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Resumo
Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-
MG – Brasil, de 20 a 24 de setembro de 2010.
Mestra em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas
(ENCE/IBGE).
Da Batalha à Guerra do Rio: uma abordagem espaço-temporal da
representação das favelas na imprensa carioca
1. Introdução
1
A ocupação deste morro se deu em 1989.
1
habitacional voltada para o imenso contingente de mão-de-obra que era atraído para estes
lugares. Os pobres passaram a ocupar os morros, charcos e terrenos desocupados, levando ao
surgimento de diversas favelas e ao adensamento de outras. Estes espaços foram alvo de
diversas políticas públicas nestes 110 anos, passando de um longo período de remoções para
as obras de urbanização iniciadas na década de 1980.
Na imprensa, a favela foi representada de diversas formas. Imagens criadas que
refletiram ou influenciaram as políticas públicas e o tratamento dado a estes espaços por
autoridades e cidadãos cariocas. O objeto de investigação deste artigo são estas diversas
representações, com foco em duas coberturas separadas entre si por 59 anos: a Batalha do
Rio, campanha iniciada pelo Correio da Manhã em 1948, e a Guerra do Rio, termo usado
pelo jornal O Globo durante a ocupação militar do Complexo do Alemão em 2007, a fim de
conhecer o enquadramento predominante utilizado em relação à favela nestas duas
coberturas. O conceito de enquadramento é usado por Porto para definir “os princípios de
seleção, ênfase e apresentação” utilizados por jornalistas para organizar o noticiário (PORTO,
2001:12). Ao enfocarem alguns aspectos de uma notícia em detrimento de outros, os
jornalistas podem construir subjetividades em relação ao foco do noticiário, seja ele um
espaço, um grupo ou um personagem. As subjetividades criadas em relação à favela em seus
110 anos de existência permitiram estabelecer os principais enquadramentos usados pela
mídia impressa em relação a este espaço, que nortearam a pesquisa apresentada neste artigo.
A comparação entre as representações sobre as favelas e seus moradores construídas
pelos jornais citados indicará se houve mudanças na abordagem deste espaço entre os dois
períodos analisados ou se houve uma continuidade no modo como a favela é representada
pela mídia impressa. De 1948 a 2007 as favelas se expandiram, as soluções propostas para
estes espaços sofreram mudanças, o momento político se alterou, e a própria imprensa passou
por modificações, com a sua modernização e a concentração de mercado. Deste modo, ao
mesmo tempo em que as análises se focam nos dois maiores jornais cariocas de suas épocas,
ressalta-se que há uma mudança no modo de exercer o jornalismo – o modelo francês é
substituído pelo norte-americano – e nas pessoas que o exercem nas duas coberturas
analisadas – se em 1948 há uma figura política clara, Carlos Lacerda, em 2007 não há uma
“liderança” na cobertura, realizada pelos diferentes repórteres do jornal, nem mesmo nos
artigos, assinados por diferentes pessoas, ou nos editoriais, anônimos.
A análise parte da hipótese de que não há uma continuidade no enquadramento
principal; enquanto na primeira cobertura espera-se uma representação da favela como o
espaço do não - da miséria, da precariedade e da imundície -, em que os favelados eram
vistos como pessoas necessitadas que deveriam ser retiradas daquela situação, na segunda
cobertura espera-se um enquadramento da favela como o espaço da criminalidade, sendo seus
moradores potenciais criminosos e culpados, em parte, pelo medo e insegurança que
acometem os habitantes do “asfalto”. Esta hipótese, no entanto, não se confirmou. No
decorrer da análise de conteúdo do jornal O Globo, foi identificado um enquadramento do
favelado como vítima dos confrontos que ocorriam diariamente no Complexo do Alemão. Os
textos publicados, em vez de responsabilizar os moradores da comunidade pela violência que
se irradiava para outros pontos da cidade, mostram seu sofrimento e sua apreensão diante da
operação policial. Os favelados eram vítimas da violência tanto quanto os moradores do
“asfalto”, e algo precisava ser feito para tirá-los daquela situação, assim como em 1948.
2
2. A favela em palavras
O estudo dos enquadramentos desenvolvidos pela mídia pode revelar como os meios
de comunicação rotulam determinados espaços ou grupos, sendo o conceito extremamente
útil quando se analisa o comportamento da mídia na cobertura de determinados eventos. O
enquadramento corresponderia, segundo Porto (2002:76), a um segundo nível de efeitos da
mídia. Enquanto a teoria do agenda setting, forjada em 1972 por Maxwell McCombs e
Donald L. Shaw, corresponderia a um primeiro nível, ao determinar sobre o que as pessoas
devem pensar; o segundo nível corresponderia ao conceito de enquadramento: a mídia não só
afeta sobre o que o público pensa, mas também como o público pensa sobre determinados
temas. Segundo Entman (1994:294 apud PORTO, 2002:82), enquadrar significa selecionar
certos aspectos de uma “realidade percebida e fazê-los mais salientes em um texto
comunicativo, de forma a promover uma definição particular do problema, uma interpretação
causal, uma avaliação moral e/ou uma recomendação de tratamento para o item descrito”. Os
meios através dos quais os estudiosos identificam os enquadramentos contidos nos textos
noticiosos podem ser variados, e o julgamento de que um enquadramento pode ou não estar
presente geralmente é subjetivo (HALLIN, 1994:81). As categorias de enquadramento podem
ser estabelecidas no decorrer da análise de conteúdo ou anteriormente, para que
posteriormente sejam aplicadas nos textos. Neste artigo, as categorias foram estabelecidas
antes da análise, no decorrer do desenvolvimento de uma pesquisa de como a favela tem sido
retratada desde o seu surgimento.
