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A bailarina da morte

Estou escondido como se tivesse cometido um crime. E em verdade


estou. Afinal de conta, não se tornou um crime velar os mortos nestes tempos?
Mas nem se me ameaçassem com o degredo ou a forca, me afastaria desta
janela. Aqui, no terceiro andar do Hospital das Clínicas, espremido entre o vidro
e este batente íngreme, escrevo uma carta de despedida. Este é meu ato de
vingança: Adeus, mãe... queria poder me despedir como mereces, mas não
deixaram. Devo respeitar a quarentena, disseram! Me perdoe... amaldiçoo este
hospital que não me deixa vê-la, a enfermeira que atravessa a sua cama
olhando o celular, os transeuntes que comemoram, entre sorrisos, os pacientes
que saem do prédio em cadeiras de rodas, curados. Os odeio porque os invejo.
Lembro que dizias que a inveja era o pior dos pecados capitais. Mas,
agora, ao ver apenas o teu vulto pela janela, envolvida por um lençol
cadavérico, entubada entre máquinas, com os pulmões apagados, preferia ser
o maior dos pecadores do que não te ver nunca mais.
E pensar que sempre foras tão saudável, com teu peito rijo, tua
mobilidade, tuas pernas torneadas de bailarina. Todos te admiravam nos
palcos, na escola de dança, ensinando às pequeninas os traçados do ballet, as
curvaturas do tango, os boleados do samba.
Sempre achei que morrerias em movimento. Uma vida flutuando no ar,
flertando com a gravidade, dominando o equilíbrio entre a acrobacia e a queda,
a paz e o espanto, qual poesia em movimento. Jamais pensei que um dia
estarias presa em teu próprio corpo, imóvel, como um criado mudo.
Agora, te vejo caída e desafio o meu medo de altura para ver, com os
meus próprios olhos, se esta será a tua última dança, sem testemunhas nem
aplausos.
Tudo foi tão rápido minha mãe. Desde quando a senhora começou a se
queixar de dores no peito, tentando se segurar em pé por algum tempo,
arquejando até para pentear os cabelos. Quando veio a febre, a perda do
paladar, do olfato, as dores no corpo sempre tão maciço, ereto; a senhora
sucumbiu, alquebrada, na cama.
Sempre pensei na senhora como inexorável, sólida em sua maternidade;
como alguém que só morreria por algum mal-entendido do destino, uma piada
de mau gosto do universo.
Quando te encurvastes perante esta doença, porém, fiquei como que
diante daquelas antigas, seculares árvores, que despencam pelas raízes,
enquanto nós, expectantes, ficamos dependurados, desenraizados, sem chão.
Agora, te ver invisível aos meus olhos, tombada no meio de uma
multidão de outros corpos arquejantes, antecipa a sensação da orfandade. A
peste se espalhara pelo mundo, os corpos se multiplicavam pelas ruas, os
lamentos pelos andares, mas nunca pensara que ela alcançaria o meu mundo
doméstico, subverteria a minha intimidade e violaria o nosso convívio.
A tua invisibilidade pesa mais que a reles ausência, como se já tivesses
morrido, sem que oficializasses a despedida.
Agora, passo as noites insone, rondando o perímetro concorrido do
hospital, na expectativa de saber teu seu destino, recolher teu corpo, ouvir a
tua voz.
Sou uma espécie de psicopata da saudade.
, e só encontrara, em meio ao vozerio anelante, o silêncio.

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