Você está na página 1de 2

VILÉM FLUSSER - O HOMEM SEM CHÃO

O HOMEM SEM CHÃO

PROFESSOR DE TEORIA DA LITERATURA VÊ NA AUSÊNCIA DE PÁTRIA DE


FLUSSER A ESCOLHA PELA LIBERDADE DO PENSAR.

No início de sua autobiografia, Vilém Flusser se apresenta como bodenlos, isto é, como
um homem sem chão, sem fundamento. Para explicar o absurdo, Flusser faz analogia com a
planta dentro de um vaso de plantas. Em nome do amor à natureza, seres humanos enterram
plantas em vasos e assim tiram o sentido das plantas. Os migrantes são plantas arrancadas do
solo original. Sua condição bodenlos se agrava se a migração é forçada como a do filósofo,
expulso da sua Praga natal por causa da invasão nazista. Essa condição se agrava ainda mais se
o migrante sobrevive, sim, mas perde toda a família, assassinada pelos nazistas.
Por isso, aflige a Flusser a questão crucial: devo ou não me suicidar? Em outras
palavras: devo ou não emprestar sentido ao sem-sentido de que sou vítima? A questão não é
apenas pessoal. Se me suicido, confirmo não haver sentido na existência – logo, Deus não
existe. Se não me suicido, continuo procurando sentido na existência – logo, continuo
procurando Deus, um dos nomes da verdade.
No artigo “O Mito de Sísifo de Camus”, Flusser reconhece “que tudo carece de
significado, é absurdo e se precipita na direção de uma morte absurda e sem sentido”. Então por
que não me matar, mergulhando, do trampolim do absurdo, na transcendência do nada? Por que
o suicídio é “uma espécie de metafísica, de truque teológico, em resumo: uma tentativa
desonesta de escapar do absurdo. Consequentemente, o suicídio deve ser repelido, como
qualquer outra espécie de metafísica”.
Ao repetir o suicídio, Flusser descobre “a liberdade do migrante”, como aponta o título
de um de seus livros. Aquele que migra precisa mudar de língua e dessa maneira sai do aquário
da sua realidade para percebê-la de fora. O migrante suspende as próprias crenças para pensá-las
e assim repensar-se. O migrante percebe não apenas o absurdo que o constitui como enxerga
com clareza o outro absurdo do mundo moderno: o patriotismo. O patriotismo reforça e justifica
os outros ismos, tão nefastos quanto: racismo, machismo e especismo, por exemplo. Flusser
diagnostica sem meio-termo: o patriotismo é o principal sintoma da nossa enfermidade estética.
“Somos animais que negam, e isto é a nossa dignidade”, afirma o filósofo. Queremos
sempre ser o que não somos, e por isso criamos a língua, a ciência, a ficção e a civilização.
Quando afirmamos com orgulho que somos isto ou aquilo, por exemplo brasileiros ou cristãos,
tchecos ou judeus, suíços ou protestantes, afirmamos um pouco demais – e desta maneira
negamos a negação que nos constitui e nos diferencia.
Afirmar-se patriota implica glorificar o mais puro acaso como se acaso não fosse.
Afirmar-se patriota implica fingir que se escolheu nascer e viver nesta pátria, nesta família,
nesta religião e nesta época, quando não escolhemos nada disso. Aqui estamos, sim, mas à nossa
revelia. O migrante, porém, contempla as suas pátrias, a antiga e a nova, de fora. Há dor, às
vezes muita dor, como no caso de Vilém, mas também imprevista liberdade. Essa liberdade
constitui o estilo filosófico do pensador, mesclando o silogismo com a metáfora e o axioma com
a ironia. Sua filosofia tornou-se conhecida como a expressão mais acabada da “ficção
filosófica” tão procurada pelos filósofos, porque junta especulação com poesia.
O leitor de Vilém Flusser rompe, pouco que seja, as fronteiras e os limites das pátrias,
das raças, das religiões, das escolas, das universidades, das disciplinas, enfim, do conhecimento.
Ele não se prende às notas de rodapé, a que Flusser, aliás, nunca recorre. O filósofo e seus
leitores reconhecem a insegurança que os constitui, mas por isso mesmo podem escolher a cada
instante o chão em que desejam pisar. No momento em que se assumem sem fundamento, o
filósofo e seus leitores reconhecem a dúvida que os atormenta desde sempre, mas por isso
mesmo podem estabelecer seus próprios fundamentos.
Vilém Flusser, o homem sem chão, é aquele que lavrou para nós o chão da liberdade.

Fonte: Correio do Povo-CS Caderno de Sábado/Gustavo Bernardo (Escritor e Professor de


Teoria da Literatura na Uerj. Escreve junto com o suíço Rainer Guldin, a biografia de Vilém
Flusser, com publicação prevista para 2016, em português e em alemão.) Em 16 de janeiro de
2016.

Você também pode gostar