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John Rawls e os dois princípios da justiça1

Raphael Bazilio Dalla Vecchia 2

“A justiça é a primeira virtude das instituições


sociais, como a verdade o é dos sistemas de
pensamento”. John Rawls

Resumo: Visa o presente artigo, aprofundar a pesquisa e a discussão acerca dos Dois
Princípios da Justiça, estabelecidos por John Rawls em Uma Teoria da Justiça. Estes
princípios foram propostos pelo pensador como fios condutores para a realização da
justiça social na teoria, e também como regra para o novo modelo de estado rawlsia-
no. Uma Teoria da Justiça (1971) é atualmente uma das obras de grande destaque em
todo mundo, principalmente no que diz respeito à Filosofia Política. Com uma filosofia
contrária ao Utilitarismo Clássico e de visão Neocontratualista, esta despertou grande
interesse à comunidade acadêmica contemporânea, em especial pelos temas abordados,
como o do papel do estado enquanto agente responsável pela justiça, a abordagem da
justiça como equidade e a proposta de um novo contrato social com base em princípios
da justiça, sendo este último tópico o objetivo do trabalho.

Palavras-chave: Justiça. Estado. Equidade.

1
Orientador: Stefan Vasilev Krastanov. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).
Docente Adjunto de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Autor de: Nietsche: Pathos
artístico versus consciência moral.
2
Especialista em Sociologia e Ensino de Sociologia. Pós graduando em Direito pelo Complexo Educacional Damá-
sio de Jesus. Bacharel em Direito pela Universidade de Franca – Unifran. Licenciado em Filosofia pelo Centro Uni-
versitário Claretiano (SP). Professor de Filosofia e Sociologia. E-mail: <raphaeldallavecchia@hotmail.com>.

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1. INTRODUÇÃO

O cenário conturbado do século XX, marcado por revoluções soci-


ais e políticas, dão ensejo a uma série de reflexões sobre o Estado e acerca
de suas prerrogativas e funções. O modelo não atende aos anseios cor-
respondidos outrora, gerando conflitos sociais e grandes discussões. De-
starte, no bojo da sociedade contemporânea vêm à tona novas discussões
e teorias, principalmente em relação à organização do estado conhecidas
como teorias políticas e nos remetendo à velha discussão: Como chegar
a um modelo político estatal justo? Qual o caminho para uma sociedade
mais justa?
A aplicação dos direitos e deveres, bem como, a forma de controle
através das sanções, também gera discussões, já que o Positivismo Jurídico
do pós-guerra subordina todos à conformação mecânica das leis sem, con-
tudo haver uma contrapartida pelo Estado, demonstrando claramente a
falta de legitimidade entre as leis impostas e as expectativas da população.
Segue a esse respeito, comentário de Norberto Bobbio, filósofo
político, historiador e senador vitalício italiano:

O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje,


não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um prob-
lema não filosófico, mas político.
[...] O problema filosófico dos direitos do homem não pode ser dis-
sociado do estudo dos problemas históricos, sociais, econômicos, psi-
cológicos, inerentes à sua realização: o problema dos fins não pode ser
dissociado do problema dos meios. Isso significa que o filósofo já não
está sozinho. O filósofo que se obstinar em permanecer só termina
por condenar a filosofia à esterilidade. Essa crise dos fundamentos é
também um aspecto da crise da filosofia. (BOBBIO, 1992, p. 24)

Muitos filósofos discutiram a respeito, havendo grande contribuição


filosófica nesta área tanto dos filósofos contemporâneos quanto da escola
clássica. Podemos destacar as contribuições dos filósofos contemporâ-
neos: Jürgen Habermans; Robert Nozick, Ronald Dworkin, a Escola de

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Frankfurt e seus principais filósofos: Max Horkeimer, Theodor Adorno,
Herbert Marcuse.

