desconsiderar a história de cada um desses
que adentram o espaço do ensino dançado. Esse corpo que chega para movimentar-se é
o resultado do cruzamento de diversas informações, interagindo com tudo a sua volta e
sofrendo modificações a todo tempo. Em se tratando do meu próprio corpo, consigo
reconhecer que todo meu bloqueio, com minha própria forma quando eu dançava, me
acompanhava da vida, do dia a dia, de como eu me enxergava e de como os outros me
enxergavam. Padrões sempre existiram. Era quase como se houvesse um tipo certo de
beleza, uma inteligência ideal, um mover-se ideal. Infelizmente, percebo que esse quadro
não se modificou de maneira expressiva, apesar da abertura de mercado para corpos
como o meu. Não vou negar que é incrível encontrar produtos para o meu cabelo e calças
que eu consiga vestir. A mídia tem investido pesado, mas esse progresso não é obra de
pessoas cultas e sim de especialistas (Vargas Llosa, 2013, pg. 63). Agora é interessante
investir no “diferente”. Diferente do que? Desses moldes já citados. Um corpo branco,
magro, longilíneo, de cabelos lisos.

Djamila Ribeiro (2018) questiona a falta de negros na TV em um país de 52% de


população negra. Porque não investir em uma TV menos eurocêntrica? E utilizando esse
mesmo raciocínio, o Brasil com uma população negra enorme não cria meias e sapatilhas
de vários tons para suas bailarinas. Ninguém pensou nessa possibilidade. A primeira vez
em que pus os olhos em uma meia e em uma sapatilha de ponta da cor da minha pele, foi
no ano de 2017. Confesso que fiquei emocionada segurando aquele objeto. Pena que
meus anos de ponta já se passaram. Para o ballet estou velha. Meia rosa, sapatilha rosa.
Foram essas as cores que me deram. Fico feliz de ter visto, finalmente, as cores que me
servem, que me encaixam.

Então, o corpo que começa a dançar ballet clássico era esse: mais alta do que o
necessário, eu ouvia: “você é muito grande para ser pateta desse jeito”, considerada
“exótica”, cada vez mais distante da beleza européia de repertório, de compreensão
voltada para área de humanas escutava berros que me diziam que ballet era matemática.
Como uma menina que não encontrava nas lojas um número de calça jeans que lhe
coubesse, poderia dançar ballet clássico? Quis fazer capoeira. Eram corpos maiores,
parecidos com o que eu tinha. Me disseram “não”. “Capoeira não é coisa de menina”,
explicaram. E o ballet era? Oras, se eu era pateta, exótica e não entendia nada de
matemática, qual era meu lugar na roda?

Escrevi um artigo que discute a criatividade e a técnica nas escolas de ballet e estudando
Klauss Viana e Isabel Marques, cheguei a conclusão de que o problema não são as
danças mais técnicas e consideradas complexas por um tribunal desconhecido da dança.
Esses atropelos são causados por professores inadvertidos que reforçam certos padrões
tóxicos da estética comum. Quando comecei meus estudos no jazz dance, os movimentos
de fato me tocavam. Com frequência, a professora nos trazia para perto e para dentro em
exercícios de improviso. Entendi que meu corpo podia dançar e que minha mente
produzia dança também. Aprendi a ensinar meus passos e a aprender passos de meus
pares. Os laços entre a turma se fortaleceram absurdamente. Éramos uma gangue. E o
mais revelador: fazíamos ballet juntas há anos, mas foi na sala de jazz que aprendemos a
reconhecer umas às outras e a nós mesmas de uma maneira mais real. Percebo hoje
também que a maneira igualitária e humana com que a professora conduzia a turma,
influenciou para que nos aproximássemos da alma dela e de todas que dividiam aquele
espaço. Meus problemas de autoimagem eram muito profundos ainda, mas o processo de
compreensão de mim, do meu espaço, começou quando me descobri na dança.

Um exemplo dessa mudança gradativa: quando eu fazia inglês, já ia com a roupa de


ballet. Afinal, uma aula era depois da outra. Toda vez que eu entrava na sala, três garotos
começavam a cochichar e a rir enquanto olhavam para mim. Um belo dia cheguei para
aula e a cena se repetiu no momento em que sentei. Eu, calmamente, fui à secretaria e
pedi a meu pai que me acompanhasse até a porta da sala. Queria que ele testemunhasse
tudo o que eu faria para não dar tempo da história chegar diferente aos ouvidos tanto dele
quanto da minha mãe. Parei no meio da sala, corpo ereto de menina exótica, única negra
da turma, a que não tinha viajado para a Disney, que não era rica, mas, tinha as maiores
notas. Coloquei as mãos na cintura, pernas em segunda posição paralela, queixo erguido.
Eu ia brigar. Foco acende: “Agora vocês vão falar na minha frente e na frente de todo
mundo o que sempre falam de mim escondido! Podem começar! E depois que
compartilharem as ideias com a turma, vão me pedir desculpas.” Os olhos estavam
arregalados e os três meninos não completavam uma sentença. Pressionei. Abdômen
travado, costas abertas, equilíbrio. Eu poderia girar. “Peçam desculpas, agora!”. Poderia
saltar. “Desculpa, Alana.” Saí da sala, meu pai silencioso assentiu, caminhou comigo
orgulhoso até o bebedouro. Se despediu com um sorriso enquanto eu voltava para aula.
Sentei e assisti a aula até acabar. Afinal, coreografias e textos para mim, são muitas
vezes circulares. Terminam como começaram. Sentada eu iniciei e sentada finalizei. O
que mudou, foi o centro. Eu estava mudando. Reverence. Ao finalizar, o artista sempre
agradece.

