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Uns moleques fedidos, é o que são, sem nada a ganhar! Olha onde foram parar!
Passo ali e eles ficam de deboche, mangando de mim. Ah, se não lhes dou umas
pancadas! Ah, se não dou. Vidinha de merda, um dia largo isso daqui e volto
pro norte, ah se não volto! Deixo essa velha e esse moleque chorão por aqui. Eu
que não levo mala sem alça, eu que não levo, levo não, levo mermo não.
Vagabundo, sem-juízo, lambaio! Num quer nada com nada! Frouxo, cagão,
bosta fina! A mãe, uma boa de uma piranha e o filho, um frouxo! Deus meu,
Deus meus, onde foi que errei?!
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Ainda chove, mas um tímido sol abre suas asas brilhantes entre as
nuvens. A garoa fina persiste, um cheiro de terra úmida e podre
sobe pela atmosfera, Ancieto parece sentir. Molha o pão outra
vez no café, e o leva à boca. Se recosta na poltrona, pachorrento.
Gotículas escorregam pelas plantinhas em cima da mureta e
pingam.
Parte 2
Jezabel
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Tu procurou ela de novo?
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Sim, vó.
Senta aqui, meu filho. Senta.
Jucelino senta ao seu lado. Dona Elvira numa cadeira, ele no
sofazinho da sala. Ambos se olham. As rugas de seu rosto não se
contraem. Mas ele sabe que ela sente. Ele não se segura, embora
devesse. Ele titubeia, cai de joelhos a sua frente. Pega uma de suas
mãos e beija. Queria chorar, mas não consegue. O pensamento
revolto, mar agitado desancorando os barcos, estraçalhando-os. A
avó olha o topo de sua cabeça, seu neto ajoelhado aos seus pés.
Depois desvia os olhos, olha pela abertura da janela, e vê apenas
uma criança retinta e pequenina, barriguda, catarrenta, só de
camisa e com o bigulim de fora. O resto do mundo inteiro se
esgueirando depois daquilo. Mas ela só vê a pobre criança.
Quando ele chegou, dona Elvira olhava as fotos como de
costume. Ali estava um resto de seu passado, imagens para atiçar
suas lembranças, para lhe dar um tom, uma cor, um fundo. Às
vezes ela sorria, outras, chorava. Um aperto no peito, a garganta
queimando, as lágrimas brotando e umedecendo a superfície
ocular. Ela passa os dedos velhos sobre a foto, sobre a face de
alguém que já se foi. O tato já não é como outrora, ela mal sente
o dedo deslizando sobre a foto. A carne titubeada, a pele
engelhada.
Seu neto chegou desmoronando, esquisito, cabisbaixo. Ela olhou
para ele, desviando-se das fotos em suas mãos. Colocou-as sobre
a prateleira da sala e o olhou.
Ele senta ao seu lado, depois cai de joelhos sobre seus pés e tenta
chorar. Lá fora, um menino de bigulim de fora brinca sobre o
chão de terra. Ela vê.
A sujeita que se juntou brevemente com seu neto, cerca de uns
dois anos atrás, agora é amante de um sujeito que tem um bar
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perto da Praça Tiradentes, lá no Centro. Foi o que Jucelino lhe
disse um dia desses. Jucelino teve um rápido relacionamento com
a tal sujeita. Não durou mais que três meses, mas o suficiente para
ele ficar obcecado por ela. Depois disso, ela teve mais uns três
“romances”. Um com um bandido de uma favela em Irajá, mas
ela tomou uma surra no meio da rua de mijar nas calças, e saltou
fora. Depois com um velho gordo, que tinha duas barracas de
feira-livre. O terceiro, foi com um cara da Pavuna, mas Jucelino
nunca soube quem era ou o que fazia. A sujeita era uma
rampeira, umazinha sem juízo e coração, uma putinha de ponta
da rua, dona Elvira bem sabia disso. Já tinha conhecido, em sua
velha vida, muitas cobras que nem ela. Mas seu neto era
obcecado por essazinha. Ele a procurava e a procurava, e ela pra
se divertir as suas custas, lhe prometia amor e carinho, mas jamais
cumpria. Até dinheiro ela pegava com Jucelino, que cego em sua
paixonite, lhe dava sem contestações.
Dona Elvira olha para a cabeça de Jucelino deitada em seu colo.
Apalpa-lhe os carapinhos com ternura. Fica aliviada por saber que
Ancieto fora no banco, resolver alguma coisa relacionada a sua
aposentadoria. Se ele estivesse em casa, e visse o neto daquele
jeito, estouraria um banzé. Ancieto o ofenderia de todos os
nomes, e talvez lhe desse até uns tapas, para ele aprender a ser
sujeito homem. Seria uma gritaria, um bate-boca dos infernos.
Jucelino ameaçaria ir embora e Ancieto, debochado, diria que
não via a hora dele fazer isso. Jucelino bateria a porta detrás de si
e sairia por algumas horas, e só voltaria quando o avô estivesse
dormindo.
