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aquele lugar de lá detrás

Sérgio Ortiz de Inhaúma


A não ser esta gente
que pelos mangues habita:
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga

João Cabral de Melo Neto – O Rio


A luz descia amarelada, intensa. Mijo solar. A vida mostrava os
dentes, enraivecida, em rosnares.
Como pode ainda não termos pensado em morrer?
O encontro dos vergalhões entrecruzados na carne do cimento.
Um signo que rodopia os vazios, bifurca os clarões, ativa as
madrugadas úmidas.
A imundície do Timbó fazendo casa nos pensamentos. O oco do
crânio estufado de ar contaminado.
O olhar perdido das crianças.
As mulheres descabeladas, gritando. Uma tevê com o volume
escancarado. Uma estação chiando no rádio. Um bolero, um
pagode, um forró. A panela de pressão apitando. O cheiro de
maconha deslizando a atmosfera. Um frango depenado bicando
um canto de viela.
Tudo se encontra num nó, na gambiarra metida e estendida
através do mormaço, das goteiras, de um sono pela tarde.
Gatos pulando por cima das muretas, espiando o mundo através
das pupilas dilatadas. Cães leprentos latindo entre as presas
dependuradas.
Uma menina barriguda se equilibra na quina de um beco.
De repente se viu olhando para as fachadas dos barracos
esculachados, e do muro que circundava a fábrica abandonada.
A cor encardida de sua fachada velha, cor amarela descascando
aos pedaços. Pele desmanchando ao toque de napalm.
Já corria os olhos lá e cá, rapidamente, sentindo o susto que
vinha. E não parou por aí. Andando mais alguns metros, uma
imensa amendoeira cortinava a rua com seus galhos fartos de
folhas. No chão, as folhas amarelecidas que estalavam enquanto
eram pisadas. O calor intenso levava um resto de mulheres e
crianças pra rua, que brincavam com a água saindo de uma
borracha, presa numa bica que espirrava. Contornou mais meia
rua, e já podia ouvir os gritos. Mas algumas daquelas pessoas
insistiam continuar como se nada estivesse fora do lugar. E não
estava. Os gritos eram no lugar. Não havia fora.
Quando chegou, viu ela e o marido no sexto andar de um
prédio em ruínas da fábrica abandonada. Ali morava um
punhado de famílias sem eira nem beira, que invadiram o lugar.
Ainda podia lembrar de seu sorriso naquela madrugada no beco,
a luz miserável do poste caindo sobre eles, o sorriso dela
mostrando alguns dentes escuros pela cárie, outros manchados
de batom.
E o coito truncado. A manilha.
Lá embaixo, no sopé do prédio, as pessoas gritando. Um
rebuliço. Não sabia se pra soltá-la ou jogá-la. Estava surdo aos
gritos.
Mais à frente, alguns porcos passavam entre os que gritavam.
Porcos de Seu Barbalino.
De lá de cima, através de um buraco arrombado no meio da
parede, segurando ela, com a faca em seu pescoço, ele disse que
faria e acontecia.
E fez.
Desmonte.
Cena recuando velocidade até câmera lenta.
Sol quente brilhando acima do prédio, queimando as moleiras.
Pernas e braços desengonçados, fabricando rastros no ar no
trajeto durante a queda.
Som de ossos esmigalhando. Crânio espatifando. Sangue
espirrando pra tudo que é lado. Tingindo as paredes e o chão.
Flor de carne que se abre cuspindo as entranhas.
Defenestração.
Os porcos voaram pra cima da carne amolecida, presa nos ossos
espatifados, liquefazendo-se.
Gordos e desajeitados, os porcos se banqueteavam.
Parte 1
Favelinha
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São uns cachorros lazarentos, todos eles! Eu sei eu sei. Claro que sei, e num tô é
que acustumado? É uns lazarentos de pele de bicho ruim. Todos eles.
Bando de estrupícios! Uns ordinários e lambaios!
Uns babentos vagabundos sem eira nem beira!
Eu é que saio daqui assim que der! Ó se num saio! E largo de mão essa velha
muxibenta e esse muleque froxo e cornudo!
Não tenho paz nessa vida nem em qualquer lugar!

Ancieto olha lá pra fora, sentado numa varandinha, latindo de si


para si seus resmungos de sempre, como se estivesse gritando
dentro do oco do crânio. A varandinha pouco maior que um
banheiro químico, apertado de todos os lados. Uns vasinhos de
plantas murchas em cima de uma mureta. Um resto de cerca de
arame acabada que improvisou uma vez, e que agora jazia
estropiada num canto da mureta.
Ali ele ficava, olhando um trecho da vida, se inchando de
resmungos por dentro daquela cabeça grisalha e a calvície
tomando testa adentro. Lambendo os beiços e querendo esquecer
tal algazarra dentro de si, Ancieto pensou numa boa dose. Mas
chovia, um trecho da imundície do Timbó lhe entrava pelas
narinas, da varandinha dava pra ouvir o maldito encorpado,
levando seus restos, avançando com suas águas raivosas por
debaixo das pobres pontes improvisadas, de madeira úmida e
cacos de ferro enferrujado.
Aquelas pontes estavam sempre na iminência de despencar,
enquanto o Timbó avançava escuro e taludo por debaixo delas.
Pela manhã, a velha Elvira fazia a mesa: pães muxoxos de uma
padaria encravada no esqueleto da fábrica abandonada da Skol,
café, leite ensacado, manteiga, biscoito água&sal, mortadela.
Ancieto acordava sempre cedo demais, então Elvira devia acordar
mais cedo ainda. O velho resmungão sempre reclamava se a mesa
não estivesse posta e o café pronto. Sempre o café, negro, bem
forte se possível, quente, açucarado. A mesa era pequena, do
tamanho dessas de bar, espremida num canto da também
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pequena cozinha. Mas quase sempre o velho não se sentava ali.
Geralmente ia para sua velha poltrona cheia de manchas, que
havia encostada na varandinha da casa, um pequeníssimo
alpendre, donde ele podia ver a viela que se espremia cortando a
frente de sua casa.
A casa era quase um barraco, quatro cômodos, quarto, cozinha,
sala e um banheiro. A casa por fora ainda se encontrava no
reboco, apenas precariamente pintada por dentro, pelo neto que
vivia com eles, Jucelino.
O jovem Jucelino, por volta de uns vinte e pouco de idade,
morava com eles, desde os cinco anos, depois que a mãe sumira
no mundo. Nunca soubera quem fora o pai, já que a mãe era
mais rodada que pião nas mãos dos moleques. A mãe mesmo
tinha dificuldades em identificar quem a semeara, já que depois
de tantos parceiros, não sabia fazer as contas para saber quem
precisamente a engravidou. Deixou de lado. Trabalhou alguns
anos em casa de família, depois caiu na vergonha ao ser acusada
de roubar um aparelho doméstico e uma pequena quantia de
dinheiro. Ancieto deu umas pancadas na filha, de lhe marcar o
lombo. Semanas depois ela caiu pro mundo e nunca mais fora
vista. Deixou Jucelino com os avós.
Toda manhã Ancieto moía o pão entre os dentes precários.
Olhava a viela, às vezes quieta, mas na maioria das vezes
trafegada em abuso. Mergulhava o pão no café quente, e ele
vinha suculento à boca. O seco e, depois, o molhado. Ele mordia
o pão e o mastigava como boi ruminando capim e olhando em
volta, sem se diferenciar da paisagem que o cercava. De vez em
quando uma tropa de porcos passava pela viela, possivelmente
de Seu Barbalino, com uma enorme porca a frente conduzindo os
restantes, a maioria pequenos leitões. Grande, gorda, roliça, as
tetas murchas à mostra, quase raspando no chão, manchada de
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lama, mastigando algum troço, vasculhando os monturos de lixo.
Os leitões em volta, imitando os passos da mãe. A vida acelerava
o seu fim, Ancieto por vezes sentia isso, mastigando o pão úmido
de café, olhando as plantinhas encurvadas e caquéticas nos vasos
rachados. Aquele barraco onde morava, as vielas, as miserentas
pontes construídas pelos moradores do lugar, o valão Timbó
ruminando em sua constante passagem, levando a imundície:
negro, encorpado, morno, constante.

Uns moleques fedidos, é o que são, sem nada a ganhar! Olha onde foram parar!
Passo ali e eles ficam de deboche, mangando de mim. Ah, se não lhes dou umas
pancadas! Ah, se não dou. Vidinha de merda, um dia largo isso daqui e volto
pro norte, ah se não volto! Deixo essa velha e esse moleque chorão por aqui. Eu
que não levo mala sem alça, eu que não levo, levo não, levo mermo não.

Havia o bar da Crezilda, onde os pinguços do lugar se juntavam


para se encostar e beber uma dose e comer uma porção de
qualquer porcaria requentada, muitas vezes no fiado. Crezilda era
uma mulher magra, de cara esticada, boca pequena, olhos
nervosos. Tava na casa dos cinquenta, mas parecia ter setenta.
Tinha aquele bar fazia anos, com que conseguiu criar uma penca
de filhos e os botar no mundo para depois se virarem. Vivia no
bar quase boa parte da vida, servindo cachaça, dreyer, licor,
cerveja, batida, ovo colorido, moela etc. etc. para os desgraçados
daqueles cachaceiros que se amontoavam naquela favelinha. Sua
relação com eles era dúbia, uma mistura de compaixão com um
asco comedido. Todos os dias ela jurava aos coitados e a si
mesma, que não os deixaria mais comprar no fiado, mas quando
algum deles derretia a cara, em sinal de quase choro, ela se
apiedava e lhe servia uma dose sob uma carranca cheia de
resmungos e reclamações. Ancieto, quase toda manhã estava por
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lá, depois do café, e via esses despropósitos. Essa repetição de
instintos estacionados, corpos obsoletos, embriaguez, e uma
dimensão perdida no tempo e espaço. Por ali nada se passava. A
vida não tinha nem entrada ou saída, e morrer ou viver ali daria
no mesmo.
E como vai as coisas, Seu Ancieto? pergunta Crezilda, por entre
uma abertura retangular na parede, que lhe serve de balcão.
Vão no mesmo, responde Ancieto, encostado no balcão, meio
esbodegado, sem muita vontade pra conversa, mas ainda tendo
que conversar. Me dá uma dose de mel com catuaba aí, Crezilda,
hoje o tempo anda esquisito, tô precisando esquentar os ossos.
Bem, bem, tudo bem.
Crezilda pega a garrafa numa prateleira feita de pedaços de
tábuas e pregada na parede, e serve Ancieto. Ele não toma de
primeira a dose. Deixa o copo cheio em cima do balcão. Três
sujeitos conversam sobre qualquer coisa na beira da ruazinha. Um
deles ri de algo dito por outro, e mostra os dentes precários para
o mundo que chove. Ancieto os ignora e, sem beber a dose, fica
olhando para a ruazinha de barro em frente a tendinha de
Crezilda. Passa um vento frio impulsionado pela chuva rala que
cai. Algumas crianças passam uniformizadas indo pra escola, uma
menina maiorzinha vai na frente guiando o resto. De vez em
quando uma das crianças corre para pegar uma pedra ou pular
numa poça d’água. A menina maiorzinha vai atrás do fujão, o
repreende, e o coloca novamente em meio ao grupo que segue
pra escola. Uma maquita que rangia por perto, estourando o
silêncio, parece cessar aos poucos, quando o olhar de Ancieto
estaciona no grupo de crianças que se arrasta tal qual romaria. Ele
se concentra na menina que vai a frente, de cabeça baixa, pernas
finas, cara abatida, mochila enfiada nas costas como um pequeno
mundo, dando a mão pra outra criança que parece marchar
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como um soldadinho. Vão elas seguindo aquela ruazinha de
barro e subindo uma pequena elevação que leva à uma avenida
que margeia a Favelinha por um trecho. De repente os
sentimentos de Ancieto vão para além de uma vida indigente,
repetitiva, derivada de altas doses de privações. Seu olhar se
ergue aos poucos, e se perde das crianças. Aparece o céu até ele,
cinza, estranho, homogêneo, expelindo uma chuva insossa. Às
vezes bate essa enorme vontade de morrer, pensa. Mas ainda sou
tão novo, se engana Ancieto, na casa dos sessenta, obliterado por
uma vida reduzida à trabalho duro, diariamente, uma folga por
semana, amargura, decepção, injúrias.
E como vai Elvira e o neto? pergunta Crezilda, quebrando o fluxo
daqueles pensamentos sem direção.
Aquele estrupício do Jucelino tá como tá, sem rumo, perdido
como pinto sem galinha pra guiar, diz Ancieto, voltando a si. E
Elvira tá na mesma de sempre, fala uma ou duas vezes por dia,
fica olhando aquelas fotos velhas que ela guarda numa caixa de
sapato, e passa quase o dia inteiro vendo televisão.
Ancieto ergue o copo até a boca e toma a dose de uma só vez.
Pois é, hômi, as coisas são assim mermo né, diz Crezilda sem
certeza de muita coisa. Sabe, tô com uma fossa aqui que Deus me
livre. Já até chamei um conhecido meu pra ajeitar a desgrama,
mas nada. Tá um fedor danado, a casa fica impestiada de catinga
até o teto. Uma desgraça, Seu Ancieto. E tem rato de tudo quanto
é lado. Hoje mais cedo, passando a vassoura na cozinha, achei
um ninho de rato embaixo do fogão. Desgraça! Afastei o fogão e
o botijão, joguei um mucado de querosene em cima e taquei
fogo. Depois taquei creolina pra desinfetar. Anteontem também,
quando acordei de manhã, ouvi um barulho na cozinha. Fui ver o
que era, e quando olhei as panelas, tinha um diabo de uma
ratazana dentro da panela de arroz, se debatendo igual um
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danado. Vê se pode, Seu Ancieto. Matei o bicho na vassourada,
Deus me livre e guarde. Agora também num sei se é só dessa fossa
que esses excomungados sai não, pode ser do Timbó também,
sabe se lá. O que eu sei, é que agora o resto de comida que sobra,
deixo dentro da geladeira, que vai é mal das pernas, viu! Gela
mais quase nada.
Esses ratos são uma praga mermo. Lá em casa de vez em quando
parece um. Desgramados! Eu que tenho que matar, Elvira tem
medo de morrer desses bichos e Jucelino é um inútil, aquele
moleque!
Sei como é, Seu Ancieto. Faz mais hômi que nem antigamente
não. De primeira a coisa era diferente.
Ô se não era, dona Crezilda!