2 - Empoderamento como conceito:

Eu li um livro chamado “O Poder”. É uma ficção da autora Naomi Alderman. Uma distopia
muito louca de como seria o mundo dominado por mulheres. Por mulheres de todos os
tipos: prudentes, bondosas, assassinas, corajosas, mães. E o mais interessante é que a
autora cria esse “poder” como raios elétricos que aparecem em determinadas mulheres.
Em princípio, o livro traz apenas um viés de ficção científica, já que no mundo criado pela
autora, pude lembrar de cenários dignos de um blockbuster da Marvel Studios. O que me
chamou atenção, foi que esse poder surgido em algumas, pode ser despertado nas
mulheres mais velhas que em tese não podiam manifestar tal evolução. Ou seja, as mais
jovens guiavam as mais velhas pelo caminho novo do “poder”. O poder consistia em dar
choques para se defender. Por conta de alguma mutação não explicada pelo livro, as
mulheres desenvolvem tramas elétricas nas costas e disparam correntes como as
enguias. Assim, os bebês começam a nascer com as tramas elétricas, enquantos as
outras compartilhavam entre si. Mesmo que esse livro seja uma ficção, trouxe à minha
memória certas palavras a respeito de um conceito muito importante: o empoderamento.

Entendi, lendo textos da pesquisadora Djamila Ribeiro (2​018), que o empoderamento não
pode ser visto apenas como uma transferência de poder de um indivíduo para outro. Vai
muito além disso. Ela escreve que “o ato de empoderar não é a causa de um indivíduo de
forma isolada, mas como ele promove o fortalecimento de outras mulheres com o objetivo
de alcançar uma sociedade mais justa para as mulheres” (RIBEIRO,2018). Essa mulher
que atinge uma consciência mais clara e justa sobre si, se empodera e aos outros,
colocando as mulheres como sujeitos ativos de mudança. A autora prossegue escrevendo
que “empoderamento diz respeito a mudanças sociais numa perspectiva antirracista,
antielitista e antissexista por meio das mudanças das instituições sociais e consciência
individuais”. É também imprescindível que sejam criados espaços onde uma mulher
possa empoderar outras mulheres. Já Srilatha Balitwala, define empoderamento como
controle sobre os bens materiais, recursos intelectuais e ideologia. Ou seja, para ela é
empoderado quem domina: “bens materiais, sobre os quais pode-se exercer o controle,
são físicos, humanos ou financeiros tais como a terra, a água, os bosques, os corpos das
pessoas, o trabalho, o dinheiro e o acesso a este. Os recursos intelectuais incluem os
conhecimentos, a informação e as ideias. O controle sobre a ideologia significa a
habilidade para gerar, propagar, sustentar e institucionalizar conjuntos específicos de
crenças e valores, atitudes e comportamentos, determinando virtualmente a forma como
as pessoas percebem e funcionam em um entorno socioeconômico e político dado”
(Balitwala, 1997, pg. 192, tradução nossa). Isto é, quem tem o poder são aqueles que
influenciam a distribuição de todos os itens citados acima e outorga aos que o detém o
poder de decisão. Em vários países mulheres tem pouco ou quase nada de “poder”.
Normalmente, quando a sociedade lhes permite, procuram apoderar-se do que for
possível, mesmo que isso ocorra por meio de posições tradicionais como mães, esposas
e trabalhadoras domésticas. Dos lugares que lhes são dados, mulheres seguem tentando
ampliar seus espaços.

Lendo o livro “Profissões para mulheres e outros artigos feministas”, de Virginia Woolf
(2018), me peguei pensando em uma passagem onde ela perguntava o que era uma
mulher. A autora, mesmo com todo conhecimento que possuía, assume que não faz ideia.
Ela termina dizendo que duvida que alguém possa descobrir o que é uma mulher a não
ser que a mesma se expresse em todas as artes e profissões abertas às capacidades
humanas.

E essa expressão a que se refere a autora, não pode ser considerada como um
“expressar” puro e simples. De acordo com o autor Jorge Larrosa Bondía (2002), há que
se dar sentido ao que se é e ao que acontece conosco. A possibilidade de expressar-se
só é possível e completa quando é vinda a partir da experiência. Larrosa segue
explicando que a experiência é algo que nos passa, que nos acontece. Não é meramente
informação, que simplesmente perpassa sem tocar. Sendo assim, dentro de um contexto
atual que discute e pensa mudanças para esse corpo da mulher, como trabalhar reais
experiências para o fortalecimento individual e coletivo? Esse fortalecimento pode ser
definido como um empoderamento?

