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Galeria de Sonhos
Banidos
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Galeria de Sonhos
Banidos
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TRIAEDRO
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Que pena que ela não viverá!


Mas, afinal, quem vive?

Blade Runner – Ridley Scott


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10
fragmentos em suspenso 11
(uma ode em solo para voos)
12
ele se encontrava
no hotel primor
na avenida gomes freire
no quarto 203 livre de impostos segundo andar
debaixo de uma toalha molhada esperando por ela
ouviu o som de seus sapatos tum tum tum estalando no corredor
e abriu a porta ela pensando como ele adivinhou?
e um breve sorriso surgiu em suas faces ela disse que era de copa
e seus pervertidos chupados bonecos e bonecas de carne
bom bairro ele respondeu sou de acari profundo
e eles entraram

...

e delirou o fim do mundo


e os cartazes livres de sua cama onde ele pensava em restos
e a noites livre de seus eternos
entrechoques 13
de um pacto arf arf arf arf suava ela reclamou do ar condicionado
vou me lavar
ele levantou o controle remoto e colocou no canal 18*
arf arf arf glup glup glup as gags agrs agrs agr agrs
e com duas mão agarrando o membro ainda sobra quase um palmo aberto
um ar lânguido
uma prosa ainda solta
árvores silenciadas num crime por banheiros de ar aberto
homens alados convencem como se é noite
é noite todos sabem
há galhos entrecruzados descendo os parapeitos
crianças mijam num riso de costume
homens calados reesperam flap flap flap
astros abortam

eram palácios e ela voltou da primeira


o chuveiro ainda chuááááá caindo em gotas
esperam por dinamites
gestos líquidos descem as escadas
mordidas aéreas atacam os zumbidos
ela veio com a carne leitões amordaçados gritando nos interiores
carne ensangüentada no primeiro costume
kombis que passam vrummmmmmmmmmmmmm ele a acolheu
braços em volta pernas entreabertas pagos 250 reais e o rastro embaçado
era amarelo talvez na sombra entre a claridade e um sopro de luz da noite
o inexplicável

aguardem-nos na porta o telefone tocou em frente aos fundos


chegaremos com uma canção úmida amarrada na boca
fomos ontem

ainda que ninguém saiba cantar


bastou um lance e ele louco vagou ela em busca de dinamites
sou um homem tradicional de subúrbio ele disse ela se afagaram
14 as línguas em nós nos dedos um talo de fios elétricos
salivas em abundancia melou os dentes transmutados

...

puxos difusos escorreram na cama longa e ela olhou-o entre bananeiras


zé ramalho na canção em volta o quarto vadio sondava
a alma de ambos solta na cabeça do caralho a quatro ela olhava-o de
sempre de olhos fechados prenunciando o anjo liberto do gozo
tijolos curvados nas dobras
era um dia lançado no mundo
viveiros clandestinos de cavalos na ponta do antro
e os meninos
os rodos rangem multicromáticos num ênfase
logo eles não sairão dali
nas janelas microacesas pequenos olhos guardam com zelo o ar que rondou
os assassinatos e a chegada dos maremotos
marimbondos
santas revoltosas ficam despenteadas
dependurados em chocadeiras os sinos badalam no começo da cidade
destruída

...

pela tarde um anjo invadiu as almas


esquartejado
piromantes ascenderam voos nos vão das sombras
ela acendeu o cigarro e bafejou seu coração
um gato nublado miou lá fora
coberto pelo pó da cidade que os liberta
enlouquece
naquele noite em que grandes dunas encobriram os prédios

...

cientistas constroem deuses debaixo do calor das cortinas 15


canal 18* flap flap flap flap ele acende outra vez
a fumaça breve passagem de raios abrindo
o êxtase do fim do mundo
um cheiro de mato molhado depois que os anos se sucedem
ele e ela crianças descendo as ladeiras

...

ele se lanhou um pouco na borda ela srsrsrsrsrsr


se lembraram de estátuas públicas paupérrimas no quarto guardadas e
sorriram
sentavam simplesmente na borda inventados pelas ruas
não houve senão dois assovios de novo nos nós quebrados
o ar elétrico antes das tempestades mexeu em seus cabelos
“vc é loira de nascença?” disse que não ela sorriu
“vim pq quis, num tenho o que descrever”
...

no encontro entre as madeiras


páginas soltas reverberavam um posfácio nada escrito
houve senão um desequilíbrio autêntico nas goiabeiras depostas

...

veleiros trouxeram o ganhesco que a noite doce


escombros de um continente sumido
galinheiros salpicados de sonhos
uma menina acordou na vigília desenhou
ele e ela acudidos pelo mar que nos leva
soprados no muro químico onde padecem os fuzilados

...

16 uma sombra se levantou não muito perdida da tempestade


pois que andavam em alicerces 250 contos a hora
estavam bem próximos ali
por onde passam e eles tomam fortes
e ela no cu geme
outrora

...

pareceu a ele que paria seres rastejantes


luzes amarelas caiam sobre a cidade entre os prédios por sobre as casas no
entramento das coisas de novo caindo fugazes
na cidade refugiada que esqueceu de viver
saqueados
ela boiava no astroluz da beira do tempo
eram mesmo águas turbulentas da manhã
no outro lado de pessoas incertas
que pendiam em passarelas vermelhas em retalhos
janelas verdes de estuque permaneciam
e um sopro de velocidades aplainavam o voo dos pássaros sobre os
bombardeiros

...

ela exibida pelo pêndulo hasteado pende uma bandeira pornográfica


o exercício dos tolos atolados na madrugada encoberta por lonas
os vegetais doentes
uma cena qualquer na rua
e o corpo que não sabia onde ficar
de crianças entediadas olhando a vertigem
brotar
ela ao banheiro de volta
ele contou um resto das cédulas
o mundo acabou e nós sobrevivemos assentiu
ela dançando ungirmente sobre ele iô iô
perderam outra vez 17
completamente perdidos pela seteira sem data com que voltar

...

ele ali enfiado na poça ela enfiada no pescoço que sobra ele nela ali ela nele
com asma de enfiada dele dois se cavalgando entre asas
o chiado constante na lama em que viviam
entrou pelo cano zumbindo pelo banheiro o fundo nu da voz
os olhos no substrato da vidraças e eles pediam café que não aconteceu
e eles sim
abaixo das centenas de almas de um milhão de pássaros em misericórdia
em gafanhotos em girassóis levitando
sobre um imaginário de rubi
across 110th street ele olhou e foi um vento que passou em seus cabelos
suados sob a casa esvaziada quando ela no embarque levantou os braços
adeus e ele ao banheiro com um sino apertado no queixo nos encaixes da
caveira entre as mandíbulas estremecendo em mil sóis
nos apegos suados que ela sussurrou o nome em besteiras
o mundo dos vivos
entre brumas de lençóis sob o sol
e se morderam entre quatro cantos de quatro num estribilho
o coração vivo na boca ela ofegou
deve haver um lugar em que deuses dançam entre as nuvens de acrílico
e caem desmaiados sobre as amendoeiras ninam os destinos

