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PERGUNTAS

SOBRE A DIFERENÇA ENTRE


Svetlana


na véspera de sua partida para
ny, emmanuel hocquard datilografa
um poema de george oppen
em sua máquina de escrever
underwood n. 3. é como svetlana querendo voltar
para barcelona aqui não fico
mais nem um dia dizia no café
com nome grego que
lhe fazia falta ver as coisas
invisíveis daquela cidade e seu marido
na contramão carregando
no braço o menino sem língua,
tentando alcançar o que
aparecia do outro lado do mar
se alguém ainda viria
para ajudá-los
nesta época
do ano a tormenta não costuma
demorar (o poema era em inglês)
e tinham medo de se perder,
ela dizia, por isso a distância,
ritmo de degrau seguindo
cortado, por isso
o modo de andar e
o ziguezague do avião sempre que saíam juntos.
tinham medo e todos os dias fazia
algo para evitar. depois queria
encontrá-lo na rua,
perdido, como um acidente:
cruza uma esquina e vê. desligou
a chamada na hora
precisa, a voz cortada outra
vez antes de seguir
pelas ramblas.
M.A.

é como o perigoso encadeamento
das coisas murmurou ao sair
da sala.
antes de filmar
tudo observou a posição do sol naquela
tarde com casas árabes e imaginou
a seqüência dos diálogos

em camadas. quase uma língua em
curvas ou
ficar parado no escuro. as duas diante
da lente não se viam jamais: alternavam
a posição (a de branco
sorria sob o fundo de algas)
depois enquadrou o deslocamento
para hong kong num vôo
atrasado. como seguir tentando um ângulo
inverso se quando passam os dias
tudo piora? como seguir o horário
girado que adquirem depois
de anos de escassez?
sentou num dos bancos
de frente para as duas

(há algo que custa dizer
e não sabe o que é,
um peso geral de
coisas talvez)
de onde vem o nome
patagônia? e os pingüins? como
precisar a seqüência daquelas
imagens? e como fazia para
nadar tão perto das
rochas?
I. um filme

não sabe em que momento
aconteceu [estava de preto] nem
podia imaginar que a mecha
armada sobre o rosto se tornaria
qualquer coisa que não se nota
depois de uns dias. a pergunta serve
apenas para manter a horizontalidade
das coisas
(não crê que
possa explicar como queria
encontrar alguém assim: levanta
com pressa e entrega o papel
verde-musgo). leva tempo entender
de onde vem tanta palavra e qual
língua pode ser usada num momento
de anóxia (o túnel estreito sempre
em linha reta e depois
o reflexo congelado
na linha 14).

II. rue de fleurus
daquela janela, a placa no lado
oposto da rua com as iniciais de g.
s. não ouve nada muito bem, mas ainda
deve esperar o frio muito fino, tomar o
trem a chuva o meiofio
contornar o jardim – e ali o vendedor
de crepes tinha fechado o negócio. o livro começa
com uma pergunta ao acaso sobre esta
cidade, mas o principal nem supõe –
como chegar ao ponto de encontro
com o filme começado. todas as vezes
perdia a estação e traçava rotas
diversas (tentava explicar trocando de cabines
e ligando diversas vezes por
dia, em deslocamentos
aéreos.)

III. liancourt 9
como fazer para voltar se não traz
o bilhete lilás nem a carte
orange? conta duas portas
à direita e sobe a escada
-caracol.
uma parte de tudo é fixa
e escapa do campo de visão
e escuta. como estar em praga
e entender o que dizem
[tout le monde laisse les
problèmes dans leur têtes
comme on dit là-bas]

IV. tout arrive
(contando da banda terrorista
deste país e das notas de
svetlana sobre gràcia)

– a porta é verde, avisa,
basta subir que os corredores
dão no mesmo quarto. é uma questão
de álgebra, dizia, é só mais
uma questão (no vídeo chegava sempre
tarde demais e ficava olhando:
o elevador amarelo e a
porta com o 9 e um
cadeado.)

ouvir o som de uma língua
não quer dizer algo tão
definitivo – o acento se
encaixa na outra língua e
asfixia o espaço daquelas
palavras

V. na beira do canal
“al fin no llego a saber si es
grande o pequeño. es una
cuestión de ocultamiento”.
Num dia branco

segura a borda da mesa com
o cabelo vermelho vamos
para a polônia
ver a neve
andava tão dispersa assim
ele nunca conheceu a família com ganas
de frio. sempre aquele
movimento
preciso ler outras
coisas a frase cortada
no mesmo ponto fresta de luz
onde fala uma gargalhada
assomada à janela quando o vê
do outro lado da rua procurando o
castelo.
cabelo curto, segura a ponta
da mesa e mastiga as sílabas
em sua língua.
Apêndice a Num dia branco (com Lise Sarfati)

a cortina em ondas na
sala, semicírculos de luz
que cobrem
o chão, pouco a pouco
uma imagem recorrente: “dehors
maintenant...” mas não sabe, um
pedaço de terra cravado naquele
oceano e viver ali: seu nome
não vem no lugar do destinatário não
mais de 100 quilômetros de
escuta e a caixa do correio
quebrada pode deixar a
chave que o inquilino encontrará
tem olheira e casaco azul
os cabelos curtos, deitada no sofá
amarelo. todos falam alguma
língua eslava (sabe que perdeu alguém
para sempre). no fim do ano, vamos
cruzar o estreito. andava tão dispersa
assim pelo movimento ele
nunca
viu a neve
De dentro da caixa verde

I.
como o sulco da caligrafia
chegando toda semana. como
o pulôver vermelho
que veste agora (não era
a volta para casa, um consolo, nem
a limusine negra veio buscá-la
de outro poema)

uma noite que se estende
com os ruídos de um sono
ausente — e se você levanta num
entressonho, parece outra cidade, quando chega
a luz do dia muito antes da hora — não sei
em que mapa ficou leeds
nem aquele passeio de mãos dubitativas
em torno da praça.