Essa promoção da emancipação, deveria ocorrer em casa e também nos espaços de


conhecimento. Acredito que se os espaços (como escola e igrejas, por exemplo) , fossem
realmente de conhecimento e não só de informações, as pessoas seriam muito mais
saudáveis. Chimamanda Ngozi Adichie (2009, pg. 12) afirma: “ Eu tenho igualmente valor.
Não “se”. Não “enquanto”. Eu tenho igualmente valor. E ponto final”. A autora nesse livro,
escreve a uma amiga que acaba de dar a luz a uma menina e quer ensiná-la a ser
emancipada. Ou como muitos tem medo de verbalizar: feminista. Adichie sugere ações
simples e reflexivas como nunca dizer a menina que ela não pode fazer determinada
coisa por sua condição de menina. Tipo: “capoeira não é coisa de moça”. Ou até: “ corram
como homem!”, frase que eu, infelizmente cheguei a gritar por várias vezes e para várias
turmas de jazz juvenil ao dar exercícios de aquecimento. Quando em casa a autora
percebe, que pais e mães começam desde a mais tenra idade a ensinar como as meninas
devem ser e se comportar. Assim, chego a conclusão de que meninas tem mais regras e
menos espaço e tem de crescer com uma imagem distorcida de si mesmas. Seriam
corpos digamos assim, domados pelo espaço em que vivem e com a sociedade
patrulhando seu encarceramento. “Não pegue isso”, “Seja boazinha”, “ Meninas não
andam assim”. Adichie continua suas observações percebendo que mães de meninos
incentivam que seus filhos explorem mais sem os reprimir tanto quanto as mães de
meninas.

Assim, entendo que deveres atribuídos a mulheres por seu gênero, são construções
sociais super antigas, ranço histórico. Mas, como escreve Angela Davis (2016) “o
conhecimento torna uma criança inadequada para a escravidão”. Sendo assim, entendo
que o espaço familiar é fundamental para que crianças meninas tornem-se “inadequadas
para a angustiante existência” que um corpo feminino normalmente tem nesse conjunto
de seres que vivem de forma “organizada”.

E retornando à fala sobre a experiência como sendo algo que nos passa, nos toca e
transforma, podemos definir o empoderamento como uma experiência. É claro que
existem várias formas de empoderar uma pessoa, no caso deste trabalho, de empoderar
uma mulher. E a forma que será explorada neste texto é a dança. A retomada desse
corpo feminino, muitas vezes desconexo de si por pressões sociais e históricas, por meio
da dança. Ou seja, o empoderamento como experiência que vem mediante ao movimento
dançado.

3 - Espaços

Como apreendido de Djamila Ribeiro, há uma necessidade de espaços que possam ser
utilizados para que mulheres empoderem umas às outras. Enxergo hoje com clareza, que
a sala de aula de dança é um desses ambientes. Mas a sala sozinha faz parte de um
prédio apenas. Eu fazia e faço parte desse conjunto chamado “sala de aula”, pois sou a
mulher que deveria empoderar as outras mulheres presentes.

Conversando com uma professora sobre as alunas que eu iria entrevistar para este
trabalho, me dei conta da frustração que sentia por não ter obtido determinadas respostas
e reações. A resposta que eu queria tinha diretamente a ver com toda a mudança que o
espaço da dança, e a dança em si, teriam de ter ocorrido no comportamento de certos
indivíduos. A professora então chamou minha atenção para meu próprio processo de
“libertação de mim”, digamos assim. Não foi rápido. O tempo e o processo se entendem
muito bem. Nós que não acompanhamos.

Foi depois desse colóquio que compreendi que comecei a trabalhar em um espaço
totalmente libertário estando eu mesma prisioneira da forma, das opiniões e do senso
comum (que é algo potente, mas que acomoda e muitas vezes esconde). Meu processo
foi longo e enquanto eu pensava em promover autonomia nas alunas, fui também me
afirmando e entendendo a importância do espaço de ensino onde meu corpo também
aprendia sobre ele mesmo e sobre os corpos alheios.

“Peço-te o prazer legítimo e o movimento preciso. Tempo, tempo, tempo, tempo!”,


pede-se na Oração ao Tempo (CAETANO VELOSO, 1979). Com o tempo e com Klauss
Vianna , entendi que uma relação neurótica com a dança e com o espaço da sala de aula
é extremamente prejudicial. Buscando outros movimentos, fazendo coisas fora do comum
– na sala de aula ou na rua – a dança surge naturalmente, “quando o tempo for propício!”
Comecei a querer fugir do padrão de sala de aula que eu tinha vivenciado e que por
vezes repetia: A sala de aula que se tornava uma arena para competição de egos, onde
ninguém se interessava por ninguém.

