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Á linguagem e seusduplos

A linpuapem original. A tinpuapem selvagem

A deusa da [ottbecimento não sorri aos que desdettbam os velhos.

Bhartrhari

S cinto Agostinho admite a existência de signos próprios


e transpostos; os retóricos estão acostumados a falar
de sentidopróprio e de sentido figurado; a estética romântica
separaa alegoriado símbolo. Como vimos, tais dicotomias não
coincidem entre si; todas elas mostram, porém, uma consciên-
ciada diferença entre várias formas, que são reunidas(às vezes)
sob o título geral de signos. Ao mesmo tempo, raramente se
contentamem constatar que os signos são variados: tão logo
formulada, e até mesmo antes de sê-lo, a oposição se vê muito
valorizada. O presente capítulo é consagrado a uma das formas
Tqletan Tadoro
Y'
Teorias do símbolo

dessavalorização,particularmente influente na tradição das tabu territorial (os selvagens), temporal (os hominídeos e as
ciências humanas.
crianças), biológico (os animais e as mulheres) ou ideológico
De fato, a existênciade signos e de símbolos (adotemos (os loucos eos artistas) impediu admitir o simbólico em nossa
por enquanto essasdenominações das duas grandes formas vida e, em especial, em nossalíngua/'Ora (esta será a minha
de evocação do sentido) provoca, de modo espantosamente tese), as descrições do signo "selvagem" (o dos outros) são '+

frequente, duas atitudes contraditórias: por um lado, na prá- descriçõessel«Bens do símbolo (o nosso).
tica, se convertem incansavelmente os signos em símbolos, Tal situação implica uma reação dupla.
enxergam-se em cada signo inúmeros símbolos; por outro lado, Primeiro, pode-seprovar que o nosso pensamento conhece
em declaraçõesteóricas, afirma-se sem cessarque tudo é signo, os mesmos procedimentos que o dos "primitivos" ou dos
que o símbolo não existe ou não deveria existir. "doentes". É um trabalho ainda mais diHcil de executar por
Quanto mais intensa é a atividade simbolizante, mais ela envolver os nossos próprios hábitos; ele teve início, porém,
secretaesseanticorpo que é a afirmação metassimbólica segun- com a denúncia de uma série de centrismos: o etnocentrismo,
do a qual o símbolo nos é desconhecido. Guardadas todas as o antropocentrismo, o adultocentrismo (o termo é de Piaget) ,
proporções, do mesmo modo como não quiseram admitir que a o logocentrismo. Paralelamente, podemos acostumar-nos a
terra não é o centro do universo ou que o homem descendedos observar,em nosso pensamento, os procedimentos pretensa-
animais ou que a razão não é a única senhora de seus gestos, menteprimitivos. Gostaria de dar aqui dois exemplos, escolhi-
afirma-se que a linguagem é o único modo de representaçãoe dos entre outros por se situarem nesses próprios raciocínios
que essa linguagem é composta só de signos, no sentido res- segundo os quais o nosso pensamento só conhece signos, e o
trito -- logo de lógica, logo de razão. Mais exatamente, como é ouffo,símbolos!
cliHcil ignorar inteiramente o símbolo, declaramos que nós -- os O primeiro vem de Lévy-Bruhl. A enunciação original da
homens adultos normais do Ocidente contemporâneo-- esta- 'mentalidade primitiva", embora granjeasse ampla adesão,
mos livres das fraquezas ligadas ao pensamento simbólico e que provocara alguns protestos referentes ao uso das palavras
este só existe nos ozíffos:os animais, as crianças, as mulheres, "primitivo", "pré-lógico'', "participação", "místico". Durante
os loucos, os poetas essesloucos inofensivos --, os selvagens, os aproximadamente trinta anos, Lévy-Bruhl teve de se explicar
antepassados que, em compensação, nada mais conhecem do longamente, nas páginas de introdução ou de conclusão, acerca
que ele. Resulta daí uma situação curiosa: durante séculos, os do sentido por ele dado a essaspalavras. "Primitivo" não queria
homens descreveramseussímbolos, mas pretendendo observar dizer pdmffÍvo,era só uma denominação convencional; "místi-
os signos dos outros. É de crer que uma censuravigilante só au- co" não significava míkrÍco,mas a crença na existência real das
torizava falar do simbólico sese usassemnomes emprestados. coisas invisíveis.- SÓ que Jamais quis substituir essas pa/aptas
como "loucura", "infância", "selvagens", "pré-história". Um (arbitrárias, segundo a sua própria doutrina, que contrapõe,
Zbrran Zodofov Teo ias do símbolo