2. O NASCIMENTO DA TEORIA RAWLSIANA

Em meio a estes pensadores ganha destaque o filosofo político amer-


icano John Rawls, com a publicação em 1971, de “A Theory of Justice” ou
“A Teoria da Justiça”, principalmente pela forma como sua teoria idealiza
a organização do Estado, pautando-se pela equidade e pela justiça social,
alicerces de sua obra.
John Rawls, fortemente influenciado pelo contexto histórico do
século XX e pela origem de sua família, principalmente de seu pai e sua
mãe, Willian Lee Rawls e Anna Abell Rawls, diretamente ligados à políti-
ca, desenvolveu cedo seu interesse e a reflexão a cerca dos problemas so-
ciais.
Sua formação foi outro fator determinante e divisor de concepções
para a teoria, já que durante a graduação em filosofia despertou forte in-
teresse pelos filósofos: Emmanuel Kant, Stuart Mill e Wittgenstein.
Posteriormente à Teoria da Justiça em 1971, John Rawls publica
mais quatro obras, a saber: Liberalismo Político em 1993; O Direito dos
Povos em 1999; História da Filosofia Moral em 2000 e Justiça como Equi-
dade - uma reformulação em 2001.
Importante ressaltar que as obras posteriores à Teoria da Justiça, at-
uam na verdade como um prolongamento da teoria, esclarecendo as prin-
cipais questões e em alguns casos preenchendo algumas lacunas deixadas
pelo autor.
Apesar das diversas críticas sofridas, Uma Teoria da Justiça é consid-
erada a obra de filosofia política de mais projeção no século XX e John
Rawls um divisor de águas no que diz respeito à Filosofia Política. Veja-
mos alguns comentários a respeito do autor e sua teoria:

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Uma teoria da justiça de John Rawls marca uma cesura na história
mais recente da filosofia prática. Com essa obra, Rawls reabilitou as
questões morais reprimidas durante muito tempo, e apresentou-as
como objeto de pesquisas científicas sérias. (HABERMANS, 1999)

Neste depoimento do filósofo político Jünger Habermans, fica claro


como Uma Teoria da Justiça, mudou e reabilitou as concepções antigas
das teorias políticas anteriores a obra.

Nos Estados Unidos, o impacto da Teoria da justiça de John Rawls


sobre a teoria e a prática jurídica foi absolutamente surpreendente.
Desde sua publicação, as revistas jurídicas se encheram de referências
à obra de Rawls. [...] Os filósofos políticos precisam agora trabalhar
dentro da teoria de Rawls ou explicar por que não o fazem. (DWOR-
KIN, 2009)

Ronald Dworkin também enfatiza a relevância e o impacto da teoria,


principalmente nos Estados Unidos, onde o autor lançou a obra, obrig-
ando os pensadores da época a manifestarem-se, tamanha a importância
da publicação.
Muitos trabalhos e artigos a respeito de Uma Teoria da Justiça foram
publicados, o que levou a uma nova reestruturação da obra, retomando
pontos que de imediato pareciam obscuros, o que é frequente em teorias
desta relevância.

A primeira e mais importante teoria da justiça contemporânea é,


naturalmente, a formulada por John Rawls, em seu A theory of jus-
tice. Muito tem se escrito e falado a respeito, e Rawls constitui uma
referência obrigatória no campo da filosofia política. (ROUANET,
2005, p. 62-63)

No Brasil, Luis Paulo Rouanet, professor de filosofia de grande


destaque nos meios acadêmicos, também se manifesta sobre a teoria, con-
siderando a obra uma referência da filosofia política no período contem-
porâneo.

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Também no Brasil, outros pensadores estudaram a obra e publicaram
estudos a respeito, fazemos referência à Eduardo C. B. Bittar e Guilherme
Assis de Almeida, ambos professores e pesquisadores da Universidade de
São Paulo.