Klauss Vianna (2008), com clareza e beleza, me fez abrir os olhos para o fato de que
dançar é estar inteiro. A sala de dança deve permitir e incentivar que emoções borbulhem.
Não se pode ignorar e nem reprimir o que há dentro de si. Justamente pelo que já escrevi.
O corpo não se dissocia de suas vivências e histórias para dançar. A sala de aula , e eu
como parte da mesma, devemos impedir que alunos estejam anestesiados. A sociedade ,
essa entidade disforme e amorfa da qual todos nós participamos, já faz isso. A
individualidade do aluno deve ser trabalhada, porque se as pessoas não se conhecem,
não há como participar do coletivo.

A partir do momento em que comecei a refletir sobre esse espaço, do qual faço parte
ativa e diretamente, as convicções sobre a sala de aula mudaram. Iniciei a caminhada em
outras escolas, o que me obrigou a prestar mais atenção e a me adequar ao público.
Convivi com profissionais que entendiam a dança como um caminho para acessar as
melhores coisas dentro do aluno e o guiavam não só para se colocar como indivíduo
naquele espaço protegido (porque a sala de dança é um lugar protegido), mas para que o
mesmo transbordasse a si mesmo no mundo lá fora. Tomei coragem para dividir com
meus pares o que me acontecia dentro de sala e também me despi do ego para perceber
que outros faziam melhor do que eu. Infelizmente já convivi com professores que não
dividem descobertas, pensamentos e passos por medo de serem copiados, plagiados.
Parece que vivemos alguns momentos de um eterno estado invisível de competição. E
isso é péssimo pois os alunos percebem e acabam absorvendo essa energia. Afinal, nós
professores muitas vezes, somos como pais: não ensinamos nossos alunos só para
dentro de sala. Tudo culmina no palco e o palco também é a vida. E da mesma forma que
somos construídas para interpretar nesse ato de determinada forma por meio de
experiências vividas e da influência da classe, religião e cultura, como explica Srilatha
Balitwala (1997), podemos também ser desconstruídas para construir um novo
espetáculo.
O sinal toca três vezes. A cortina se abre novamente. Tudo novo, denovo.

4 - Experiência

Em meio ao meu processo de reflexão da prática e ao meu descobrimento como mulher e


educadora, comecei a receber alunas para turmas recém abertas de jazz adulto. Eram
mulheres com aproximadamente 40 anos ou mais. Todas com filhos, corpos muito
diferentes dos que eu estava acostumada. Eu dava aula para adolescentes de periferia
em um projeto social. A mudança foi brusca. Numa escola de elite estava eu agora,
tentando ensinar dança para mulheres que poderiam ser minha mãe. Em diversos
momentos eu cheguei a me sentir intimidada por elas. O que eu poderia falar ou fazer
para ensinar a dança que eu sabia para aquelas pessoas?

Assim, fui deixando a dança que eu sabia para a dança que eu poderia ensinar. Algumas
da minhas alunas, não gostavam de se olhar no espelho e era visível o incômodo em
sala. Isso era perceptível por conta da comparação que elas mesmas faziam umas com
as outras. Da mesma forma que para mulheres da minha idade é quase uma obrigação
estar magra (apesar do meu corpo não admitir o “magra” que é ser magra normalmente),
para algumas delas também era. Nesse período, por mais que meu lado educadora não
estivesse tão aflorado, entendia que elas precisavam se acostumar com a exposição. A
subir os olhos. Ninguém deve andar olhando para o chão. As coisas passam e a gente
não vê. Uma das alunas, a quem vou chamar de Plié, ao ser perguntada por mim do
porquê de ter voltado a dançar, lembra que teve a oportunidade aos 40 anos, pois quando
era pequena, os pais não puderam pagar suas aulas de dança. Essa aluna conta que eu
gritava: “Vamos lá, você consegue, você pode!”. Ela não acreditava que podia dançar pois
se considerava obesa. No fim daquele ano, a turma dançou uma coreografia de cabaré,
figurino branco, meia arrastão e sapato de salto. Quando as luzes da platéia acenderam,
vi uma faixa. Uma homenagem para mim, agradecimento. Abraços e lágrimas me
envolveram. E eu não entendia muito bem toda aquela emoção. Pra mim era só mais um
espetáculo, um ano concluído, mas elas me mostraram que a caminhada que eu tinha
pela frente traria muito mais que movimento. Aquele fim de espetáculo foi uma
experiência para elas e para mim também.

Comecei a trabalhar mais deslocamentos. Percebi que elas precisavam se movimentar


mais em sala. Uma aula somente na barra, citando novamente Klauss Vianna, corre o
risco de anestesiar. Arrisquei exercícios com improvisos simples como caminhar para a
direção que elas quisessem, na velocidade que quisessem. Sempre existiu nas minhas
turmas de adulto, uma resistência ao improviso, a ocupar totalmente o espaço da sala.
Quando eu era aluna e fazia aula em salas grandes, podendo andar ou correr, eu
percorria todo aquele espaço. Explorava. Elas se sentiam/sentem incomodadas. Comecei
a fazer relação desse fenômeno com o resto do corpo. Da mesma forma que elas não
ocupavam a sala, não ocupavam seus próprios corpos. Não respiravam para preencher e
nem exploravam para conhecer. A necessidade dos comandos é iminente. É triste não
saber o que fazer com a liberdade que nos é dada em determinado momento. Porque
somos mulheres. A liberdade não é um estado comum. Estamos sempre sendo julgadas e
controladas.

