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PISANDO

NA
GRAMA
Pedro Marcos Pereira Lima

2022
O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade

“Poema Sujo” – Ferreira Gullar

Porque se chamavam homens


Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem

“Clube da Esquina nº 2” - Milton Nascimento/Lô Borges


SÃO PAULAVRAS

enquanto
o ser filhote humano floresce pássaro voando peixe fluorescente
na encantação da criança correndo entre as mesas
da praça de alimentação
em outras águas das palavras em outro lugar sem lugar
outras crianças ondulam - ratos roendo os lixos

onde em universos paralelos


em expansão com outros mundos aqui da história sem roteiro
o texto vai construindo o tempo equidistante agora
das ruas direitas em tortas vitrines espalhadas pelo chão da truculência das guardas
municipais e policias militares
o corpo do camelô ambulante vendedor de sonhos descartáveis
atirado no calçadão

bem diria da boca de um pobre diabo


com a bíblia na mão
no meio da praça
aquele que clama no deserto –
se Deus não guardar a cidade em vão vigia a sentinela

o habitante caminhante da devastação


sobrevivente da caça de sonhos
brincante de jogos poéticos
aos saltos entre assaltos e percalços

em ecos pelas montanhas envidraçadas


avenidas do vale da sombra e das bolsas de valores
desdobrados em bezerros de ouro no curso
de ruas rios estagnados no trânsito da mais valia
do lucro neoliberal

debaixo do ferro aço de um sol espelhado


alimentando raízes de poluições
nebulosas esfumaçadas
entre estrelas em situação de beco inferno

nas cavernas corredores


dos sebos da quintino bocaiuva joão mendes liberdade
folheando as gastas peles da pedra milenar
o habitante anônimo busca nos livros cansados de tempo
a pedra filosofal com seus símbolos ocultos
que me expliquem
seja o que tenha ou não tenha a explicar

em outro plano
nas áreas sujeitas a inundação
de descasos boia a vida arrastada
com entulhos e chorumes
carregados de ossos direto do matadouro
guardados na geladeira de alimentos

numa concha de papelão


dorme o feto como um olho
aconchegado na seda da chama
enquanto nessa hibernação
de anticorpo sonâmbulo
cobre com os olhos de icebergs incendiados
a dança nebulosa do seu olhar

do outro lado da lua oscila a memória


uma voz cruza as curvas da tosse
traz notícias da chegada de um tempo de milênios perdidos
no declive do caos de ventos solar

lavam as cascas das folhas de pele negra


com seus riscos de cartas rascunhadas
asas pesadas se mexem no tanque da praça da sé
do chafariz quasar fétido
dá-se o batismo

em silencio rasteja no jardim da minha cabeça


passando feito um satélite humble observador
o cosmos é a luneta transponível da janela
que se abre do apartamento
para o pensamento

o poeta em movimentos da realidade da cidade


se escreve no tempo dos sonhos
sacados das caixas eletrônicas
sem saldo

as criaturas que lhe escapam


passam pelos seus olhos nas escritas
ficcionais em cenas furtivas

palavras sementes germinam


das plantações da escrita como pragas
de ervas daninhas
em suas ninhagens de paisagens
que se incendeiam nas páginas labaredas
da cidade

o poema que fala da vida da poemacidade


a carne derrotada
ardendo sobre a terra
ônibus metrôs carros motos aplicativos
trens cápsulas caindo dos monotrilhos
sonâmbulos pedestres dançam nas viagens
cambaleantes nas plataformas

viaduto do chá
vou e volto para as Casas com Asas
pedras brasas em chamas se esquecendo
fumaça se esvaindo lá vai o rosto do poeta
molhado de águas da chuva e das lágrimas
em direção à biblioteca mario de andrade
o rosto que sempre soube sopro ressurgido do sonho
na Paulicéia Desvairada

da nuvem que na mesma curva vai dobrando a luz sob nas sombras perpassadas
de resumos arrasados territórios de cartas rasgadas nos vãos
das esquinas voa um papel do chão da calçada num repentino
redemoinho de ventania revirando páginas de um tempo
perdido como as luzes mercúrio dos postes de antigamente
aqui na são são paulo das palavras um silêncio de gemidos
no banco da catedral da sé

oro
ÁCIDA DE

escrever na pele da cidade


considerando
a fricção com que seu rosto
é esfregado no asfalto
e o pio-pio se solta da sua
garganta ninho
esvoaçando
penas bicos folhas galhos
que nunca mais existiram