A favela, em seus mais de cem anos de existência, tem sido relacionada a diversas
representações, algumas delas positivas, [muitas] outras negativas. Para Valladares
(2005:28), a gênese do processo de construção das “representações sociais da favela remonta
às descrições e imagens” criadas por escritores, jornalistas e reformadores sociais no início do
século XX. Zaluar e Alvito (2006:10) sustentam que já no início do século os morros da
cidade eram vistos pela polícia e por alguns grupos sociais como locais perigosos, refúgios de
criminosos. Esta pode ser uma herança das representações dos cortiços e casas de cômodo,
vinculadas a habitações das “classes perigosas”. O cortiço carioca, “definido como um
verdadeiro „inferno social‟, era visto como antro de vagabundagem e do crime, além de lugar
propício às epidemias”, um espaço “propagador da doença e do vício” (VALLADARES,
2005:24). Segundo a mesma autora, parece, então, “natural a representação da favela retomar
a idéia de doença, mal contagioso, patologia social a ser combatida” (idem, p.40). Deste
modo, o enquadramento da favela como local da criminalidade divide espaço com o
enquadramento higienista, em que estas áreas são vistas como um problema sanitário.
No entanto, se alguns consideravam a favela um “lugar não-civilizado, imundo e
perigoso”, outros a viam como um “lugar „desgraçado‟ cheio de gente desafortunada e
merecedora de piedade” (PERLMAN, 1977:289). Esta visão se traduzia, na mídia carioca, em
um enquadramento paternalista, como encontrado na matéria do Correio da Manhã de 02 de
junho de 1907, que afirma serem os morros da cidade os únicos espaços que restavam aos
pobres. “A montanha abre o seu manto verde e acolhe os pobrezinhos como os santos no
tempo suave dos eremitas”, diz o texto. Em 1905, durante a Reforma Passos, o engenheiro
civil Everardo Backheuser elaborou um parecer sobre o problema das habitações populares,
em que recorre a este mesmo enquadramento ao descrever o então Morro da Favella: “Para
alli vão os mais pobres, os mais necessitados, aquelles que, pagando duramente alguns
palmos de terreno, adquirem o direito de escavar as encostas dos morros e fincar com quatro
moirões os quatro pilares de seu palacete” (BACKHEUSER, 1906:111 apud
VALLADARES, 2005:38).
3
A favela, miserável e imunda, começa a ser contraposta à cidade em si, inaugurando
uma visão dicotômica que perduraria até os dias de hoje. Para Zaluar e Alvito (2006), a
maioria dos cronistas que escreveram entre 1908 e 1923 sobre as favelas cariocas inseriu em
seus discursos o conceito de dualidade, fortemente presente nas crônicas de Olavo Bilac.
Valladares (2005:36) ressalta que a favela era vista como um outro mundo, longe da cidade,
alcançado apenas através da “ponte construída pelo repórter ou cronista, levando o leitor até o
alto do morro que ele, membro da classe média ou da elite, não ousava subir”. Na matéria
publicada na revista A Semana em 27 de fevereiro de 1927 acerca da exibição do
documentário “Como vivem os habitantes da Favella”, de Augusto Mattos Pimenta, percebe-
se este enquadramento dicotômico. Em oposição à linda capital, as favelas são chagas, focos
de immundicie, de promiscuidade e de horror (apud SILVA & BARBOSA, 2005:30). As
favelas, quando enquadradas de um modo dicotômico, eram vistas como um espaço externo à
cidade, que seria o território de exercício da cidadania. Nessa lógica, o reconhecimento da
cidadania acaba sendo relativizado de acordo com o local de moradia do indivíduo, o que faz
com que, desde o começo do século XX, a cobertura dada aos moradores do asfalto e da
favela seja diferenciada.
Em contraposição, é ainda na década de 1920 que surge um movimento de
valorização da favela, elegendo-a como um dos símbolos da cultura nacional, o berço do
samba, e dona de uma beleza rústica. Na pobreza da favela, são valorizados a beleza e o
lirismo dos versos dos sambas – é a exotização deste espaço e de seus moradores. Apesar das
tentativas de valorização da favela, promovendo representações positivas acerca deste espaço,
documentos oficiais continuavam a formular enquadramentos negativos. O Código de Obras
de 1937, por exemplo, considerava as favelas uma “aberração” que não podia sequer constar
no mapa oficial da cidade. O primeiro censo das favelas do Rio de Janeiro, de 1948, apesar de
ter sido uma tentativa de melhor conhecer este universo, sustenta a visão preconceituosa
contra os moradores que ali habitavam. Segundo o texto que precede as estatísticas, os
“pretos e pardos” prevaleciam nas favelas por serem “hereditariamente atrasados,
desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências sociais modernas” (citado em
ZALUAR & ALVITO, 2006:13). O Recenseamento Geral de 1950 e o texto de Alberto
Passos Guimarães, então diretor da Divisão Técnica do Serviço Nacional de Recenseamento
do IBGE, representam um marco na história das representações deste espaço urbano, já que
definem uma categoria geral de favela2. O autor rompe com diversas representações usuais da
época em relação à favela, ressaltando a heterogeneidade existente entre elas e afastando-se
de um olhar preconceituoso sobre seus moradores.