Jucelino olha pro relógio. Já se passou mais de uma hora, e ela


ainda não apareceu. Ele se recosta na parede, bem na curva da
esquina. A sacola com a lembrancinha está dependurada no
antebraço. Por sorte, conseguiu desenrolar com o chefe de obra e
saiu uns trinta minutos antes de acabar o expediente. Foi com
custo que conseguira um emprego num novo condomínio que
estão erguendo na Intendente Magalhães. Era um emprego
passageiro, mas ao menos ficaria sem ouvir os contínuos esporros
de seu avô, que o chamava de todos os nomes, de vagabundo à
deitão e frouxo, entre outros. Fora um amigo da época de
segundo grau que conseguira aquele emprego pra ele, de
ajudante de pedreiro. Sabia alguma coisa de obra, pois quando
mais novo, acompanhava Seu José, pedreiro lá da Favelinha, em
tudo que era canteiro de obra.
Será que ela vai aparecer? pensa. Espera que sim. O que precisa
lhe dizer é de suma importância, e aquela infeliz precisa ouvir
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cada palavra. Olha novamente o relógio, já se passara outros
cinco minutos. Os transeuntes passam pela calçada se
acotovelando. Todos apressados para chegar em casa depois do
expediente. Todos com olhares fixos para frente, reconduzidos
pela cotidiana paisagem de carros parados no trânsito, semáforos
piscando, uma chuva que cai realçando as luzes espatifadas dos
faróis.
Madureira parece recém constipada, agora soltando gentes
apressadas pelo ânus feito de ruas entreabertas e os últimos
ambulantes gritando suas mercadorias. Chove. Algumas fachadas
vão acendendo suas luzes, os ônibus se apressam lotados, a
fumaça do churrasquinho sobe o ar úmido tomando a atmosfera
barulhenta, mendigos se encolhem debaixo das marquises, a noite
se anuncia sem ser convidada.
Jucelino olha para o relógio, outros quinze minutos. Pois é, acho
que ela não vem mesmo. Se tivesse um celular, está juntando
dinheiro pra comprar um, Jucelino ligaria pra ela. Os créditos do
cartão de orelhão tinham acabado, e já quase não havia mais
orelhão em Madureira. Ou foram vandalizados, ou não
funcionam mais. Ou estão velhos, destroçados, coberto por
propagandas meretrícias, pichados, capengas.
Jucelino caminha alguns metros, entra numa pastelaria chinesa e
pede uma Coca-Cola. O china diz qualquer coisa que ele não
entende e traz a coca e um copo com gelo. Jucelino dispensa o
copo e dá uma boa golada no gargalo mesmo, sentindo o gás
formigar na boca e rasgar a garganta. Uma sensação das
melhores, quase como gozar, pois a sede era grande. O orgasmo
da coca entra-lhe pela boca, e Jucelino quase esquece que
esperava alguém. Alguém não, ela, ele sabe quem é. Sabe de sua
procedência e já sentira seu perfume.
Olha novamente o relógio, já passaram-se horas desde da hora
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que marcara com ela. Nesse interim, fica olhando a garrafa de
coca vazia. Pede outra, repete o procedimento, formigamento na
boca, a garganta queimando. Sabe que ela não virá mais. Já é a
quarta vez, deveria ter aprendido, mas insiste. Resolve ir pra casa.
Melhor. Os ônibus passam mais vazios, espirrando pra tudo que é
lado a água da chuva deitada sobre o asfalto. Sua avó Elvira já
deve de estar preocupada. Jucelino paga as cocas, o china
devolve-lhe o troco.
A amargura desce-lhe pelo peito. Aquela velha decepção de
sempre. Repetida. Chove sobre Madureira. Jucelino atravessa a
rua debaixo da chuva, e espera o ônibus. Logo, pensa, terá
dinheiro para comprar o tão desejado celular.

Bom dia, vô.


E o que tem de bom?! replica Ancieto, com uma cara
acabruncada, sentado na varandinha e levando o pão à boca,
molhado no café quente.
Jucelino não diz nada, não retorque. Evita, sempre que pode,
entrar em conflito com o avô. Ajeita a mochila que leva pra obra
nas costas: roupa de trabalho, marmita, água pra beber, sabonete
e toalha pro banho. Jucelino respira, abre o portãozinho de
madeira, todo fodido, e sai.
Ancieto grita: É isso mermo, cu de rola, a casa é minha, o dia é
meu também, e se digo que bom não tá, é que num tá mermo!
Porta da rua, serventia da casa! Não tá satisfeito, pode embora!

Vagabundo, sem-juízo, lambaio! Num quer nada com nada! Frouxo, cagão,
bosta fina! A mãe, uma boa de uma piranha e o filho, um frouxo! Deus meu,
Deus meus, onde foi que errei?!
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Ainda chove, mas um tímido sol abre suas asas brilhantes entre as
nuvens. A garoa fina persiste, um cheiro de terra úmida e podre
sobe pela atmosfera, Ancieto parece sentir. Molha o pão outra
vez no café, e o leva à boca. Se recosta na poltrona, pachorrento.
Gotículas escorregam pelas plantinhas em cima da mureta e
pingam.

Fazia tempo que dona Maricota não ia na casa de sua amiga de


tempos, dona Elvira. Queria saber como ela estava, o marido, o
neto que criou como filho. Mas Maricota tinha também seus
deveres do dia a dia. Uma penca de netos, três filhos, um com
problemas mentais, uma casa pequena, e por aí afora. Mas
naquele dia em especial, seu filho mais velho tava de folga no
trabalho e com bom humor, e resolveu dar uma folguinha pra
mãe e cuidar das coisas de casa. Com tempo livre, Maricota foi
então visitar sua amiga de longa data.
As ruelas da Favelinha estavam difíceis de transitar. O barro
molhado e salpicado de pequenas poças d’águas aqui e ali
deixavam-no escorregadio. Dona Maricota transitava como
podia, se esgueirando pelos cantos, onde estava menos úmido, e
caminhando lentamente até a casa de dona Elvira. As pernas já
não eram as mesmas fazia tempo, depois de anos de labuta,
cresceram-lhe as varizes e por duas vezes lhes atacou a erisipela.
Dona Elvira via um programa na televisão, onde a apresentadora
falava, especulava e criticava a vida íntima dos famosos. Depois
ela levantava, abria um sorriso e apresentava algum novo
produto genial que revolucionaria o mercado e coisa e tal. Dona
Elvira não entendia muita coisa, e não parecia muito querer
entender. Ela olhava para a televisão, com a cabeça apoiada na
palma da mão e o cotovelo mergulhado no braço de um
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sofazinho velho que se espremia na pequena sala. Tudo ali era
pequeno, apertado, de poucas dimensões. Parecia também que
tudo ali, principalmente os móveis, tinha um cheiro de mofo, um
resíduo de coisas se indo, uma tonalidade de coisas puídas nas
vésperas de terminar de vez. Sentiu um formigamento na mão,
balançou-a, depois assoprou em cima dela. O formigamento
continuava.
Elvira, ô, Elvira! Sou eu, Maricota, muié!
Dona Elvira reconheceu a voz da amiga. Se levantou, lentamente,
e se arrastou até a porta da frente.
Ancieto já tinha ido pra birosca de Crezilda, ou pra outro
qualquer canto.
Ao ver Maricota, dona Elvira sentiu uma pequena alegria
bruxulear dentro de si.
Ô, minha amiga, como vai as coisas?!
Vou bem, amiga, respondeu Maricota de lá de fora.
Entre, minha amiga, o portão tá aberto, tem nada mermo que
roubá aqui não. Se entrar ladrão aqui, ele sente até pena.
Maricota riu e foi entrando.
Vão pra cozinha, sentam-se à mesa.
Como vão as coisas por aqui em sua casa?!
Vão como sempre foram, Maricota. Ancieto acorda, senta na
varanda, resmunga, toma café e vai pro botequim. Volta no final
da tarde, resmunga novamente no sofazinho da sala, vê tevê,
janta e dorme. Jucelino vai pro trabalho, chega em casa, janta,
fica um pouco na rua, volta e dorme. Dá trabalho não, graças a
Deus. Sabe como são essas crianças de hoje né? Tenho até sorte.
O único ruim, é que ele se apegou num rabo de saia aí e vive
atrás dela. Mas ela não quer nada com ele, mas o coitado insiste
que insiste. Tem jeito não. E você, minha amiga, como vai lá em
sua casa?
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Elvira se levanta e serve café pra Maricota e um pedaço de bolo
de fubá que tinha feito no dia anterior. As duas ficam na cozinha
mesmo, sentadas em volta da mesinha, juntando causos. Maricota
morde o bolo e toma o café. Tá quente, sente, assopra e dá outra
golada. O café se encontra com o bolo em sua boca, umedece-o e
escorre pela garganta abaixo.
Lá em casa também não muda muito. Meus dois mininos mais
velho trabalham que demais, as esposas deles também. O mais
novo é aquilo né, coitado, retardadinho meu minino, e tenho de
cuidar dele. O Evaldo conseguiu uma nova cadeira de rodas pra
ele. Um amigo do trabalho tinha um pai que usava, mas o sinhô
morreu e ele vendeu pra Evaldo. Foi baratim. Mas ele dá
trabalho não, fica o dia inteiro olhando pro nada e mexendo as
mão num agito danado, mas faz mal nenhum não. O problema
são os neto. Umas criança mal educada e malcriada, brigam e
gritam o tempo todo, tão sempre se sujando e eu que tenho que
lavá eles. Só cuido porque sei que as mãe deles trabalham e dão
dinheiro pra ajudar na casa. São umas mulhér trabalhadeiras, viu!
Tenho que agradecer a Deus. Porque si fôr ver essas mulher
preguiçosas por aí, Deus me livre guarde, eu e meus filho tavam é
que encasquetado mesmo.
Nem diga, Maricota, nem diga.
No portão, dona Elvira se despede de Maricota, quando ela mete
o pé na rua, escorrega e cai de joelhos.
Ô, Deus do céu! Machucou mulhé?
Machuquei não, amiga. Tá tudo bem. É que esse raio de chão tá
escorregadio demais.
Tá mermo, amiga.
Um sujeito que passava na hora, ajudou Maricota a se levantar. A
garoa tinha dado uma estiada. Mas o chão ainda tava por demais
molhado.
Obrigado, meu filho, obrigado mermo.
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Tudo bem, tia, não há de quê. Se a senhora quiser, tô indo lá pra
ponte, se quiser ajudo a senhora no caminho. Tá indo pra lá?
Tô indo sim meu filho, que bença de Deus. Vou concê sim. Thau,
Elvira, quando dé, vai lá em casa. Preparo um café e um bolinho
pra ti. Dá um beijo no Jucelino e em Seu Ancieto. Beijos!
Beijos querida!
Dona Elvira vê sua amiga apoiada no rapaz, que a ajuda andar
pelo barro escorregadio. Ao virar a esquina da ruela, Maricota
olha pra trás pra ver sua amiga Elvira, pra lhe dar um thau. Mas
dona Elvira não está mais no portão. Ela olha pra frente, e segue
pra casa, se apoiando no bendito rapaz que lhe ajudava.

TIROS?!?!?! Ancieto acorda repentinamente, o coração disparado,


os olhos determinados a encontrar um vão que ilumine o quarto,
mas nada. O barulho imenso, atravessando as paredes, engolindo
o silêncio, estourando a noite. Tiros, só pode ser, mas Ancieto
não tem certeza. Ancieto não faz ideia de que horas são. O
barulho devorou os sonhos que Ancieto estava tendo dentro das
trevas de si próprio. A cama que tinham não era das maiores, mas
o suficiente para deixar um espaço respirável pra ambos. Dona
Elvira de um lado, Ancieto do outro. Dona Elvira ainda dorme,
tem sono pesado, profundo. Se tivesse acordado, Ancieto saberia,
pois ela já estaria afobada, melindrosa, encolhida na cama,
procurando um ninho nos braços de Ancieto – que ficaria
enfezado com tal atitude – perguntando que barulho seria esse,
talvez tiro? coisas do tipo. A velha era assim, com medo de tudo,
frágil, submissa, frouxa. Ancieto sabia bem disso. O quarto de
ambos era no fundo da casa. O único quarto da casa. Jucelino
dormia na sala, no sofazinho xexelento. Tinha também o sono
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pesado como mula emprenhada. Devia de tá dormindo também.
Mais barulhos. Tudo passa rápido, em segundos, desde o
despertar repentino de Ancieto pelo primeiro barulho até os
demais. Uma rajada, Ancieto agora tem certeza. Tiros. Alguém
morreu, executado, não tinha dúvidas. Polícia não era. Quase
não iam ali. Uma favela pequena, sem expressão, com apenas
uma boca de fumo, boquinha, comandada por uns moleques sem
fuzis, com apenas pistolas e revólveres na cintura. Perca de tempo
a polícia ir ali, pouco dinheiro, pouco flagrante, riscos
desnecessários. Então não era tiroteio. Alguém foi executado,
com certeza, por dívida, ofensa, mexeu ou comeu a mulher de
alguém da boca, inimigo de outra favela, alguma coisa do tipo. A
cabeça de Ancieto gira, em busca do que entender. A bandidagem
da boca costumava executar seus desafetos no muro velho,
amarelado e descascado, que há por detrás da antiga e
abandonada fábrica da Skol. Depois de executado, o cadáver, ou
era jogado no Timbó, ou queimado entre pneus, num campinho
de futebol, chamado Campim Primavera, que ficava numa várzea
às margens do valão.
Agora o morto estava sendo levado. Pra ser queimado ou ser
jogado na imundície das águas escuras do valão. Tanto faz. Mais
um, menos um, não faria diferença. O silêncio volta. Apenas um
ventilador miúdo e velho que range. Ancieto tenta dormir. Os
olhos dentro da escuridão, os sonhos que sonhava minutos antes,
agora perdidos para sempre. Amanhã toma uma boa dose de
pinga e pergunta pra Crezilda ou algum daqueles desocupados se
sabiam do ocorrido naquela madrugada. Agora é tentar dormir
novamente. Então, minutos depois do último tiro, dona Elvira
acorda assustada, retardatária, fazendo exatamente o que Ancieto
supunha que ela faria. Ancieto não diz nada, empurra-a pro
canto.
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Não é nada não, mulhé, não é nada, volte a dormir. Diaba...
Resmunga, quase sussurrando, e vira para o seu lado tentando
dormir.