...

os homens caíam abstratos na poça de materiais enfiados


“o que vc tem aí?”
“uma viagem de mensagens que não traduzi” ela aconteceu entre os piscos
nesta poça afundados
não podem em nada chegar
foram vertidos em pensamentos sem sombra
criaturas de azulejos rastejando os concretos ele passava de ônibus
18 na violência de uma véspera de natal
confluídos
nadavam mar de sonhos requentados
ela suspirou por momento funnnnnnnnnfummmmmmmm
ele veio descalço ao pé da sala
ela abriu-se com um par de meia agitada
ele devagar meteu-lhe língua lanhada de sangue
ela estremeceu
um relance ajudou os acasos
eles venciam-se

...
a água batia no encosto do chão
ainda chuveiro as gotas esparramavam-se enrodilhando o ralo
e na soleira do ralo uma dor que arranhava os juízos
o telefone tocou
uma flor que caiu sobre as laranjeiras
ele soldava uma perna dela gotas do chuveiro escureciam
o astro vermelho na sela entre janelas
o crime acontecendo no exato momento em que se acabava
ela incandescente vibrava
outro olhar que amavam-se
um golpe que manchava o Piemonte
na vaga ideia dos cantares que invadiu os subúrbios
ele jurou-lhe uma rosa de ferro acometido por graças

...

ao olhar viu cemitério sem tamanho


em cheio sua alma notou o vento
e balançou seus cabelos entre momentos
ele de mãos atadas não checou os bolsos
250 cada vez que se encurtava os ombros
não se pode haver sentimentos ele a chamou
desatinados choraram
19
... cavalos doidos em sinfonia num pulo de assalto
bêbado ele chegou à mesa de dois
“favor, desiste de mim não”
quadros pelados no escarcéu

vidas dissolvidas no copo ele suspendeu


ela vivida ligou a ele a emoção de um alívio
ele sorveu
os dois viviam sob o sermão dos morros
mas lá não havia marcas abriam o insólito
por isso mendigavam num sobressalto
recifes de perto que caducavam
saliências
ele tocou de vez o rosto de outrem
e se fez ela em seu quarto escuro que o abateu
zonzo ele caiu num antro de coisas
novamente na rua embaixo da perimetral elevada
o céu da noite porca farejava trechos da vida
moleques jogando pedra no muro
um preço dela pedindo nunca mais
arranhões no peito tirando na rua um grito
divididos

...

Atravessaram o mar a pé
flap flap flap
cloach cloach
ele que finalmente se fragmentou e a viu
despertado para o tempo que permanecia
pagou a conta e se foi no quarto em seu escuro ele a lembrou
desceu a gomes freire a pé refém dos desejos que tinham
se aqueles prédios caírem aço e vidro correntes entortavam
o fogo queimando até tarde da noite os monturos sobre os prédios
20 ele a viu no calor dos ribeirões grotas
tudo queimava por isso caiu de joelhos implorando a noite

...

blam blam bla blam ele correu gritaria


alguém veio correndo
“matou cara, matou!”

...

luzes bailaram em seu rosto voltando a piscar


ele nela produzia a distensão vorás dos aparelhos
uma mancha indistinta predominou num lado da parede
um baque os levaram à rua acertando-lhe em cheio
um dos caras sorriu
outro tripudiado seguia
enquanto ainda fora rebatia o reflexo amarelo
se individuando em composição desvelada
na rachadura do cenho o sangue borbotando

...

ele paralisado a via seu rosto batido pelas luzinhas


flip flip flip flip flip
ele alcançou a luz
tava claro, ela dizia lambendo-lhe o peito
apague enquanto o impacto nos atinge
tudo certo querida
lambeu-lhe deixei saliva demais no seu cangote, desculpe
arf arf arf arf arf arf
quantos são necessários o tempo para sobrar
ficaram se alisando

...
21
nem um quinto do empenho se afirmou
ela cavalgava em cima
por cima eu quero
vire de lado
por cima eu quero mais um pouco
hum
leve tudo de mim
isso
um vento apalpou-lhe as curvas
ela deu um longo desembaraço abrochando
ele envergou assombro diante da quina

...

na antevéspera de natal um chiquechaque bum bum bum


vinha pela zona ele fortes tropeços cheirava plástico queimado
dois lascados entre gritos se viam duas bocas unas babando ferozes
esticavam fora da pele cuspindo dentes no talho
madalena do jucú estreitando na kombi-boteco e bebiam
ele desfez trajeto refez e voltou pediu 10 contos e riram bocas lanhudas
pulando fora da ferida e dentes pegajosos –não!-
hihihihihihihihihihihihi
um anseio cabeludo na ponta da mente inundada
continuou os pensamentos em foco apareceu pandora fora de série
pernões 3 por 4 seis tonais em clima de mulata dantesca
tremeu os canos submersos do inferno
almas esfrangalhadas presas nos varais vertiam
no chão esfregões de vômitos e lampejos de tonteiras
cabisbaixo seguiam a junção dos jogados no canto
os desejos pairavam
a cafetina lambida no canto da boca enchia
inchada coberta vestido puído ria
“não dá, sem din din, nã nã nã”
22
...

na sala o esgoto de saias


gargalo aberto o sol batia úmido e se espraiava
meninos abertos limpavam as articulações possessas
suavemente lembrou ele de tantos e tantos
que nem se deu conta que podia envir sinais caindo no futuro molhavam-se
ele ajeitou ao longo das calças e piscina ele babando
olharam-se com entusiasmo
uma cor de brotoeja
inundando
arrastando a existência daqueles que se cotovelam

...

a noite veio sertaneja vento seco o diabo assistia


labaredas de saltos pronunciando logo que via
ele assanhou
ela circunvizinhou a beirada da cama e se envestiu
negrumando as camadas de sua pele rosa
ele arquejou um sorriso de prostração
e se viu em abismos onde o turbilhão iniciava-se na boca dela mar de
corrupção onde o mais santo se viu banido e ressentiu-se
ela nadava em vestido curto os olhos de cama violenta
o odor de seus laços avançavam como tentáculos investindo a terra
ele luminou-se em estado de graça diapasões nas lacunas do crânio solto na
boleia do corpo
belo espírito que rondava os desejos

...