3. FUNDAMENTAÇÃO DA TEORIA RAWLSIANA

Com base no organograma apresentado, demonstraremos a partir


deste capítulo os principais aspectos de Uma Teoria da Justiça visando,
sobretudo ressaltar a discussão a respeito dos “Dois Princípios da Justiça,”
objeto do trabalho e peça chave para o entendimento da teoria rawlsi-
ana. Cabe esclarecer que a obra possui outras subdivisões, mas por uma
questão pedagógica e de acordo com o foco do trabalho, optaremos por
essa divisão.
O conjunto de pensamentos desenvolvido pelo autor, fruto de sua
produção filosófica até 1971, ano de publicação da teoria, tem como obje-

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tivo a revitalização do modelo político, sua proposta de uma nova aborda-
gem, com total participação da sociedade e principalmente estabelecendo
critérios e princípios para as escolhas dos direitos e deveres para todos,
caminhavam de encontro às doutrinas existentes.
Para Rawls (2002), a solução para este problema passava necessari-
amente pela questão da justiça social, em outras palavras, por um sistema
pautado pela justiça, alias, aqui é possível perceber traços da tendência de
Rawls à Democracia, pois é nítida sua orientação de que a sociedade como
um todo faria parte da construção do modelo de estado, ressaltando in-
clusive uma abordagem mais abstrata do modelo político, que teria como
orientação pura e simplesmente princípios de justiça definidos e aceitos
por todos. Vejamos uma parte dos comentários do autor no prefácio da
obra:

[...] em grande parte da filosofia moral moderna, a teoria sistemática


predominante tem sido alguma forma de utilitarismo. Um dos moti-
vos para isso é que o utilitarismo foi adotado por uma longa linhagem
de brilhantes escritores, que construíram um corpo de pensamento
verdadeiramente impressionante em seu alcance e refinamento [...]
aqueles que os criticaram com freqüência o fizeram a partir de uma
perspectiva muito mais restrita, eles apontaram as obscuridades do
princípio da utilidade e notaram as aparentes incongruências entre
muitas de suas implicações e nossos sentimentos morais, mas creio
que não foram capazes de construir uma concepção moral sistemáti-
ca e viável que se opusesse a esse princípio. (RAWLS, 2002, p. 22)

É possível perceber na primeira parte de sua citação, o desconten-


tamento de Rawls com a concepção utilitarista adotada pelos filósofos
modernos. O autor ressalta que apesar do refinamento e do grande al-
cance destas teorias, ela nada contribuem para as questões morais.
É preciso frisar que os direitos fundamentais e sua convicção de que
tais prerrogativas jamais serão sucumbidas em virtude de um benefício
maior à população ou coletivo, são uma das bandeiras, senão a grande luta

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do autor.
Minha tentativa foi de generalizar e elevar a uma ordem mais alta
de abstração a teoria tradicional do contrato social representada
por Locke, Rousseau e Kant. Desse modo, espero que a teoria pos-
sa ser desenvolvida de forma a não mais ficar aberta às mais óbvias
objeções que se lhe apresentam, muitas vezes consideradas fatais.
Além disso, essa teoria parece oferecer uma explicação sistemática
alternativa da justiça que é superior, ou pelo menos assim consid-
ero, ao utilitarismo dominante da tradição. (RAWLS, 2002, p. 22)

Esta referência evidência claramente a maneira como Rawls pensa


sua Teoria, sua ideia de um novo contrato social, não exatamente o esta-
belecido por Jean-Jacques Rousseau em Do Contrato Social ou Thomas
Hobbes no Leviatã, mas atrelando concepções à Teoria da Justiça.
Cabe ressaltar que esta nova visão, de que toda teoria social deve es-
tar fundamentada em princípios e condições aceitos por todos e sempre
em busca do maior grau de justiça e igualdade, é atualmente defendida por
grande parte da escola de filosofia política atual, e que, somente com um
modelo nestes termos, será possível um acordo político que não priorize
a classe dominante.
Esse vínculo entre as pessoas na sociedade é estabelecido pela con-
cepção de princípios de justiça, o que de forma mas objetiva ligaria as de-
terminações do estado a uma ideologia, ou mais precisamente estabelece-
ria um sistema pautado pela equidade.
A ideia central do autor é a de estabelecer um conjunto de princípios
que serão o alicerce de todo o Estado, ou seja, através destes princípios e
posteriormente de uma constituinte de direitos e deveres que obedeçam
tais princípios, será possível a organização de uma sociedade mais justa.
Aqui, ressalta-se também a importância da influência kantiana para
o autor, já que a questão moral universalista proposta por Immanuel Kant
(1979, s.d., 70-71, 79) e seu imperativo categórico, pensamentos do filósofo
alemão que bem representados pela celebre frase: “Age somente, segundo
uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei uni-
versal”.