neste ponto, línguas ocidentais e línguas primitivas) por razão pela qual esseexemplo foi tão bem-sucedido não é a sua
outras. Escreve Maurice Leenhardt no prefácio dos Caf?sets:' singularidade lógica, mas a construção fónica perfeitamente
Não é essa mesma razão da novidade de sua obra na época análoga das duas palavras, Z,ororoe .zf.zf'z...
que explica em seu vocabulário a escolha do termo místico, Tomo de Piaget.o outro exemplo. O ilustre psicólogo des-
apesar de sua insuficiência e apesar de não Ihe agradar? Se creveu a abundância de símbolos entre as crianças, de signos
Ihe sugeriamsuprimir o s para dizer mítico, eleopunhao seu entre os adultos. Mostrou que no símbolo se enxerto um tipo de
sorriso ironlco...
' ' .4 ' ).

raciocínio por ele chamado, na esteira de Stern, de "transdução'


Mas quem tinha razão eram os leitores de Lévy-Bruhl. De- (como oposta à indução e à dedução) , e que se define como uma
zenasde páginas de explicação não bastaram para convencer "inferência não regulada (não necessária), porque se refere a
que o sentido em que Lévy-Bruhl usava a palavra "místico" e o esquemasque permanecema meio-caminho entre o individual
sentido corrente da palavra nada tinham em comum. Escrevia e o geral".; Assim, para Jacqueline, um menino corcunda com
Lévy-Bruhl acercados nomes entre os primitivos: 'lA nosso ver, gripe não deveria mais ser corcunda quando sarar da gripe: as
dar um nome a um objeto em nadao modifica, e uma homoní- doenças são diretamente assimiladas uma à outra, sem passar
mia arbitrariamente estabelecida não poderia produzir nenhum pela classe geral das doenças, em que se distinguiriam aquela
efeito real. Para os primitivos, a coisa é completamente diferen- que provocou a corcunda e as outras. Ora, quando Piaget se
te. Sendo o nome, pertença essencial, o ser mesmo, homonímia volta para a evolução na função semiótica, aÊrma a abundância
IÍÍ/ll j} ' A' ll
vale identidade".: Mas foi exatamente assim que reagiram os de "símbolos" na criança, sua quase ausência no adulto e con-
seusleitores, para os quais a homonímia das duas "místicas" clui: 'batendo-nos à função semiótica, já não podemos, ao acei-
equivalia à identidade ou pelo menos ao parentesco! Pior ainda, tarmos a distinção saussurianaentre o signo e o símbolo, pensar
era assim mesmo que ele próprio reagia, pois, senão,por que que houve evolução do sistema figurativo ao signo analítico?"'
teria feito questão de conservar a palavra, embora não estivesse Deixemos de lado a questão de saber se é verdade que os
satisfeito com ela?Em seus Carrzefs,ele desiste de falar de pré- signosanalíticos" predominam no adulto ou que o signo
-lógico e de princípio de não contradição entre os primitivos, tem sua origem no símbolo (o que Piaget nega explicitamente
mas perm'nece igualmente cego diante dos procedimentos que alhures); atenhamo-nos apenas à forma do raciocínio. Uma
regem o nosso próprio pensamento: escreve,tendo em mente propriedadesingular do símbolo (ser menosfrequente) per-
os seus exemplos: daquele que mais agiu sobre os leitores, mite a Piagetinferir outra propriedade (ele evolui no sentido
a dualidade Bororo-Araras..."; mas não se dá conta de que a do signo). É como se se observasseque houve "mais" música