piscadelas a chamaram de volta na base da vida


ele insurgiu-se na película de carne
vindo a tona sua ideia de carne e cabelos queimado narinas
uma mancha de batom ela limpou em suas bochechas 23
ele sorriu
sorridente ela abriu a porta num desapego
e se foi e os sons do estalados dos sapatos voltando
diapasões

...

os olhos penetraram nas chamas da vida


reincidente
tavam despertos demais ele os viu na recepção
60 contos e andou
atravessando por dúzias de tetos cozidos
ruas vagarosas que terminam parando atrasadas ante os passos
estando novamente livre perdendo nas esferas
ele se perdeu
sem uma noite que tivesse visto
atrás dos montes que sinalizavam longos ancoradouros
...

na noite fragmentada vieram os deuses em naves baluartes e caíram vivos


serpenteando em formas enfumaçadas desapareceram
ele ilumineceu-se os vapores que o alcançam levitando-o do chão
e parecia feliz com uma das mãos afagando o sereno
uns conhecidos que o passaram fingiram não o ver
e não o viram
ainda lá se encontra seu êxtase que derreteu as lixeiras
com rajadas de ânimos
hoje as lixeiras encontram-se inanimadas
ao lados das estátuas que sofreram atrasos entre impérios

...

do que mais gostava tudo tinha certo atraso


24 frequente a lentidão de acompanhar as coisas fluindo
teve socos de armadura em transe
o tampo do sangue deslocava
ao ri na rua ele viu o cão sendo aberto
os crackudos mastigavam
o beco enviesava num desequilíbrio
o mofo comia os nomes dos cartazes ventava
...

depois de um tempo parecia o evangelho


o cinza corrente passeando as oliveiras
o cão que ladrava a iminência da catástrofe
cabeças afugentadas o vazio dos olhos vazando feixes vermelhos gritando
os versos da morte
o filho chorava aos pés do sangue
em seus subterrâneos ferozes
o homem tremeu
...

“No princípio,
criou Deus os céus e a terra
E a terra era sem forma e vazia;
e havia trevas sobre a face do abismo;
e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas...
......................................................................................”

...as duas filhas antropofágicas de ló

veio mastigando tua carne


a vagina de tua mãe
os destroços de tua família
carbonizando o aborrecimento
sobre as pétalas sujas
da primavera póstuma
25
...

desenhou tua tarde em versos trovadorescos dos cantadores do nordeste


desta paixão de ares enfogarados
como uma chuva que custa a cair sobre o azulejos
como um verso retorcido nas bordas do crepúsculo
como um sonho que esmaece na plataforma venusiana do mar de sêmen
nesta terra, nesta terra, nesta terra, nesta terra, nesta terra...

...

quando foi que o veneno de uma serpente matou um dragão?

...

sussurros ecoam sussurros no primeiro degrau do ouvido


as caras brazomoabitas descrevem o fluxo ordinário
brazomoabitas; sujos, esfarrapados, desregrados, negros, índios, mestiços;
populacho
entopem as ruas, rasgam as noticias, sãos os donos do futuro mundo
ao pé da oca, a primeira deita-se
ao segundo dia, a segunda gera a palestina negra, conflito noourbano

...

e comem carne, partem o sangue, e os filhos da segunda chegam


e os filhos da segunda, vem do leste, e vem nos navios malditos
amonitas sudaneses, corpo e sangue, rastros no mar,
ligam as terras
...carnaval, carnaval, carnaval, sangue, morte, alegria, carnaval, carnaval...
e antes que em casa entrassem, foram para rua, e já estavam lá, as
prostitutas irmãs, carnaval...
“Então, o Senhor fez chover enxofre e fogo, do Senhor desde os céus, sobre
Sodoma e Gomorra.”
26
...

o sol queima a tessitura dos cantos


os velhos bêbados pela manhã TV
os ônibus são monstros de lataria,
óleo, exalam, amor ou ódio
criaturas vindas de outro mundo
bestas de armações de aço
margens do pesadelo coagulam

...

“Corrente de leite e mel, raio de luz, eflúvio,


a vida se entreabria aqui como uma flor; os lábios
a colhiam com um sorriso, antes que um sopro anelante
a queimasse, sem que as pérolas do suor a poluíssem. Até
a morte a vida era doce e a terra materna; um áspide na relva,
uma gota de veneno, e a noite vinha, e com ela o sono sem sonhos...”

...

farp farp farp farp rummmmmm


se coçou num relance
vigiavam-no
ela passou de carro
táxi que veio na noite e a levou
sombras cochichando as dúvidas
as luzes atravessou as garrafas em caco neon
rebateu nos seres
um sorriso se virou e de longe um ataque
vap!
ele viu seus braços tateando as sombras delgadas

...
27
naquela véspera de natal o calor ardia intensamente
o lixo paria nas sarjetas legumes gasosos
os ovos cozinhavam na porta das geladeiras
a paisagem variava
sua cabeça era um vetor em aberto
cheio de ar velho acumulado de noites passadas
seu dente latejava ele engoliu sangue
aos nove anos vendo brilhante o vestido da menina
daniele seu sorriso fresco cadelinha fleumática
e depois soube socada nos fundos da rosa no grotão molhado de suas
pernas boiava porra
ele ficou indistinto no gole da noite suava
ficou dando chutes no ar espantando as moscas
um gole aos nove de licor dinamite
pombas veio à cabeça e bicou os olhos
as casas derretiam na banha dos porcos
bocas vagavam pelos corpos indo chocar mordidas
correu da espinha à cabeça um jato
grosso e atrás de seus olhos a tempestade salgada de suas membranas
suadas

28

cai o pano
29
30
garotas postiças 31
(cenas de quebra-mar)
32
Créditos das Cenas:
Direção, Roteiro e Paisagens:
Sérgio Ortiz de Inhaúma

Elenco (Personagens):
Gilli
Naís
Anônimo (Narrativa em 1º Impessoa)
Padre Ciomar 33
Maria Mindomira
Saderre
Betina & Malva
Margareti
Alibecca

Notas:
Este Breve-Filme foi feito sem nenhum apoio financeiro, seja ele estatal ou de setores privados.
Os personagens e as paisagens foram usados clandestinamente, portanto, sem nenhum aviso
prévio a qualquer uma das partes apropriadas indevidamente.
34
gilli olhou de todo vento
ele deitado boca ao ar
gilli alcançou as nádegas abriu com maestria
maliciosa ao chupar o dedo mínimo da mão
desvanecendo-se
o orifício carnudo se pronunciou num arrepio
flor
apontado gilli rebolava
soltou o jato florido
brilhava
ao ar de boca aberta
mijo
ele resfolegou engasgou cuspiu
riram
era a vagina

...
35
“Hoje eu acordei com meu coração padecido, porque senti de dentro de meu
espírito que todas as coisas queimavam.”