Construiu-se nas décadas de 1940 e 1950 uma representação da favela como o espaço
de ausências e carências que persistiria até hoje no imaginário dos residentes do asfalto e das
autoridades públicas (SILVA & BARBOSA, 2005:57). A precariedade de infraestrutura
existente nas favelas levou ao surgimento das imagens que fizeram destes espaços o “lugar da
carência, da falta”, o lugar por excelência da desordem (ZALUAR & ALVITO, 2006:8). É,
nas palavras de Oliveira e Marcier (2006:73), o “espaço do Não”, quando a favela se afirma a
partir de suas características físicas, dos aspectos visíveis, “emergindo como o espaço da
2
“Desse modo, foram incluídos na conceituação de favelas os aglomerados humanos que possuíssem, total ou
parcialmente, as seguintes características: 1. Proporções mínimas – Agrupamentos prediais ou residenciais
formados com unidades de número geralmente superior a 50; 2. Tipo de habitação – Predominância no
agrupamento, de casebres ou barracões de aspecto rústico típico, construídos especialmente de folha de
Flandres, chapas zincadas, tábuas ou materiais semelhantes; 3. Condição jurídica da ocupação – Construções
sem licenciamento e sem fiscalização, em terrenos de terceiros ou de propriedade desconhecida;
4.Melhoramentos públicos – Ausência no todo ou em parte, de rede sanitária, luz, telefone e água encanada;
5.Urbanização – Área não urbanizada, com falta de arruamento, numeração ou emplacamento” (GUIMARÃES,
1953:259).
4
habitação precária e improvisada, do predomínio do rústico sobre o durável, da ausência de
arruamento, da escassez de serviços públicos”. Em relação aos moradores, a favela era
representada como aglomerações patológicas – a população favelada seria formada por
vagabundos, desempregados, ladrões, bêbados e prostitutas, que vivem em condições
subumanas e constituem um dreno dos recursos públicos, não contribuindo para o bem geral.
Estas definições estão tão arraigadas que muitos favelados estão convencidos de sua própria
incapacidade (PERLMAN, 1977). Com a chegada dos nordestinos, a favela também passou a
ser representada como reduto de imigrantes de origem rural que não conseguiam se adaptar à
vida urbana. Na favela, se deparavam com todos os sintomas de desorganização social, desde
a desintegração da família até a violência, imagem identificada em relatórios oficiais da
Fundação Leão XVIII.
Os debates sobre a favela nos anos 1960 sofreram a influência do relatório elaborado
pela SAGMACS (Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos
Complexos Sociais) sobre as favelas cariocas, coordenado pelo sociólogo José Arthur Rios e
orientado pelo Padre Louis-Joseph Lebret. Combinando observação direta, entrevistas e
análises estatísticas, o estudo – realizado entre 1957 e 1959 – definiu uma verdadeira agenda
de pesquisa sobre as favelas do Rio de Janeiro. Segundo Valladares (2005:103), a favela
apresentada nessa pesquisa “não constitui um mundo à parte, seus habitantes são pobres
como outros pobres, eles mesmos vítimas do clientelismo político”. “Ser pobre” é, para
Oliveira e Marcier (2006:81), o principal sinônimo de “ser favelado”. Esta sinonímia teria
encontrado “respaldo na literatura sociológica que, invertendo os termos da relação, tenderia,
sobretudo ao longo dos anos 50 e 60, a eleger a favela como forma espacial típica da inserção
dos pobres no tecido urbano brasileiro” (ibidem).
Na década de 1970, a representação que se faz da favela se torna positiva, quando o
discurso sociológico a define como um complexo coesivo, extremamente forte no que diz
respeito aos níveis de associação. Janice Perlman (1977) comprova em seus estudos nas
comunidades cariocas este forte grau de associação entre os moradores e o espírito
cooperativo existente. A integração com a cidade também era presente. Leeds (1967),
Mangin (1967) e Turner (1969) já haviam constatado que os bairros populares, “vistos como
enclaves, estavam fortemente integrados à vida urbana através de sua inserção em diversos
mercados: o mercado de trabalho, o mercado político e o mercado da cultura (em particular
do Carnaval)” (VALLADARES, 2005:129).