Algumas reclamavam e me diziam que era muito mais fácil fazer o que eu mandava
porque elas não queriam pensar. Era sempre um risco quando eu me propunha a dar
aulas de experimentação para as adultas. Elas tem acesso livre a direção das escolas e
reclamam com frequência do que não gostam. O desafio de encostar na colega de sala,
de guiar alguém ou ser guiada era grande. “O que eu faço com meu corpo?”, “ O que eu
faço com o corpo da minha colega?” Retrocedi. Passei a pedir os movimentos a princípio
e depois pedia velocidades diferentes. Alternava e dividia em grupos. Pedia que
cruzassem umas com as outras e se olhassem. Nesse momento, a exemplo do que eu
havia passado quando adolescente e aluna, cheguei a conclusão que elas começavam a
formar laços profundos de amizade. Estavam mais confiantes e descansadas em sala. Eu
estava mais confiante e descansada. A dança, para Márcia Tíburi (2012) é “algo do corpo
que se dispõe ao pensamento. Um pensamento do corpo”. Quando falamos exatamente o
que pensamos, conquistamos espaço. Expandimos. Ar. “Uma manifestação do tempo no
pensamento”. Elas dançavam o pensamento no tempo e naquele mesmo, começavam a
se completar. Umas às outras. A si mesmas.

Em um dos depoimentos, a aluna “En Dehors” confessa que foi a uma aula experimental
para acabar com a insistência de uma das amigas que já era da turma. Pensando que
nunca mais voltaria na escola, essa mulher acabou se encantando pelo espaço da sala
que exalava clima de cooperação e leveza. As colegas a fizeram ficar. A relação comigo
veio depois. Sororidade. “En Dehors” também chegou com a sensação de que seria
ridícula, desengonçada e gorda ao dançar. Ela explicou que a relação dela com o próprio
corpo sempre foi boa, mas é diferente quando você exige que esse corpo dance. Além
disso, ela conta que dançar trouxe outras mudanças para a vida:

“​Por mais ‘nada a ver’ que isso possa parecer a dança resgatou a
música em mim. Eu havia perdido o hábito de ouvir música. E
quando meus filhos ligavam o rádio aquilo até me irritava,
principalmente se eu estivesse com pressa. Só que eu passei, por
causa das músicas das aulas de jazz, a conhecer algumas músicas
que meus filhos ouvem e passamos a ouvir música no carro com
mais freqüência. Eu agora tenho até uma playlist no meu celular –
coisa que meus irmãos ficaram passados!!!! E foi aí que eu reparei
como a música tinha saído da minha vida.”

Ou seja, de uma forma indireta, o fato de começar a dançar, aproximou essa mulher dos
filhos e provocou mudanças comportamentais. Permitir-se ouvir é um grande passo em
direção ao permitir-se mover. “Eu tenho uma cunhada que fala que eu fui uma pessoa
antes da dança e sou outra hoje! E ela tem mesmo razão!”, finaliza. É como se houvesse
“uma nova organização do próprio corpo, da energia psíquica e uma nova identidade”
(Zimmermman, 2018, pág 123). E essa nova conformação corporal leva a uma melhora
na expressão e na soltura frente a sociedade, ou seja, a modificação ocorre em nível de
transformação de atitudes e de uma coerência maior na psique e no organismo do
indivíduo. E em se tratando de timidez, lembro das respostas da aluna “ Pas de bourrée”.
Essa mulher não carregava em si a timidez comum, era mais o medo de exposição. Ela
conta em seu depoimento que por ter uma profissão que sugere um certo resguardo com
a imagem, ela optava por fazer aulas e não se apresentar. Mesmo assim, a própria “Pas
de bourrée” acredita que houvesse algo a mais para essa decisão. Um receio de se
mostrar. Ela encerra afirmando que esse “problema” já está quase resolvido e que dançar
com mulheres que se tornaram “verdadeiras amigas”, traz momentos muito bons. Ela se
mostra.
A maior parte dos depoimentos, carrega informações sobre o coletivo, sobre o grupo do
qual fazem parte por meio da dança. Segundo Flávia Liberman (1998), a efetuação da
vida se torna potente com a multiplicidade de possibilidades e intensidades. Ela se realiza
na existência e no encontro com o outro, com a alteridade e diversidade. É incrível
perceber que essa criação importante de laços que me impulsionou há anos atrás durante
a adolescência, ocorre com essas mulheres numa fase completamente diferente da
minha. As amizades que formei, me transformaram e me ajudaram a passar por muitos
momentos. Consigo enxergar a influência benéfica do grupo na individualidade de cada
uma. “Todas as ocasiões em que eu entrei no palco com minhas amigas de dança, foram
experiências significativas, de superação. A dança é sempre uma entrega de grupo”,
conta “Port de bras”. Ela se relaciona.