“Eu desejo de toda minha alma, de todo meu delírio, de todos os meus
desejos, que a terra arda e renasça pelo Fogo.”

“Quero que tudo venha: catástrofes, estiagens, inundações, terremotos,


desastres ecológicos em escalas hediondas, descontrole de todos os
satélites, a derrubada dos sistemas econômicos.”

“Todas essas coisas passarão por mim e se revelarão como uma crença.”

...

então
na rua vi aquele osso
os cachorros nos traíam mordiam-no
era uma jabuticabeira acrunhada
e debaixo dela sombras parsas
mordiam os cães aquele osso
depois
não o vi
estava em sobressalto aturdido
onde então eu estava?
cercado ouvi um barulho uns estalos escabriados um grupo acolá
não se via nada uns mexidos
transmutadas
levei pra mais longe que pude
e não consegui
fui cometer crimes em outro lugar
afrontar de perto a raça humana
atrofiados
eu adentrei a cidadezinha capengando
um vento chiado levando as árvores fronhas
36 tive medo que aqui se lembrassem
ninguém me conhecia
ri
passei esquecido por entre eles
sal na boca
cortei uma frente dos olhos
de minha vida chorava sangue
tonto sentei um vislumbre daquele tempo
e nos antevíamos como de costume
uma retirada
tropecei e cai sobre o céu
um lento esgar e o vi
osso

...

póstuma
com as pernas erguidas
abertas
litorâneas
ouvi um silêncio de cobre
doze estacas vinham fincadas
retrocessos olhando
naís arrebitada esteira de chão
trouxe um vão a cena
do sul correu cortes
plano sequência do grelo
sinais de fricções
não se deteve naís num dia
olhou de esmero a danação
sorria
leves e finos seios
cumbucas
dela se estranhou um borrifo de tempo
fábulas castanhas crespas nos travesseiros
ocorreu que friccionava 37
sassaricando com delícia se cumpriu de quatro
amordaçado a via

...

sobre as carcaças da carne


viu padre ciomar
as duas empilhadas num trajeto ardente
eram elas postiças
com o topo do gozo
o corpo entorno
elas ardiam
riam entretalvez
uma só piscadela
que caíram os tolos em armadilha
padre ciomar de uma vez
boquiaberto ouvia
lá no quebra mar
o som vadio entre as falésias
olhou a pequena igreja
crianças que não tiveram vez
o sol que sucumbia
eram elas
escondidas pra todo mundo ver
no quarto veraneio
o casebre sacudia
no negrume
onde o sol ardia

...

gilli preguiçosamente
pernilongos avançando
descascavam no quarto
38 naís muxicou
bateram nas trincas das janelas os devaneios
o calor fazia chover sobre as bananeiras
suor atrevido nas partes
gilli fuxicou a boca
o entortou
um azedo que não o deixava dormir
modorrência no silêncio
alvéolos do mar

...

maria mindomira matadora


arredia em seu instinto voraz
leva em peito oco
foi ao terraço
céu de atobás
saderre cafetino na ponta
maria mindomira fez trajeto
curtiu couro brabo
meteu o punhal na cintura
saía avoada indo aos calcanhares
um ensaio
levou a navalha aos dentes
danada
balneário levado a fogo
estalagens batia o sal sobre o nervo que vivia vindo
o cenário dependurado
antigos crimes
nas solitárias vadiam cortes
sangramento suores
caminhos sob a escuridão dos coqueiros
areia marinha
corriam pequenas valetas
e rios
lagoas plena vez 39
cabelos do mar aberto
balançavam os veleiros
de manhã as crianças
os pescadores no mar bravo
dançavam sob a noite
e riam ao amanhecer
costurando as redes
arrastões esticados
anzóis pata presa com chumbo
sopro brisa salgada
batia nas carnes
maria mindomira no atabaque
girava fogo
gozo
virou de instante
olhou da brisa fogosa retinas entreabertas
xanas
olhou a dor cumprida chutada pelo chão gemia
ouvindo as vozes dos que a curravam
sobre o peso dos joelhos
coisas na boca
e o silêncio abrindo sua relva
agitou o punhal
agitada andando na rua de pedra socada
a brisa levando seus cabelos
coqueiros agitados
um sopro balançando as nuvens
a lua entrecortada de chamas
uivando no topo dos montes

– De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.
40
de sombras agitadas
valetas que rompiam
esperma ao solo d’água
no mar que os convinham

dentes de satã insinuando


a todo instante o gosto dos assassinatos
maria mindomira entrou nos becos
avançou
entre putas e paredes retorcidas
caladas
irmãs de gírias
elas desafloravam e riam
saderre paletó branco pisante bico-fino
no talho
ele arrebitou
maria mindomira
tirou o punhal
lascou
meteu-lhe na garganta
saderre bedeu
maria mindomira sorriu disfarçada
um ensaio

...

padre ciomar na santidade de antros


levou a mão a boca
agudeza no sangue
quão crédulo por apartar desavenças
vivia entre pedintes cuidados órfãos
agitado andava
cristo untado entre os mangues
soube do milagre
vinha o surgido 41
um milagre
naqueles cafundós
esquecidos por deus eles uivavam
afastando desgraceiras dali
padre ciomar amargava nos nervos
criaturas tumultuadas
vales pensamentos
e se entregavam ao vento do mar
sorrisos bichos de sal
distintos na face do mar
silhuetas
padre ciomar erguia estranhos devaneios no
quengo
cristo surgira no mangue
o nazareno

...
– balela! – retorquiu betina indo a janela olhar
– como assim? – perguntou malva. presente.
implicada.
– vou explicar, se assim lhe parece melhor –
observou betina. lá fora uma breve onda inflava
e explodia a beira-mar – nossa aliança
terminou. nossa parceria era uma veia em falso,
trêmula, frágil. ela se quebrou e caiu espatifada
nos vãos. agora sou prum lado e você pra outro
qualquer.
malva corou de miçangas nos cabelos
encaracolados. seus olhos foram às chamas e
umedeceram. um revoltoso grito buliu-lhe na
garganta, mas ficou preso. betina era direta,
com tudo e todos. suas resoluções eram ligeiras,
possessas, e terminavam com um murro. era o
42 que malva mais odiava.
– não podemos ser tão frágeis – continuou
malva, num retrocesso. queria urgentes
explicações. algo com o que acalmar o espírito.
– somos sim – disse betina ainda à janela
olhando o passeio das gaivotas sobre o mar
tempestuoso num baque sobre o quebra-mar –
matamos todas as possibilidades fogosas,
arredias, furiosas como garanhões. preferimos o
conforto da bobagem e balela, e acatamos o
óbvio. o cansaço apropriou de nossos sentidos,
cada uma de nossas moléculas e nos deixou
desprezíveis. a pior das dimensões vingou, e
rastejamos fartos em nome dela. esse nosso
vilarejo se criou em nome da covardia
desbaratinada. temos uma gente mole, casas
enquincalhadas e crianças débeis. nossos
cachorros não deviam usar focinheira, mas sim
enforcados. nossa parceria termina aqui, malva.
malva corou, mordeu o lábio.