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A teoria rawlsiana esta fortemente influenciada pela teoria kantiana,
é perceptível na obra que o pensador americano apropria-se da ideia do
imperativo categórico, principalmente quando discute em sua teoria nos
tópicos: A Posição Original e O Véu da Ignorância, a necessidade dos en-
volvidos neste processo, adotarem uma postura universal ou precisamente
justa neste ato de criação de diretrizes para um novo estado.
Algumas qualidades e características serão necessárias para que seja
possível o consenso pregado na Posição Original, fala o autor em um acor-
do que necessariamente está discutindo a questão da justiça e da equidade,
assim, os envolvidos neste acordo, partindo de premissas genéricas ou de
grande aceitação, conseguiriam chegar a decisões mais específicas, deix-
ando que as idéias sejam plausíveis por si e naturais a todos.
Citamos como exemplo a ideia de que ninguém deverá ser favore-
cido ou desfavorecido pela sorte natural, ou por sua condição social no
momento em que escolhe os princípios da justiça, ou seja, a escolha deve
ser justa a ponto de antecipar possíveis circunstâncias que desfavoreçam os
indivíduos por fatores naturais.
Vejamos o exemplo citado por Rawls (2002, p. 21):

Por exemplo, se um homem soubesse que era rico, ele poderia achar
racional defender o princípio de que vários impostos em favor do
bem-estar social fossem considerados injustos; se ele soubesse que
era pobre, com grande probabilidade proporia o princípio contrário.

A escolha só será tomada, a partir do momento em que os indivíduos


não mais estejam vinculados ao contexto em que viveram, proporcionan-
do uma situação em que só escolherão de maneira que o que foi escolhido
seja justo para todos, independentemente de sua posição social.

Salienta o autor em relação às condições para a escolha:

Para representar as restrições desejadas imagina-se uma situação na

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qual todos estejam privados desse tipo de informação. Fica excluído
o conhecimento dessas contingências que criam disparidades entre
os homens e permitem que eles se orientem pelos seus preconceitos.
(RAWLS, 2002, p. 21).

Na verdade, os princípios que norteiam a posição original, por si só


já constituem o objeto de um acordo original, já que pessoas racionais
escolheriam um ambiente onde haja igualdade de direitos e deveres para
todos, de modo a conseguirem desenvolver seus interesses, sem serem
prejudicados.
A influência Kantiana é bem presente, quando o autor fala da prob-
lemática dos direitos e deveres e da escolha dos princípios, tratando da
questão da lei moral existente nos homens, onde há a adequação da von-
tade à lei moral, ou ao dever, e o respeito por este dever.
Para que o homem possa conquistar a liberdade ou a consciência
dela, é pressuposto que ele tenha consciência dos seus deveres, ou seja, tal
liberdade está relacionada à autonomia de determinar-se. É claro na teo-
ria que somente com a construção deste novo contrato social o homem
conseguirá libertar-se e afirmar-se enquanto ser social e político, e só as-
sim o estado teria fundamento, embasado nos anseios de justiça de seus
membros.
A citação abaixo mostra claramente as ambições do autor quanto à
sua visão do contratualismo como forma de proporcionar através do esta-
do, a justiça social. Rawls aponta sua opção pela democracia, acreditando
que ela seja a única saída para que de fato possamos implantar tal teoria,
vejamos:

Minhas ambições para o livro estarão completamente realizadas


se ele possibilitar ao leitor uma visão mais clara das principais car-
acterísticas estruturais da concepção alternativa de justiça que está
implícita na tradição contratualísta, e se apontar o caminho para
uma elaboração maior dessa concepção. Entre as visões tradicio-
nais, acredito ser essa a concepção que mais se aproxima de nossos
juízos ponderados sobre a justiça, e que constitui a base moral mais

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apropriada para uma sociedade democrática. (RAWLS, 2002, p. 23)
4. O PAPEL DA JUSTIÇA