A aluna “Grand Battement” dividiu comigo, que quando ela pensa em dança, compreende
fazer parte de um corpo maior. Esse “corpo maior” transbordou para fora do espaço da
sala e da escola. Presenciei e soube de encontros realizados por diversas mulheres de
turmas que dei aula. Elas envolveram as famílias nesse relacionamento que surgiu por
meio da dança. Maridos, que por muitas vezes dificultavam a vida de algumas delas,
fizeram amizade com outros maridos e começaram a se sentir à vontade no meio de
mulheres que dançavam. Eu tive a tristeza de presenciar alunas com enorme
preocupação na coxia antes da apresentação e não por nervoso de palco ou de estréia. O
motivo era o marido que sentava na platéia fazendo questão de dizer que estava lá só
para ver a esposa passar vergonha. Esse marido em particular a quem vou chamar de
“Chimpo”, fazia de tudo para dificultar a vida da esposa quando se tratava das aulas de
dança. Ele não incentivava e apenas tirava sarro da companheira colocando a vontade
dela à prova. Como ela não descontava no cônjuge, o fazia com as colegas e comigo.
Sempre no dia de dançar. O grupo deu suporte e ao invés de rechaçar, abraçou. Com o
tempo, “ Chimpo” foi vencido e se permitiu conhecer no universo de novas amizades da
parceira facilitando a relação da mesma com a dança de uma maneira mais plena e sem
recriminações vindas de dentro da própria casa. “Cada corpo afeta e é afetado pelo outro
e é isso que produz turbulência e transformação irreversíveis em cada um deles”
(LIBERMAN, 1998). Ela resiste.

“Chassé”, dançou até aos 21 anos de idade e ao mudar para o Estado do Espírito Santo,
parou de fazer aulas por não encontrar turmas para adultos. A volta dessa mulher para
dança, foi em um momento complicado da vida: a descoberta de um câncer na tireóide. O
tempo para ela apresentava-se de maneira assustadora. “Tempo, tempo, tempo, tempo!
Vou lhe fazer um pedido”. A filha de apenas um ano. “Vento que sopra do mar, em
ventania salgada”. Choro e medo da cirurgia. Decisão de cuidar de si. A operação
aconteceu em 2 de junho de 2014 e em dezembro daquele mesmo ano, o palco recebe
Chassé como muita cor e cafonice saudável ao dançar uma música estrondosa de Ricky
Martin. A coreografia acaba tão rápido quanto havia começado e ela sai de cena
transformada. Ela me conta, mas eu lembro do abraço, do sorriso. Me lembro dela,
completa, feliz, resoluta e respirando forte. “Por seres tão inventivos e pareceres contínuo,
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo, és um dos deuses mais lindos.” (CAETANO
VELOSO,1979). Ela renasce. De dentro para fora e também de fora para dentro. Como
explica Klauss Vianna (2008), a vida é a síntese do corpo e o corpo é síntese da vida. Se
elas se mostram, se relacionam, resistem e renascem com seus corpos dançantes, fazem
o mesmo para fora. Elas transbordam. Um rio que transborda é potente. Os egípcios
celebravam a cheia do Rio Nilo. Mulheres que transbordam são férteis, são fortes.
Infelizmente, muitos rios tem represas. “Se acabar mal acostumado, se acabar parado,
calado. Se acabar baixinho chorando, se acabar meio abandonado” (CARLINHOS
BROWN, 1994).

Uma das experiências que tornam esse “transbordar” mais potente para algumas das
alunas é o fato de dividirem e participarem ativamente da vida dançada de suas filhas. Ao
contrário de mães “comuns”, essas mulheres encaram a mesma rotina de aulas e de
ensaios. Estreiam no palco nos mesmos dias e se assistem da coxia, pois fazem parte do
elenco. Muitas vezes tem até a mesma professora. Eu, no caso. Essa presença das
adultas que também tem filhas alunas no mesmo espaço é bem interessante. Esse
contato permite que as mães conheçam o trabalho de perto e valorizem muito mais o
processo desenvolvido pela equipe da escola de dança. As filhas por sua vez, entendem
que mesmo que elas não desejem seguir carreira de bailarinas/dançarinas profissionais,
elas têm condições de dançar apesar da idade e das responsabilidades com outros tipos
de emprego. Quando perguntada sobre experiências significativas com a dança, a aluna
“Jeté” conta que perceber o olhar da filha para ela enquanto ela dança é maravilhoso. “Ela
me vê como a bailarina mais linda! Morre de orgulho de mim! Escolhi acreditar que ela
está certa!”. Em conversas em sala de aula, as alunas “Tendu” e “Skip” concordam que
elas realmente não se importam em dançar no fundo, no meio ou na frente do palco. O
mais importante é estar com as filhas e vê-las de outro ângulo, poder entender e
desenvolver juntamente à elas a linguagem sensível e artística da dança. Isso é beleza
em um mundo que para muitas ali é dor aguda.