...

e foi àquele osso que me apeguei


mas à medida que me apegava
no esforço de me apegar
vi que nada havia
mas no impulso de me apegar algo descobri
e quando vi não havia mais
osso
olhei em volta
sentei o que servia apontou um assento
lá sentado eu olhei pra lisa superfície de
madeira
já sem fome comi um dos lados do peixe
chupei a taça afogada de vinho chileno 43
o melhor do porto foi-me trazido pela maresia
um rosto salgado de livres correntes de ar
temperado
de sobressalto fiquei abismado
pela noite desci o quartinho da pensão
margareti senhora botou a mão na minha
cabeça
“melhor, bem melhor. siga o caminho que leva
a praça”
ouvi o som das violas num agito
carícias de cetim suadas
um sopro chega-pra-cá
tamborins pandeirolas violas 12 cordas ganzá
veio vindo cobra lenta
pescoço amarrado um breve arquejo
de volta pouco a dançar bambeei
que linhas leves cruzando as ancas delgadas
seios de fronte me vergou com minha cara de
otário
ela suada vertia sons cristalinos
de cítaras num labirinto de punhais vertendo
maresias camufladas de florais
sopros de laranjeiras
o soluço
o espasmo
um esgar
fluidos
senti o cheiro de seu interior
latejava chupei-lhe o vapor da flor
entreabriu-se
o corpo tremia-me da base ao osso
tudo nublava no contato farto
a língua deslizou
ouvido correndo o pescoço
44 na nuca ela teve um trêmulo
desvaneci sentado sobre minhas pernas
sonhei com aquilo no mar de lírios
nos cantares correndo a ficção da brisa
entreabriam-se
a corrupção vazou-me pela boca
a filha de satã liberta
alibecca
me afogou em sua turbulência íntima
meteu-me as unhas e trouxe o calafrio da
espinha aos cotovelos
ao errar em agarrar-me prostrei indo
sem osso

...

naquela rapsódia
entrou padre ciomar
no antro palafitas
acesas lamparinas
duas velhas no parto
a mulher encruada berrava de seu antro
vozes turricadas beiçavam a fumaça das
lamparinas
padre ciomar marejava
como de princípio
o fogo dos resultados
ele entre os ribeirinhos
pronto a abençoar o sorriso de cristina
os que estavam ali se entreolharam
uns olhos amarelos no passo dado a cada do
padre ciomar tremendo de euforia e
arrebatamento tremia ao longe o luar sobre o coqueiros
padre ciomar marejado passo dado tremulava
os ribeirinhos entreolhavam-se
padre ciomar se aproximou 45

cadê cristina?

...

um proscrito
inválido levado entre estacas
à mercê inundado do que ia me acontecer
chuvas de frequência instantânea nos atingem
eu olhava os vitrais iluminados frouxamente
dezenas de lírios pendidos sobre as ombreiras
das portas
era o dia do anjo da morte passar
com suas asas de enxofre incendiando as
palmeiras
levantando a areia até a altura dos ombros
levaram-me pro subsolo úmido goteiras
deslizando pelos cantos
deslizamentos
ouvia-se gaivotas em círculos sob céu cagado e
penas
gilli atenta soltou riso caiu e quebrou em
tramas
naís cadelinha arredia lambendo um pedaço do
escuro
lamparinas dependuradas pendiam nos esmos
querosene fumaça negra rondando a treva
houve um desabamento em minha existência
a vida comungou em mim e de mim
tive acessos de pânico

...

cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê
46 cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê
cadê cadê cadê cadê cadê
cadêcadêcadêcadêcadêCADÊCADÊCADÊCADÊ?
??????????????????
???????????????????????????????????
?????????????????????????????????
?????????????????
as escórias que ele inundado no topo
olhou vértices correndo o céu estrelado
espatifado sua onda de espantos
expiar expiar expiar expiar
zonzozonzozonzozonzozonzozonzozonzo
nada por onde ir a quem ou quê?
acessos que lhe inundava a corrupção à batina
onde se for?
padre ciomar atolado nos mangues
da saia pra baixo o ar da lama
andou
anteviu os olhos de prantos corridos nas bordas
saciou em murmúrios oscilando nas ânsias
confessa confessa confessa!
o que vês daí?
NADA
DESCIA O SUOR NA ESPINHA ENVERGADO
DE JOELHOS NA LAMA CINCO HORAS
ANDANDO? A MADRUGADA INTEIRA?
olhou controverso a latida vinda dos antros
um troço submergiu reluzente
oval pequenina entre os galhos atolados na lama
se aproximou
entre os braços padre ciomar apalpou-o em
concha
o feto afogado inchado inexistia
engasgos na garganta padre ciomar só repetia
murmúrios
morto 47
morto morto morto morto morto morto morto
morto morto!
e se desfazia
em sorriso de Cristina

...

outra noite maria mindomira


punhal de reto voltou
madeiras estalos retorcida
fortes pisões sambadas
forrobodó
vinda de terreiro maria mindomira arretada
cabra mulher homem da peste
cão que não se fez passar fome
de punhal mascado de dentes tremendo no
tanque
lavadeira chutada pra zona
deu que deu danado
agora nada de ensaio
subiu danada
vim que vim danada!!!
saderre gingou
sapato bicolor de breve
errantes nas biqueiras da vida
maria mindomira lascou
saderre ficante de rumo cedou
rasgo no bofe
língua derrame de fisgo lanhada
as putas ergueram-se
um zazazá cantante
saderre caiu de bofe e se foi
maria mindomira de inclinada de lado errante
no talo de punhal em sangue pingou
48 olhou descabelada pros cantos
de todo lado entreolharam-se
putas de vida lascante
apertou o punhal entreolharam-se
e de fato gozaram todas num instante

...