A Favelinha se formara no início dos anos 60, logo depois que a


fábrica de cerveja da Skol abrira suas portas, localizada na
Avenida Itaóca, no bairro de Inhaúma. Inhaúma era um bairro
afastado do subúrbio carioca, e a maioria dos primeiros
empregados da fábrica era composta de subtrabalhadores
rudimentares e braçais, sem instrução e formação, vindo dos
lugares mais inóspitos do Rio de Janeiro. O acesso a fábrica era
difícil, muitos que ali foram trabalhar tinham de pegar quase três
conduções, o que praticamente inviabilizava a permanência no
emprego, do grosso daquela mão-de-obra. Como a maioria
daqueles trabalhadores vivia em condições péssimas em seu lugar
de origem, não demorou muito para que boa parte deles saíssem
de lá e viessem para os fundos daquela fábrica, onde levantaram
barracões grosseiros numa imensa várzea sem dono, cortada por
um rio-valão conhecido por Timbó.
O lugar era cortado por um valão, como já dito, e a terra era fofa
e úmida próximo das margens do valão. Havia, por um curto
trecho, uma pequeno manguezal, que logo foi aterrado e
eliminado, para dar lugar para mais barracos e algumas hortinhas
que foram plantadas por alguns moradores. O lugar cresceu
desordenado, com casas rudimentares e barracos construídos aqui
e ali de maneira irregular, sobrando não mais que um beco ou
uma viela entre as pobres residências. Carro nenhum entrava ali,
e os raros moradores que tinham um automóvel, não mais que
um velho carango de quinta ou sexta mão, deixavam os carros ao
lado de uma das entradas da Favelinha.
24
A prefeitura nunca havia se dado ao trabalho de urbanizar ou
sanear o lugar, e ele se manteve assim até os dias atuais. Os
poucos encanamentos de esgoto e água, calçamento, postes, e
tudo o mais, foram providenciados gambiarramente por alguns
dos moradores que entendiam limitadamente do assunto. De
resto, a Favelinha manteve-se sempre no reboco e precariamente
às vésperas de qualquer estreia. Esquecida, inarticulada no tempo,
cortada por um valão, precária e por detrás de uma fábrica, que
agora está abandonada e invadida, e que só restou o esqueleto
em ruínas. A alcunha “Favelinha” veio com o tempo, não se sabe
de onde. Por certo nascera provinda de sua indigente natureza, já
que alma alguma se deu o trabalho de lhe dar um nome próprio.
Quando a primeira formiga levantou sua rude moradia e se fixou,
as outras vieram atrás e fizeram o mesmo. Logo, havia uma
pequena comunidade se apinhando de maneira desordenada por
detrás da fábrica. Outros, uma maioria de sem tetos, que também
não tinham onde cair mortos, mas que não eram trabalhadores
da fábrica, também foram viver por ali. Houve uma rixa entre os
primeiros moradores e os outros que depois vieram. A princípio,
não era nada demais. Mas depois a rixa começou a se estender,
como fogo em palha seca, e se nada fosse feito, logo haveria uma
conflagração. Surgiu então, no meio deste embate, uma figura,
espécie de líder local, que ficou conhecido como Síndico.
O Síndico era uma figura rígida, paternal, de bigode grosso e cara
quadrada, bonachona com quem lhe era leal. O Síndico passou a
intermediar os embates, acalmando as rixas e os ânimos. Deu a
cada um o que era merecido, sempre tentando estar à altura de
cada pedido. Em pouco tempo as disputas foram deixadas de
lado, e a maioria ficou satisfeita com o rumo e o resultado do que
fora estabelecido. O Síndico ganhou renome na época, e sua
posição de liderança tornou-se praticamente estabelecida, sem
25
ameaça vigente. A Favelinha cresceu, ainda que minguada. Muitos
chegaram, alguns saíram, a fábrica também crescera em espaço e
ocupações.
Sob a vigilância do Síndico e de alguns dos homens que lhe
ajudavam, a Favelinha viveu sendo um lugar de relativa paz, com
apenas alguns distúrbios que lhe eram de sua natureza e direito:
brigas nos botequins, alguns casos de adultério, brigas que
começavam entre as crianças e logo atingiam os mais velhos, rixas
entre vizinhos etc. etc. Mas tudo isso era apaziguado, de uma
maneira ou de outra, pelo Síndico. A vida esquecida daquele
lugar passava sem maiores conflitos.
Mas tudo mudaria por volta do final da década de 80, quando
uma ascensão violenta e descomunal das quadrilhas do tráfico de
drogas, grassou bruscamente entre as favelas do Rio de Janeiro.
De todo lado vieram jovens liderados por algum bandido mais
velho, possivelmente mais feroz e violento, para concluir as
missões de tomada e aquisição de novos e férteis territórios para
o tráfico. O Síndico já não era mais uma figura que emitia força e
segurança, como antes. Os anos haviam se passado, sua carne
amolecera entre os ossos, e seu ânimo já não tinha a mesma
pegada. O Síndico não representou qualquer perigo ou obstáculo
ao avanço dos jovens armados sob o comando do tráfico.
Embora a quadrilha que fora para a Favelinha fosse pequena e
não tão bem armada, não seria difícil tomar uma minúscula e
quase inexistente favela, apenas chefiada por um velho e uns
poucos sujeitos, que só tinham respeito pelo nome que fizeram
outrora, e nada mais. Em pouco tempo, o conjunto daquelas
quadrilhas se estabeleceu nas comunidades e favelas de Inhaúma,
e não fora diferente na Favelinha. Como a Favelinha era
minúscula, e sem renome de nenhum tipo, que a distinguisse,
26
apenas uma pequeno contingente, dentre aquelas quadrilhas, fora
mandado para dominá-la.
A princípio, o Síndico foi apenas colocado de lado, até que os
novos dirigentes do lugar pudessem se estabelecer por inteiro.
Porém, depois de estabelecidos, um sujeito que chefiava à mando
dos cabeças da quadrilha, aspirando novas mudanças e querendo
subir de posto, resolveu acabar com tudo que representasse algum
tipo de autoridade de outrora. Numa atitude totalmente
descabida e arbitrária, e sem o conhecimento dos líderes da
quadrilha, o Síndico e os homens que lhe acompanhavam antes,
foram colocados em fileira, numa tarde qualquer, e um a um,
foram fuzilados de frente ao muro dos fundos da fábrica.
As reclamações chegaram aos ouvidos dos chefes que estavam no
comando daquelas quadrilhas, e eles, para ganharem algum
respeito entre os moradores, mataram o sujeito que tomara
aquela atitude imprudente.
Depois disso, ninguém disse mais nada.
Com o crescimento da criminalidade e violência, a fábrica da Skol
se mudou, sem estardalhaços, para outro bairro qualquer. E em
pouco tempo, o terreno e o prédio, ficaram abandonados e
entregues às moscas. As ruínas proliferaram.
E este é o atual quadro da Favelinha.
27

Parte 2
Jezabel
28
Tu procurou ela de novo?
29
Sim, vó.
Senta aqui, meu filho. Senta.
Jucelino senta ao seu lado. Dona Elvira numa cadeira, ele no
sofazinho da sala. Ambos se olham. As rugas de seu rosto não se
contraem. Mas ele sabe que ela sente. Ele não se segura, embora
devesse. Ele titubeia, cai de joelhos a sua frente. Pega uma de suas
mãos e beija. Queria chorar, mas não consegue. O pensamento
revolto, mar agitado desancorando os barcos, estraçalhando-os. A
avó olha o topo de sua cabeça, seu neto ajoelhado aos seus pés.
Depois desvia os olhos, olha pela abertura da janela, e vê apenas
uma criança retinta e pequenina, barriguda, catarrenta, só de
camisa e com o bigulim de fora. O resto do mundo inteiro se
esgueirando depois daquilo. Mas ela só vê a pobre criança.
Quando ele chegou, dona Elvira olhava as fotos como de
costume. Ali estava um resto de seu passado, imagens para atiçar
suas lembranças, para lhe dar um tom, uma cor, um fundo. Às
vezes ela sorria, outras, chorava. Um aperto no peito, a garganta
queimando, as lágrimas brotando e umedecendo a superfície
ocular. Ela passa os dedos velhos sobre a foto, sobre a face de
alguém que já se foi. O tato já não é como outrora, ela mal sente
o dedo deslizando sobre a foto. A carne titubeada, a pele
engelhada.
Seu neto chegou desmoronando, esquisito, cabisbaixo. Ela olhou
para ele, desviando-se das fotos em suas mãos. Colocou-as sobre
a prateleira da sala e o olhou.
Ele senta ao seu lado, depois cai de joelhos sobre seus pés e tenta
chorar. Lá fora, um menino de bigulim de fora brinca sobre o
chão de terra. Ela vê.
A sujeita que se juntou brevemente com seu neto, cerca de uns
dois anos atrás, agora é amante de um sujeito que tem um bar
30
perto da Praça Tiradentes, lá no Centro. Foi o que Jucelino lhe
disse um dia desses. Jucelino teve um rápido relacionamento com
a tal sujeita. Não durou mais que três meses, mas o suficiente para
ele ficar obcecado por ela. Depois disso, ela teve mais uns três
“romances”. Um com um bandido de uma favela em Irajá, mas
ela tomou uma surra no meio da rua de mijar nas calças, e saltou
fora. Depois com um velho gordo, que tinha duas barracas de
feira-livre. O terceiro, foi com um cara da Pavuna, mas Jucelino
nunca soube quem era ou o que fazia. A sujeita era uma
rampeira, umazinha sem juízo e coração, uma putinha de ponta
da rua, dona Elvira bem sabia disso. Já tinha conhecido, em sua
velha vida, muitas cobras que nem ela. Mas seu neto era
obcecado por essazinha. Ele a procurava e a procurava, e ela pra
se divertir as suas custas, lhe prometia amor e carinho, mas jamais
cumpria. Até dinheiro ela pegava com Jucelino, que cego em sua
paixonite, lhe dava sem contestações.
Dona Elvira olha para a cabeça de Jucelino deitada em seu colo.
Apalpa-lhe os carapinhos com ternura. Fica aliviada por saber que
Ancieto fora no banco, resolver alguma coisa relacionada a sua
aposentadoria. Se ele estivesse em casa, e visse o neto daquele
jeito, estouraria um banzé. Ancieto o ofenderia de todos os
nomes, e talvez lhe desse até uns tapas, para ele aprender a ser
sujeito homem. Seria uma gritaria, um bate-boca dos infernos.
Jucelino ameaçaria ir embora e Ancieto, debochado, diria que
não via a hora dele fazer isso. Jucelino bateria a porta detrás de si
e sairia por algumas horas, e só voltaria quando o avô estivesse
dormindo.

Como pode ainda não termos pensado em morrer?