Nos anos 1980, com a chegada do tráfico de cocaína, o discurso sociológico sobre a
favela volta a mudar, e esta passa a ser representada como “covil de bandidos, zona franca do
crime, hábitat natural das „classes perigosas‟” (ZALUAR & ALVITO, 2006:15). Relatos e
reportagens que mostravam a violência, o tráfico e a criminalidade nas favelas e em torno
delas passaram a ocupar as páginas dos jornais. A violência ligada ao tráfico de drogas
aparece, então, como um “novo divisor de águas, reatualizando a velha oposição entre a parte
civilizada da cidade e a barbárie” (SANTOS, 2001:3). No começo da década de 1990, os
arrastões nas praias da Zona Sul e as chacinas de Candelária e Vigário Geral são decisivos
para a “acomodação da imagem da cidade partida como definidora da experiência urbana no
Rio de Janeiro, cristalizada” com a publicação do livro Cidade Partida, de Zuenir Ventura,
em 1994 (idem, p. 93).
Ao focar seu discurso na exacerbação da violência urbana, a mídia forma uma
“sociedade que fica sabendo a quem temer, contra quem se precaver, os lugares a evitar, com
quem não conviver” (MANSO, 2002, apud CORRÊA, 2005b). E ao longo de toda a década
de 1990, é a favela quem proporciona “material para um produto midiático valioso sob a
forma de medo ou estranheza” (ZALUAR & ALVITO, 2006:22). Ao enquadrar a favela
como o espaço da violência, a mídia transmite ao leitor de classe média que ele é um cidadão
5
diferenciado, que não se identifica com a barbárie em que os favelados estão inseridos. E os
pobres, que são as maiores vítimas da violência, são também apontados como seus maiores
agentes, sendo a pobreza ora determinante da vitimização, ora da ação violenta.
É também na década de 1990 que o debate em torno das favelas passa a ter como eixo
principal o desafio de integrá-las à cidade. E a representação da favela como o local da
ausência, do “não”, facilita o aumento das reivindicações por obras e infraestrutura e
influencia na resposta das autoridades ao problema, enfrentado com intervenções que
facilitem o acesso a serviços básicos como água, luz, esgoto, iluminação e coleta de lixo.
Com a melhoria da infraestrutura das casas e da favela como um todo, as representações se
deslocam, pouco a pouco, da noção de ausência. Libertada, em parte, do enquadramento
como o espaço do Não, a favela vê sua representação como o espaço da criminalidade
maximizada. Os confrontos ocorridos naqueles espaços passam a ser chamados de “guerra”
pela mídia. Neste caso, “cria-se a noção de território inimigo, de que o espaço onde o outro
está não faz parte do seu território, e deve ser atacado ou ocupado. O outro passa a ser visto
como inimigo, alguém que deve ser eliminado” (João Paulo Charleuaux apud RAMOS &
PAIVA, 2007:57).
Tabela 1
3. A Batalha do Rio
3
“O general Mendes de Morais foi o prefeito com maior tempo de gestão no período imediatamente anterior à
transferência da capital, de 13 de junho de 1947 a 24 de abril de 1951” (SILVA, 2005:63).
7
políticos”. Este debate político através da imprensa se fortaleceu no Rio de Janeiro graças ao
alto grau de alfabetização e de urbanização da população carioca. É neste contexto que o
Correio da Manhã inicia a campanha Batalha do Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1948.
Cinco dias antes da divulgação do “Convite” para a campanha, Lacerda publica o
artigo “Notas do diário de um repórter”, em que enumera diversas questões que, em sua
opinião, deveriam ser debatidas. Em uma das notas, o colunista afirma que havia 119 favelas
no Distrito Federal – “Desde o Presidente da República até o mais faltoso dos contribuintes,
todos reclamam as misérias do Brasil, e ninguém cuida, ao menos, de começar a curá-las”4.
Na edição do dia seguinte, Lacerda ressalta que um “tema para as suas deliberações” da
Convenção do Rotary Club que estava sendo realizada na cidade seria o “dos meios para
travar a batalha do Rio de Janeiro, que não é propriamente a guerra às favelas e sim a guerra
ao egoísmo e à inércia, pai e mãe das favelas”. No dia 16 de maio, o Correio da Manhã
estampa na capa uma fotografia aérea da Praia do Pinto, com um texto em que também clama
pelo início de uma “batalha cujas proporções não serão medidas pelo número de mortos, e
sim pelo número de vivos que ela tenha feito”5.
Lacerda volta a falar sobre a questão favela no dia 18 de junho, quando conta a
história de Ifigênia6, uma lavadeira viúva, com três filhos, cujo vizinho escreveu uma carta
lida pelo colunista na rádio. Após uma série de doações, Lacerda afirma que era preciso
“saber se se tratava de um fenômeno isolado, único, ou de sentimento generalizado que
apenas precisa desencadear-se”7. No dia seguinte, o jornal lançou um convite para que fosse
criada uma nova rede de solidariedade, desta vez voltada não apenas para uma favelada, mas
para todos os habitantes das favelas do Rio de Janeiro.
4
“Notas do diário de um repórter” – Correio da Manhã, 14/05/1948, p.2.
5
“A favela era uma parte humilde...” – Correio da Manhã, 16/05/1948, Capa.
6
Segundo Lacerda, a mulher não sabia se seu nome era escrito com I ou E, pois nunca o vira escrito.
7
“Ifigênia” – Correio da Manhã, 18/05/1948, p.2.