II.
de vestido amassado no pico
da montanha (o ponteiro dos segundos
rabisca o silêncio): — não sou
felice, sorria com calma, de dedos
trêmulos – é uma relação
virtual, eu vibro como esta estrada – olhos de gato
no escuro concreto, do banco
da frente nem suspeitava da perseguição. nem
suspeitava das vozes que vêm do oceano
(algum barco ainda aguarda
na enseada?)

III.
sobre a mala
a caixa de chá (não o desejo
de contar os aviões partindo
na pista sobre o mar) na passagem tinha impresso
o retorno (temos os dias contados? para
onde vai? sua voz de
neblina no escuro)
Victoria station

cotovelos sobre o braço da cadeira,
consulta o mínimo relógio de pulso: nove

e vinte. tem os cílios tremendo num cacoete
seguido e os letreiros piscando
regulam a chegada dos trens. o postal com um
urso branco dizia quarta-feira vs.
o ponto de encontro é cada vez mais distante,
você pode estar num quarto de hotel ou numa
estação, “chego sempre fora da hora”. ele disse
que sabia, foram anos fugindo da chuva
– ficava na última cadeira contando os segundos
antes da partida. – essa é a única
maneira de estar entre.

podia levantar num movimento perpétuo,
cabeça erguida e um postal: eis a senha.
(assim fugia a silhueta da mulher
de costas) a essa altura podia ser um silêncio
maquinal, mas o ruído na hora de dizer
e os largos dedos apontando tornavam
qualquer fuga impossível
39º34’13.26”n 2º20’49.50”e (diz em catalão)

I.
quando o vir
estará de verde musgo
com o caderno aberto para
esconder o rosto. poderá ser numa autoestrada.
nunca chega na hora certa: a sirene alta
atirando seus pedaços na parede do
túnel.
ali tinha um contexto
de tudo, não seguir falando
sem o ritmo adequado
ou o que tivesse ganas.
agora a voz que chega não tem
sons. a quantidade de ar entre eles
e o deslocamento
para chegar.

(pensar que em outros tempos
ouvia sermões a dois
passos de casa
ou saía para ler no parque)
– sim, está tudo bem agora,
toquei duas horas de
piano e mais duas
de corrida.

(embora quisesse
dizer algo diferente)

II.
todas as igrejas com suas torres
redondas e a paisagem não muda nunca.
pode ficar ouvindo o que dizem
deitado no estofado de trás
por duas noites seguidas, mas depois
não sabe para onde vai
para que direção
segue a estrada
no livro perdido apenas um
nome:
amalfitano.
Aquário

tem o pânico das algas marinhas
quando acorda de frente para o estádio.
o quarto é um aquário
com setas submersas de
sol e seu corpo filtrado
pela luz do insulfilm
tem o contorno
de um magnetismo
inverso. não que importassem

as horas. apenas não sabia como ali chegara. não
sabia quanto tempo tinha passado (um cão
lambia o pé, a mesma imagem
congelada)

e na saída: “vai me responder de novo com
uma pergunta?” “mas a configuração é
diferente.” e ela disse, não lembro o que ela disse.
o estádio é um buraco no tempo e de cima
suas guelras latejam os ecos da última partida.
você se encolhe atrás do vidro
redondo, luta para vencer
as pequenas pedras, como num oceano
violeta genciana
O que fazem a e b quando chegam
a cidades destruídas

a.
estar tão longe num quarto com
dois quadros e uma janela
para o pátio. no meio do
pátio uma macieira
parada.
sai com duas malas de 20 quilos e na chamada
explica: todos os nomes aqui são um
equívoco. jamais pode andar
fora da zona delimitada (“chamam
isso de um kindergarten, mas é
um palco enorme de madeira,
mal enxergo onde termina
o teto”)

b.
chega numa terça-feira depois de perder
dois vôos na mesma cidade.
a legenda da foto
dizia: soneca. mas não explica muito
bem quem estava ao lado, o frio era o único
tema de conversação. a casa tem três
quartos com papel de parede e o vão
entre a janela e a porta congela as
primeiras noites.

a.
passados uns dias já sabe que
as tentativas aquáticas não podem ser
usadas nos rios deste país. sabe que ninguém
responde à neve. quando está sozinha
no quarto pensa que terá dois dias
úteis. depois pensa nos glúons
e quarks e nos anos estudando
a cromodinâmica quântica.

b.
pensa na chuteira que sempre quis
ter. nas aulas de pólo aquático,
nos cálculos. recebe a chamada de morte
e diz: daqui não sinto nada. leva as roupas
até a lavanderia da esquina e fica
parado girando os olhos. no dia seguinte
escreve: amanheceu tudo branco
pela primeira vez.
Olho vigilante

I.
não passar de uma superfície
circular, um tanto vítrea nos momentos
graves e bastante fixa. a primeira cena sempre
se congela, nada pode passar do instante
anterior (sólo voces) apenas uma carta de papel
cor de aço que se mistura ao quarto com
aquela caligrafia torta e ela
diz tudo o que você não quer
(mas no arquivo este pavilhão
aparece sempre entrecortado)
após entrar em colapso, vira para
o banco ao lado e
canibaliza todas as falas.
seu comportamento
quer apenas um pulsar.