31
Naquele mesma manhã de Jucelino ajoelhado aos pés da avó,
Ancieto voltava do banco, puto da vida, como de sempre.
Ônibus lotado, passageiros olhando pelas janelas, uma paisagem
estéril trancafiada lá fora. Não era nada demais, sua
aposentadoria minguada estava intacta. O velho Ancieto recebera
uma carta dizendo pra ele comparecer com urgência, a uma
agência mais perto. Acordou cedo no outro dia, antes do galo
cantar, como dizem.
Era apenas um cartão de crédito que o banco oferecia para os
aposentados. Ao falar com um dos atendentes, Ancieto recusou,
aliviado, por não ser nada demais. Foi até uma padaria perto do
banco e pediu um pingado e um pão na chapa. Olhou para um
muro desbotado do outro lado da rua. Viu pichado no muro,
fora a fora, em pesadas letras escuras: Como pode ainda não
termos pensado em morrer? A pergunta lhe veio como um
baque, um estouro dentro do peito, como num ataque cardíaco.
Não sabia o que pensar ou dizer.
Dentro do ônibus, lotado, um jovem com roupa escolar lhe
ofereceu o assento. Ele se sentou, a paisagem transcorrendo lá
fora. O sol descortinando as nuvens, atravessando o ar com seus
raios. O mundo parecia sacudir dentro de si, o gosto de café
ainda na boca, a cafeína fazendo a cabeça latejar. Precisava de
uma dose, sentiu. Passaria então na tendinha de Crezilda.
Como pode ainda não termos pensado em morrer?
Numa das entradas da Favelinha, umas crianças catavam restos
nos monturos de lixo, junto aos cachorros. Ancieto passou por
eles e seguiu Favelinha adentro.
Crezilda varria a porta da tendinha. Uns dois sujeitos sentavam na
beira da ruazinha, ouvindo um radinho chiando, envoltos em
conversas fiadas. Era manhã de uma quinta-feira, e se deram ao
direito de tomar uma cerva para iniciar o dia. O fim de semana
32
estava próximo. Ancieto veio andando pelo canto da rua, umas
duas crianças brincavam de bola perto de um portãozinho. A
televisão de um barraco próximo, chiava fora do ar. Um rádio
tocava um bolero em algum canto. O horizonte era encurralado,
o sol se acocorava por cima dos barracos.
A velhice já lhe cobria as pernas, o fôlego. As forças, de antes, o
abandonavam aos poucos. Sua juventude desperdiçada em noites
e troças, agora cobrava seu preço. Umas poças d’águas aqui e ali
ensopavam a ruazinha destrambelhada. As moscas pousavam
sobre o lixo, zumbiam voando de cá pra lá. Mais à frente,
escorria uma valeta de esgoto no canto de uma viela.
Um rapaz batia palmas em frente a um portãozinho.
Ô, de casa!
Como pode ainda não termos pensado em morrer?
Crezilda encheu seu copo, com uma cachaça amarelada de uma
garrafa pet de Coca-Cola.
Segundo ela, um conhecido que tinha viajado ao interior de
Minas, lhe trouxe aquela cachaça de um alambique local, curtida
no bambu. Era das boas. Era sim, pensou Ancieto, ao sentir na
boca o gostinho de bambu. A cachaça desceu pela garganta
queimando, deixando um gosto adocicado na boca. Ancieto
lambeu os beiços. Coisa da boa. Pediu pra Crezilda encher outro
copo. Estava com sede. Mas não bebeu de uma vez a segunda
dose. Por alguns minutos, deixou o copo em cima do balcão, e
ficou olhando pra rua. Os dois sujeitos ainda ouviam o rádio e
bebiam a cerveja na beira da ruazinha. Naquela pausa, entre uma
e outra dose, chegou Crezilda.
Ficou sabendo do sujeito que morreu semana passada?
Fiquei sabendo, dona Crezilda, mas não imagino quem seja,
respondeu Ancieto.
33
Nem eu, era um sujeito de fora. Acho que o rapáiz tava com uma
dívida na boca, e os bandido passaram o rôdo nele. Aquelas
coisas...
Sei. Uns avoados, num tem o que fazer e se metem com essas
coisas. Cabeça vazia, oficina do Diabo, é o que sempre digo,
dona Crezilda. No tempo do velho Síndico, as coisas eram de
outro jeito, não essa bagunça que é.
Pois é, seu Ancieto, o mundo bem que anda esquisito né. Mas fala
essas coisa alto não, Seu Ancieto, o senhor sabe que esse pessoal
da boca ainda se alembra do Síndico, e num querem nem ouvir o
nome do sujeito.
Sei sim, dona Crezilda. É como dizem né, as paredes tem ouvidos.
Mas te dizer, tô muito nem aí não. Esses merdinhas que tentem
algo comigo! Sou flor que se cheire não, dona Crezilda. Tô velho,
mas não morto.
Sei disso, Seu Ancieto, sei disso...
A conversa se arrefeceu, Ancieto tomou a segunda dose de uma
só vez, e sentiu o mundo em volta tomar novos contornos. A
pergunta não queria calar, refulgia em sua cabeça como um
relâmpago desamparado. O sol brilhava descendo pelos pobres
telhados daqueles barracos. Os dois sujeitos ouvindo radinho,
falavam qualquer coisa que Ancieto ignorava. Crezilda mexia
numas caixas de cerveja por detrás do balcão, agachada. Ancieto
dedilhava sobre o balcão. E a pergunta que lhe atingia.
Como pode ainda não termos pensado em morrer?
Tiquinho veio pela ponta da rua, se apoiando com o braço
esquerdo em apenas uma muleta. Uma das crianças que
brincavam na rua quase lhe acertou com a bola. Tiquinho deu uns
berros pro lado deles, e as duas crianças sumiram esquina afora.
Tiquinho veio capengando sobre a muleta, e sentou-se ao lado de
Ancieto, apoiando o cotoco de sua perna sobre o banco. O
34
excomungado já fedia a cachaça àquelas horas. Devia de tá
virado, enchendo os cornos desde a noite do dia anterior. Pediu
uma dose a Crezilda, que cozinhava umas moelas na panela de
pressão. Ela largou o que fazia, e foi ao balcãozinho.
Antes o dinheiro, excomungado, lhe diz Crezilda.
I ê-já fiquêi de dá or márdito du dinhêru?
Já sim, um montão, passa logo o dinheiro ou ripa daqui!
Tiquinho mete a mão no bolso, irritado e resmungando, e joga
meia dúzia de moedas em cima do balcãozinho. Ancieto não fala
nada. Crezilda conta o dinheiro. Lhe devolve uma moeda, vai na
prateleira de madeira cheia de garrafas, e enche um copo com
uma dose de catuaba e mel pro sujeito. Tiquinho estira os beiços,
e numa talagada, bebe toda dose.
O Timbó encorpado escoava sua imundície canal afora. O sol de
meio-dia já começava a dar as caras por cima das lajes. Ancieto
ignorava Tiquinho. Menos seu cheiro e o do valão, que lhe subia
pelas narinas largas. Misturavam-se. Quando Tiquinho ia abrir a
boca pra falar alguma coisa a Ancieto, os bandidos apareceram na
ponta da rua. Uma meia dúzia deles. Vinham em grupelho, com
o chefe à frente, ao que parecia. Uns vinham com pistolas nas
mãos, outros, com elas dependuradas na cintura e à mostra, sem
se preocuparem com mais nada. Eles riam e falavam alto,
ignorando o resto do mundo. O chefe ia na frente com a mão no
ombro de outro bandido, conversavam alguma coisa entre
sorrisos de canto de boca. Os demais vinham atrás. Uma estranha
romaria mal armada. Passaram em frente à tendinha de Crezilda
como se ela não existisse. Viraram a esquina e sumiram no ponto
de fuga. Antes que Tiquinho pudesse abrir a boca, Ancieto se
levantou, deixou umas moedas por cima do balcão, pra pagar as
doses, e seguiu pra casa.
Como pode ainda não termos pensado em morrer?
35
Pela ponta da viela, onde fica sua casa, Ancieto vem se
esgueirando pelas muretas das outras casas, chutando a sujeira
que se arrasta no chão.
A cachaça de Minas é por demais braba. Sente os olhos zanzar, as
pernas dando uma titubeada.
Viu umas crianças barrigudas brincando em cima de umas poças
d’águas. Cheias de vermes.
Numa outra viela, anterior àquela, passou por um muro cheio de
infiltrações, repleto de limo e baratas de diversas texturas e
tamanhos, que lhe cobriam como um mosaico.
Quando se aproximou de casa, Ancieto pôde sentir o cheiro do
almoço entrar-lhe pelas narinas largas. Vinha tudo misturado: o
cheiro da comida, a imundície do valão, o defumador de um
terreiro de macumba, o cheiro de mofo das casas próximas.
Chegou no portãozinho de sua casa, abriu e entrou.
Ao se achegar na cozinha, viu a mesa pronta.
Ô, Ancieto, que a comida já está até pronta, viu?
Não sou cego, mulher, claro que vi. Onde tá o traste daquele seu
neto?
Não sei não, acho que deu uma saída.
Num era folga dele hoje?
Era sim, diz Elvira, pondo o prato em cima da mesa, e servindo a
comida.
É um traste mesmo! conclui, Ancieto, sentando-se à mesa,
metendo a colher na comida e a pondo cheia na boca.
Sabe hômi, esses dias aí pra trás, Maricota teve aqui.
Ancieto ignora a mulher e continua comendo.
36
Ancieto acorda meio tonteado em cima do sofá da sala, após o
almoço. O suor empapa o peito. O mormaço umedece a
pequena sala. Umas moscas pousam em cima dele. Sente a
zonzeira, pois que a cachaça lá de Minas é forte como um coice.
Sente a babugem descer-lhe pelo canto da boca. O paladar
amargo e empapado.
Se levanta e vai ao banheiro. Lava o rosto. Bochecha a água e
cospe na pia. Vai até a cozinha e bebe quase um litro d’água.
Coloca café num copo e vai até a varandinha. Se senta na
poltrona e se recosta, pachorrento. Bebe um gole do café.
Entardece.
Ancieto vê uma criança seminua, vestida só com uma pequena
camisa e o bigulim de fora. Emporcalhada e catarrenta. Ele bebe
mais um gole. Elvira decerto está no quarto, vendo aquelas
bobagens de fotos velhas que nem ela. Umas varejeiras fazem
rebuliço por cima das plantas nos vasinhos. Zumbem. O mormaço
aquece os antros. O sol se mete por detrás do mundo, mas
Ancieto desorizontado e metido em vielas, não vê o espetáculo
do crepúsculo.

Um calor dos infernos! Que mormaço! Essas moscas que num param, posam em
cima de tudo, na merda e na gente! Olha lá um molequim de pinto de fora.
Essas mães cadelas que metem com tudo que é macho e depois joga as crias na
rua! Umas excomungadas! Umas cabruncas de terreiro!

Seu neto, Jucelino, vara pela ponta da viela. Se aproxima. Abre o


portãozinho.
Oi, vô.
Que quer?
Nada, vô, só falei com o sinhor.
Ah, bom.
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Jucelino se mete em casa e não diz mais nada. Ancieto se levanta,
mete a mão no bolso detrás da calça. A carteira tá ali. Melhor.
Não precisa entrar e ter que ver a mulher e o neto. Abre o
portãozinho e segue até a birosca de Crezilda.

Moleque frouxo! Filho de uma quenga barrigueira! Puta desmamada, meteu e


meteu, fez cria e largou esse estrupício aqui com nóis! Uma puta imprestável
mesmo! E que cria desperdiçada!

De vez em quando temos umas doideiras na cabeça né, dona


Crezilda?
Temos sim, Seu Ancieto.
Tava aqui pensando cá comigo, a senhora bem deve conhecer
aquele menino de Maricota que tem problema. Um que fica
sentado numa cadeira de rodas. Num sabe?
Sei sim, Seu Ancieto.
Aparece um sujeito do nada, interrompendo a conversa. É um
rapazote, pouco maior que um moleque. Magro, cabeçudo. Pede
uma dose pra Crezilda. A mulher sai para buscar a garrafa. O
sujeito tira um saquinho do bolso, enfileira um punhado de
cocaína na banda da mão, e cafunga a carreira de uma só vez.
Ancieto se emputesse com o despropósito, mas não diz nada.
O rapazote o olha de banda, e enceta um sorriso sestroso, por
debaixo do nariz escorrendo uns farelos de pó.
Crezilda serve a dose ao sujeito, que seca o copo de uma só vez,
e sai.
Ancieto acompanha com os olhos o rapazote saindo, e balança a
cabeça em lamento. Depois, continua o que dizia.
Pois é, dona Crezilda, o moleque é retardado, coitado. Vive
babando e mexendo os dedos nuns tremeliques. Não anda
direito, não fala, só geme, às vezes grita e só baba. Um aluado.
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Fiquei pensando cá comigo, imagine se o mundo fosse feito não
por gente normal como nós, mas como aquele menino. Já
imaginou?
Deus me livre, Seu Ancieto! E isso é lá coisa de se pensar?
Se é ou não, já num sei, só sei que pensei. O mundo bem que
seria outro, e não esse.
Desconjuro e credo, Seu Ancieto! Vira essa boca pra lá! Normal
não havia de ser. Ia ser uma desgraceira!
E o nosso já num é uma? O que não falta é desgraça pra gente
embarcar e se lascar. Desgraça pra tudo que é lado!
Mas nós temos Deus, isso o sinhor há de convir.
Nesse outro também teríamos, só que um Deus retardado, já
imaginou?
Ih, Seu Ancieto, isso é blasfema! Coisa ruim do Cão! Deus deve de
ser normal que nem a gente. É só olhar pro mundo, que ele é
prefeitinho.
Pois é, dona Crezilda, mas de vez em quando fico encucado com
essas coisas. Fico encucado e imaginando, como agora: imagine
um mundo criado por um retardado?
Então é melhor desencucar! Bem, vamos deixar essa prosa pra
outra hora, que eu preciso terminar umas coisas.
Crezilda volta pra dentro, pra seus afazeres. Ancieto toma mais
uma dose da cachaça de Minas.
É noitinha. Uns desconjuntados tão por ali pela birosca. Tem
meia dúzia deles. Um pessoal, mais jovem, chega pela ponta da
ruazinha, vindo do trabalho.
Um tapão forte no balcão. O zunido alto se solta do estalo.
Ancieto se assusta.
Diabos!
Êia! véio da porra! Sou eu, candango!
Era Tição, um crioulo enorme, forte como um touro.
39
Sei que é tu, danado! diz Ancieto, olhando pro lado dele. É que
eu tava entretido aqui com a rua. E tu chega assim, homem!
Como é que eu num ia levar susto?!
Manda uma dose da boa e caprichada ai, véia Crezilda! grita
Tição por entre o retângulo na parede da tendinha.
Já é vou, deixa eu termina aqui! grita Crezilda, do lado de
dentro.
E aí, véio da porra, como é que vai essa tua vida? Pergunta Tição,
cheio de intimidades pra cima de Ancieto.
Vou como vou né, levando...
E a patroa e o neto?
Aqueles trastes estão lá. A velha que fica dia inteiro num lenga-a-
lenga que só e o estrupício do meu neto, sendo corno e frouxo
como de sempre.
Tição solta um riso. Passa as mãos grandes na cara e depois num
braço e no outro.
Pois é né, meu véio. Tá tudo um tremilique que hômi que é hômi
tá é quase que estintu mermo. Outro dia desses, um moleque lá
na obra conseguia nem levantar um diabo dum saco de cimento,
vê se é pode, meu véio? Uma leseira! Um sujeito daqueles
tamanho e num consegue levantar um diabo de um saco?! É um
fim de mundo que é mermo.
Nem me fala, Tição.
Crezilda se aproxima, vinda de lá de dentro, coloca um prato de
moela em cima do balcão, pra Ancieto e Tição beliscarem. Tição
pede uma dose de catuaba, e uma garrafa de cerveja.
Crezilda traz e coloca por entre a abertura retangular na parede,
que ela faz de balcão de sua tendinha.
Tição dá uma talagada na dose, e despeja a cerveja num copo.
Antes, levanta a garrafa e diz:
Eita que essa tá que nem canela de pedreiro, véia da porra!
Crezilda ri e volta pra dentro.
40
Ancieto pega um pedaço grande de moela e mete na boca. A
gordura reluzindo em seus beiços grossos. Tição faz o mesmo. Um
dos que tão no bar riem alto de alguma coisa. Outro grupo joga
purrinha.
O mormaço continua, varando a noite.
Os postes capengas cuspiam luzes estilhaçadas sobre as vielas.
A rede de luz e água da Favelinha era clandestina. Os postes
foram fincados ali em tempos ainda anteriores ao Síndico, nos
primórdios do lugar. Eram feitos de madeira, encravados no
chão, e com as bases enxertadas de concreto para lhes dar
firmeza. Os anos passaram e os postes continuavam ali, agora
carcomidos e velhos, a maioria quase despencando por inteiro em
cima dos becos e ruelas. As lâmpadas eram trocadas pelos
moradores mesmo, que faziam vaquinhas para comprá-las.
Passa uma mulher na rua, uns dois mexem com ela. Deve de ser
moradora nova, pois que Ancieto não a conhece, ainda não a
havia visto.
Quem é essa daí, Tição?
Ih, véio, essa daí é nova na favela. Veio ela e o marido lá do
norte, pelo que me disseram. Sabe como é essa gente.
Taluda ela, hein.
É sim, véio da porra, umas pernocas que só. Essas paraíbas são
boas pra porra!
Bebeu mais um pouco da cerveja e comeu outro pedaço de
moela. Ancieto fez o mesmo, e lambeu mais um pouco da dose
da cachaça de Minas.
A noite varava.
É Tição, acho que é hora de ir. Já tô que tô. Vou nessa pra me
guardar pra amanhã.
41
Vai lá, véio. Esqueça não que domingo vou fazer um churrasco.
Eu ia comprar um daqueles porcos do Seu Barbalino, mas o
homem pediu os olhos da cara. Mas tive sorte, um subrim meu
vai consêguir um boi pra mim.
Ancieto ri.
Sério, véio, ele soube dum sujeito que cria umas cabeças lá pro
lado da Baixada. Arrumei até caminhão pra buscar o bicho. Vâmu
de madrugada sequestrar o boi, véio da porra.
Cuidado, Tição! Deixa de ser sem-juízo.
Que nada, véio, tudo em riba! Tá tudo nos conformes. Domingo
o boi tá aqui e vamos fazer um churrasco lá no Primavera.
Cê que sabe, homem. Vou nessa.
Se despedem.
Ancieto grita pra dentro da tendinha, para se despedir de
Crezilda. A mulher responde, entre o barulho que toma a
tendinha, do converseiro entre os cachaceiros e aos passantes que
atravessam a ruela em frente.