A partir deste capítulo, enfatizaremos o papel da justiça e especifi-


camente dos Dois Princípios da Justiça, adotados pelo autor como pos-
sibilitadores de um acordo no momento da criação de um novo modelo,
ou de forma mais clara, tais princípios atuariam como fios condutores e
estabeleceriam as regras para as concepções deste acordo.
A tradicional afirmação do autor e com certeza o ideal da obra está
estabelecido na frase que dá início ao capitulo primeiro da teoria, diz
Rawls: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a ver-
dade o é dos sistemas de pensamento.” (RAWLS, 2002, p. 3)
Percebe-se claramente nesta citação, a insatisfação do autor com
as teorias tradicionais, que por mais eficientes e bem organizadas, jamais
poderiam abdicar da justiça, valor fundamental para as instituições es-
tatais.
Cada pessoa possui uma barreira instransponível, e estes valores fun-
damentais não podem ser ignorados, mesmo que esta transposição sig-
nifique um bem coletivo muito maior, não se justificando que alguns per-
cam para que uma parcela grande da sociedade possa se beneficiar.
Assim, toda e qualquer forma de organização que privilegie uns em
detrimento de outros deve ser banida, primando o Estado por um modelo
em que as liberdades de cidadania são iguais, e não se submetem às nego-
ciações políticas, ou a cálculos de interesses sociais. Assevera o autor:

A única coisa que nos permite aceitar uma teoria errônea é a falta
de uma teoria melhor; de forma análoga, uma injustiça é tolerável
somente quando é necessária para evitar uma injustiça ainda maior.
Sendo virtudes primeiras das atividades humanas; a verdade e a justiça
são indisponíveis. (RAWLS, 2002, p. 4)

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5. PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA

Ao desenvolver a idéia de princípios, está o autor vinculando os atos


e decisões a respeito do estado a uma concepção. Assim, a ideia de pro-
mover uma estrutura pautada pela equidade, necessariamente implica em
princípios de justiça, como já dito, capazes de fornecer parâmetros ou pos-
sibilitar a organização das regras através de uma idéia preconcebida.
O autor faz menção até às questões ligadas aos direitos e deveres, já
que os princípios atuariam até como limitadores de condutas e ou mod-
elos destas. Toda organização assim, estaria atrelada a tais princípios, que
definiriam inclusive a distribuição dos encargos, benefícios e até esta-
beleceria os limites da cooperação social, leciona Rawls:

Uma sociedade é bem ordenada não apenas quando está planejada


para promover o bem de seus membros mas quando é também efeti-
vamente regulada por uma concepção pública da justiça. Isto é, trata-
se de uma sociedade na qual (1) todos aceitam e sabem que os outros
aceitam os mesmos princípios de justiça, e (2) as instituições sociais
básicas geralmente satisfazem, e geralmente se sabe que satisfazem,
esses princípios. (RAWLS, 2002, p. 5)

Embora os homens possam fazer excessivas exigências mutuas, eles


contudo reconhecem um ponto de vista comum, a partir do qual suas
reivindicações podem ser julgadas. (RAWLS, 2002, p. 5)

É importante observar, a ideia ao fundo da teoria dos princípios, já


que a intenção é de estabelecer um sentido público de justiça, sentido pelo
qual, todos estariam vinculados e de certa forma, ordenados para este ob-
jetivo. Trata-se de uma espécie de cadeia de valores, vejamos o que propõe
o autor:
Se a inclinação dos homens ao interesse próprio torna necessária a
vigilância de uns sobre outros, seu sentido público de justiça torna
possível a sua associação segura [...]. Entre indivíduos com objeti-

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vos e propósitos díspares uma concepção partilhada de justiça
estabelece os vínculos da convivência cívica; e o desejo geral de
justiça limita a persecução de outros fins (RAWLS, 2002, p. 5).

Somente através destes princípios os indivíduos chegariam a um


consenso no momento da Posição Original, momento este que o autor
propõe uma espécie de recomeço ou uma situação onde cada indivíduo,
através de uma assembléia, definirá os critérios, fundamentos e princípios
para esta nova organização e estruturação do estado.