II.
com menos velocidade
via do trem a neve cobrindo
os campos (no satélite a cidade
crescia para o sul)

– hoje é a noite mais fria do ano
ou do mundo
no seu dizer digital
aparecia na tela pela primeira vez.
depois disso não tem mais volta
nem calefação
Liancourt, 9

y entonces pedir cada noche
que sea veloz, sin dolor
pasar del on al off
Andi Nachon

I.
estar ali é perder o
resto: como não dormir por várias
noites, andar com um livro de pequeno
formato sob o braço, aprender uma nemo
technique para não esquecer a direção certa
(depois liga pedindo uma paisagem
vermelha porque já fossilizou o
resto) desce a torre pelas laterais e chega
sempre no mesmo lugar: uma cabine
telefônica. se percorre 100 km, como
posso descrever o quanto é pequena?,
logo se afogará, não há como explicar
porque o sistema nunca é perfeito. os
primeiros passos enganam, mas depois
está ilhado.
pode ser o 11-m
ou a física marinha que o
levam a outro continente, mas não define
bem quanto tempo restará. sabe
apenas que o livro começa
naquele dia.

ii.
pode viver num pedaço
de terra no mar, cercado de fósseis
marinhos e não responde de que
lado fica a segunda porta, não diz
nada além:
é muito cedo ainda
[...] e sabe que isso
não é real.
os olhos desligados no escuro por
dias cansados, as três estradas não
significam nada [...] tenta identificar
o contorno do rosto mas quando giram
surpresos [...] quando giram surpresos
vai segurando o riso para não perder o dia
não perder o momento exato de se
virar e dizer o nome
errado


LE PAYS N’EST PAS LA CARTE
Le pays n’est pas la carte,

pensa bem, mas
se tivesse as ruas quadradas
teria ido a outro café, teria dito tudo de
outro modo e visto de
cima a cidade em vez de se
perder toda vez
na saída do metrô. não é desagradável
estar aqui, é apenas
demasiado real diz com cílios erguidos
procurando um mapa

II.
não é o avião em rasante sobre
a água e nem o corpo
na janela semi-aberta
vendo o desenho
dos carros embaixo — não comenta nada
porque prefere armar planos
em silêncio
(estaria sonhando
com colinas?)

III.
de lá manda longas
cartas descrevendo o país,
os terremotos e a forma da cidade.
pode me dizer que nunca se
espanta mas não percebe que
caminha perguntando:
é de plástico a cabine? é sua voz
na gravação? é um navio no
horizonte? pode ser apenas
uma margem de erro mas
não pensa nisso
com frequência

(pode ser apenas a janela
aberta que carrega os papéis)
Regra fácil

I.
vir não significa atravessar
a cidade e se deter num quarto
escuro – não significa se deter numa
estrutura de madeira sob as árvores
de laranja – lê o mesmo verso
várias vezes e espera sob a
marquise, o reflexo pisca

-pisca
das letras borradas, aquele risco
no ar por onde tudo começa –
“andaremos pela cidade, é sempre
a primeira noite. o inverno me tranca
em casa até chegar

a notícia.”
(pode ser aguardar pode ser
verde-musgo pode ser uma
cidade-satélite pode vir escrito
num livro) o ruído da espera essa
granada verde-musgo
no centro da mesa.

II.
quando o vê
não tem mais olheiras nem
olha fixo. entra pela porta

giratória
e se dirige a uma máquina:
a regra se impõe, diz
desviando o rosto de qualquer
vestígio que pudesse identificá-lo.
é uma regra fácil e não há
como escapar – se caminha até a esquina
já verá tudo (sabe que vir pode significar
outra coisa.)
Um sinal

um beco de pedras da sexta
avenida e um risco azul ao redor
da retina eram as últimas pistas (não
sabia que terminaria diante das
montanhas). uma voz em off: este
homem morrerá no fim. e se
você acorda e não sabe
quem é
ou se não sabe de onde
saíram essas moedas holandesas,
pode entrar numa cafeteria de vidro
em busca de sinais, pode conhecer
uma menina chamada katherine
ou heather, que viva em leeds
para sempre.

(– como você sabe
que isso é um sinal?
apenas é, diz limpando
a poeira cinza
e colante)
Carte orange

I.
quer estar em uma
cidade alta por que não disse antes
que era isso de onde pode ver
o arame invisível que faz
mover o poema. entra pela direita
em silêncio, senta num ângulo para
olhar de cima podiam ter subido a pé
se dissesse ao fundo um risco
por onde tudo começa.
pode ser
um mínimo frio, a janela entreaberta
dando para o farol girando
seus reflexos pelo mediterrâneo ou
tanger passando todos os anos para chegar ali.
controla tudo do sétimo ou
do outro lado
da tela. cada fala
com seu acento
de defesa

II.
depois a rua deserta queria ter saído
mais cedo a estação de trem
abandonada para ver
do alto e uma tormenta de areia ou
uma tormenta de chuva ou uma
tormenta de eletricidade
ou ficar olhando com espanto
todas as vezes.

III.
funciona como um movimento
disrítmico que
entremescla os dois
níveis. ficam até tarde buscando uma resposta
que se encaixasse no que parecia
concreto: levar um guarda-chuva
e esquecer a carte orange em casa.
a alegria ali tinha algo
com as alturas.
Um carrossel na cabeça

I.
sobretudo conheceu alguém
num dia terminado que dizia roubar
frases pela rua e o homem-sanduíche
ziguezagueando em sua frente
muito antes de poder baixar ao
metrô (o que parecia apenas o pesadelo
da primeira
noite:
no corredor o descascado
da parede e depois esquece
tudo esperando uma resposta com
seus olhos longos
e duros)
não que saiba
muito bem de onde chegam e se entra
na avenida certa pensa que do outro
lado na horizontal a plaça reial está
cheia, os movimentos seguem
a mesma direção
só que em paralelo. dizia
que as frases pegava para outro contexto.
ia indo com meias vermelhas girava
o pescoço 180º na noite mais curta
do ano: pela costa se pergunta porque
foi embora justo quando podia ter
dito o certo,
tinha um carrossel na cabeça e o mais
apropriado seria não continuar fixada
nos gêmeos (mientras uno decía
¡que hermosa estás!)