Um calor dos infernos! Que mormaço! Essas moscas que num param, posam em
cima de tudo, na merda e na gente! Olha lá um molequim de pinto de fora.
Essas mães cadelas que metem com tudo que é macho e depois joga as crias na
rua! Umas excomungadas! Umas cabruncas de terreiro!
Velha carcomida pelancuda dos infernos! Nem pra dar uma satisfeita pro seu
homem! Diaba infeliz! Num sei como fui me encostar nessa daí! Devia é ta de
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porre quando resolvi juntar com ela! Inferno de vida! Desse ano num passa,
passa não! Eu caio é que caio fora, já té sei onde morar e me encostar! Queria
mermo é aquela paraíba! Um toitiço! Eita que pernas boas! Levaria ela pra mim
e daria do bom e do melhor! Um bibelô! Eita que num dava!
Parte 3
Defenestração
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O breu está por toda parte. Há apenas uma luz, vinda de uma
miúda vela, já quase no fim, que bruxuleia uma chama fraca no
meio de um pires, por cima da mesa.
Está em casa, onde mais poderia estar? Chove lá fora, uma chuva
barulhenta, açoitando os telhados de zinco e madeira.
A podridão do Timbó empesteia por todo lado. É você comer
um pedaço de pão, ou beber um café, que é o mesmo que comer
um pedaço de latão enferrujado e beber água preta cheia de
merda mole, saída da diarreia.
A casa está vazia. Não há ninguém.
Elvira noutro lugar. Aquela mulher-múmia, uma empelancada.
Jucelino noutro lugar. Aquele moleque trouxa, refém das putas.
A casa está vazia. Não há ninguém. Mas você ouve, com seus
ouvidos velhos e que a terra há de comer, os ratos guinchando, se
debatendo por dentro das panelas de comida.
Então uma sombra se condensa, cresce por cima da parede. E
quando você vê, está ali sua amiga lá da birosca, a dona do lugar,
Crezilda.
Ela se senta à sua frente.
Não sou Crezilda, mas também sou, Seu Ancieto. Minha carne é
uma pelanqueira que só, desconjuro e credo, o hômi! Tenho que
nada não. Como arroz frio com rato cheio de tumores. Eu atendo
aqueles hômis mas gosto deles não, mas queria que me currassem
de quando invêiz. Ah, si quiria! Quiria sim, Seu Ancieto, chupá
pau deles sujo, de obra, de cimento, de sebo muito dias sem lavá.
Queria sim, queria sim. Meus filho me usa, Seu Ancieto, me fáz
trabaiá todo dia santo, todo dia santo sim. Trabáio demais, Seu
Ancieto, num guento mais enchê boca de cachaceiro não, Seu
Ancieto. Tô que é pele e osso, mais véia que minha vó pouco
antes de morrê. Ô, Seu Ancieto, que num guento mais essa vida
não. Faz é meses que num saio dessa favela, desconjuro e credo.
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Consigo nem ir em Bonsucesso. Ô, Seu Ancieto, faz isso comigo
não, ô hômi! Faz não! Papai me fez trabaiá desde cedo, Seu
Ancieto. Papai judiava de mim, Seu Ancieto. Fez sim.
Crezilda se levanta. A pequena chama da vela ainda bruxuleia,
enterrada na cera derretida. Os contornos de seu corpo
desaparecem aos poucos por dentro do breu. Ela some.
Chove sem parar lá fora. Algumas goteiras caem na sala. Ele ouve.
Outra sombra. Diferente agora. Pouco maior, mais encorpada.
Se aproxima, senta em frente a chama.
Não sou Jucelino, mas também sou, vô. Pô vô, o sinhor que judia
de mim por demais, vô. Sou trabalhador. Sou sim. Ela me fez de
bobo, vô, fez sim, queria bem pra ela, cuidaria dela, faria filho
pra gente, compraria um barraco pra nós e a gente ia viver assim,
vô, trabalhando de sol a sol, de chuva a chuva e cuidaria de
nossas cria, vô, cuidaria sim. Pô, vô, o sinhor judia demais da vó
Elvira, vô. Judia dela demais sim, vô. Eu sei que o sinhor não
gosta de mim, porque minha mãe me abandonou. Eu sei, vô. Sei
sim. Mas eu tenho culpa não, vô, tenho não. Fiz nada não, vô, fiz
não. O chefe lá da obra judia de mim, vô, judia, vô. Todo
mundo manga de mim, vô, me chamam de corno, vô. E eu lá
tenho culpa de ter nascido, vô? Tenho?!
Ele se irrita, numa atitude incomum, e estapeia a mesa. A vela
balança, mas não cai. Continua pregada sobre o pires.
Ele se levanta, sai. Seus contornos somem por dentro do breu.
A podridão empesteando o ar. Os ratos guinchando, se debatem
por dentro das panelas.
Ele se perde olhando pro lado dos guinchos, quando volta, ele vê
a criatura, de barbas úmidas, empapuçadas, rala em algumas
partes, encardida. O sujeito é puro trapos, sujo, maltrapilho, os
dentes precários na boca aparecendo num riso nervoso, babento.