1 Lévy-Bruhl, Carnefs.p.xiv. 3 La:formation du sytnbolecbeCI'enjan!, p.248


2 L'Expérienremystiqueet [essymbotesrbeCtesprirnitíjs, p.Z 36. 4 1es Sfr cftira/fsmf, p.97

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TWetat! Todofw Teorias do símbolo

que pintura no século XIX e, inversamente, no século XX, e .ez de contrapor magia e ciência, melhor seria coloca-las em
daí se concluísse que a música evolui no sentido da pintura.- paralelo, como dois modos de conhecimento, desiguais quanto
Eis um belo exemplo de "transdução" -- que se acha, porém, aosresultados teóricos e práticos, [.-] mas não pelo gênero de
no pensamento de um adulto (Piaget) , embora este só devesse operações mentais que ambas supõem e que diferem menos em
dispor de "signos analíticos" e, portanto, de deduções corretas! naturezado que em função dos tipos de fenómenos a que se
O primeiro trabalho consiste,portanto, em assinalaros aplicam",' podemos perguntar-nos se tal afirmação não pro
procedimentos do "pensamento simbólico" naqueles mesmos cede de um etnocentrismo (ou se um logocentrismo) inverti-

I'que pretendem não tê-los. Um segundo trabalho, complemen- do, que, depois de ter recusado demasiado à magia, agora Ihe
tar, dedicar-se-á a reinterpretar as descriçõesque foram feitas, concede demais: há magia na ciência e não só ciência na magia;

pretensamente, da "mentalidade primitiva" ou da "linguagem àão são estesdois princípios arraigados no signo e no símbolo,
original"r/Descrições que não são necessariamentefalsas, m;s que diferem por n;dureza e não só pela função, nas op'r;iões
mentais envolvidas e não só nos resultados? N4aisuma vez,
se enganaram cleobJeto: crendo observar o outrosigno, muitas
[ vezes descreveram o nosso símbo]o. ciência e magia talvez sejam a mesma coisa; mas será uma coisa

E preciso desconf;ar, de fato, de uma reaçãoexcessivacontra una?De preferência, portanto, a relegar ao esquecimento as
pesquisasdo passado acerca do signo primitivo, deveríamos ve-
a ideia de "mentalidade primitiva", que recuse não só a implan-
rificar senelas não há as primeiras descrições, sempre úteis, do
tação obrigatória de tal "mentalidade" entre os outros, mas
símbolo.
também a própria existência de outra coisa do que o signo e a
As atitudes que aqui descrevo não têm uma inscrição histó-
lógica do signo. Retornando ao que cria ser,no flm de suavida,
rica precisa,e os exemplos que as ilustram podem ser tomados
uma afirmação abusiva, escrevia Lévy-Bruhl em seus Carnefs
de autores distantes no tempo. As especulaçõessobre a língua
(p'62-3): 'Â estrutura lógica do espírito é a mesmaem todas
original são muito antigas; as sobre a linguagem dos loucos
as sociedades humanas conhecidas, como têm todas elas um;
continuam em nossosdias. Podemosconstatar que a crise
língua, costumes ou instituições; não mais falar, portanto, romântica não as fez desaparecer; seríamos tentados a dizer:
de 'pré-lógico' e dizer explicitamente porque renuncio a esse ao contrário. Quando um Wackenroder contrapõe linguagem
termo e a tudo o que elepareceimplicar." A estrutura do "espí- verbal e linguagem da arte segundo as categorias que separam,
rito humano" talvez seja a mesa.zem toda parte e desdesempre,s emoutro lugar,signo e símbolo, participa do mesmoparadigma
mas isso não quer dizer que ela seja#fza:o símbolo é irredutível que Vico e Lévy-Bruhl; a diferença mesmo assim, nem sempre
ao signo, e inversamente.Quando escreveLévi-Strauss: "Em presente estánas marcas apreciattvas, negativas aqui, positivas
ali, «inculadas ao símbolo (esse Juízo, é claro, não exaure a con-
5 Como mostrou Leroi-Gourhan, o homem não provém do macaco.
Mas de outro homem
6 La Pensíes'zHvaEe,p.21