II.
toda a vida uma ação real
para tornar real uma metamorfose. e c. tarkos
em montparnasse sem dizer, se esconde
atrás das árvores (a basca lhe acena
de outro poema). no bolso,
amarelo e em formato pequeno,
l’argent: a medida exata
para explodir o mundo
e fugir de tudo
Linha 14

this is the future/ (of an illusion)
Stereolab

I.
custa esquecer o último túnel, o tempo
subterrâneo e o demorar
aquela hora.
no mapa, é como um fio lilás e o
vidro tem espessura de muralha:
quase um perigo iminente. enquanto
submergem em alta velocidade, não desvia
para ver quem vem atrás, ali
ainda atuam as leis
da gravidade
(sabe que precisa
responder mas talvez não entenda a
pergunta. um leve movimento
de rosto cobre os círculos
na parede) talvez não responda
porque gastou o
mecanismo.

II.
atravessou o cemitério antes
de descer as escadas, o viu
encostado no mármore branco,
4 passos para o sul, 17
para oeste.
quer descer, escapar,
ninguém que tenha descido
pôde jamais voltar (não responde porque seu tempo
é diferente ou porque
já não entende).

III.
acima de 120 decibéis começa a correr
risco, mas insiste: você quer
vir comigo? o eco da
voz no vidro. do outro lado
sempre responde algo sem som,
um acento diferente
na falta de voz.
Trocadéro

sabe que custa chegar
e atravessar os últimos passos
na esteira, os minutos da
ligação final
(a cor na parede
sempre produz a complementar na
zona vizinha. deve se fixar em todos
os detalhes e na máquina de raio-x já não
lembra de nada.)
sentar no metrô na última
noite tentando encontrar. não sabe
que o livro termina assim. “sempre
lembrarei daquele dia de frio em
trocadéro sempre restará algum
lugar, mesmo que seja um lago retangular
com as bordas de pedra.” estava lá parada
com o bilhete para a véspera – ver o mar
diminuir na passagem por cima,
um minivulcão de um
quilômetro cúbico e tomar a
direção errada
do quarto alto escuta todos
os passos noturnos e vê apenas uma
forma de mármore branco. ele se agacha
para entrar pela porta e fala devagar. não
importa o que faz parte ou não das
coincidências. primeiro seguia de costas
pelo rio branco e dizia em câmera lenta
as coisas erradas. no instante em que
virou estava parada com o papel
na mão (quero passar aqui
para sempre) caminham devagar porque
pode ser uma questão
de silêncio
Duas vozes

I. O que se esconde atrás de uma voz
sofre em alguma parte
em silêncio. entre eles
na mesa de vidro do café apenas
um círculo de água
e quanto tempo mais dura
uma noite terrível? pela janela
tudo escuro não há luzes piscando lá fora
não há som, só a fumaça sob os pés
um território lunar, alguém
disse. e se você olha para um lugar qualquer
como algo estranho acaba por poder retê-lo
na memória por um tempo indefinível. não
este lugar, pensa bem. um abraço do alto
da escada antes de tudo dos corredores
paralelos da chave azul
sobre a mesa.
o que se esconde por detrás de algo
se você olhar bem pode ser que veja.
(sentado no banco
durante todas as horas).

II. En extrañeza de mundo
no carro metal-chispante
seus cílios riscando o ar
denso e cada um ensimesmado.
estranharam-se em silêncio durante
tanto tempo (essa cidade nasceu
de uma série de erros e derrotas) na
película pareciam dizer: como você
suportou todos esses anos?
voltar é sempre um estado de
concreção nebulosa, uma negatividade
em aceitar o aceitável

dizer aterrar é melhor do que
aterrizar nesse lugar
e ficar parada numa esquina
à espera do código
Classificação da secura

I.
agora já é quase amanhã mas queria
dizer apenas que é muito
tarde: acrescentar quatro horas ao relógio
indica que já é depois. lá é sempre
depois. parecia um nome
italiano com aquele som ecoando e a
resposta em outra língua mostrava
a cor das linhas no mapa,“é lilás”, para
não dizer algo preciso
para não terminar: com ela
saio cedo todos os dias. fico de
vez em quando escondido
no porto. tomarei
o transmediterrâneo e comerei
calçots,
até chegar o instante antes
do instante, momento em que vê o relógio
e diz: não. já conhece todos os erros
do sistema e a retina derretendo
sempre que levanta
para sair dali.
(precisão é o retângulo do degrau
inferior.)

II.
alguém que não consegue se mover
e uma semana de vozes cortadas, deve
se acostumar aos movimentos em câmera
lenta, à descida pela escada em
espiral:
recorta os sons de cada
quarto e apaga as perguntas que
mais detesta responder. como aquela
noite no ônibus, ruídos do rádio e
pedaços de frases atiradas,
sempre girando as horas.
ver a paisagem
sem ela e precisar o tamanho da ausência
com poucos dados – sabe que as baleares ficam
do outro lado do mar, que custa chegar
anos depois e dizer. ergue os olhos para
fixar o que tem ali e não perder
de vista a secura.
20 poemas para o seu walkman

I.
um dos primeiros dias
do ano, francesc subia a notre-dame
-de-lorette atrás de jacques roubaud
e sentava no café gioconda de frente
para uma sacola com um
gato dentro.
um dos primeiros
dias do outono, não parecia seguro
ficar ali – como a beira do barco
escorregadia e do outro lado
tudo era um quarto com terraço
as ruas crescendo ao redor a estação
de trem com mato cobrindo as
linhas e às vezes um mergulho
na água salgada:
ficar boiando
com um walkman e depois olhar para
os pés: – um pouco insulano isso de as
línguas isoladas se misturarem
pouco a pouco e dirigir
na estrada à noite.