pegar nas mãos


a nuvem ingênua se contorcendo
de relâmpagos
com sua chuva interna

com ela limpar as feridas do rosto


e sair a cantar voar
escrevendo
seu silêncio
PASSARINHAGEM

voam pela cidade/no passo possível


no correr da correria/de cada um
solam sem sola no espaço/soltam as asas

levando presos/sonhos espantados


grades/de choros
coros de gritos/de risos

sobre assaltados dias/ ETs invisíveis


em vitrines túneis/luzes de incêndios
calçadas viadutos esquinas/usinas de viver

comem rápidamente/para vencer


a sombra da caça/as contas
das sobras/por todos os cantos

câmeras ocultas/pisam silenciosas


seus andares/dos seus olhares acesos
em sacos de lixos/guardam a paz dos incensos

descançam nas áreas/inalcançáveis


de jardins/parques
logradouros baldios/do asfalto

rodam nesse playground/um cirandar de crianças


do que restou do espaço/na andança
pelos sonhos da cidade/dormida

postas na vida/levados às cotas da morte


em vagas da sorte/da meritocracia
na falta do lar e da escola/encontram a rua por esmola
POESIA NA PRAÇA

a poesia não tem


pés de ferro
a poesia alcança
e calça os pés
que são de ferro
carrega
o peso da leveza
de suas andanças

a poesia roça
o osso do amor
rói o ódio
desse fosso
só o amor
toca esse osso

***

se carinho
não há nesta praça
e seu jardim
foi pisado e cortado

se não há mais
caminho
para quem passa

viajo aqui sentado


nesse banco quebrado
feito de cimento
olhando
o deserto de nossa praça
sem passarinho
sem nenhuma planta
nenhuma flor
nenhuma criança
só a placa pisada

É PROIBIDO
PISAR NA GRAMA

grama que não há mais

ao menos o aviso da placa


há muito tempo
não é impedimento
para o passar das formigas
do vento
e do poeta
passeando nesse solo

e também ao desabrigado
que reside acampado
debaixo da única árvore
que resiste neste sonho
LAR

nesse tempo cotidiano


da cidade habitada
de abandono

o acolhimento
encontre um espaço
nesse cimento

na criança ou velho
de toda idade
pelos becos da cidade

onde pouse
um lugar de luz
resplandeça

acorde os sonâmbulos
a fé ouse
o amor apareça
A CASA ONDE MORO

é uma cidade
com sala quarto cozinha
o povo família daqui caminha
de um cômodo a outro
e quase não se vê

atravessando portas internas


do banheiro ao quarto
num cruzamento sem farol
em constante colisão

xingamentos e gritos
fazem parte desse trânsito
por invasão do espaço alheio
no estacionamento proibido

nessa casa cidade onde moro


os talheres e pratos são bem repartidos
só que na sala de jantar
se confundem cama e mesa

às vezes perco o endereço


de onde moro
e não volto para casa
fico em meu quarto
andando pelas ruas

enquanto na esquina da sala


um luminoso
bate papo animado
com outdoors
deixando todo mundo sem assunto

prometo a mim mesmo


um dia ainda me livro dessa casa
aonde helicópteros me atropelam na escada
policia que me prende no banheiro
e ETs me assaltam no quintal
JARDIM DE GUERRA

há uma guerra de flores


nesse jardim
suas armas –
o perfume dos ventos

cortando os ares
as pétalas espadas
traçando letras

deixam pendidas
entre os galhos
num covil de violetas

exalando silêncios
escoradas nas paredes da noite
nos postes nas bancas de revistas
escolhidas a dedo

sem medo as fêmeas


cobertas pelas cores
buliçosas de suas peles

umas
tecidas negras
outras chamuscadas
de orvalho e gelo

outras em arco-íris
dançam asas abertas
suas estrepitosas inocências
marca das borboletas

***

deitados sobre pedras


à margem do córrego tráfego de tráfico
tagarelam os galhos moleques
contando vantagens

de suas travessuras
empinando pipas com cerol
no céu de sol aberto em leques

dessa guerrilha de girassóis


uma artilharia de
cruzam ventanias tontas
de mamonas projéteis
JARDIM DA FOME

no jardim da fome
florescem bocas mudas
dos lábios abertos
das meninas

no jardim da fome
crescem frágeis
ramos duros
dos meninos

***

a FOME
pede habitação
pede escola
pede educação
pede saúde
pede pede pede
pé de brincadeiras
nos jardins
pé de danças
nos tablados
pé de correrias
nos parques
pé de futebol
nos campos

no pé de sonhos
pede alimento
pede VIDA
no nascimento
DANÇA DOS PÁSSAROS

vejo a dança dos pássaros


seus rolês
os olhares de soslaios
sobre eles

uma amarga brisa


digo brasa
nas cabeças estilhaçadas
por tiros

eu aqui insisto
no minuto de silêncio
dos poemas
porque sei a cor deles
suas palavras pretas

de onde o passaredo
explodirá o ar de ferro
arrebentando algemas
e grades?