A última pergunta que eu fiz para todas elas foi: “Você acha que dançar ajuda a extirpar o
poder do machismo impregnado, mesmo que de maneira inconsciente, em nossos
corpos”? Muitas delas falaram sobre o redescobrimento do “ser mulher”, de compreender
que elas podem ser sensuais, livres e se acharem bonitas por isso. Se eu nasci em um
contexto que não me valorizava nem estética ou fisicamente, imaginem algumas ali com
40/50 anos. Parece proposital essa agenda que insiste em tirar o poder da mulher. Ao
criar padrões de comportamento e beleza para a parcela feminina da população, você
impede que elas como indivíduos se aceitem e se sintam seguras para agir. A dança
recupera essa segurança da mulher mostrando às mesmas que elas podem fazer e estar
onde quiserem, apesar da idade e tipo de corpo.

O jazz dance resgata de maneira especial a confiança perdida ou até mesmo nunca
sentida de cada aluna. Existem muitos movimentos no jazz que exigem um deslocamento
de queixo ereto, quadris ativos, ​swings de corpo inteiro. Costumo dizer para os
estudantes que a dança jazz, independente da linha seguida pelo professor, é uma dança
para fora. O jazz dance passa pelo chão, mas não permanece no chão, o jazz dance
passa pela introspecção mas em determinado momento explode em ritmo e brilho. É uma
dança técnica que aceita corpos mais próximos da realidade. Por essas e outras sou
completamente apaixonada pelo estilo. Algumas alunas estranham toda essa expressão
exagerada no início e já ouvi mais de uma vez que elas se sentem “estranhas”. “Lá vem
tia Alana mandando a gente fazer minhoca”, elas brincam. Eu respondo “Gente, Deus deu
quadril pra gente foi pra usar!”. A aluna “Ponté” (2018) concorda que a dança liberta. “A
dança me faz esquecer que somos homens, mulheres, crianças. Somos uma só energia e
quem dança é mais completo. Não interessa o tamanho do corpo e sim a entrega plena
da alma”. “Sauté” (2018) compartilha que a dança mostra para a sociedade que o
machismo não faz sentido. “As coreografias que você faz Alana, não são pra que
fiquemos apenas bonitinhas no palco”. Eu fiquei pensando muito sobre essa resposta. De
certa forma, algumas das alunas já se libertaram da estética e assumiram uma posição
mais artística. Elas conseguiram extrapolar esse “não lugar” onde a mulher não se coloca,
simplesmente nasce: beleza eterna, juventude eterna. Essas mulheres entendem a
importância da mensagem, de não precisar da beleza aparente e efêmera de uma
coreografia que acaba em 3 minutos. Elas fazem parte de algo maior. A arte não tem
idade e aos poucos o “não lugar” torna-se lugar de conhecimento, empoderamento e
coletividade consciente. Esse pertencimento que vai surgindo, faz com que as mulheres
se tornem protagonistas de suas próprias vidas ocupando os corpos que pertencem
somente a elas e a ninguém mais. “A experiência interior, a autoimagem, os processos
emocionais são conceitos vividos e expressados com o corpo, com as emoções presentes
nesse corpo” (ZIMMERMMAN, 2018). A possibilidade de entender - e melhor - as
sensações corpóreas, aumenta então a consciência corporal. Cria-se uma valorização
desse corpo que é muitas vezes esquecido e, assim, uma nova organização do corpo
antigo surge.

Todas as respostas que obtive das alunas foram fantásticas e esclarecedoras. Mas duas
em especial chamaram muito a minha atenção. Uma delas foi a da aluna “Pirouette”.
Primeiro ela explica que a vivência dela na dança auxiliou para que ela aprendesse a
coordenar uma equipe de homens quando era apenas uma recém formada da faculdade.
“Consegui vencer esse grande desafio graças a vivência da dança em meu corpo e em
minha alma” (PIROUETTE , 2018). Ela passou pelo processo de enfrentamento da
timidez ao dançar sozinha em um palco, aprendeu por meio da dança a ter disciplina,
responsabilidade e respeito ao próximo trabalhando em conjunto. Ao chegar na pergunta
sobre o machismo, “Pirouette” sentiu-se a vontade para pedir ajuda a filha de 15 anos.
Uma outra geração que discute certas pautas com mais frequência e liberdade. “Júnior”
também é minha aluna há 4 anos e uma artista amante da dança, como a mãe. Foi lindo
perceber a mãe perguntando a filha com humildade, dividindo impressões, fortalecendo
laços para entender o que é ser uma mulher na dança.