8
“Convite” – Correio da Manhã, 19/05/1948, Capa.
9
“A batalha do Rio de Janeiro” – Correio da Manhã, 19/05/1948, p.2.
8
de maio de 1948 a 06 de junho do mesmo ano, em dez deles este enquadramento é
encontrado. Lacerda mostra os favelados como pessoas que não escolheram viver em
moradias precárias e que estavam naquela situação não por sua culpa, mas por questões
sociais externas a estes indivíduos – “Na sua imensa maioria (...) os favelados não moram
assim porque querem e sim porque não têm casas. Não comem mais porque não gostem de
comer, e sim porque lhes falta comida”10. As reportagens do jornal também adotam este tipo
de enquadramento: “os moradores das favelas são indigentes. A grande maioria lá vive por
não ter onde morar”11.
O Correio da Manhã passa a mostrar esta pobreza extrema, descrevendo as precárias
condições de vida nos morros da cidade. A opção de ressaltar a miséria, a ausência de
serviços públicos e a falta de higiene nas favelas fundamenta o enquadramento paternalista, já
que no decorrer da adoção do enquadramento da favela como o espaço do “Não” há a
construção da visão de que os favelados não sairiam daquela situação apenas pelos seus
próprios esforços, necessitando da ajuda do próximo. A favela é retratada como o espaço do
“Não” em nove das 26 reportagens analisadas durante a campanha e em três artigos de
Lacerda – em um deles, o colunista afirma que os favelados viviam “entre as valas, exalação
pútrida dos dejectos e detritos”12. Segundo o Correio da Manhã, em 1948 a falta de água
representava o “maior martírio” para os favelados13.
Além de melhorar as condições de vida dos favelados, o Correio da Manhã cita outra
“vantagem” em higienizar as favelas e provê-las de redes de água e esgoto. A favela era vista
como um “centro imenso da miséria, bojo de epidemias”14. Em caso de epidemia, a favela
seria um “foco de irradiação terrível” - de lá sairiam germes incontroláveis “que fariam uma
devastação aqui em baixo”15. Assim, a higienização da favela seria “útil” para os moradores
de toda a cidade, também “ameaçados” pelas doenças e pela miséria que imperavam naqueles
lugares.
Miseráveis, trabalhadores e pessoas que viviam em péssimas condições de higiene, os
favelados eram “vítimas indefesas (...) em face da indiferença que tem reinado até então dos
que só olham as paisagens dos morros, que não vêem os que morrem lá em cima antes dos
quarenta”16. Estes indivíduos precisavam ser ajudados. Segundo Lacerda, era preciso
desenvolver métodos que fossem a favor, e não contra os favelados, cuja participação seria
indispensável ao êxito da campanha. O colunista afirma que, até aquele momento, a favela só
havia conhecido duas soluções – da alta burocracia, que resultava na remoção e no tratamento
do favelado como inimigo; e dos comunistas, que defendia a ocupação de prédios. Os
democratas ainda não haviam formulado “uma orientação para a solução imediata” de um
problema “que tão profundamente afeta a uma tão espessa camada da população”.
Para Lacerda, esta solução não deveria ter um caráter coercitivo, ou punitivo; as
remoções deveriam ser descartadas, e as favelas precisavam ser melhoradas, passando por um
processo de urbanização – “é precisamente contra a idéia de expulsão e a favor da
recuperação, do aproveitamento adequado, da melhoria de condições de habitação dos
favelados que nos batemos”17. A remoção em massa desses moradores era, para Lacerda,
“não apenas uma violência – era uma utopia”. A maioria dos favelados deveria “ser
10
“O que pretendemos do Governo” - Correio da Manhã, 20/05/1948, p.2.
11
“Vai começar a Batalha” - Correio da Manhã, 21/05/1948, Última Página.
12
“Pernambuco” - Correio da Manhã, 23/05/1948, p.2.
13
“Escondidinho ou Prazeres vista por dentro” - Correio da Manhã, 30/05/1948, Última Página.
14
“A sexta cidade” – Correio da Manhã, 30/05/1948, Última Página.
15
“Escondidinho ou Prazeres vista por dentro” - Correio da Manhã, 30/05/1948, Última Página.
16
“Escondidinho ou Prazeres vista por dentro” - Correio da Manhã, 30/05/1948, Última Página.
17
“O Partido Comunista e a Batalha do Rio de Janeiro” - Correio da Manhã, 21/05/1948, p.2.
9
localizada nas próprias zonas em que se encontram as favelas. Ali mesmo, ou nas
proximidades, porque o deslocamento privaria a população de uma série de serviços
públicos”18. A proposta consistia em “mostrar aos favelados como pode ajudar-se a si mesmo
para sair da favela por seus próprios pés – e mãos”, organizando cooperativas para a melhoria
das moradias já existentes e a instalação de redes de água e esgoto nas favelas. A solução,
portanto, estava no desenvolvimento da capacidade de iniciativa desses moradores e da
compreensão de seus próprios problemas. Com a participação dos favelados, seria possível
demolir barracos condenados, restaurar outros, instalar esgoto, água, luz e tanques
comunitários.