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Teorias do símbolo
Z:?eram Ziodorov

cepção romântica do símbolo) . Mais que "clássica" ou "român- Assim, não tentarei oferecer aqui uma visão, necessariamente
tica", a tradição de que falo me aparececomo um complemento, supera'icial, da história dessas especulações; mas antes propor
diHcil de evitar, de todas as teorias: seu dup/o;de que escolho aqui um retrato robe, acrânico em si mesmo, que só conserva
duas versões: a "linguagem original" e a "linguagem selvagem".7 alguns traços típicos. Além disso, limitar-nos-emos a um de
seus aspectos: o que está ligado à relação entrc signif-icante e
significado.
A linguagemoriginal
A divisão clássica dessasteorias contrapõe pÀWseí
a tAfsef,a
A minha hipótese será, portanto, a seguinte: crendo descre- origem natural à origem convencional. Esses termos podem
abranger duas oposições: entre motivado (natural) e imotivado;
ver aorigem da linguagem edo signo linguístico, ou suainfân
ou entre social (convencional) e individual. Ora, ninguém, ou
cia, na realidade se projetou sobre o passado um conhecimento
quase (veremos mais adiante quais são essas exceções) , afirmou
implícito do símbolo, tal como existe no presente.
que a linguagem n.zfufa/fosse, por isso mesmo, índlvfd#a/;o
As especulaçõessobre a origem da linguagem são tão abun-
caráterconvencional no sentido de social e obrigatório da
dantes, que não bastaria um livro inteiro para resumi:las.8
linguagem é, na realidade, aceito pelos defensores das duas
opiniões opostas. Pode-se concluir daí que a oposição real passa
7 E uma escolha arbitrária. Poderíamos, por exemplo, entregar-nos ao
entre motivado e imotivado. Mas, então, só a primeira opção
mesmo trabalho a partir das descrições psiquiátricas da linguagem
dos doentes mentais. Teríamos, então, de refletir sobre fórmulas pode ser qualificada de hipótese sobre a linguagem original,
desce tipo: "Os nossos doentes, como o Sr. Jourdain, são simbo- mais exatamente sobre a relação que une significante e significa-
istas inconscientes. 1...1 Basta-lhe a doença para descobrir as leis do: trata-se, de fato, de renunciar a procurar uma diferença não
do simbolismo" (Pouderoux, Rfr«rg les s f /'infoÃ#rrzrf des propôs dr
temporal entre linguagem presente e passada,mais que de ver
gue/g esa/íéná, p'56). "Para traduzir o seu pensamento, o esquizo-
estaà imagem daquela. Ou sela,todas as hipóteses, no sentido
frénico prefere essetipo de interjeição simbólica ao uso de palavras
triviais, mas articuladas em uma proposição lógica que satisfaça construtivo, sobrea linguagem original reduzem-seà busca de
às leis da sintaxe" (Pottier, R#Zexlorzs s%f /es Irouõ/es d /anEaEeda,zs /es umamofívação entre as duas facesconstitutivas do signo; ou,
psWróosespat.znoidfs,p' 129) . Arieti, com sua equação esquizofrenia =
segundoaformula de August Wilhelm Schlegel:'A protolíngua
paleológico, seria um fértil campo de pesquisas.
consistirá em signos naturais, isto é, signos que se acham em
8 0 que, aliás, já foi feito; são os seis volumes de Borst, Def Zurmbau
von Baóc/,Stuttgart, 1957-1963. Para visões mais sintéticas, cí uma relação essencial com o designado" (Dfe Kurzst/eÀrf,p.2 3 9) .
Rosenkranz,Der t/rspr n2derSprafbe;
ou Sommerfelt, The origine São,portanto, mais as formas dessamotivação que nos vão
of language. Theories and hypotheses, Caóiers d'6lslone moradia/r,l ocuparaquí.
(1953-i954) , 4, p.885-902; ou Allen, Ancient ideason the origin
Ainda esquematizando bastante, poderíamos distinguir
and development of language, Zransacrzons oÜ fÀe Póí/o/agir i Soríf9,
três etapasprincipais que a busca da motivação atravessa, na
1948, p.3 5-60. O livro de Révész, Orklnf ef Pf4ísroírf d /anEaye.

também contém algumas informações úteis. ordem: 1. da linguagem abstrata (anual) à linguagem figurada;

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