Ancieto vai balangando pra casa. A cachaça de Minas é braba,


aquece o sangue e tonteia a cabeça. Entrecortando as vielas,
Ancieto avança, mas não bêbado o suficiente para fazer
ziguezagues com os pés.
Alguns cães ladram durante o trajeto, incitando a madruga que há
de vir.
Ancieto abre o portãozinho com certa dificuldade. A tevê está
desligada. Já dormem, por certo.
Entra, trupicando na varandinha, mas não cai.
Jucelino dorme na sala, no sofá. Tá descoberto. Um ventilador
velho, pequeno, por cima dum banco, range soprando um vento
quente por cima do neto.
42
Ancieto aproxima a cara de Jucelino, num despropósito. Sente e
ouve a respiração dele. O ar abafado torneia a sala, tossido pela
hélice do ventilador. Ele ri, lembra que o neto é um frouxo, nada
além disso.

Moleque frouxo! Filho de uma quenga barrigueira! Puta desmamada, meteu e


meteu, fez cria e largou esse estrupício aqui com nóis! Trabalha que nem corno,
e fica aí dormindo que nem um abestalhado! Lesado! Um dia largo ele e o outro
estrupício que tá lá na cama por aqui. Deixo eles com uma mão na frente e
outra atrás. Lambaios!

Jucelino ouve uns murmúrios por dentro do sono. Sonhava com


aves coloridas, coqueiros desfraldados e vento sobre o rosto.
Depois uma voz, entrevada, caída do céu, rouca, virulenta.
Acorda.
Se assusta. A cara do avô próxima da sua, quase como que lhe
dando um beijo. Um despropósito!
Quê isso, vô?!
Ancieto também se assusta, e solavanca pra trás, como se
empinasse feito cavalo.
Nada, cabrunco! Fui é ver se tu ainda tava vivo. Cheguei e
parecia que você não respirava.
A, tah! exclama, Jucelino, aliviado. Vira pro lado do canto do
sofá.
Boa noite, vô.
Pro diabo, diz Ancieto, e entra pra dentro do quarto.
Elvira está deitada na cama, encolhida num canto. Ancieto olha
pras suas ancas. A diaba da mulher não é nem uma sombra do
que um dia foi. E olha que já não era grandes coisa naquela
época.
Ancieto tira as calças, a camisa, a cueca.
O pau murcho, enrugado por entre as pernas. O saco escrotal
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cheio de pentelhos, agrisalhados. Uma pelanca!
Se senta na beira da cama. A mulher dormindo que nem uma
múmia, silenciosa, encolhida, miúda. Enrolada no lençol, o
ventilador emburrado, soltando um ar quente que vareja o ar.
Ancieto toma coragem e cutuca a mulher.
Ela continua na mesma, embalsamada.
Cutuca novamente, com mais força. Balançando o tronco dela.
Nada.
Ancieto vai até o cachaço da mulher e a lambe, com a língua
viscosa pra fora. Depois lhe chupa com os beiços enormes.
Elvira esbugalha os olhos.
Grita.
Jucelino na sala se assusta. O ventilador soltando o ar quente,
rangendo. Esbarra nele, ele cai, e fica com a hélice batendo no
chão.
Corre até o quarto do avô mais a avó.
Abre a porta.
Ancieto está nu e ajoelhado em cima da cama.
Elvira no canto da cama, assustada, enrolada no lençol.
Que que foi?!
Nada excomungado! lhe grita Ancieto, volte já pro teu canto!
Uma descompostura ver o avô pelado daquele jeito.
Jucelino obedece, dá meia volta e vai pra sala.
Ancieto desce da cama. Veste a cueca, coloca uma calça velha que
lhe serve de pijama. Se estira na cama.
Elvira se ajeita novamente na cama, ainda assustada.
Se enrola ainda mais no lençol. Em poucos minutos adormece
como uma múmia.

Velha carcomida pelancuda dos infernos! Nem pra dar uma satisfeita pro seu
homem! Diaba infeliz! Num sei como fui me encostar nessa daí! Devia é ta de
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porre quando resolvi juntar com ela! Inferno de vida! Desse ano num passa,
passa não! Eu caio é que caio fora, já té sei onde morar e me encostar! Queria
mermo é aquela paraíba! Um toitiço! Eita que pernas boas! Levaria ela pra mim
e daria do bom e do melhor! Um bibelô! Eita que num dava!

O sono se aproxima, entra-lhe pela carne, amolece os músculos e


juntas.
Ancieto ronca de barriga pra cima.
O ventilador range.

Vou matar um boi na minha fazenda


Vou matar um boi na minha fazenda
Vou matar um boi na minha fazenda
Vou matar um boi na minha fazenda

O filé eu vou dar pra nilcéia


Pra luzia vou dar o acém
A alcatra vou dar pra dorotéia
Mas o lombo eu não dou pra ninguém

Vou matar um boi na minha fazenda


Vou matar um boi na minha fazenda
Vou matar um boi na minha fazenda
Vou matar um boi na minha fazenda

Pro thiago vou dar o cumpim


Dou o chifre pro compadre romeu
A rabada vou dar pro joaquim
Mas o rabo quem come sou eu
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O domingo surgia no horizonte, iluminado por um sol alaranjado
varando um teto azul. O campo do Primavera estava cheio. Por
volta de umas quarenta pessoas. O Primavera era ao lado do
Timbó. O valão margeava uma de suas bandas. A molecada e os
rapazotes do bairro jogavam futebol ali quase todos os dias. O
campo era de terra batida, uma terra escura, cheia de detritos e
imundícies, que se depositavam ali quando o valão transbordava
em dias de chuva forte.
Perto de um matagal, onde agora o mato estava rasteiro após ter
sido rapado, estava uma montoeira de paus armados, que logo se
transformaria em fogueira.
De todo lado, os gritos de crianças e mulheres empesteavam o ar,
pulando em volta de um boi lançado e que escoiceava e mexia
violentamente a enorme cabeça e chifres. Cerca de uns quinze
homens, ao todo, divididos pra cada lado, seguravam uma corda
grossa que estava laçada nos chifres do boi.
Deixaram o boi de um dia pro outro preso, para que ficasse de
estômago vazio. Mas por algum motivo o bicho fugiu, decerto o
nó fora desfeito, e tiveram que correr atrás dele.
A algazarra prosseguia, enquanto o boi tentava se livrar dos laços.
Os homens seguravam a corda, mas a força descomunal do boi
arrastava eles de um lado pro outro.
Depois, com muito custo, o levaram para o meio de duas árvores
equidistantes, e amarraram as pontas da corda em cada árvore.
Depois de preso, o boi continuava escoiceando e agitando
ferozmente os enormes chifres.
Um sujeito chamado Coió, veio com um machado de uma só
lâmina e se aproximou do boi.
Virou o machado de banda, pro lado sem a lâmina, e deu uma
pancada certeira na cabeça do bicho, acima dos olhos. O bicho
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flexionou as pernas e desabou duro no chão, lançando a língua
viscosa pra fora.
Depois, Coió e mais alguns homens, viraram o bicho de patas pro
ar. Com uma faca de lâmina afiadíssima, Coió cortou a artéria do
boi, na altura do pescoço, e o rasgou na parte inferior, de cima
pra baixo.
Deslizando a faca sobre a barriga do bicho, Coió vai lhe abrindo,
arrancando seu couro, e deflorando com a faca uma camada
branca e viscosa de gordura, desviscerando-o. Vai lhe tirando os
pedaços e separando as melhores partes pro churrasco. O sangue
desce e cria uma enorme poça sobre o chão podre, que logo atrai
a presença de uma nuvem de moscas.
As partes imprestáveis, Coió vai jogando de lado, e os cães
magricelos e pelados da Favelinha se aproximam e fazem rebuliço
para catar as partes com as presas. Fazem um verdadeiro
banquete, mastigando as vísceras e roendo os ossos.
Neste meio tempo, chega Ancieto, que se aproxima do abate, e
olha as vísceras do bicho abertas pro mundo. Ao lado, as crianças
olham pro bicho aberto, com os olhos esbugalhados e cheios de
curiosidade. O sangue grassa pelo chão.
Tição pega as partes do bicho e as coloca em cima de uma mesa
improvisada, feita de ripas e tábuas. Com as mãos úmidas de
sangue, ele vai abrindo os pedaços de carne.
Depois, alguns sujeitos jogam álcool na montoeira de madeira e
acendem a fogueira.
O fogo se alastra e a madeira crepita.
As mulheres espetam e ajeitam as carnes em enormes espetos e os
dependuram por cima da fogueira.
Vão girando os espetos por cima do fogo, apoiados em dois
pedaços de pau fincados no chão, até que a carne fique assada. As
duas madeiras que apoiam os espetos, têm mais de um metro e
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meio de altura, e estão equidistantes, longe o suficiente para que
o fogo não se alastre sobre elas.
O churrasco prossegue, regado a cachaça, cerveja e muita carne.
As crianças e mulheres barrigudas, são os que mais comem,
esganadamente, chupando os ossos, e atirando-os pros cães que
fazem fileira de língua pra fora.
Tiquinho passa apoiado numa muleta, indo atrás de uma das
crianças que mangam dele.
Tição se aproxima de Ancieto, que está sentado num banco de
madeira, e jogando conversa fora com outros idosos. Não
muitos, pois que a maioria ali é composta de gente bem mais
nova.
Tição se aproxima, coloca a mão no ombro de Ancieto.
E aí, véio da porra, tudo em riba?
Bem sim, Tição, bebendo e beliscando uma carne. Tudo nos
conformes.
Tição está sem camisa e descalço. Apenas vestido com uma
bermuda jeans, bem velha. Os ombros largos e as mãos e pés
enormes, fazem do sujeito uma criatura formidável. Uma
presença bruta, imponente e desafiadora.
É isso aí, véio. A esganada da vida passa, e a gente que nem vê.
Uma desgraceira que só.
Verdade...
Qualquer coisa é só me chamar.
Tudo bem, meu filho.
Tição era o tipo de filho que Ancieto sempre quis ter. Tirando
afora algumas doideiras do crioulo, ele era perfeito: grande, forte,
batuta pro trabalho, macho, de personalidade forte e que sabe
manter uma mulher na linha e no chicote, se precisar. Bem
diferente da puta da filha que um dia teve, ingrata e
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desavergonhada, e do neto resmungão e lambaio, frouxo, pau
mandado das mulheres.
O churrasco prossegue. O Timbó passa intranquilo, arrastando as
imundícies, e lançando ao ar um odor pútrido, que se mistura ao
cheiro de carne assada. O sol se ergue e estaciona escaldante no
meio do céu, intenso, esquentando as vielas e becos, ancorado
por cima dos barracos que se apinham e vão se trepando.
Chega uns rapazes com pandeiros, repiques, cuícas, cavaquinho,
tan-tans e começam um pagode agitado. As mulheres cercam o
grupo e começam a sambar desaforadas, com os vestidos erguidos
e imensos sorrisos rasgados nas caras.
Ancieto olha para as mulheres, seus sorrisos estampados, suas
pernas serpenteando. Olha faminto, lascivo, sedento, a boca se
enchendo d’água, o membro pelancudo se enrijecendo aos
poucos por dentro das calças. A maioria já está mais avariada
que o conveniente, algumas barrigudas, esperando o filho de
algum traste, outras se vestem mal, passam maquiagem demais na
cara, mas todas abrasivas, sinuosas, risonhas. Ancieto toma umas
doses, come alguma coisa, mordisca um pedaço de carne, joga
purrinha com outros velhos. As cinzas das madeiras rodopiam no
ar, as carnes vão assando, o Timbó passa agitado, uma sinfonia de
cheiros e odores toma a atmosfera, e a batucada e cantoria se
emendam tarde afora.
Perto do crepúsculo, se achegam uns sujeitos vestidos de camisa
preta, armas semiautomáticas nas mãos, barbas bem aparadas,
outros com cavanhaques bem desenhados no rosto. São uns
quatro, no total. Eles se aproximam de Tição e lhe falam alguma
coisa. O pagode ameaça parar, mas Tição faz um gesto, e os
rapazes continuam tocando. As mulheres continuam dançando, e
as crianças barrigudas pelos vermes, correm de lá pra cá em
brincadeiras.
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Tição e os homens de preto se afastam um pouco e ficam
conversando à beira do valão. Minutos depois eles voltam. Os
homens de preto se aproximam de um dos rapazes que tá perto
da fogueira e, logo depois, o levam com eles. O pagode e o
churrasco continuam como se nada tivesse acontecido.
Ancieto, absorto, já meio embriagado, não presta atenção em
muita coisa, e continua concentrado nas mulheres sambando.