A remoção de “cerca de 20 barracos” do Morro dos Macacos pela tropa de choque da
Polícia Municipal motiva um novo artigo de Lacerda sobre a campanha, a esta altura já
relegada ao segundo plano pelo caso da Escola Naval 19. Para o político, os burocratas
deveriam entender que não estavam lidando “apenas com zinco e madeira, com barro e
sarrafos, mas com vidas humanas”. Naquele momento, no entanto, a campanha já começava a
perder espaço no Correio da Manhã. A edição do dia 06 de junho traz o último artigo de
Lacerda da série publicada como parte da Batalha do Rio. Lacerda afirma que a campanha
encontra obstáculos no alto escalão do governo. Os órgãos da Prefeitura, paralelamente,
mantinham uma postura contrária à propagada pela campanha – agiam “como se vissem nos
favelados em conjunto aquilo que é minoria, o criminoso anti-social”. Para Lacerda, nada
podia ser feito pelas favelas que não fosse “para os favelados, com o apoio e a ajuda deles, e
não contra eles”.
A postura adotada pelo governo, porém, conseguiria unicamente deixar “sob a ruína
dos casebres uma centelha” de onde se alimentaria “a chama da propaganda comunista no
Rio de Janeiro”20. Mesmo afirmando, ao apresentar a campanha, que esta não era uma
“cruzada contra o comunismo”, pesquisadores apontam que o objetivo de Lacerda ao
promover a Batalha do Rio era criar uma proposta alternativa às vigentes, elaboradas tanto
pelo Governo quanto pelo Partido Comunista, que ampliava sua presença nas favelas.
Lacerda então se apropria de um enquadramento paternalista em relação à favela e se torna o
principal promotor de uma campanha que afirmava não ser “contra o faveleiro e sim a seu
favor”, com o objetivo de que o favelado deixasse “de o ser”, isto é, vivesse e morasse “em
condições mais dignas”21. Após 06 de junho, porém, a campanha desaparece do Correio da
Manhã.
O projeto, considerado “grandioso” pela imprensa da época, ficou apenas nas páginas
dos jornais. O programa proposto durante a campanha, apesar da imensa lista de adesões
publicadas pelo Correio da Manhã diariamente, não foi concretizado.
18
“Prioridade número um” – Correio da Manhã, 22/05/1948, p.2.
19
Um motim realizado pelos alunos da Escola Naval em 1948 levou ao fechamento temporário do
estabelecimento de ensino. A resposta das autoridades militares foi duramente criticada por Lacerda.
20
Ibidem
21
“Nada temam os faveleiros” – Correio da Manhã, 28/05/1948, Última Página.
10
4. A Batalha se torna a Guerra do Rio
Em 2007, o cotidiano do Complexo do Alemão ficou mais de dois meses nas páginas
dos principais jornais cariocas devido a operações policiais constantes realizadas na região,
em um episódio que O Globo chamou de Guerra do Rio. A explicação para esta “guerra”
remonta a fevereiro, quando o menino João Hélio Fernandes Vieites, de 6 anos, morreu após
ser arrastado por mais de sete quilômetros preso ao cinto de segurança do carro onde
estava.22. Após o crime, a esquina em que a mãe de João Hélio foi rendida pelos assaltantes
passou a receber policiamento ostensivo. Em 1º de maio, a viatura que permanecia
estacionada no local foi metralhada. Bandidos armados com fuzis fizeram vários disparos
contra o carro da PM e roubaram um dos fuzis e munição dos policiais. Os dois soldados que
ocupavam a viatura foram socorridos, mas não resistiram aos ferimentos23.
No dia seguinte, a Polícia Militar fez uma operação na Vila Cruzeiro. O objetivo era
“caçar oito traficantes que teriam executado” os dois policiais em Bento Ribeiro24. Horas
depois do assassinato dos dois PMs, o governador Sérgio Cabral disse que a Polícia partiria
para o confronto com os criminosos. Cabral afirmou ao jornal que o Rio vivia uma guerra. “E
nós vamos ganhar esta guerra”25, ressaltou. As ações policiais que se seguiram no Complexo
do Alemão foram tratadas como tal. A Guerra do Rio não era uma campanha como a Batalha
do Rio, de solidariedade para com a - ou de apenas discussão da - questão favela. Foi um
período no qual as comunidades que compõem o Complexo do Alemão foram alvo de
operações quase diárias da Polícia Militar cujo objetivo era combater a quadrilha de
traficantes que dominava aquele território. As reportagens publicadas pelo O Globo se
focavam nas ações policiais, e não na conjuntura do problema favela.
E as ações policiais estavam inseridas no contexto de guerra. A resistência encontrada
pelos policiais militares devia-se a que os traficantes usavam “táticas militares de guerra”
para impedir as operações. Os policiais eram monitorados através de radiotransmissores pelos
traficantes, que dividiram o Complexo em setores numerados para facilitar a operação.