5.1 Princípios das instituições e dos indivíduos

O autor cria uma divisão para os princípios na obra, ela se dá desta


maneira: Princípios de Justiça aplicados as Instituições e também Princí-
pios de Justiça aplicados aos Indivíduos.
O que seriam estes princípios? Na verdade, objetiva a teoria, diferen-
ciar ou separar princípios que dizem respeito ao sistema social, de princí-
pios que regulam as liberdades básicas iguais dos indivíduos.
A ordem serial de tais princípios é o que chama a atenção na teo-
ria, e veremos faz toda a diferença na defesa da teoria rawlsiana que tem
por fim defender os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. As
liberdades básicas iguais, tratadas no primeiro princípio, nunca poderão
ser transpassadas ou compensadas pelas possíveis vantagens econômicas,
sociais e de perspectiva para o estado, elencadas no segundo princípio.

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6. DIAGRAMA DE PRINCÍPIOS

Este diagrama, segundo John Rawls (2002, p. 117) retrata a ordem


em que os princípios devem ser considerados, demonstrando uma hierar-
quia de valores, dentro da teoria.

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7. OS DOIS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA

Chegamos enfim ao foco do trabalho, ou seja, a discussão dos princí-


pios, a ordem serial que impossibilita ou exclui permutas ou trocas entre
liberdades básicas e ganhos sociais, amarrando assim a teoria a uma con-
cepção que resguarda os indivíduos dentro do estado e assegura a justiça.
John Rawls (2002, p. 64) define os princípios da seguinte forma:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente


sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um
sistema semelhante de liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordena-
das como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b)
vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.

De forma conjunta, os princípios para os indivíduos também têm


como pressuposto ou objetivo, a definição dos princípios das instituições,
este trabalho entre eles, objetiva a continuidade dos valores éticos e mo-
rais propostos, pois tanto os direitos quanto as obrigações, tanto o papel
dos indivíduos quanto o papel do estado, estão atrelados à ideologia social
e moral das instituições, de forma que uma venha a contemplar a outra.
O autor faz menção a outro princípio, entendido aqui como um
princípio genérico dentro da obra, que é o Princípio da Equidade, de-
starte os integrantes deste contrato social, estão comprometidos com as
regras estabelecidas pelas instituições, fieis ao sistema, e se submetem ao
modelo estabelecido, justamente pelo fato de que tal modelo é fruto das
convicções dos próprios integrantes.
Esta característica da teoria contribui para a sua sobrevivência e aceita-
ção, de forma que, os indivíduos se vêem vinculados ao modelo, por uma
questão puramente racional, e não por uma imposição, característica essa que
foi o fator predominante ao longo de toda tradição política na história.
O modelo de estado proposto por Rawls, tem por finalidade, a re-
alização da justiça por intermédio do próprio estado, buscando o acordo

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coletivo e o bem comum. Todos se vinculam ao modelo, sabendo que essa
organização trará benefícios, dando a cada componente o que lhe é de
direito, com regras claras e justas.
Fica claro utilizando-se desta forma de organização, o efeito pro-
gressivo que a criação dos Princípios tem, eles controlam por completo as
ações transcorridas nos diversos momentos e setores das instituições.
Através destas diretrizes, proporcionadas pela determinação de
princípios, é possível um organização com tamanha carga de equilíbrio e
equidade, já que nenhum integrante deste modelo está disposto a se vin-
cular, caso não considere a estrutura estatal justa, e este com certeza é o elo
mais forte e concreto e o alicerce para a criação deste modelo de estado.