II.
depois descia as ruas
e queria ficar no carro trancado
segurando um livro. o penhasco
apagava qualquer definição
de coisas, mas quando
se virava
ela já não estava
tomara o barco para casa e dizia
que talvez no verão seguinte mas
só ligava para contar do emprego
de matemática – “quase um objeto
poroso” – sair para um concerto de rock
e preparar variações para uma
vegetariana amável que pinta
de branco o apartamento
antes de ir.

III.
um dos primeiros dias
e chegava o cartão da
catalunha, dizia que ficava
mudo em seu metro e noventa
esbarrando nas pessoas e olhava
para os pés: um tênis azul. se não tivesse
tanta hierarquia ou o que pensaria
(estaria de verde? traria uma pilha
de objetos nas mãos? teria um
fone de ouvido? e ainda cantaria
em voz alta)
Código Morse

por só esse instante esperou toda
vida durante a espera olhando para
os lados, o ruído constante do morse
e uma faixa fluorescente saindo
de dentro do aquário. a escada
na lateral do prédio não sabe
onde vai dar
todos os corredores aqui são
paralelos mas você parece não
lembrar que numa noite foi até seu quarto
e ficaram parados enquanto chovia. você
parece não lembrar que os dias da semana
se perdem neste lugar
(um sinal breve e dois longos) e não tem a chave
para o naufrágio verde, esquece
sempre os dias e a língua (voy olvidando el
portugués) mas esse instante. é como
ficar no por enquanto é como o barco
que afunda sem apagar as luzes como
esse dia (perder a mala e não saber.
nos momentos mais elétricos
se cala e observa)


ENCONTRO ÀS CEGAS
(escala industrial)

Tomorrow is easy but today is uncharted
John Ashbery
[de verde sob o relógio]

parada sob a sombra do relógio de aço o problema é que não há nenhum novo problema pensa nos olhos
gastos o perfil o sinal do braço a espera com seu ruído quando olha de lado cada um traz seu crustáceo
cintilante que fará agora corre para fora com os cabelos soltos pronto que fará depois o contorno dos
lábios com frases tiradas de um guia a voz metálica impessoal saída de um disco microsillon o primeiro
encontro naquela tarde parecia que tudo acabaria seu olhar a forma de uma cidade destruída refletia e no
cidade vira de costas

[um quarto cor de grafite com um buraco no alto sem janela]

em pé olhando pra fora sobre a cômoda algo derretido a cera amarela um vídeo clip una canción sinfin
vem de paris depois de anos-luz país de dores anônimas diz que queria um mundo calculado fatos que
se reduzem a tapas agora poderia sair sem olhar não tema as hélices que fazem sua voz girar dos dias
ausentes guarda a sombra dela e o blaugrana do estádio a mudança de tom ao telefone o conta-me coisas
e o filme de hh em silêncio queria dizer nada quase nada talvez trouble and desire there’s nothing but
trouble and desire

[na estrada de mão-dupla]

no estofado do banco da frente sob a pele o reflexo do deserto pode ser que não ouça nada naquele
estado quer levá-la para l’autre cap sair dali correndo ligar o carro fabricar um escafandro para os lábios
em movimento vira de lado ao sair andando hoje só vê as formas triangulares o agudo das pontas a
tempestade contra a limpidez horizontal na hora da viagem just like this rainstorm ela disse coisas que
não se dizem saiu em câmera lenta e ao subir a terceira passarela se virou para o céu poderia ser um dia
como outro mas quando a vê com olhos rijos parece morta talvez sonífero para instantes sem o skype
talvez correr sob a tormenta em ziguezague ela falando do pânico e das noites giradas em huelva

[chove sai correndo do café com nome grego entra no segundo edifício sobe dois lances encaixa a
chave]

a roupa de frio sobre o biombo abaixa a cabeça para entrar ouve tudo o sapato molhado um sistema
certo para dizer o que quer talvez não lembre mas sabe pela fresta de detalhes que ela não percebeu
subiu cada degrau com passos surdos criou planos museológicos e ouviu alguém chamar seu nome a
peça de 38 toneladas não foi encontrada e saiu do quarto sem virar para trás sabe que não disse gostaria
de ficar sozinho tudo como sempre foi fica na janela calculando as possibilidades de sumiço de equal-
parallel/ guernica-bengasi foi apenas a primeira no deserto quando os obstáculos sob a claridade a
certeza de alguém falando dos sinais

[na rambla sob o céu do siamês]

quina de mesa e os cabelos sobre o vidro caminha sem rumo todos os dias senta-se para ler no primeiro
café não era a hora certa mas o avião girava em ângulo reto percebeu que deveria se levantar dizer
qualquer coisa fingir a parede seca de cal ardia os olhos e agora as malas crescendo como ruídos de uma
dança de corvos em seu caderno ele a combatia num jogo de espelhos do outro lado dizendo de lá
qualquer coisa removeram uma praça enquanto isso se entretém com o céu do siamês a praça itália não
está mais ali acha mesmo que era a voz dele enquanto dormia

[cabeça erguida, crê que é invisível]

senta-se com os dedos atentos congelados um piscar pode liquidar a comoção da epígrafe tem
frustrações e esta é mais uma fixada em descobrir o que sua voz não diz não sabe mais qual a distância
para a outra margem
o tempo sempre cortado os órgãos gemendo nos cem primeiros quilômetros do outro lado o meio sorriso
a máquina verde-musgo um tictac obsessivo tenta se lembrar a cor calcular o comprimento de um mar
de pequenas mortes e descobrir o que acontece quando encerra a véspera