Segundo O Globo, havia 150 traficantes nas comunidades armados com fuzis e metralhadoras
antiaéreas26. Os veículos usados pela PM eram impedidos de entrar no Complexo pelas
barreiras de trilhos de trem e o derramamento de óleo na pista. As casamatas, as barricadas e
o treinamento recebidos se voltavam para a proteção do território dominado, no qual as 33
bocas-de-fumo negociavam semanalmente 30 quilos de cocaína pura. Na mesma edição, o
Complexo do Alemão é apresentado como “a fortaleza do tráfico”, o “principal entreposto de
distribuição de drogas, armas e munição das zonas Norte e Leopoldina”27. Ao mesmo tempo,
era o principal “foco de disseminação de violência no Rio”28. “A caçada mostrou que o
tráfico havia transformado as favelas daquela região em uma fortaleza inexpugnável”, afirma
o jornal29.
22
Informações de O Globo Online. “Memória: João Hélio morreu após ser arrastado preso ao cinto de segurança
na Zona Norte”, publicado em 08/06/2007. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/06/08/296073544.asp. Acesso em 29/12/2009.
23 Informações do site G1. “Dois PMs são metralhados na região onde morreu o menino João Hélio”, publicado
em 01/05/2007. Disponível em http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL29891-5606,00.html. Acessado em
29/12/2009.
24
“Mais vítimas inocentes” – O Globo, 03/05/2007, p.13.
25
“Cabral: „Nós vamos ganhar esta guerra‟” – O Globo, 03/05/2007, p.13.
26
“Bandidos com táticas militares” – O Globo, 09/05/2007, p.18.
27
“Complexo do Alemão, a fortaleza do tráfico” – O Globo, 20/05/2007, p.26.
28
“Secretário: objetivo é asfixiar tesouraria da facção” – O Globo, 23/05/2007.
29
“Notícias de uma guerra que já dura um mês” – O Globo, 27/05/2007, p.30.
11
A Polícia Militar só consegue chegar ao topo do Complexo do Alemão após 57 dias
de ocupação, em 27 de junho. A operação, cujo planejamento durou meses e envolveu o setor
de inteligência, mobilizou 1350 homens. Dezenove pessoas morreram, e a guerra chegara a
seu ápice. No dia 29, o editorial de O Globo afirma que aquela operação deveria “inaugurar”
um “estilo de atuação policial” que não se resumisse a “intervenções esporádicas”. Era
preciso “manter o terreno ocupado”. A favela não só era o espaço por excelência da
criminalidade – enquadramento presente em 93 de 132 matérias publicadas – mas também o
ponto que irradiava ações violentas por toda a cidade. Era o espaço a ser invadido pelas
forças policiais e ocupado pelo Estado, cuja “omissão total” havia levado a uma situação que
parecia “medieval: enclaves, fortalezas”30.
Toda guerra tem um algoz e sua vítima. Na Guerra do Rio, a hipótese lançada neste
artigo era de que as classes média e alta constituíam as principais vítimas destes confrontos e
os favelados eram colocados ao lado dos algozes. O tráfico só existia na comunidade porque
o favelado permitia – e o apoiava, como nas manifestações contra a Polícia. Estas hipóteses
não se confirmaram. Naquela Guerra do Rio, O Globo considerou o favelado a maior vítima
dos confrontos. O jornal dá voz aos moradores da favela e seus representantes, abrindo
espaço para a reflexão sobre o cotidiano dos favelados em um período de conflito entre
traficantes e policiais.
Na reportagem “Balas perdidas ferem mãe e filho de 3 anos dentro do quarto” 31, O
Globo ressalta que a casa já havia sido atingida cinco vezes e que a família passou a dormir
no chão em noites de tiroteio. Os moradores da parte alta da comunidade estavam sem luz e
telefone; o serviço de coleta de lixo estava prejudicado, assim como o de entrega de
correspondências; três mil crianças estavam sem aulas; e a queda de luz havia queimado a
bomba de água, obrigando os favelados a carregarem latas d‟água até suas casas 32. As
reportagens sobre a suspensão de serviços públicos33 se sucedem, com destaque para o
fechamento de escolas e creches. Mais que a ausência de serviços públicos, O Globo ressalta
o medo e a apreensão dos moradores. Como afirma Julita Lemgruber34 em artigo publicado
em 07 de junho, eles precisariam de psicólogos e psiquiatras, pois estavam “amedrontados,
apavorados, angustiados” – necessitariam de “um auxílio para cicatrizar as feridas da alma”35.
“É horrível viver assim, nessa tensão, sem nem poder ir para casa em paz”, afirmou uma mãe
ao jornal. Um pai relata que, “por muito pouco”, um tiro não atingiu sua filha de dois anos36.
Dentre os feridos, os moradores eram as principais vítimas dos confrontos – em 19 de
maio, quando o número de atingidos por balas perdidas era de 53, cinqüenta eram habitantes
do Complexo do Alemão. Os relatos da rotina de medo vivida pelos moradores do Complexo
do Alemão e a ênfase no alto número de feridos, na opressão mantida pelo tráfico e nas
dificuldades provocadas pela suspensão dos serviços básicos na favela constroem um
enquadramento do favelado como principal vítima da criminalidade37. O Globo não sustenta
o que o repórter Rodrigo Fonseca, em depoimento pessoal, criticou como sendo “uma visão
30
“Cerco Inglório” – Opinião, O Globo, 01/06/2007, p.6.