***

leio nos olhos dos meninos e das meninas leio em suas cascas de árvores negras leio no
tronco riscado de seus peitos leio nas raízes de suas pernas braços bundas confusas leio
na tatuagem de suas folhas asas de jornal cobrindo o leito leio em suas mãos galhos
ressequidos leio nos seus cabelos crespos copas coloridas em chama leio na carne de
seus frutos ilustrações tatuadas à bala leio nos riscos de seus cadernos sem leitura leio
no poço dos olhos de suas mães leio lá no fundo a lágrima leio-os intocáveis plantas
tontas num vaso quebrado leio seus gritos no jardim queimando
O MENINO DO REVÓLVER

ao ver
ao vivo
um revolver
de verdades
e mentiras

engatilha atira
pensamentos
de revólver
de brinquedo

na mão
insegura
que segura
um

uma
nenhuma
palavra

revolve
um alvo
real
FÁBULA

certa lagarta borboleta


presa
ao seu casulo caverna
rente ao sonho
hiberna.

por cúmulo
que pareça
viu-se de repente
acesa serpente

despretensiosa
musa desatenta
voando
de chão em chão
de sua boca labareda
a borboleta dragão
jorra
fogos de sonhos

correndo
ora com pernas
ora com penas
da infância

enquanto assovia
o vento
bem te via
já agora uma criança

aquela serpente borboleta


dragoa menina
se reinventa
a cada sonho

pois a vida
nela
é perambular pelo fabular
da poesia
que fantasia
nua pelas ruas
ETERNIDADE PASSAGEIRA

porque as nuvens crianças


viajam sem se saberem
não têm idade
igualam Deus em eternidade

ao que parece
o tempo não encontra lugar
na paisagem delas

a viagem é só o sonho
NA PRAIA

desafogando silêncios
fala a alta voz
saindo de dentro
do fundo do sono
de nós náufragos

um poema morto
foi encontrado no calçadão
da praia
à beira do cotidiano
vivendo
do salário da morte
sob bordoadas
arremessa gritos
de fim de escravidão
mal resolvida

semeadas na praia
guarda chuvas
de sol sangrento

lá se foi o tempo
quando se brincava
com a cabeça
descalça de pensamentos
tendo por fone de ouvido
uma concha
aguando sons
vindos distantes

aguardando
das areias brotar
uma profundeza de mar

e andando sobre as águas


seguíamos
dialogando
com a fala dos peixes
O SONHO PEREGRINA A NOITE

acessar a pisagem mais distante


pensei ser também do real
de cada um em todos nós

assim pensando me vi
rompendo o rio turbulento
transbordante e sem horizonte à vista

andarilho do mesmo tempo espaço compactado


percorri as águas horas do rio seco
entre dias e multidões de noites

acompanhando a caravana de tribos


diversas de raízes e ancestralidades
sem cuidar que os destinos eram outros

olhando atrás meus rastos grotescos


quedei sem bússola esquecido à beira
do sonho de andares movediços

deixando-me levar
no onde enquanto
o sonho peregrina a noite
TRANSFIGURAÇÃO

o que vejo por aqui


não é inventado
é o real concreto
transfigurado

toco meus olhos


nesses paradeiros
e desastrado
continuo os tropeços
que me faço a cada passo
de mim mesmo
a esmo

***

o que escreVi da Vida


foi para não dizerem que não
escreVi da morte
ÁRVORE DA VIDA

encontrada no
pântano deserto
se desloca
não se sabe
se em fuga
ou a passeio

grávida do sonho
gravita
pouco acima do chão –
a árvore vida

na cabine ventre
ou tubo de ensaio
um bailarino negro
flutuando de cócoras
pilota a nave enredo
POÉTICA DAS ÁRVORES

árvores pensam
seu tempo
no espaço do vento

na eternidade da chuva
gotejam
suas folhas uma a uma
até a próxima estação –
sob sua sombra
estão pássaros cantando

***

suas palavras troncos


pedem ébano
podem peroba
brotar o pó
pá de palha
manam maná
sangram pau brasil
baobá
guardam sombreiros
girassóis
gotejam cerejeira