“A dança com certeza contribui para compreendermos melhor nosso


corpo e nos valorizar. Como a dança é uma atividade na maior parte
das vezes frequentada por figuras femininas, a mulher pode se
expressar sem julgamentos machistas e sem preocupações,
simplesmente através da arte.” (PIROUETTE E JÚNIOR, 2018)
O próximo e mais forte depoimento foi da aluna “Skip” que teve experiência com o ballet
clássico quando criança. Ela compartilha que as lembranças do ballet fazem parte de um
dos melhores momentos da vida. Por diversas razões ela parou de dançar e retornou
recentemente para a modalidade jazz. Sobre o machismo e o corpo feminino “Skip”
reflete:
“A quinta e última questão é a mais difícil, a mais complicada. É, com
certeza a dança é maravilhosa para isso. Para extirpar. Tem homens
machistas que se nós mulheres permitirmos, eles querem manter a
gente em cárcere privado. A insegurança e possessividade de
alguns homens é muito grande e esses acham que são donos do
nosso corpo. ‘Se eu sou provedor, você é a submissa’. A sociedade
é extremamente machista, assim como meu marido que se acha
dono do meu corpo dizendo que roupa eu devo usar, a cor da roupa.
Se a dança ajuda a extirpar? Claro que ajuda! Porque a dança traz
de volta pra gente o nosso domínio sobre nosso corpo! Porque
quando a gente dança, a gente se sente dona do nosso corpo. Eu
estou resgatando esse meu corpo para mim! Esse corpo é meu! Eu
sou dona dele! Sou eu que uso o charme do jeito que estou
aprendendo, eu que tenho poderes sobre o meu corpo e não o
homem que vai dizer se eu devo ou não chamar atenção! O
machismo tenta prender e bloquear o charme da mulher, tenta
amarrar, acorrentar, aprisionar o nosso brilho , a nossa luz própria!
Eu fiquei acorrentada durante 4 anos. Meu marido queria que eu
acabasse com minha vaidade, com meu charme e isso me levou a
uma depressão profunda. E a dança? A dança é maravilhosa porque
é uma cura para tudo isso. A partir do momento que você está ali
expressando todo seu amor pelo seu corpo, você está mostrando
que pode ser dona de si. Esse corpo é meu! E eu gosto de sorrir! De
verdade! Não para uma câmera! De verdade! Como quem diz: “você
perdeu! Agora eu renasci das cinzas!” (SKIP, 2018)

Esse depoimento mexeu muito comigo. Às vezes a gente não se dá conta da diferença
que o movimento e a consciência corporal podem fazer na vida de uma pessoa. Essa
aluna, por motivos de saúde, esqueceu muito do que aprendeu quando mais nova no
ballet clássico. Decorar exercícios, dança-los no tempo proposto e no espaço sugerido
tem sido um desafio. Mas ela tem florescido e se desenvolvido corporalmente e
coreograficamente já fazendo parte do grupo que se apresenta no final do ano. E ela usou
palavras fortes como amarrar, aprisionar e bloquear. Ela se sentia todas essas coisas
dentro deste relacionamento e é muito poderoso perceber que a dança oferece uma
saída, oferece reconhecimento e força a uma pessoa como ela, que adoeceu e que se
sentia sem força, sem poder. Ela também usa essa palavra ao dizer que a dança devolve
o domínio que ela deve ter de seu próprio corpo. E isso foi um exercício dela! Ela se abriu
para a experiência real e artística da dança. Não apenas a dança para a estética final de
palco e fotografia. Foi uma experiência nesse espaço de empoderamento que a sala de
dança se tornou. “Skip” também permitiu que a prática se tornasse coletiva e conseguiu
se abrir comigo e com as colegas de sala, criando assim uma rede de suporte.

Eu fiquei muito honrada de poder ouvir as experiências de todas essas mulheres. Porque
foram experiências de fato. Cada uma com suas respostas e suas diferentes formas de
enxergar a dança e a vida, enriqueceram meu trabalho em sala de aula e me ensinaram
muito sobre o processo. Eu como professora ainda me pego sendo imediatista e exigindo
reações para as quais eu estou psicologicamente ou tecnicamente preparada. E
automaticamente quando recebo o que não esperava, cresço e penso em meu próprio
corpo de mulher educadora tanto para elas quanto para as crianças e adolescentes que
cruzam pelos meus caminhos. Trabalhar com arte é isso. É muitas vezes não ter a
resposta e não se culpar por isso. Trabalhar com pessoas deve ser um exercício de
reflexão. Lidar com mulheres que se expressam dos mais diversos pontos, é um desafio.
Dançar traz a tona o que temos de melhor e de pior! E isso é fantástico pois nos obriga a
aprender maneiras de lidar com quem está ao lado. Trabalhar com mulheres é uma
missão. Não que aulas de dança para homens não o sejam. Mas é a minha missão, meu
sopro. Promover espaços de experimentação para que dali experiências marquem a cada
uma e também a mim é um prazer e porque não um dever? O jazz não é meu! A dança
não é minha! A arte , muito menos! Isso pertence à todos! A dança pode ser um poderoso
veículo libertário, caso a gente se permita não ser apenas informação, apenas
movimento. “De modo que o meu espírito ganhe um brilho definido! Tempo, tempo,
tempo, tempo! E eu espalhe benefícios” (CAETANO VELOSO, 1979).

Encerro. As cortinas em algum momento se fecham. Estou imensamente grata por vocês
terem vindo. “Que seus olhos sejam abençoados. Que seus filhos sejam abençoados.
Que seja abençoado o chão sob seus pés. Meu coração é uma concha repleta de água
doce, transbordante” (DIAMANT, 2006).

Em breve ela se abre novamente. Infinito que transforma. Momento que modifica.
Obrigada. Mil vezes, obrigada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Companhia das Letras, 2017

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Caetano Veloso. Oração ao Tempo. ​Cinema Transcedental​​. VERVE, 1979.

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