[espera o ferry]

refaz os detalhes parada olhando a sombra de molas pergunta se são reais busca as palavras exatas
esquecendo oito dias arrumando livros quadrados horas aguardando a tela do monitor piscando num
perigo iminente busca algo para dizer sabe que tudo acaba passa segundos triste cachecol vermelho
vendo o eco do mar na enseada e no
caminho de volta esquece a cor do céu lilás vê de longe aqueles ombros descendo com braços longos e
finos depois o bilhete sobre a mesa mensagem dúbia que não esclarece um planeta explodindo em
silêncio no espaço


ALGO QUE SE ESQUIVA
Codecs

I.
estar em contato durante
um trânsito mútuo é diferente, não conta
porque ainda não tem
uma resposta.
apenas se fixa na estrada
e segue conduzindo as esteiras. não
sabe se ela gosta de olhar para
aquelas fotografias do deserto
em p/b. se gosta de escutar
o som dos escorpiões que só
existem em sonhos e se
vai no próximo verão a nigéria
dizendo apenas: saibro.
se faz parte de uma salina
o que parece imaginar. não diz onde
está agora, apenas
aguarda
que voltem dos bosques gelados
que sigam juntos até terça
que se digam adeus – a voz
na chamada não esclarece
e depois de achadas as pistas não
tem volta:
eletricidade constante
em tudo o que via. deve pensar
em coisas objetivas: pequena
placa esmaltada na entrada com
o nome da rua

II.
pode ser um peixe russo em
extinção, até que chega. mas isso
não explica. é agustina ligando
do continente, dizendo as coisas
pela metade. mas não há como saber: “aperte
o botão da direita e pegue um pacote de codecs
eles ajudam a ver imagens, definir
o campo de visão”. sem ele não
vê nada, acorda virada para o fundo
gelatinoso do rio e passa as horas
aguardando como um problema
sem resposta: é uma ilha tão pequena
que quando não espera
despenca no mar.
K. e suas âncoras

I.
podiam ser três homens altos de frente
para o mar. um porto onde os navios
aguardam para sair. cobrem a vista.
o de amarelo olha para o chão
procurando uma célula de l.h.
quer olhar algo que alguém
muitas vezes não quer ver. quer dizer algo
que alguém muitas vezes não disse. mas pensa bem
e sabe que o nível do mar
é um engano.

II.
uma cidade ausente ocupada
por enguias atlânticas pode ser uma forma
de ficar entre mas não posso fazer
isso se convence. (traziam armas
brancas para o duelo)
pode ser muito tarde e fica fora
porque não quer voltar (crees que
alguien olvida algo?)

III.
pensa numa morte em que se
pode rir aos gritos. pensa
em algo que um dia
esqueceu. mas ninguém
esquece nada.
Escorpiões e a esquiva

pela quarta ou quinta vez
tenta dar uma cronologia: me
deitei e parecia um deserto aquela
areia salgada.
— mas estamos em méxico city, diz,
estamos no ponto mais próximo
da esquiva.

eles vêm de noite, no campo,
quando uma nuvem se forma
e tudo está perdido. rente ao chão.
me deitei e tratei de ouvir os ruídos
dos escorpiões

mas não havia ruídos,
só o vento e os clarões.

tratei de ouvir
o barulho da fábrica
mas não ouvia nada
(conhecer pode
ser destruir)
só um eco ou
algo que
se esquiva.
Sant Elm

contra o chumbo daquele
fundo (apenas o horizonte
piscando) dizia em voz lenta é uma
escala industrial poderia ser uma
faixa no centro da avenida reli tudo
a baleia os dias os encontros falhos
a ponte os ruídos da cidade
e vejo
que o contraste
apaga o sujeito traz
um tempo sem tempo era mais um
dia pelo mediterrâneo enquanto volta
para casa no escuro [não enxerga as luzes
ao longe?] apenas o ano novo ela saindo
do carro vermelho e andando em linha tor
ta pelo movimento das ilhas (sob a luz dentro de
uma loja escura ele falava da paula por ali
ela atravessa todos os dias e toma
o barquinho para chegar) à beiramar
um mapa para riscar as
ruas, uma forma de quase viver
nesta outra língua, a mesma travessia
que faz daquele lugar jacente
um círculo de água no centro
da mesa no centro para transportar
os dias
(sentado no banco de madeira
contava a experiência lost
in translation e podia quase ver
do outro lado do mar do vento
do deslocamento de ar e partículas
o infinito de cada
coisa)
Do outro lado da tela

I.
acontece de estar
num deserto de estar num
lugar inclassificável ao vê-lo
cruzar a praça arrastando
uma rede de memória no
momento em que o apito marca
os passos e você levanta a mão
para falar
como se precisasse
de um impulso ou se dissesse
que hacen falta los subtítulos
al hablar. nesse instante
busca se fixar em todas
as cores antes de dizer
mas vê apenas
uma mancha ocre – então
não reage, olha a cabeça erguida
e a dele em semi-círculo fazendo o
contorno
(parece estar em denfert
de noite: chove o suficiente e o guarda-chuva
grená é pequeno, não cabem apertados ali embaixo –
embora recolha os dedos para caber –
corre para comprar um despertador
e ouvir as histórias da distância
para chegar a polônia
num dia branco.)