É Seu Barbalino.
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Ele ouve um grunhido saindo da boca do sujeito, estalando de
sua boca muxoxa, ensurdecedor, polifônico, como o de muitos
bichos encurralados num chiqueiro, antes de serem abatidos. Ele
levanta sua cabeça, inclina em direção ao teto, abre sua boca, que
parece um poço. Sua língua sai pra fora, é grande, viscosa, se
debate nas bordas da boca como cobra espezinhada. O gogo
intumescido, subindo e descendo a garganta magra e de veias
estufadas. A boca grunhi enquanto a língua se debate.
Numa atitude qualquer e incomum, o sujeito mete a língua pra
dentro, fecha a boca, se levanta, coloca uma das mãos rija por
sobre a testa. Bate continência. Grita: sentido!
E sai. Some por dentro do breu.
E aparece uma outra sombra, deficitária, sem algumas partes. E
não se senta, pois que fica de pé, dependurada num toco de
sombra.
É Tiquinho, fedendo e maltrapilho como de costume.
Ô, óia, tô aqui, sém uma das perna. Óia, aqui (uma ferida se abre
na ponta de seu cotoco, se abre cheia de dentes, uma presa
babando, salivando muito, e começa a latir). Queria é, ó, cê um
invrertrebrado, rastejá que nêm vérmi, que ném vérmi.
Os contornos de Tiquinho vão se engelhando, se ondulando. Sua
silhueta ganha um formato disforme, que serpenteia no ar, e foge
por um buraco que se abre no teto. O buraco se fecha, e a forma
disforme some.
Outra sombra aparece. Enorme, forte, imponente.
Êia, véio da porra! Não sou Tição, mas também sou, véio da
porra! Eu sei do que fez, hein?! Eita, véio da porra do cão! Tu deu
um jeito naquela mulher, melhor que eu! Tu é dos meus mermo,
véio da porra brabo! Quando ficá véio, quero cê que nem o
sinhô, véio da porra! Êia, véio do caralho do cão! Tu é deu um
jeito naquela mermo, né?! Ô cão brabo, lazarento!
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O negro enorme ri, gargalha, gargalha com força, com
tenacidade. E então seu corpo vai se liquefazendo, tornando-se
uma polpa negra, feito a lama da Favelinha. E o corpo de polpa,
vai aos poucos entrando por dentro do riso, da gargalhada,
engolindo a si próprio. E a boca de Tição vai crescendo,
ganhando o tamanho do lugar, até engolir o corpo-polpa de vez.
E num estalido, num clarão, desaparece.
E por detrás do clarão, da gargalhada que engoliu o próprio
corpo, aparece a mulher.
Seu nariz sangra, sangra muito. O sangue escorre por cima da
boca, pinga pela ponta do queixo.
E começa então uma música, uma música que vai soterrando
tudo. A catinga do Timbó, os ratos por dentro da panela, as
goteiras. E só a música continua. Apenas. E lá atrás, bem miúda,
ouve-se a chuva, coadjuvante.
Ele não sabe, mas é Matthäus-Passion de Bach, que toca, vinda de
algum lugar sem localização.
Não sou a mulher, mas também sou, você sabe quem. Sou uma
putinha. Sim, uma putinha sem vergonha, que já deu a torto e a
direito, sim sinhor. Sou uma bela de uma boqueteira desmamada.
Eu queria que todos os paus imundos deste lugar escroto
penetrassem meus orifícios. Que um rio de porra me inundasse
até atingir a minha alma. É, eu sei, Seu Ancieto, já não sou
nenhuma mocinha. Não sou.
Ancieto treme, sua carne treme. O coração quase vem à boca.
Ele sente as pálpebras pesadas, caindo, esfacelando o rosto. O
mundo se contorce.
A música continua...
Ancieto, cê ainda tá ai? pergunta, a mulher. Sua pele está úmida,
o cheiro de sua carne perfumada se espalha pelo lugar. A chama
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da vela está prestes a sumir. Fraca, fraquinha, bruxuleia os últimos
instantes.
Ancieto tem outra ereção, mas também tem medo. E a vontade
inconfundível de apenas gozar, se funde ao medo que lhe esfrega
o espírito, se une a calada da noite.
Tá aí, Seu Ancieto? Vou ter que fazer toc-toc em seus ossos pra
saber se ainda existe?
A vela se apaga. O breu come tudo.
São uns cachorros lazarentos, todos eles! Eu sei eu sei. Claro que sei, e num tô é
que acustumado? É uns lazarentos de pele de bicho ruim. Todos eles.
Bando de estrupícios! Uns ordinários e lambaios!
Uns babentos vagabundos sem eira nem beira!
Eu é que saio daqui assim que der! Ó se num saio! E largo de mão essa velha
muxibenta e esse muleque froxo e cornudo!
Não tenho paz nessa vida nem em qualquer lugar!