Foram seguindo lado a lado do Timbó, na direção de Del


Castilho. Passaram por duas casas afastadas das demais, velhas,
imundas, pichadas, e uma delas, abandonada. Uma senhora
estendia roupa no varal, e uma menininha de cabelo amarelinho,
nua e suja, brincava perto de uma bacia.
Continuaram.
Depois atravessaram uns monturos de entulho e lixo, e havia uma
extensa fogueira crepitando alto, saturando o ar com cheiro de
plástico queimado.
Mais pra frente, encontraram a carcaça de um carro roubado,
destruída, há menos de duas semanas, devorada pelo fogo.
Seguiram ainda mais, e entraram por um buraco num muro por
cima do Timbó, por onde ele seguia por um canal, que passava
por debaixo da Estrada Velha da Pavuna.
Atravessaram o buraco e a avenida e foram parar do outro lado,
onde não havia vivente algum e apenas um mato alto, difícil de
ser trespassado.
Ainda assim, atravessaram-no.
Continuavam à margem do Timbó, e ali ficaram, próximos de
uma mangueira, e uns matos altos, bem altos.
Encostaram o moleque num canto.
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E então, não vai nos dizer, seu crioulinho de merda, quem é que
que te mandou ganhar aquele carro lá na Itaóca?
Pô, sei não tio, sei não pô, tô te dizendo...
Sabe sim, seu merda, diz um deles, agressivo, empunhado uma
metralhadora, cuspindo em seguida.
Melhor falar, seu arrombado, ou vamos te furar aqui mesmo, diz
outro, barba cuidada, cabelo penteado pro lado, umas pulseiras
douradas presas no braço direito.
Tô falando, sei de nada não, tio, nem tô sabendo, diz o rapaz,
sem camisa, descalço, as canelas ruças, a magreza lhe riscando
traços no rosto chupado. Está tremendo, se enrolando com as
palavras.
Sabe sim, seu vagabundo! Tu não passa de um vagabundo
ordinário e um ladrão de merda.
Um outro perde as estribeiras, saca uma pistola e atira.
A bala lhe penetra pela boca, estraçalha os dentes, e ganha a
cabeça adentro, saindo pela nuca. O sangue espirra sobre os
matos altos. O corpo despenca pra trás e desaba sobre o tronco
da mangueira, despencando aos poucos até o chão. O corpo cai
sentado e estrebucha, até cair de banda. O sangue esguicha pelo
buraco na cabeça, formando uma poça no chão, que grassa aos
poucos.
O que estava com a metralhadora, dispara sobre o corpo caído, a
arma escoiceia, e as balas saem alvoroçadas do cano da arma e
picam puft puft puft puft puft... a carne do moleque, perfuram-na
toda. Mais sangue, que desce pelo corpo, inunda o chão escuro e
podre às margens do valão.
Dois deles pegam o corpo, pelos braços e pernas, balançam, e
jogam no Timbó. O corpo cai sobre as águas negras e depois
afunda entre a imundície. O valão continua, fixo em seu curso.
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Os homens voltam pelo mesmo caminho, saem pela Estrada
Velha da Pavuna, e vão embora.

Ancieto ouve os tiros, olha pro lado de onde os estalidos vieram.


Por alguns segundos, o pagode para, os instrumentos arrefecem.
Tição olha para eles e ordena que continuem.
Eles prosseguem e as mulheres voltam a dançar. As crianças
brincam, as gargalhadas delas se misturam aos batuques.
Como pode ainda não termos pensado em morrer?
Ancieto continua olhando pro lado de onde viera o som dos
tiros. Esquece das mulheres que ainda sambam. O crepúsculo se
anuncia nos céus, deixando as poucas nuvens vermelhas. O céu se
enferruja. As cigarras cantam, os insetos saem de dentro do mato
e vão a carne picar.
Tição se aproxima do velho. Põe a mão no seu ombro. Ancieto
volta a si e olha de banda pro enorme negro. A mulher que um
dia passou por eles, pernas grossas, ancas salientes, mulher do tal
sujeito que viera com ela lá do norte, segundo disseram, está com
o braço enroscado na cintura de Tição.
A mão se assenta pesada sobre o ombro de Ancieto.
Se aprepara, véio da porra, se aprepara! Se aprepara que os dia
ruim tá chegando...

A avó fora visitar dona Maricota desde manhã. O avô sumira-se,


decerto tomando umas lá no churrasco do Tição. Jucelino então
se vê sozinho, enterrado no sofá naquele dia calorento, quente
como o inferno. O ventilador rangendo e girando a hélice com
dificuldade.
Pensou nela, como pensara todos os outros dias antes.
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Entediado, Jucelino coloca um dvd pirata no aparelho que havia
na sala, que o avô comprara em promoção no ano anterior.
Era um filme pornô.
Colocou, o aparelho chupou o dvd pra dentro e começou a rodá-
lo. Jucelino recostou no sofá, pachorrento.
O filme fez sua chamada, cheia de cores e luzes.
Logo depois aparece uma mulher branca, nua, de cabelos loiros,
ajoelhada no chão, cercada por vários negros olhando-a com
olhos sedentos, lascivos. Os negros estão seminus, com os
caralhos pra fora, apontados em direção a mulher.
Enquanto ela faz uma carinha de quem não está entendendo
nada, mas tá, rindo e olhando de olhos solícitos para os homens
em volta, os negros agitam os enormes membros, cada um maior
que o outro.
A loira coloca a língua pra fora, serpenteando-a, sibilando-a com
um gesto voluptuoso e debochado. Cobra balançando a língua
bifurcada. Os homens se excitam ainda mais, soltando gemidos
graves. Grunhem. Ela ri, e continua tremelicando ainda mais a
língua.
Um deles, não se aguentando, e agitando ainda mais a glande de
seu membro, se aproxima, e, urrando, num gesto frêmito, ele
solta o esperma, e a mulher se apresenta solícita e de boca aberta
para receber o jato de porra.
O mesmo acontece com os demais. A cada vez que um vai até a
mulher e lança o esperma sobre sua boca, seus olhos, nariz,
queixo, sobre os lábios entreabertos em forma de vulva; os
demais se excitam ainda mais, vão até a mulher e lhe lançam um
jato quente de porra viscosa.
O esperma escorre quente pelo queixo, e despenca em gotas
graúdas sobre seus seios pequenos e pontudos.
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Depois de dez, doze sujeitos, a mulher está com uma espécie de
máscara de porra cobrindo-lhe o rosto. Eles se aproximam, um a
um, apontam seus caralhos em direção aos seus lábios, agitam
freneticamente a glande, e soltam um jato de porra sobre sua
boca. Ela, submissa e obediente, sedenta por leite, o esperma
escorrendo pelo queixo, agradece a cada um deles, depois que lhe
esporram a cara.
Tudo acontece num círculo eterno, que nunca se sacia.
Jucelino, superexcitado com essas imagens, freneticamente
agitando o prepúcio, esporra sobre o chão da sala.
O calor intenso esquentando o ar. O ventilador ligado soltando
um ar quente da hélice. As moscas lá fora, pousando sobre os
vasinhos de planta.
Jucelino pega o controle, ainda com a mão melada. Desliga o
aparelho. Num lampejo, a tela escurece, refletindo a sala.
Jucelino vai até a cozinha, pega um pano-de-chão, e limpa as
mãos e depois a porra fazendo um rastro sobre o chão.
Recosta-se no sofá, relaxado, vazio, leve, pachorrento, pensando
nela e não conseguindo pensar em mais nada.

Passaram-se semanas, depois do churrasco de Tição. Durante esse


tempo, chovera muito, junto com muito calor. Os dias quentes
vinham com chuvas grossas, que enchiam as vielas e levavam o
Timbó a transbordar de quando em vez.
Ancieto passava por entre uma das vielas, quando fora
surpreendido por uma espécie de cascata de esgoto, que caia de
uma pobre rampa de concreto que havia por entre dois barracos.
Uma espécie de valeta mal feita, construída para escoar a água da
chuva. Mas parece que um dos remendos de canos quebrara, e o
esgoto de uma das casas descera pela rampa. Uma pequena
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cachoeira de esgoto caía sobre um canto da viela. Ancieto se
esgueirou com jeito pelo outro canto, e passou pela cascatinha,
embora uma parte do esgoto respingara sobre suas calças.
Ao chegar na birosca de Crezilda, a tarde descambava pelo céu.
Estava um tempo úmido, recheado por um mormaço que colava
no corpo, deixando a roupa empapada de suor, grudando-a
sobre a pele.
Havia uma meia dúzia de sujeitos na tendinha, e uma mulher
entre eles. A mesma mulher que estava engatada na cintura de
Tição, lá no dia do churrasco no Primavera.
Durante esse tempo, de lá do dia do churrasco até cá, Ancieto
pensava nela. Ansiava por ela. Ela tinha os cabelos pintados de
loiros nas pontas, os cabelos encaracolados de sarará. Era baixa,
as pernas torneadas e a cintura grossa. Tinha os olhos miúdos e
uma boca grande, não exagerada, mas que ganhava nitidez no
rosto, com um contorno expressivo. Ela estava mal vestida, com
um vestido curto, pregado na pele, um batom roxo na boca, e
duas argolas dependuradas nas orelhas. Ainda assim, ela era
bonita, uma beleza rude, entalhada pelas misérias que pululam
pela vida afora.
Ancieto chegou, se encostou no balcão e gritou por Crezilda,
pedindo uma dose.
A mulher veio um tanto quanto esbaforida de lá de dentro, e
atendeu Ancieto. Derramou uma dose sobre um copo, que logo
foi bebericado pelo velho.
Essa aí tá que tá né? diz, após tomar a dose e enxugar a boca com
o dorso da mão.
Sim, uma desavergonhada, responde Crezilda, com uma pitada de
inveja na ponta da boca.
A mulher está rindo entre os homens, gargalhando alto de alguma
coisa que algum deles diz.
Mas, vixe, ela num tem marido?
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Tem sim, diz Crezilda, abaixando o tom da voz para que a
mulher não ouvisse, mas me disseram que o sujeito é uma leseira
que só. Trabalha o dia inteiro e só vai pra casa jantar e durmi.
Que diaba. É assim mesmo, véia Crezilda, essas mulher de hoje
em dia só prestam pra cair na gandaia e botar cria ruim no
mundo. Uma desgraceira!
É sim, Seu Ancieto, é sim... essa daí é uma Jezabel, rouba marido
dosotros.
Me conte essa? Pelo que soube e vi, ela tava de sanhasso pra cima
de Tição.
É, eu soube, hômi. Soube também que ela tava de gracejos pra
cima do homem de dona Gerunda. Mas a mulher ficou sabendo,
alguém contô pra ela, o sinhô sabe como esse povo é fofoqueiro,
e ela foi tirá as satisfação com essa daí. O pau comeu e tudo.
Gerunda deu que deu um cacete nela. Num fosse o povo que
tava lá, essa daí bem que morria.
Eita que desgraça, dona Crezilda! e o marido dessa daí?
Uma leseira, como eu disse, serve de nada não. Deu linha na pipa
e num disse nada. Mas continua morando cum ela, foi o que
soube.
Quando acabou de falar, Crezilda voltou pra dentro, mas não
antes de encher mais uma dose pra Ancieto.
O velho deu uma talagada de uma só vez e secou o copo.
Minutos depois, ele ouviu uma voz:
Eia que dêxa disso, muié! Vâmo pra casa que isso num é dia de
bebeção, falou um sujeito baixo, moreno, nariz grande na face,
magro, olhos tristonhos, pescoço fino.
Vô é nada, babudo. Tô aqui com meus amigos, depois dou as
cara lá.
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Que amigos que nada, muié, cai dessa! Vâmo que vâmo, amanhã
é dia, fala o homem, o marido, certamente, tentando engrossar a
voz, mas sem muito jeito pra isso.
Ancieto não diz nada, olha a cena, curioso, satisfeito por não
estar na pele da vida daquele infeliz.
Os homens se calam e não falam nada. Ficam olhando a discussão
entre os dois.
A mulher gargalha, rodopia sobre o próprio eixo, como pomba-
gira. Amostra os dentes grandes, alvos, manchados de batom aqui
e acolá.
O homem se enfeza, se aproxima. Pega-lhe pelo braço, dá-lhe um
puxão. A mulher cata cavaco e tropeça no chão de cimento da
tendinha, rala um dos joelhos. Um dos homens que estavam com
ela, se aproxima, mete a mão no ombro do marido. Ele se vira, o
homem acerta um bem dado em seu queixo. O marido rodopia e
cai sobre a ruela de chão batido.
O banzé atrai a atenção dos vizinhos que vão se aglomerando na
porta da tendinha. Eles começam a gritar e rir, alvoroçados,
soltando chacotas pra cima do tumulto.
Crezilda fica de dentro, olhando a bagunça por entre a abertura
retangular.
Ancieto continua recostado no balcão.
Como pode ainda não termos pensado em morrer?
O banzé prossegue mais alguns minutos, até a chegada de dois
bandidos do lugar, com pistolas nas mãos, que arredam o
tumulto e mandam o marido e a mulher pra casa.
A pequena multidão se dispersa.
O bar se esvazia, sobrando apenas Ancieto.
Ele toma mais algumas doses, conversa mais um pouco com
Crezilda, que faz caretas terríveis, ouvindo os relatos de Ancieto
sobre a vida dos outros e a dele própria.
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Horas depois chega Tiquinho, fedendo a cachaça como sempre, e
com uma catinga de cecê dos diabos. Senta-se perto de Ancieto,
apoiando o toco de perna sobre um banco.
Um de seus braços está entrapado, com manchas de sangue e pus
encravadas na gaze.
Óia qui boa nôte, cêu Ancieto? lhe diz Tiquinho, abrindo um
sorriso com apenas dois dentes capengas na arcada.
O que tem de bom, cabrunqueira?
Ô, qui é isso, ô ômi?
Cai fora, traste!
Ô, ômi, sô ruim tabém assim não
Claro que é, cabrunqueira!
Ancieto seca o copo. Grita por Crezilda. Põe umas notas em cima
do balcão. Tiquinho se cala. Crezilda sai de dentro da cozinha, se
achega, pega o dinheiro. Ancieto se despede da velha, e segue
pela a ruelazinha adentro.