amordaçado a via
goteiras de úmido esplendor
levantado jogado no canto
eu vi dezessete de cassete erguidos
suados molhados infames
vim de longe de outras paragens
desnascido onde quer que eu fosse
implícito na seteira errante
fui banido para nunca mais outra vez
aqui vim parar no instante
que de outro lugar fui saindo
não morri quer que mesmo se diga
nem parei se mesmo me perguntassem
no primeiro dia que alibecca eu vi
loucamente me apaixonei num furor
se distante vim num galope
foi porque estes ventos daqui
de sal e graça num cortante te invade
foi porque alibecca me sugou
num vórtice de cada instante de sua carne
láudano distinta de pele diamante
de cupuaçu ao leite no cálice
e de longe vim pros seus braços
que logo me tentaculou num relance
rendido na ponta de seus seios estacas
fui prensado a verter meu sangue
de cada soluço no peito que batia meus desejos
ah, que volúpia de tardes cantantes alibecca! 49
amordaçado eu via
alibecca rodeada por uns dezessete de cassetes
erguidos
e por vez ao mesmo tempo sobrepujando seus
orifícios
alibecca saudava as glandes que em seu corpo
entrava
e a cercavam todos eles em círculos
penetrando-a na boceta, cu, boca e ouvidos
e suas mãos erguidas excitavam ainda mais
outros membros
e amordaçado eu num canto rendido
no que naís ria em trapézio
e gilli me olhando em desvio
aquela a armadilha que me preparam em
vinhos
em 7 noites de estrelas cadentes
todo vilarejo contra mim conspirou
que depois fui saber
distraindo os que podiam me ajudar
padre ciomar com seu cristo no mangue
e maria mindomira com saderre na lâmina
e neste ínterim caí na arapuca
por alibecca elas me fizeram jurar tudo o que
pude
e minha vida em suas mãos entreguei num
instante
tendo agora aquela satãneza alibecca
sendo currada por uns dezessete infames
que riam suados em volta de seus orifícios
gilli num prenúncio de êxtase
alisava as nádegas embriagantes
naís numa louca dança de alongamentos
esfregava na boca os pés
50 alibecca a discípula das duas
de boca aberta recebia o gozo de cada um por
sua vez
e gemiam num estridente coro de languidos
bestiais
com todos gozando na boca de alibecca
aquela enorme poça de porra que ela me
olhando me viu
engolindo cada sêmen de dezessete cacetes em
seus orifícios
sorrindo para mim alisando os lábios com a
língua ainda pingando a semente de porra de
todos
garotas postiças
o som das ondas quebravam uníssonas
excitando o voo das gaivotas em transe
vendavais salgados atiram contra os mangues
rebatendo o sopro do mar nas falésias
numa tonteira não segurei meus antros
reproduzindo o clima fincado na janelas
vomitei amargo e magro sem comer dias
todos sorriram ao ver minha queda
uma silhueta dentre todos vi se aproximar

olhou-me nos olhos me lançando um terremoto


pela luz das retinas e tremi
aquela espessura quente do meu vômito que
gilli
tinha entre os dedos e lambia e chupava

51

tu bi continuédi
52
53
54
O Dia Em Que Não O Queimaram 55
(Operetta Falsificata)
56
ATO I

Uma festa rolava solta em alguma città, numa casa alugada de um


condomínio militar. Ao lado se via um campo de treinamento para os recrutas
e apenas um muro branco que os dividia. Lá, os militares corriam e se
exercitavam, aprendiam ordem unida, decoravam os mandos, seguiam
ordens, gargalhavam, eram humilhados... No primeiro andar da casa, o povo
se esbaldava em fuzarca, gritando e dançando de mãos para o alto,
cacarejava, caía na farra. Duas da manhã. Ainda nem estavam em ontem. Um
rapaz tropeçou de canto. Cerveja derrubada. Estalos próximos a adega.
Batidas no som rolando perpetuamente. Uns pagodeavam e bambeavam
miudinho. Pistas de vômitos no rodapé dos corredores. Bolas-de-ar
estourando dependuradas no alto das paredes enfeitadas. BUM! Uma gente
suava. Gargarejos depois do vômito e de volta as bebidas. BUM! Nos cantos
sassaricavam, bolinavam-se. Um gesto abrupto de perto e ambos sentiram o
cheiro. Disfarçaram. Os tons se confundiam nas cores embotadas. Era a
bebida. Celulares acendendo. O dia vibrava nos pardieiros. Pernas. Braços.
Pernas mascadas. Braços entremeados. Pernas. Braços. Cabeça. Pescoço. 57
Suor. Olhos. Beiços. Cachaça. Boca boca boca. Abraços. Apertos. O dia
vibrava. A garota se confundiu com o aço dos banheiros. Lá fora era quente.
Lá dentro corria o suor. Suaram. Alguém se perdeu pelo último gole. O crioulo
desentronchava-se mostrando a arcada amarelada. Pancadões no som. A
loira oxigenada balangava até o chão. Cacarejavam. Murriavam como em
eitos. O magrelo já não se agüentava em pé, escorava-se na pegada dos
copos. O dia caía vivo sobre as lembranças. No primeiro andar tudo acontecia
sob as cangadas. Um dos mais velhos e banguela tremelicava de olhos nas
quengadas. Alguma treta era resolvida na boca dos punhais. Danos incomuns
aos católicos. Salgadinhos expostos na sordidez vai e vem dos porres. Na
entrada, do outro lado do condomínio, passava uma gente ladrona. Ciganos,
diziam o povo do festeiro. Passavam pelo caminho das ruínas, diziam. Os
abridores soltando o ar comprimido. Vadiagens. No andar de cima o festeiro ia
de vento em polpa. Whisky. Bandejas de prata cromada e sêmens.
Espumantes entre paradísos, alguém soltou um leve aceno. Pró-seco. Lírios
em vitrais a base de vertigens. Emanuela sentiu-se inebriada com mãos
vibrantes cobrindo-lhe as nádegas. Seu sexo coberto de adornos entre lábios
entreabertos. Mascarantte sorrira pelos vidros e basculantes.

EMANUELA (Entre adornos)


Ó quanta delicia nesta hora de descasos!

MASCARANTTE (Voltando-se pra ela)


É porque nos enlevam os destinos, o divino.

Entre sorrisos continuaram e Emanuela cobriu-se com um membro


molhado. Emanuela calcada em espartilhos. Voavam os sêmens ao caírem
nas lânguidas dobras. Não houve mais nada senão acenos e aberturas. A de
pele marfim madura viu-se de lábios cheios penetrados por lanças ardentes.
Francesca olhos cobalto amada com caules pontudos que a sobressaíam.
Ventos úmidos na cabeleira andrógina. O dia ia quente no verão, na polpa,
langores, sirenes balançavam os ruídos, expulsando o silêncio do pátio pra
fora. Os dos andares inferiores correram como uns catiços. A polizia fora
58 chamada por vizinhos obscuros, e chegou atirando nos que estavam nos
andares debaixo. Alguns correram entre poças de sangue e desejos. Outros
ficaram a espera de seus lugares na orgia do andar de cima, enquanto muitos
eram mortos. Nunca se soube o que aconteceu ao andar de cima.
ATO II

FUGITIVO I
Que merda, mermão, que merda!