II.
a menina da livraria subterrânea
pergunta a que horas sai seu vôo
e você não responde – recolhe as miradas
persecutórias e sai mudo, mutismo
é isso sim nem pode imaginar de que lado
estão ou de onde escrevem todas as
vezes. também não há como saber de
onde saem tantas luzinhas porque é
o máximo que já esteve
do outro lado
do oceano: o máximo
de distância através da tela, a imagem
embolotada que tenta chegar
mas é lento e cortado, um filme
antigo sem voz
Inferno musical

I.
o que explicou sobre a melodia
de sistemas não fazia sentido pois
dessa vez não havia
som algum.
— é uma deformação, quase um inferno
musical que,
ao transbordar,
congela,
como o mármore, o tombo ou
o tapa. poucos usam a palavra antiharmonia
ou antidensidade
(nada se acopla
com nada aqui)
a vida se divide em
duas partes móveis e você pode
entrar numa melodia circular
atrás da configuração correta

II.
– ezeiza es un sitio que no
existe mas chegar é repetir o
gesto inexistente, como dizer uma
frase sem som ou se tornar o mesmo
uma semana depois no momento em que
a aeronave se desloca com
mais esforço.
no desenho tenso da esteira
a única mala – para tomar a estrada
de noite no deserto asfixiante
e escuro.
Em linha reta

I.
“uma arquitetura movediça” se
lhe perguntassem dos onze
muros alinhados
e “algo verde e acurado”
se quisessem saber o que passaria essa
noite às 20h25, hora em que entraria
carregando a caixa. a mera
negativa era aleatória porque agora
via apenas
lasers e seus efeitos de realidade

II.
– jamais teria deixado sua sorte
nas mãos do acaso era o que pensava
da foto da nasa e embora nada
soubesse de infraroxos, segurava
a pulseira no braço esquerdo
comparando-a com a vizinha
da via-láctea – enquanto
o pó sideral
em roxo
escorria pelo cotovelo.
dentro do radiotaxi vê apenas
azul-grená nisso tudo, tentando apagar
a margem da foto e levanta com
espanto ao ver – entrecortada
chora, lamenta o afogamento
e os limites de velocidade,
tão entrecortada vê apenas
a medida do guidom na claridade
daquela foto – não pode distinguir
os riscos de ferrugem nem saberia dizer
se subiam ou desciam a ponte
na hora exata porque andavam
em linha reta
(somente nesse momento
deixa o carro sempre provocando
com perguntas ilógicas porque um
sistema não
se troca jamais)
Olhando a poeira

I.
chega ao café e não sobrou
ninguém só um rastro de eco
para aquele que coleta plânctons
e pixels e não volta mais porque
essa cidade é muito forte mas pode
ser que visite no domingo a feira
onde encontrará o livro
que mais espera, feito só
de números.
pensa sempre em
duas noites sem encaixe: na 1 partia
de madrugada, ali parada com sua
chave e o tubo cilíndrico de chá para
o dia seguinte – a sala vazia
amanhecendo, a sombra no táxi
e o verde derretendo dos seus
olhos.
na 2, escutava
música sob o fundo azul e lia
um poema, estava mais no
fundo de um oceano, sua voz
deixava ecos no mar ou essa foi a primeira
vez, também não lembra o que
era quando chegou – lima no es ni
linda ni fea, dizia ali com ganas de recomeçar
olhando a poeira “as pessoas
gostamos de começar, parece que tudo
pode ser e quase sim.”

II.
depois de uns dias apaga
as cores dessa rua molhada só para
parecer nouvelle vague. tinha um pouco
daquela alegria de viver junto ou
o choque de chegar: no quilômetro
mil sentado com o livro entre os
dedos, dispensa o w/t porque já pode
dizer tudo e terminar com uma pergunta
porque um dia esse lugar chega
a ser.
Ponto zero

desde que partiu, o dia ganhou
cinco horas e o corredor cor-devinho
é estreito, mal cabe nas escadas
espiraladas que
em sequência
definem o tubo de dias
para chegar.
o que restou foi
uma cidade dobrada a partir do
chão:
no alto caminha em linha
reta. embaixo só lhe resta
desviar de tudo (sabe apenas que precisa
chegar ao point zero, de onde são
medidas as distâncias, onde
tudo começa, mas nunca encontra
a marca, tudo se dissolve quando
se aproxima)
– queria que estivesse aqui
não diz porque dizer é um
deserto aberto sobre a
mala. queria que
pudesse ser real mas não é. tudo
no lugar de sempre, quase assim
tão objetivo. Ponto zero
desde que partiu, o dia ganhou
cinco horas e o corredor cor-devinho
é estreito, mal cabe nas escadas
espiraladas que
em seqüência
definem o tubo de dias
para chegar.
o que restou foi
uma cidade dobrada a partir do
chão:
no alto caminha em linha
reta. embaixo só lhe resta
desviar de tudo (sabe apenas que precisa
chegar ao point zero, de onde são
medidas as distâncias, onde
tudo começa, mas nunca encontra
a marca, tudo se dissolve quando
se aproxima)
– queria que estivesse aqui
não diz porque dizer é um
deserto aberto sobre a
mala. queria que
pudesse ser real mas não é. tudo
no lugar de sempre, quase assim
tão objetivo.
Ponto cego

talvez seja uma forma de
desespero, por ter perdido tudo (no
começo não era assim.

um minuto de espera e depois
o traço: um corvo negro
contava duas lendas)

uma era de mármore,
vestia vermelho e a outra te procurava
pela cor, às vezes pela altura.
estranho esse encontro ali à noite
no descampado deserto.

obrigada, disse recebendo o livro.
o que é que eu faço?
(anoto tudo e depois me escondo
para decifrar a mensagem).
já devia saber que o sistema estava errado,
uma arquitetura corrente.
Uma mulher que se afoga

ruído da chuva
e uma lâmpada elétrica
acende a única janela do alto
naquela cidade destruída. na beira da cama,
de branco, esperou meses para abrir o livro de
notas achado num café. “quando acredita que
a chuva vai passar?”