A noite cresce, se avoluma por todo canto. As luzes dos postes


capengas e de madeira podre, mal iluminam as vielas e becos. Os
cães ladram.
Ancieto caminha meio tonteado, entrecortando a favelinha.
Depois de virar alguns becos, e atravessar uma pontezinha por
cima do Timbó, ele encontra a mulher encostada perto de uma
quina.
Ela está chorando, baixinho, recostada numa parede.
A ruela está vazia, não há ninguém por perto.
Ancieto toma coragem e, impulsionado pelo álcool, ele se achega
na mulher.
Ela o vê se aproximando e não diz nada.
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O que foi, mulhé? dispara, Ancieto, com a voz meio úmida pelas
doses.
Meu hômi, ela diz. Ele num qué mais eu em casa.
Ué, tu num se adireita.
Eu sei, eu sei, eu que num resisto... ela diz, apresentando um
sorriso de dentes escurecidos, manchados de batom.
Ela está cheirosa, o perfume forte, emana de sua pele úmida, pela
noite que transcorre quente pelos ermos.
Vâmo sartar daqui, tem um lugar que conheço, lhe diz Ancieto,
que numa atitude brusca, sem nenhuma cerimônia, lhe pega pelas
mãos e lhe puxa dali.
Eles seguem de volta, passando pela pontezinha por cima do
valão. Ela sem entender muito bem o que está fazendo, vai atrás
do velho.
Depois seguem por mais alguns becos, que aparentemente estão
vazios.
Vão para o Campim Primavera, que está num breu, numa hora
daquelas.
Ancieto, conhecendo o caminho de có e salteado, segue beirando
o campo, até umas manilhas que tem do outro lado do campo,
perto duns monturos.
Ao longe, queima uma fogueira, entre os monturos de lixo,
soltando no ar um cheiro de plástico queimado.
O Timbó escorre como uma veia aberta, entrecortando a
Favelinha, serpenteando um sangue escuro que solta o cheiro de
detritos industriais e fezes.
Ancieto mete as mãos nas nádegas da mulher. Ela sem entender
direito o que se passa, e ainda surpresa demais com o desenrolar
daquilo tudo, cede, e nada diz.
Ancieto continua, arfando, grunhindo. Ele solta a língua pra fora
e lambe o rosto da mulher, que fecha um dos olhos, para a língua
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não atingir o globo ocular. O hálito e odor de álcool se
impregnam em seu rosto.
Ancieto levanta o vestido, põe a mão por sobre a calcinha, em
cima da vagina. Rosna. A mulher não diz nada, ainda inalterada e
atordoada, sem reação.
Abaixa suas calça, tira o membro pra fora da cueca.
Ancieto tem uma ereção que há anos não possuía. Seu membro
negro e pelancudo está rijo, reluz úmido sob a luz do luar que
veste a noite.
De repente, bruscamente, a mulher volta a si. Se vê num lugar
estranho, pouco conhecido, de vestido pra cima e a calcinha
descendo pelas pernas. O ar saturado de plástico queimado. O
cheiro de detritos e fezes.
O lugar é puro breu, iluminado apenas pela luz da lua e pela
fogueira nos monturos.
Ela olha pra Ancieto, e os contornos do velho vêm nublados,
com a falta da luz dos postes, mas ainda assim repugnantes. Ela
sente uma onda de desespero subindo-lhe pelas pernas e tenta se
ajeitar pra sair dali.
Mas, ainda mais rápido que ela, Ancieto lhe mete uma gravata,
sentindo uma força que há muito não sentia, e engata a mulher
sobre si.
Ela tenta se soltar, se esquivar, mas a bruteza do velho lhe
impede.
Ela tenta soltar um grito, mas as mãos do velho o abafam.
Com um murro sobre o rosto, ela cai atordoada por cima de uma
manilha.
Ancieto lhe arranca de vez a calcinha, sobe ainda mais o vestido,
arranca o sutiã, e serpenteia sua língua viscosa sobre os seios da
mulher.
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Ela tenta outro grito, mas uma das mãos de Ancieto amordaça
novamente sua boca, e o grito se transforma num gemido.
Ancieto desfere outro soco, a mulher fica ainda mais tonta, e
recosta de vez sobre a manilha. O sangue lhe desce do nariz, e
escorre pela boca.
Ancieto sentindo que o corpo agora está mais dócil, lhe apalpa as
ancas, abaixa ainda mais as próprias calças, e mete seu membro
mais duro que nunca entre o talho da mulher. Ela está seca, mas
Ancieto não se importa, lhe mete assim mesmo.
Grunhindo, ele mete mais e mais o membro por dentro da
mulher, socando seu talho com rigidez. Ancieto chupa o sangue
que escorre sobre a boca da mulher. Sente o gosto de ferro
contaminado seu paladar. A mulher geme, com a mão de Ancieto
amordaçando sua boca.
O velho continua nesse movimento de entra-e-sai por alguns
minutos, até que a glande incha e se aquece mais que nunca, e
despeja o esperma viscoso sobre o orifício da rachadura quente
da mulher.
Seus poucos músculos amolecem, o corpo relaxa e ele sente o
âmago evacuado. A mulher está recostada sobre a manilha,
avariada. A calcinha e o sutiã pisoteados no chão, o sangue
escorrendo do nariz, o vestido na altura do pescoço.
Ela sente alguma força nas mãos, como se voltasse de repente. Ela
tenta engatar um arranhão no rosto de Ancieto.
O velho sente a ferroada das unhas da mulher sobre o rosto,
então reuni um resto de força para se apartar de suas mãos. Ele
consegue retirar as mãos dela, mas perde o equilíbrio, com as
calças arriadas na altura dos tornozelos, e despenca seu corpo
sobre ela. A mulher perde o ar, sente-se sufocada com todo
aquele peso sobre si. Ancieto se ajeita, recobra o equilíbrio e,
enraivecido, acerta um soco na ponta do nariz da mulher. Mais
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sangue desce. Ela tonteia ainda mais. Depois ele solta mais um
soco, sobre a boca do estômago da mulher. Ela se agacha, sentido
todo o ar saindo do peito. Ancieto, ainda não satisfeito, ajeita ela
novamente por sobre a manilha, e lhe acerta mais um soco, que
cai pesado sobre a sua têmpora. A mulher escorrega pela manilha,
cai pesadamente e sem sentidos no chão.
A fogueira, ao longe, continua, enxertando o ar com fumaça de
plástico queimado.
O Timbó escorre, engalfinhando a atmosfera com sua imundície.
A lua segue no céu, soltando uma luz argêntea sobre o breu.
Ancieto ajeita as calças, e segue em direção à sua casa.
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Parte 3
Defenestração
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O breu está por toda parte. Há apenas uma luz, vinda de uma
miúda vela, já quase no fim, que bruxuleia uma chama fraca no
meio de um pires, por cima da mesa.
Está em casa, onde mais poderia estar? Chove lá fora, uma chuva
barulhenta, açoitando os telhados de zinco e madeira.
A podridão do Timbó empesteia por todo lado. É você comer
um pedaço de pão, ou beber um café, que é o mesmo que comer
um pedaço de latão enferrujado e beber água preta cheia de
merda mole, saída da diarreia.
A casa está vazia. Não há ninguém.
Elvira noutro lugar. Aquela mulher-múmia, uma empelancada.
Jucelino noutro lugar. Aquele moleque trouxa, refém das putas.
A casa está vazia. Não há ninguém. Mas você ouve, com seus
ouvidos velhos e que a terra há de comer, os ratos guinchando, se
debatendo por dentro das panelas de comida.
Então uma sombra se condensa, cresce por cima da parede. E
quando você vê, está ali sua amiga lá da birosca, a dona do lugar,
Crezilda.
Ela se senta à sua frente.
Não sou Crezilda, mas também sou, Seu Ancieto. Minha carne é
uma pelanqueira que só, desconjuro e credo, o hômi! Tenho que
nada não. Como arroz frio com rato cheio de tumores. Eu atendo
aqueles hômis mas gosto deles não, mas queria que me currassem
de quando invêiz. Ah, si quiria! Quiria sim, Seu Ancieto, chupá
pau deles sujo, de obra, de cimento, de sebo muito dias sem lavá.
Queria sim, queria sim. Meus filho me usa, Seu Ancieto, me fáz
trabaiá todo dia santo, todo dia santo sim. Trabáio demais, Seu
Ancieto, num guento mais enchê boca de cachaceiro não, Seu
Ancieto. Tô que é pele e osso, mais véia que minha vó pouco
antes de morrê. Ô, Seu Ancieto, que num guento mais essa vida
não. Faz é meses que num saio dessa favela, desconjuro e credo.
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Consigo nem ir em Bonsucesso. Ô, Seu Ancieto, faz isso comigo
não, ô hômi! Faz não! Papai me fez trabaiá desde cedo, Seu
Ancieto. Papai judiava de mim, Seu Ancieto. Fez sim.
Crezilda se levanta. A pequena chama da vela ainda bruxuleia,
enterrada na cera derretida. Os contornos de seu corpo
desaparecem aos poucos por dentro do breu. Ela some.
Chove sem parar lá fora. Algumas goteiras caem na sala. Ele ouve.
Outra sombra. Diferente agora. Pouco maior, mais encorpada.
Se aproxima, senta em frente a chama.
Não sou Jucelino, mas também sou, vô. Pô vô, o sinhor que judia
de mim por demais, vô. Sou trabalhador. Sou sim. Ela me fez de
bobo, vô, fez sim, queria bem pra ela, cuidaria dela, faria filho
pra gente, compraria um barraco pra nós e a gente ia viver assim,
vô, trabalhando de sol a sol, de chuva a chuva e cuidaria de
nossas cria, vô, cuidaria sim. Pô, vô, o sinhor judia demais da vó
Elvira, vô. Judia dela demais sim, vô. Eu sei que o sinhor não
gosta de mim, porque minha mãe me abandonou. Eu sei, vô. Sei
sim. Mas eu tenho culpa não, vô, tenho não. Fiz nada não, vô, fiz
não. O chefe lá da obra judia de mim, vô, judia, vô. Todo
mundo manga de mim, vô, me chamam de corno, vô. E eu lá
tenho culpa de ter nascido, vô? Tenho?!
Ele se irrita, numa atitude incomum, e estapeia a mesa. A vela
balança, mas não cai. Continua pregada sobre o pires.
Ele se levanta, sai. Seus contornos somem por dentro do breu.
A podridão empesteando o ar. Os ratos guinchando, se debatem
por dentro das panelas.
Ele se perde olhando pro lado dos guinchos, quando volta, ele vê
a criatura, de barbas úmidas, empapuçadas, rala em algumas
partes, encardida. O sujeito é puro trapos, sujo, maltrapilho, os
dentes precários na boca aparecendo num riso nervoso, babento.
É Seu Barbalino.
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Ele ouve um grunhido saindo da boca do sujeito, estalando de
sua boca muxoxa, ensurdecedor, polifônico, como o de muitos
bichos encurralados num chiqueiro, antes de serem abatidos. Ele
levanta sua cabeça, inclina em direção ao teto, abre sua boca, que
parece um poço. Sua língua sai pra fora, é grande, viscosa, se
debate nas bordas da boca como cobra espezinhada. O gogo
intumescido, subindo e descendo a garganta magra e de veias
estufadas. A boca grunhi enquanto a língua se debate.
Numa atitude qualquer e incomum, o sujeito mete a língua pra
dentro, fecha a boca, se levanta, coloca uma das mãos rija por
sobre a testa. Bate continência. Grita: sentido!
E sai. Some por dentro do breu.
E aparece uma outra sombra, deficitária, sem algumas partes. E
não se senta, pois que fica de pé, dependurada num toco de
sombra.
É Tiquinho, fedendo e maltrapilho como de costume.
Ô, óia, tô aqui, sém uma das perna. Óia, aqui (uma ferida se abre
na ponta de seu cotoco, se abre cheia de dentes, uma presa
babando, salivando muito, e começa a latir). Queria é, ó, cê um
invrertrebrado, rastejá que nêm vérmi, que ném vérmi.
Os contornos de Tiquinho vão se engelhando, se ondulando. Sua
silhueta ganha um formato disforme, que serpenteia no ar, e foge
por um buraco que se abre no teto. O buraco se fecha, e a forma
disforme some.
Outra sombra aparece. Enorme, forte, imponente.
Êia, véio da porra! Não sou Tição, mas também sou, véio da
porra! Eu sei do que fez, hein?! Eita, véio da porra do cão! Tu deu
um jeito naquela mulher, melhor que eu! Tu é dos meus mermo,
véio da porra brabo! Quando ficá véio, quero cê que nem o
sinhô, véio da porra! Êia, véio do caralho do cão! Tu é deu um
jeito naquela mermo, né?! Ô cão brabo, lazarento!
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O negro enorme ri, gargalha, gargalha com força, com
tenacidade. E então seu corpo vai se liquefazendo, tornando-se
uma polpa negra, feito a lama da Favelinha. E o corpo de polpa,
vai aos poucos entrando por dentro do riso, da gargalhada,
engolindo a si próprio. E a boca de Tição vai crescendo,
ganhando o tamanho do lugar, até engolir o corpo-polpa de vez.
E num estalido, num clarão, desaparece.
E por detrás do clarão, da gargalhada que engoliu o próprio
corpo, aparece a mulher.
Seu nariz sangra, sangra muito. O sangue escorre por cima da
boca, pinga pela ponta do queixo.
E começa então uma música, uma música que vai soterrando
tudo. A catinga do Timbó, os ratos por dentro da panela, as
goteiras. E só a música continua. Apenas. E lá atrás, bem miúda,
ouve-se a chuva, coadjuvante.
Ele não sabe, mas é Matthäus-Passion de Bach, que toca, vinda de
algum lugar sem localização.
Não sou a mulher, mas também sou, você sabe quem. Sou uma
putinha. Sim, uma putinha sem vergonha, que já deu a torto e a
direito, sim sinhor. Sou uma bela de uma boqueteira desmamada.
Eu queria que todos os paus imundos deste lugar escroto
penetrassem meus orifícios. Que um rio de porra me inundasse
até atingir a minha alma. É, eu sei, Seu Ancieto, já não sou
nenhuma mocinha. Não sou.
Ancieto treme, sua carne treme. O coração quase vem à boca.
Ele sente as pálpebras pesadas, caindo, esfacelando o rosto. O
mundo se contorce.
A música continua...
Ancieto, cê ainda tá ai? pergunta, a mulher. Sua pele está úmida,
o cheiro de sua carne perfumada se espalha pelo lugar. A chama
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da vela está prestes a sumir. Fraca, fraquinha, bruxuleia os últimos
instantes.
Ancieto tem outra ereção, mas também tem medo. E a vontade
inconfundível de apenas gozar, se funde ao medo que lhe esfrega
o espírito, se une a calada da noite.
Tá aí, Seu Ancieto? Vou ter que fazer toc-toc em seus ossos pra
saber se ainda existe?
A vela se apaga. O breu come tudo.