7.1 A opção pelos dois princípios da justiça

Segundo Rawls (2002), o integrante deste modelo, no momento da


posição original, fará sempre a opção por princípios que exijam uma dis-
tribuição igual, pois pautando pela racionalidade e pela lógica, sabendo
este integrante, não ser possível obter vantagem para si, optará por não
criar possíveis desvantagens, decidindo-se pelo caminho que ofereça equi-
dade a todos.
Assim, o princípio que estabelece liberdades básicas iguais para to-
dos, além de uma igualdade de oportunidades e de divisões de renda e
riqueza, sempre virá em primeiro plano, já que ele controla a questão da
equidade ou igualdade de perspectivas entre as partes.
Caso existam desigualdades, no entanto justificáveis e desde que,
ofereçam melhorias na condição de todos, vale frisar, a idéia de melhoria
deve ser para todos e não para uma grande maioria, e que claramente não
ultrapassem os direitos às liberdades iguais e às igualdades de oportuni-
dades, poderiam ser aceitas.
Neste momento surge a proposta do Princípio da Diferença, pelo
qual, aqueles que de alguma maneira foram privilegiados com mais, de-
verão ter como objetivo o bem dos que ficaram com menos, e estes, mani-

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festarem seu consentimento quanto á situação e seus fins.
Importante ressaltar que nesta situação, os dois princípios da justiça
se justificam, já que independentemente do procedimento adotado, as
liberdades iguais serão preservadas e caso hajam dúvidas a este respeito,
as razões do primeiro princípio, por si, apontarão o melhor caminho, ou
seja, o de priorizar as liberdades básicas e as prerrogativas fundamentais
dos indivíduos. Vejamos:

A suposição da racionalidade mutuamente desinteressada, portan-


to, resulta nisto: as pessoas na posição original tentam reconhecer
princípios que promovem seus sistemas de objetivos da melhor forma
possível. Elas fazem isso tentando garantir para si mesmas o maior
índice de bens sociais primários, já que isso lhes possibilita promov-
er a sua concepção do bem de forma efetiva, independente do que
venha a ser essa concepção. As partes não buscam conceder benefí-
cios ou impor prejuízos umas às outras, não são movidas nem pela
afeição nem pelo rancor. Nem tentam levar vantagem umas sobre as
outras: não são invejosas e nem vaidosas. (RAWLS, 2002, p. 155)

Fazendo referência ás concepções utilitaristas clássicas, ou seja, a


idéia de que uma ação deva trazer felicidade ao maior número de pessoas
possível, Rawls critica severamente esta funcionalidade, já que todo indi-
viduo possui uma barreira intransponível, e nem mesmo o maior número
de benefícios ao coletivo pode rompê-la, assim independentemente do
modelo social, todo indivíduo deve ter assegurado sua liberdade e suas
prerrogativas básicas e essenciais a suas existência.

8. CONCLUSÃO

Assim, Uma Teoria da Justiça, busca através de argumentos sólidos,


construir um modelo que proporcione justiça social, de forma transpar-
ente e pauta no mais elementar dos princípios, o princípio da justiça. Não
há outra forma de pensar um estado, senão como uma instituição capaz de

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assegurar a justiça e a igualdade de tratamento e principalmente de opor-
tunidades a todos. A organização estatal, esta intrinsecamente ligada à tra-
jetória e conseqüentemente ao sucesso de seus integrantes, determinando
principalmente suas expectativas de vida e conseqüentemente a evolução
ou declínio, de um Estado. A esse respeito comenta o autor:

Assim as instituições da sociedade favorecem certos pontos de parti-


da mais que outros. Essas são desigualdades especialmente profundas.
Não apenas são difusas, mas afetam desde o início as possibilidades de
vida dos seres humanos; contudo, não podem ser justificadas mediante
um apelo às noções de mérito e valor. É a essas desigualdades, suposta-
mente inevitáveis na estrutura básica de qualquer sociedade, que os
princípios da justiça social devem ser aplicados em primeiro lugar.
[...] A justiça de um esquema social depende essencialmente de como
se atribuem direitos e deveres fundamentais e das oportunidades
econômicas e condições sociais, que existem nos vários setores da so-
ciedade. (RAWLS, 2002, p. 8)