FUGITIVO II
Pulemos pro lado de lá.

E lá se foram os três fugitivos do andar debaixo, ao pularem o muro branco


para o outro lado e correrem feito uns doidos pelo campo de treinamento
militar. Esconderam-se pelos alojamentos e se vestiram de recrutas. Cada um
encontrou um canto e adormeceram. Pelas cinco da manhã ouviram o sinal da
alvorada e se reuniram no pátio para o hasteamento da bandeira. Logo os
outros militares descobriram a farsa. O sargento sorriu com um canto de boca
e com um sinal ordenou os demais a despirem os fugitivos. À força, os três
fugitivos viram-se nus. Madonna mia. Os recrutas, quase sempre humilhados,
se banquetearam com o estado de degradação dos três. Fizeram-nos imitarem 59
macacos, a se fingirem de mulherzinhas, a rolarem na lama. Mas somente os
fugitivos I e II aceitaram o fardo daquelas humilhações. O III resistiu e avançou
sobre os recrutas. Uns quinze se juntaram sobre ele e o espancaram com
chutes e pontapés. Inconsciente, o III fora levado por dois recrutas para ser
queimado. Os recrutas cavaram uma cova com pás e jogaram o III,
inconsciente, no buraco. Encharcaram-no com gasolina. Mas antes que
pudessem hastear fogo sobre o III, este, levantou-se repentinamente, como
um raio, e atingiu o nariz de um dos recrutas com uma destruidora cabeçada.
O nariz do recruta ficara estraçalhado e um dos ossos do crânio atravessou
seu cérebro com violência e ele caiu morto. O outro recruta, apavorado, em
vão tentou acender um fósforo e enquanto tremia de ponta a cabeça, fanculo,
o III atracou-o como uma onça e mordeu-lhe um lado do pescoço. Com a
mordida, o III arrancou-lhe um naco de carne e gordura, sua pele ficou
esfiapada sobre o pescoço, deixando à mostra os ossos da garganta e um
pedaço da laringe dependurada pelo buraco da mordida, de onde borbotava
pequenos guinchos de sangue. O III engoliu a carne do recruta e bebeu do seu
sangue. Um pouco das habilidades do recruta, através de sua carne e de seu
sangue, foram transmitidas para o III. O III seguiu caminho, deixando os
cadáveres dos dois recrutas para trás, sumindo adentro de uma pequena
floresta. Nunca se soube o que acontecera com os outros dois fugitivos.

60
ATO III

“Então Herodes, vendo que tinha sido iludido pelos magos, irritou-se muito e mandou
matar todos os meninos que havia em Belém e em todos os seus contornos, de dois
anos para baixo, segundo o tempo que diligentemente inquirira dos magos.”

Os cartazes amarelos das ruas contêm secretas histórias que só os


errantes e os poetas conseguem decifrar. É comum para estes doidos de
sarjeta contemplar longos incêndios carcomendo as fachadas, ainda que não
haja fogo algum. As crianças debilitadas são enforcadas nos becos e expostas
no meio da rua, como iguaria difícil de comprar. Os crimes, em tempos assim,
não conseguem ficar tanto tempo escondidos nos cômodos, e logo é possível
observar seus vultos rastejarem pelo lado de fora das janelas, pendendo
escancarados sobre os parapeitos. Quando a vontade é indomável e se grita
com bastante ardor dentro do pleno silêncio, pode-se ver alguém, ao virar a
esquina, com a cabeça rachada guardando um trecho da música do mundo
dentro do crânio.
Ao lado do cortiço Del Diavolo está pichado assim: “Encontrei o Papa 61
trepando com uma puta”, e embaixo da pichação, um velho perneta repetia
catatonicamente: “Encontrei o Papa trepando com uma puta”. Em cima do arco
da entrada do cortiço, havia uma caveira descarnada de um bode e embaixo
dela estava escrito em ferro retorcido: “O cortiço Del Diavolo”.
Por toda città de Travitta, os cartazes com o rosto de Maurizio di Santino,
O Abençoado, estão colados pelos muros, pendurados no alto dos postes,
encravados nas colunas embaixo dos viadutos, com o intuito de revelar a
imponência e força deste ditador. Maurizio di Santino subira ao poder nos
últimos cinco anos, varrendo adversários e possíveis inimigos que pudessem
impedi-lo em sua empreitada. Pouco se sabe de seu passado, apenas que ele
viera da città di Santino, e por isso de seu nome. Nos primeiros três anos, seu
poder fora incontestável, até o aparecimento do líder revolucionário
Cannavarre, O Flagelo. Os que, há muito eram ávidos pela derrubada de
Maurizio, viram em Cannavarre a oportunidade de saciar seus desejos. Até os
Poliolos Democráticos, mais moderados, se juntaram as brigadas de
Cannavarre. Uma guerra civil sem precedentes se implantou por toda nação e
parece que o destino de todos poderia ser decidido por um só tiro.
O reduto dos rebeldes na città di Travitta era o cortiço Del Diavolo. Lá, ao
que parece, fica uma das principais casamatas do próprio Cannavarre, que
vive a vagar por todo país, sem residência fixa, a fim de escapar dos agentes
de Maurizio di Santino.
O fundo dos cartazes é de um vermelho-sangue, forte e escuro, que traduz
tirania e grandiloqüência. À frente, seu rosto desenhado de modo imponente,
possui uma textura calcaria e pedregosa. Tudo fora feito de uma maneira que
a população temesse o líder que a comandava.

62
ATO IV

Homens estranhos o chamaram entre portas sem trancas, espaços


secretos, vezes que se perdem em corredores não se sabe pra onde,
ventiladores empoeirados rangendo no escuro, lâmpadas obtusas refletindo a
contração do nada e expandindo até a curva das sombras.

GIULIANO
Onde se encontra o chamado?

MARCO
Ainda está por chegar. Paciência vem com o que precisamos. Não
sejamos imprudentes.

ALFREDO
O Vescovo Lorenzo nos disse bem. A Tradição e a Cultura é que nos
mantêm coesos, eretos, prudentes, certos de que as demandas serão 63
cumpridas e as virtudes nos acudirão.

GIULIANO
Certo, certo. Não falei por mal. O que faremos será vital para a Nação.
Ainda que o povo nada saiba, nossas incursões nesta maré que nos assombra
darão o futuro almejado para todos.