(mas queria dizer em que
pensa? queria dizer até quando?
queria dizer outra coisa)

de dentro do quarto
gris, apenas o contorno
ao redor dos objetos que
desmaiam um de cada vez e trocam
de lugar enquanto você espera. a luz do poste
filtrada pelas cortinas tem a forma de um quadrado
radioativo (poderia ser um wet dream que
me faz trocar os dias da semana?)

devemos ir, foi a última coisa
que falou com sua capa-de
chuva
e um bote salvavidas.
Posfácio

Notas no Schiphol Airport: portão c9
[18 oct 06 – 14.27hs]

#1 : Já tinha passado a manhã inteira da terça naquele apartamento de Kreuzberg – onde não havia
ninguém – olhando pela janela. Tentava escrever, mas era como se estivesse esperando alguém a quem
explicar os detalhes de uma viagem – e súbito compreendesse que não falava aquela língua. Talvez por
isso tivesse ficado distraído, deixando sua vista passar entre as varinhas de vime da cortina, e só mais
tarde iria reparar na sua tentativa de decodificar a seqüência da fumaça branca da chaminé daquele outro
prédio.

#2 : Não é que tivesse conseguido escrever alguma coisa, mas acreditava que sim. Ao sentar na sala do
aeroporto, foi estranho não achar a folha. Devia dizer: “Pensou em encontrá-la [mesmo que fosse outra],
sugerir que talvez fosse melhor viver do lado de fora. Depois imaginou que fossem aqueles poemas no
seu walkman, e tentou lembrar do que eles diziam. Quando você começou a se sentir assim? perguntou
uma voz – mas não viu ninguém. Achou engraçado ter o mesmo nome, a mesma biografia de alguém
que, nessa situação, teria procurado entender”.

#3 : Quando o capitão – fazia agora uma hora – tinha dito que Schiphol era um dos aeroportos mais
bonitos, a imagem tinha sido outra: “sabia que seria novamente esse céu cinza que conheço”.
Mentalmente, o que queria explicar para ela, poderia se traduzir assim: “primeiro ia dizer / que esses
poemas eram tudo / o que eu queria 80 81 escrever, e o modo em que eu me via / e via / o mundo. E
logo // o avião aterrando deixou tudo claro: tinham sido esses poemas no meu / walkman, os que – já
nem sabia / quando – me ensinaram esse modo de olhar; isso / que agora / eu chamava eu.-”

#4 : O riso, enquanto andava pelos corredores do aeroporto, tinha a ver com um motivo para não
escrever que tinha imaginado minutos antes: “Olha, é como quando Mick Jagger recusou uma entrevista
dizendo que seria sempre melhor entrevistar alguém nascido quando já existiam os Rolling Stones, do
que ele próprio. Estas notas, escritas da mão de alguém nascido depois do livro, seriam muito
melhores.”

#5 : Era essa sensação a que tinha feito que, no dia anterior – sem ter escrito – tivesse sentido aquela
vontade de riscar tudo e começar de novo assim: “Quer saber o que eu acho? Acho que dentro de algum
tempo, para se referir a esses sons que você traz aqui, as pessoas dirão: “me sentia dentro de um poema
da Marília, e ouvia minha voz, mas o sentido continuava longe, e só conseguia entender que ia me
afastando de alguma coisa – que também era eu”. E que depois dessas músicas, muitas pessoas irão
desenvolver um outro gosto não só pela poesia, mas pelos seus próprios desejos de se imaginarem
assim, e por esse outro modo de sentir seus fragmentos de fala e de memória, e por todos esses sinais
incompreensíveis que juntamos cada dia, e, em geral, um outro gosto e um outro amor por observarem o
maravilhosas e inexplicáveis e verdadeiras e diferentes que podem ser as vidas deles – quando olhadas
assim. Parabéns.”

#6 : E enquanto isso a névoa continuava descendo sobre um dos aeroportos mais bonitos do mundo
[segundo o capitão do vôo kl1823], e algumas poucas pessoas passavam pelo espaço que separava as
janelas da mesa na qual um homem de suéter preto e fones de ouvido sorria e escrevia.

Aníbal Cristobo

Sobre a autora

Nasci no dia 29 de novembro de 1979, no Rio de Janeiro, cidade em que cresci ouvindo os ruídos do
bonde amarelo e onde vivo até hoje. Graduei-me em Letras na UERJ, onde defendi a dissertação
Velocidades e vozes sobre as Galáxias do Haroldo de Campos. Trabalho na editora 7Letras, do Jorge
Viveiros de Castro, quem editou meu mini-livro Encontro às cegas na coleção da baleia branca e integro
o conselho da revista Inimigo Rumor. Devo muito este 20 poemas para o seu walkman e minha relação
com a literatura a duas pessoas presentes de modos distintos, a quem o dedico, e a quem tenho uma
infinita e alegre gratidão: Carlito Azevedo e Aníbal Cristobo.

Agradeço ainda a presença, a leitura, o incentivo de Ricardo Domeneck, Daniel Chomsky, Augusto
Massi, Heitor Ferraz, Flora Süssekind, Valeska de Aguirre, Isadora Travassos, Debora Fleck, Leila
Name, Izabel Aleixo, Franklin Alves, Manoel Ricardo de Lima, André Garcia, Silvia Rebello, Graziela
Grise, Paula Glenadel, Richard Priestley, Thereza Cristina, Francesc Flexas e Svetlana.

Poesia
Encontro às cegas. RJ: Moby Dick, 2001.

Tradução
Duas flores de Katherine Mansfield. RJ: Moby Dick, 2001.
Poemas de Benjamin Prado, in Inimigo Rumor, n. 18, SP/RJ: CosacNaify/7 Letras, 1º semestre 2006.
COSAC NAIFY
Rua General Jardim,
770, 2o andar
01223-010 São Paulo SP
Tel: [55 11] 3218-1444
Fax: [55 11] 3257-8164
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Atendimento ao professor: [55 11] 3823-6595

VIVEIROS DE CASTRO EDITORA
Rua Jardim Botânico, 600, sala 307
22461-000 Rio de Janeiro RJ
Telfax: [55 21] 2540-0076
www.7letras.com.br

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