Esta tendência, ou racionalidade das partes, na verdade visa consti-


tuir um ambiente que não faça restrições ao desenvolvimento do indi-
víduo, o que na verdade se manifesta como um instinto de sobrevivência.
Percebemos claramente em toda teoria rawlsiana, o objetivo central de
vincular a construção da estrutura básica do estado a um sistema de princípios
de justiça, de forma que estes norteiem, antes de tudo, os agentes desta con-
strução e posteriormente as instituições que vão compor sua estrutura básica,
suas ramificações e desdobramentos, e em última instância, a conduta dos in-
divíduos. Estes princípios refletem o sentimento de justiça que compõem a
teoria, e retratam o os indivíduos acreditam ser um sistema justo.
A busca de um modelo, empenhado em resguardar as liberdades
básicas dos indivíduos e em preservar sua inviolabilidade, como propõe
o autor, quando fala da ordem serial dos dois princípios da justiça, deve
ser ressaltada. Atualmente percebemos que estes valores se perderam, em
meio a tantas falhas na gerência do estado.
Outro aspecto importante a ser mencionado, é a forma como os in-

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divíduos participam da construção deste modelo, pois seu papel é o de
atuar ativamente e, sobretudo visando um consenso entre si, requisito
fundamental para o sucesso da teoria, e conseqüentemente para sua eficá-
cia. É essencial que todos os envolvidos na construção da estrutura básica,
concordem com os termos adotados e mais do que isso, que participem de
sua elaboração.
A proposta do autor, de estabelecer uma situação em que os indi-
víduos são forçados a deixar de lado seus interesses pessoais, suas condições
econômicas e sociais e principalmente, forçados a pensar de forma cole-
tiva, ou seja, visando preceitos universais, é o diferencial da teoria, já que
a história nos mostra que todos os modelos estatais concebidos até então,
sempre estiveram à mercê dos interesses da classe dominante.
Destarte, não é possível aceitar um modelo de Estado, onde seus al-
icerces não estejam pautados na justiça e na equidade, assim como não é
concebível, tolerar a afronta às liberdades básicas dos indivíduos, valores
tão caros ao ser humano.
Nossa função, enquanto cidadãos e parte integrante de um Estado, é
lutar incessantemente por uma estrutura básica e principalmente por um
modelo de estado, onde não hajam diferenças entre os indivíduos, onde
suas necessidades e anseios sejam correspondidos, e principalmente, que
esta estrutura propicie nossa prosperidade e desenvolvimento.
A contribuição de John Rawls para todos estes objetivos, com sua
Teoria da Justiça, é indiscutível, e deve ser difundida.
Encerramos este estudo, com o pensamento de Olavo Luis Pimentel
de Carvalho1 (2000, p. 78):

A incapacidade de um povo, para perceber os perigos que o amea-


çam é um dos sinais mais fortes da depressão autodestrutiva que
prenuncia as grandes derrotas sociais. A apatia, a indiferença ante
o próprio destino, a concentração das atenções em assuntos se-
cundários acompanhada de total negligência ante os temas essên-

1
Olavo Luis Pimentel de Carvalho, filósofo e ensaísta brasileiro.

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cias e urgentes, assinalam o torpor [adormecimento] da vítima que,
antevendo um golpe mais forte do que poderá suportar, se prepara,
mediante um reflexo anestésico, para se entregar inerme, e semi-
desmaiado nas mãos do carrasco, como o carneiro que oferece o
pescoço à lâmina. Mas quando o torpor não invade somente a alma
do povo, quando toma também a mente dos intelectuais e a voz dos
melhores, já não se ergue senão para fazer coro à cantilena hipnótica,
então se apaga a última esperança de um redespertar da consciência.

REFERÊNCIAS

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Title: John Rawls and the two principles of justice


Author: Raphael Bazilio Dalla Vecchia

ABSTRACT: This article aims to research and the discussion regarding the Two Prin-
ciples of Justice, established by John Rawls in A Theory of Justice. These principles were
proposed by the thinker as conductors for the realization of social justice theory, and
also as a rule for the new Rawlsian state model . A Theory of Justice (1971) is currently
one of the works of grat importance to everybody, especially with regard to Political Phi-
losophy. With a contrary philosophy to Classical Utilitarianism and Neo-contractualist
vision, this aroused great interest in contemporary academic community, especially by
themes, such as the state’s role as an agent responsible for justice, the approach of justice
as fairness and proposed new social contract based on principles of justice, the latter be-
ing the topic presented.
Keywords: Justice. State. Equity.

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