31
“Balas perdidas ferem mãe e filho de 3 anos dentro de quarto” – O Globo, 07/05/2007, p.10.
32
“PM já retirou 105 toneladas de entulho das barricadas” – O Globo, 10/05/2007, p.12.
33
Questiona Julita Lemgruber: “Os serviços básicos estão suspensos, deixando os bairros sem escola e a
população sem luz e sem coleta de lixo. É possível imaginar isso acontecendo num bairro ou condomínio de
classe média da cidade?”. “Penha e Alemão: 35 dias de conflito” – O Globo, 07/06/2007, p.7.
34
Socióloga e diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.
35
“Penha e Alemão: 35 dias de conflito” – O Globo, 07/06/2007, p.7.
36
“PM libera acesso obstruído por traficantes” – O Globo, 16/05/2007, p.15.
37
Enquadramento encontrado em 61 reportagens, nos cinco artigos de opinião e em um editorial.
12
cartesiana que muitas vezes ignora a população espremida entre o morro e o asfalto” 38. A
população do Complexo do Alemão não foi ignorada: sua apreensão e seus anseios tomaram
as páginas do jornal. E o enquadramento utilizado enfatiza que, assim como os “peladeiros”
de Rodrigo Fonseca, os moradores da região estavam em meio a um conflito do qual “jamais
pediram para participar”.
Como solução para esta guerra, o discurso adotado pelas autoridades do Estado – e
reproduzido pelo jornal O Globo – se sustenta na idéia de que era preciso “devolver as
favelas para seus verdadeiros donos: a população inocente que só quer tranqüilidade”, nas
palavras de José Mariano Beltrame. O editorial de O Globo no início dos confrontos segue
este discurso: “A Vila Cruzeiro precisa ser recuperada pelo poder público para seus
moradores, reféns de traficantes. Não é hora de recuar”39. Mas a ação não poderia ser apenas
repressiva. O objetivo de “salvar” as vítimas daquela guerra não seria alcançado sem
programas sociais, sem o desenvolvimento de uma política que fosse muito além da área da
segurança pública. “É preciso urbanizar o complexo, dar escola, saúde e perspectiva de futuro
aos jovens”40. Para isso, o Complexo do Alemão foi incluído no Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), com investimentos de aproximadamente R$ 600 milhões.
Após a ofensiva do dia 28 de junho, o tenente-coronel da PM e ex-comandante do
BOPE Mário Sérgio Duarte afirmou: “O Complexo do Alemão está liberto. Ele pertence ao
Rio. Ele pertence ao Brasil”41. A ocupação policial, no entanto, não foi mantida. A Guerra do
Rio não mudou a realidade do Complexo do Alemão, cujas 17 comunidades se mantêm sob o
domínio do tráfico. A cobertura da Guerra do Rio, porém, mostrou certas mudanças em
relação ao enquadramento – e aos estigmas – do favelado. O Globo apresentou o problema da
segurança como um só para todos os cariocas, não importando o seu local de moradia. Esta
postura é defendida por Julita Lemgruber em seu artigo:
Ao ressaltar que a vida e o direito de cada cidadão carioca deveriam ser respeitados, O
Globo adota um enquadramento do favelado como vítima da violência e da criminalidade,
abrindo espaço para seus anseios, dando-lhe voz. Permite que os cidadãos do “asfalto”
conheçam a realidade dos que habitavam os morros e, mesmo não discutindo em
profundidade a questão favela – e a [ausência de] política habitacional -, promove uma
solução para o Complexo do Alemão além da Polícia: eram necessários programas sociais,
bem estruturados e a longo prazo, para verdadeiramente modificar a realidade dos moradores
das favelas do Rio de Janeiro.
38
“Quando Vila Cruzeiro acordou Saigon. Lembranças de um repórter que cresceu na Penha e há 13 anos
testemunhou a violência no Alemão” – O Globo, 24/06/2007, p.29.
39
“Missão” – O Globo, 10/05/2007, p.6.
40
“Alemão:faltam policiais para vencer o tráfico” – O Globo, 27/05/2007, p.30.
41
“Liberdade para o Alemão” – O Globo, 29/06/2007, p.7.
42
“Penha e Alemão: 35 dias de conflito” – O Globo, 07/06/2007, p.7.
13
5. Considerações finais
43
“Opinião”, O Globo, 13/04/2004, p.6.
16
este reconheça que “sua produção irá formar um imaginário sobre o espaço marginalizado, e
que o texto servirá como forma de mediação – algumas vezes, a única possível – entre o
público leitor e a massa de favelados representada no romance” (idem, p.112) – ou na notícia.
Bauman (2008) afirma que a conectividade e a interdependência no mundo globalizado
levam a que nada que os outros façam ou possam fazer nos deixa seguros de que não afetará
nossas esperanças, chances e sonhos, e nada que nós façamos ou deixemos de fazer nos
permite afirmar que não afetará os outros. Ao selecionar fatos, palavras e recortes na
construção dos discursos sobre a favela, os produtores de informação poderiam refletir sobre
as esperanças, chances e sonhos dos favelados. Com o propósito de se certificarem de que
não estão reduzindo os mesmos.
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