Ancieto acorda assustado pela madrugada, em mais um dia sem


luz. Está suado, a roupa empapada, a chuva caindo lá fora.
Elvira está ao seu lado, enrolada no lençol, feito múmia.
Não sabe como a mulher consegue fazer isso, num calorão desses.
O ventilador está desligado. Não há luz, faz três dias. Os
mosquitos zumbem no quarto, produzindo um som perturbador.
Picam a sua pele. Se encorpam, com o sangue do velho.
O breu cobre a Favelinha há dias. Chove sem parar há pelo
menos duas semanas. O chão batido da Favelinha virou uma
polpa preta, fedida, escorregadia. O valão Timbó aumentou em
volume, escorre encorpado por entre os barracos. No ápice das
chuvas, ele transbordou e inundou becos e vielas, invadindo
algumas casas ribeirinhas.
O ar fica com cheiro de detergente, chorume, fezes.
Durante todo esse tempo, as pessoas se metem em casa, só saindo
para o trabalho e nada mais. As crianças vão e voltam pra escola,
e se trancafiam em casa.
Ancieto olha para o teto e não consegue dormir.
Está tudo um breu.
Os pernilongos zumbem.
Pela manhã, Ancieto toma café, sentado na poltroninha na
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varanda minúscula. Os mosquitos voam em volta das plantas,
pousam sobre elas.
A chuva está mais fraca.
Elvira está no quarto, olhando para aquelas fotografias
amareladas, como de sempre.
O paspalho do neto já fora pro trabalho. Mocorongo!
Ancieto molha um pedaço de pão no café e o sorve.

São uns cachorros lazarentos, todos eles! Eu sei eu sei. Claro que sei, e num tô é
que acustumado? É uns lazarentos de pele de bicho ruim. Todos eles.
Bando de estrupícios! Uns ordinários e lambaios!
Uns babentos vagabundos sem eira nem beira!
Eu é que saio daqui assim que der! Ó se num saio! E largo de mão essa velha
muxibenta e esse muleque froxo e cornudo!
Não tenho paz nessa vida nem em qualquer lugar!

Passaram-se semanas depois do estupro. Depois do coito sobre a


manilha.
No outro dia, após o ato, Ancieto acordou com uma dor de
cabeça do cão. Aos poucos as lembranças da noite anterior foram
tomando sua cabeça. Algumas imagens sumiram-se para sempre.
Outras não. A ressaca fora a pior que já teve.
Ficou escabreado, o estômago gelado, suando frio. Pensou que
em algum momento, repentinamente, apareceriam os bandidos
da favela, em sua porta, para se vingar da mulher. Iriam levá-lo
até o muro semidestruído e descascado por detrás da antiga
fábrica da Skol, e o fuzilariam. Fariam com ele o que fizeram com
muitos outros, antes. Antes de o fuzilarem, quebrariam todos os
seus ossos, e o empalariam pelo cu, com um cabo de vassoura,
para servir de exemplo aos demais. Estupro era uma ofensa grave
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na favela. Quem o cometia, pagava caro. Mais muito, muito
caro.
Mas nada aconteceu. Surpreendentemente, nada aconteceu.
Ficou dias sem ir na birosca de Crezilda.
Elvira lhe perguntou sobre os arranhões. Ancieto inventou
qualquer desculpa, e a mulher não disse mais nada.
Os arranhões cicatrizaram rápido.
Depois de dias, antes que as chuvas começassem sem prazo pra
terminar, fora em Crezilda uma só vez. Conversou sobre coisas à
toa com a velha.
Disfarçadamente, perguntou sobre a mulher. Jogou um monte de
retalhos no meio da conversa, perguntas sem muita direção, para
pescar alguma coisa, indiretamente. Crezilda lhe falou que ela
havia sumido. Disse, o que alguns lhe contaram, que o marido
estava trancando-a em casa. Ou algo do tipo.
Temeroso, Ancieto não disse mais nada. Disfarçou, tomou apenas
umas duas doses e, quando Tiquinho despontou na esquina, foi
para casa.
Então as chuvas começaram, e ficaram semanas, sem prazo para
terminar.
Ao que parecia, a mulher não falara nada pra ninguém. Decerto,
estava envergonhada. Quem acreditaria nas palavras de uma
qualquer, que vivia de safadeza em tudo que é canto?

As chuvas terminaram. Um sol imenso se levantou por detrás do


mundo, e varou o céu, amarelo e intenso. Chegou castigando os
ermos, esquentando os antros.
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Jucelino voltava para casa, cansado, por mais um dia de trabalho.
Sentia-se demolido na alma e no corpo. Ao menos, comprara o
tão desejado celular, depois de meses juntando dinheiro.
Não era um de última geração, mas era dos bons.
Baixou uns vídeos no celular, pela internet. Da mesma mulher
loira que fora esporrada na cara repetidas vezes.
Antes de chegar na Favelinha, Jucelino parou num bar. Pediu uma
cerveja para umedecer os lábios. Era noitinha, mas o calor
continuava intenso.
Ouviu dois sujeitos conversando.
Acho que foi naquele lugar, cara.
Que lugar?
Aquele lugar de lá de trás.
Detrás de onde?
Da fábrica abandonada da Skol. Uns vagabundos invadiram lá há
muitos anos, depois que a fábrica se foi, deixando o conjunto de
prédios, que depois virou ruínas. E aquilo virou a porra de um
cortiço.
Ah, sim. E lixão também.
Sim, e tem uma favelinha lá atrás do cortiço, onde acho que foi.
Tô ligado.
Jucelino bebeu sua cerveja e foi para casa. Passou em frente à
uma pequena igreja evangélica, já dentro da Favelinha. Um
pastor gritava e agitava as pernas e braços, dando testemunho de
uma benção que acontecera em sua vida.
Depois de cruzar alguns becos e vielas, ouviu uns batuques vindos
de um terreiro de macumba.
Pelo caminho, viu também algumas pessoas, uns moleques na
ponta da rua fumando maconha, cães revirando lixo, os porcos
de Seu Barbalino andando em romaria, e algumas crianças
barrigudas brincando na lama.
73
Chegando em casa, Jucelino se trancafiou no banheiro. E ficou
vendo um dos vídeos da mulher loira, que agora estava de
cabelos negros.
Ela transava com um negro (ela adorava negros, ao que parecia),
e eles estavam numa casa com piscina. O negro trepava em cima
dela e lhe metia na boca.
Ambos estavam ao lado da piscina, por cima de uma toalha de
praia. Ela estava de quatro e pagava um boquete pro negro.
O enorme membro lhe entrava na boca repetidas vezes, e a saliva
se acumulava na boca da mulher e no pênis. O negro fazia
enorme força, e seu membro entrava quase que por completo na
boca da mulher, até a garganta. Ela emitia um grunhindo, seus
olhos ficavam vermelhos e se enchiam d’água. Ela o tirava,
quando não suportava mais e tinha ânsias de vômito. O negro,
sem se importar muito, continuava a castigar a boca da mulher,
fazendo bastante força. A saliva se acumulava em volta da boca,
viscosa, fazendo bolhas.
Jucelino mexia freneticamente no próprio pau. A glande exposta,
inchada, friccionada pelas mãos de Jucelino. Ele esquecera
parcialmente dela, daquela que o enganava e não o queria.
Jucelino agora tinha uma nova e irremediável paixão, a mulher
dos vídeos. A atriz competente que se comprazia na presença de
cacetes enormes, negros e reluzentes, entrando-lhe pelos orifícios.
Será que havia chances para ele, Jucelino? pensava. Será que havia
espaço para mais um?

Certa manhã, depois do café, quando o sol já varava o céu,


iluminando tudo, Ancieto tomava umas na birosca de Crezilda.
Falavam qualquer coisa sobre a vida de outro, e riam, felizes por
não serem ele.
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Ancieto tomava suas doses. Algumas pessoas passavam em frente
à birosca indo para lugares indefinidos. Ninguém sabiam o rumo
de seus passos, exceto talvez eles.
Ancieto ficou derrepentemente absorto, olhando em volta,
olhando para os postes apagados, nos raios solares caindo sobre
as coisas. Numas crianças que corriam junto a uma valeta negra
que cruzava a ruela em frente.
Uma vez mais Ancieto olhou para além da miséria daquela vida
embecada, metida na lama negra, e viu um sol esbraseado,
amarelão, tinindo por cima dos barracos como uma promessa.
Pagou as doses a Crezilda, e foi para casa almoçar. No caminho,
ouviu uns gritos, mas parece que só ele ouvia, no beco em que
estava metido.
Saiu andando, apressando os passos, e passou em frente ao muro
amarelado, desbotado, que havia por detrás daquela fábrica
abandonada, e a circundava, há muito.
Estava calor, em alguns trechos, as crianças tomavam banho de
borracha, a água espirrando de uma bica.
As sombras de uma amendoeira se expandiam pelo chão.
Quando chegou, viu um rebuliço. Num prédio alto da antiga
fábrica, no sexto andar, por um buraco na parede, o marido
segurando a mulher, com uma faca em direção ao seu pescoço,
gritava. Gritava e gritava. O povo lá embaixo esperava, alguns
gritavam, outros não. O povo esperava o que iria e havia de
acontecer.
Então o marido, destituído de sentidos, pegou-a pelos cabelos e a
jogou pela abertura na parede. Ela foi atirada de cabeça. Seu
corpo despencou desajeitado e espatifou no chão, seu sangue e
miolos tingiu as paredes e a romaria dos porcos que passavam
naquele instante, por ali, comeu-lhe as carnes e ossos. O povo
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sem saber o que fazer, apenas assistia, paralisado no tempo e no
espaço.
Ancieto saiu dali, desnorteado. Sentindo a existência soluçar
ânsias de vômito. Varou becos e ruelas e foi parar à beira do
Timbó.
Então alguma coisa lhe veio na boca simplesmente. Como um siso
mal situado e tardio, um fumo mastigado, uma dose, uma
maresia que lhe entra pela boca, um gosto de ferro subindo-lhe
pela garganta, alguma coisa doce que esquecera o gosto. Era
aquela frase, só podia ser, entrando por sua carne, insatisfeita, se
entranhando como fogo em palha seca:
COMO PODE AINDA NÃO TERMOS PENSADO EM MORRER?
E ficou olhando o Timbó correr por entre aqueles barracos.
Imundo e encorpado. Fixo em seu fluxo, escorrendo
esquecidamente numa trajetória única.

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