MARCO
Pode ser e pode não ser. Isso independe. Não de nós, é claro. Nosso
comprometimento é exeqüível, porém um faro que tateia as estátuas e vigia
as piazzas. Os dados, contudo, podem nos enganar, como presenciamos
outras vezes. A questão agora não é mais de permuta ou acordos, mas metas
que serão traçadas sobre quaisquer medidas. Iremos nos pautar, não nos
levantamentos que fizemos, nem nos resultados que virão, se assim posso
dizer, mas nos laboriosos caminhos que abrimos ao refletir sobre isso tudo.
GIULIANO
Sim, sim, de acordo.

Trouxeram o chamado Cannavarre, O Flagelo, à presença dos três e


colocaram-no diante de uma mesa retangular. Ao seu lado vieram dois homens
de terno, altos, e imponentes. Em cada lado da mesa sentavam-se os que o
esperavam. Giuliano, Marco e Alfredo. Cannavarre veio com seus trajes de
costume: uma calça militar grossa, uma jaqueta verde-escura, botas, camisa
preta e os cabelos soltos e desgrenhados.

MARCO
Então este é o chamado?! Parece mais um vagabundo!

64
ATO V

Na escuridão é possível encontrar, entre objetos impermanentes, vozes


que, de um lado, podem apenas serem ouvidas nas franjas do silêncio e, de
outro, atravessadas por rajadas retorcidas que beiram ao suicídio e o
esplendor. Em lugares assim é difícil algo vingar, no entanto, quando vicejam,
o que é pantanoso e infértil cresce como bambuzais. Nada é esperado
acontecer, a loucura impera e enverga os quadros fincados nas paredes, as
velas sopram metano, os olhos se liquefazem e escorrem pelas caras, os dias
se trancafiam no mesmo, os relâmpagos se tornam opacos, ainda assim, algo
acontece, mesmo que não esperado, e uma chama atravessa as ruas
arrancando portas e janelas com o turbilhão de sua cauda.
Aqueles homens estranhos ainda permaneciam em volta da mesa e,
permaneceriam assim por muito tempo ainda, se movendo apenas quando
planejado. Uma fumaça espessa pairava sobre o azul. A cabeça de Giuliano
reluzia rachada num canto da sala. Seus miolos escorriam ante a luz da única
lâmpada acesa sobre o centro da mesa. O buraco de seus olhos estava vazio,
as órbitas foram adequadamente arrancadas para futura referência. Os lábios 65
pendiam arreganhados no rosto e a língua desajeitadamente jogada para fora
da boca.

MARCO
Bem, continuemos nobres senhores, o que poderia nos importunar num
futuro possível, foi enfaticamente posto de lado. Nossas atribulações, ao
menos quanto a isso, terminaram.

ALFREDO
Perfeito!

VESCOVO LORENZO
As insurgências logo terminarão. O novo governo se fundará pela
abstração dos planejamentos. Nossa Ordem se baseará em agentes
implícitos, em coações destacadas, na inteligência dos departamentos, na
revolução gerencial que apontará e implementará a utilização dos termos. E
isso é tudo senhores. Obrigado e até mais.
O Vescovo Lorenzo levantou-se, fez um gesto de despedida a todos e se
retirou. Aos pés de Marco, a barra de ferro ainda vibrava com o sangue
escaldante que a cobria. Serviços internos deveriam ser resolvidos pelos que
eram servidos. Do lado de fora, o vermelho e o laranja cobriam o longo das
ruas. Sangue e fogo pesavam sobre os pavimentos. O término de uma Era
alcançava as ruas.

CANNAVARRE
Estou aqui pronunciando a voz que eclode das ruas
e ainda mais profundo,
o som que emana da Vida que palpita nos subterrâneos.
Nunca poderei sentir uma coisa de cada vez.
Poderosa demais a chuva que se levanta da terra.
Tudo passa por mim num turbilhão, pelos cabelos, pela pele, minha carne, me
arrastando.
66
ATO VI
As cinzas que cobriam as città ainda fumegavam. O cheiro de concreto
chamuscado e carne queimada dominava o ar. Os destroços cobriam as
piazzas, invadiam os quintais, engoliam a beira dos rios. Os pedaços rasgados
e retorcidos nas paredes, mal lembravam os cartazes que um dia haviam sido.
Rodovias e avenidas arruinadas, postes quebrados e latas de lixo e tapumes
perfurados por estilhaços, edifícios abandonados e com os topos sob
incêndios, cachorros loucos arrastando os cadáveres pelas ruas.
Engataram alto-falantes em alguns carros e eles atravessavam as città
anunciando a morte de Maurizio di Santino, O Abençoado, encontrado morto
em seu quarto com a garganta cortada de orelha a orelha. Disseram que a
causa fora suicídio e o Governo Provisório tratou logo de tomar as medidas
necessárias e se apropriar do lugar de Maurizio. Depois das palavras de
anúncio, os alto-falantes tocavam Una Furtiva Lacrima de Enrico Caruso.
Nunca se soube o que acontecera com o cadáver de Maurizio di Santino.

VESCOVO LORENZO 67
As insurgências não serão mais toleradas, os rebeldes deverão ser
punidos severamente, caso voltem a levar a desordem novamente para as
ruas. Todas as formas e medidas de punição serão tomadas a fim de
restabelecer a Ordem. Os estupros foram gerenciados, estatizados, somente
nossos oficiais estão autorizados a cometê-los. Afinal, o que fazer? Essa gente
de quinta, sexta categoria, vivem como uns velhacos por aí, suas mães à
esmolar encurvadas pelas sarjetas e com um copo à frente para as moedas,
as irmãs nos prostíbulos para aumentar a renda, as doenças a carcome-los
diariamente, os irmãos uns vagabundos a rolarem no chão com os cachorros,
o pai um sujo, aleijado, alquebrado, entravado, humilhado rastejando pelas
calçadas. Quando morrem, nem nos demos conta. Uma limpeza que só! Vida
nova, regras novas. Os crimes comuns e os calhordas terão ocorrências até
quando forem necessários. De resto, entraremos em cena encarcerando e
esmagando os culpados. Espero que estejamos entendidos. Até logo.
Todos assentiram.
O Vescovo Lorenzo se despediu dos demais e saiu. Os outros se
entreolharam assegurados e também saíram. O silêncio continuou o mesmo
após a partida daqueles estranhos homens. Uma fumaça espessa cobria a
sala e um azul perdido se escamoteava pela escuridão.
O cadáver de Cannavarre fora encontrado numa vala comum cravejado
por rajadas e todo quebrado ao som pesado das pauladas. O Governo
Provisório esquartejou o corpo de Cannavarre e pendurou os pedaços pelas
piazzas das principais città para servir de exemplo àqueles que um dia
quisessem se insurgir.

CANNAVARRE
Meu coração ouvia Caruso porque queria se entregar...

68

SACROS LATERAN ECCES


OMNIVM VRBIS ET ORBIS
ECCLESIARVM MATER
ET CAPUT

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