***

tantos mundos
tantas mudas
sementes
de tantas mentes

somos tantos galhos


tantas raizes
em alguma
haveremos de encontrar
atalhos
de sermos felizes

se gemem nas calçadas


germinam
nas florestas
brotam nas palavras.
ONDEAR

estar atento
é o que aconselha
o vento

tocando a folha
distraída
em seus inventos
de circunavegar o ar

a brisa alerta:
viajai e vigiai
pois olhos à espreita
podem te naufragar

a folha
qual passarinho
nada sabe de perigos
sua inocência
é da relva que lhe aceita

e ali, suave deita

***

por certo não aprendestes


com a maldade
nem a malícia foi teu guia

a solta pele amarela


de sua pele
já denuncia

que o outono é seu casaco


és apenas a asa despregada
ao acaso

de um corpo tronco
transitório –
outros olhares
encontrem nesses voares
a beleza

e que seja pesada


apenas a delicadeza
CASA

e a locomotiva vai em frente


indo para o passado
pelo túnel da memória

como deve ser


me conduz para chegar
ao começo da primeira luz

chegando por um triz


vejo a casa é a mesma
construida em meu olhar
de setenta anos após
passo por ela
sombra luminosa
seus habitantes passageiros
estão aqui
em outra estação
uns seguiram viagem
abandonando a paisagem
outros à beira da plataforma
vão ficando resistindo
contando causos
lembranças inventadas
de futuros passados
gente nova entre
tidas nos celulares
seus novos lares
e aqui na casa antiga
nós velhos chegamos
entre alegres e teimosos
fazendo de conta
que vida ainda existe
nas palavras buscadas
a duras e amenas falas
como sempre nos dissemos
dando graças
sobre a mesa
de tantas delícias
que nos engolem
em insaciáveis fomes
enquanto vamos embora
partilhando
jogos de conversas
jogadas fora
pondo prá dentro
o que não tem mais
o que guardar
senão tentar repor
o vazio que acumulamos
nas gavetas e baús
dos sótãos dos sonhos
até a próxima
história
TERRA PLANA EM ROTAÇÃO

terra plana
cavada
escavada
na enxada
na serra elétrica
na máquina
na usina
no agro negócio
no total espólio
até o último grão de terra

terra deixada plana


sem mais a forma
originária
da terra planetária

terra tornada plana


em dimensão rasteira
como uma árvore deitada
em sua sombra estendida

aos pés de sua sombra caída


tenta levantar-se
a árvore derradeira

árvore que não é de madeira


é de outra matéria efêmera
agora assentada
em sua imagem deformada
busca sua forma primeira

nessa terra plana


os seres humanos erram
sem paradeiro
em tanto chão

sem planos
sem terra
expulsos de suas terras

de terra em terra
não encontram terra
onde por seu pé
sua fé
o homens mulheres crianças
bichos e plantas
estendidos na planitude
dessa terra sem mistérios
o ser humano
foi assim achado

quer volta às origens


da terra redonda
de caminhar em pé
sobre as ondas

só encontra a fundura
do poço humano
onde a terra foi enterrada
e não se cabe mais
em si de aquecimento global

soterrados
na terra plana
carcomidos
despossuídos
uns dos outros
derrubados
no chão queimado

onde não mais cabe


o terno ser humano
hoje só se sabe
do desumano terreno
de combate
terra de guerra

***

quisera andar na terra


onde a terra se ergue floresta
gesta de todo húmus
que ali produza
sonhos fantasias reais
livres sempre humanos
entre ficar e partir
e repartir
poder dentro dela
fazer o encontro e fuga
entre céu e terra
uma nova criatura

poder dizer de mim


de nós
a mesma voz

essa é nossa Terra


nossa casa
nosso jardim
nosso vaso na janela
nossa oca
nossa roça
nossa árvore na calçada
nossa floresta
nosso rio
nossa embarcação
nossa imagem e semelhança
nosso irmão nossa irmã
nosso universo
nosso verso
nunca nosso adverso
nas esferas dessa Terra

***

porém essa Terra plana


que querem nos impor
já não é de toda criação
é de alguns poucos
donos da razão do capital

Terra plana
Terra plana
em seu todo campo
de concentração
se corporifica
toda ideia concentrada
na escravidão
em sua rede de mentes robôs
por fios invisíveis
pelas raízes de algorítmos
aviltantes invasores
nos interligando a um
distópico plano
da Terra plana

***

a pá lavra o vento
dessa terra plana
que desinvento

tecendo a fantasia
humana
de um tempo

futuro guardado
no passado
onde procuro

a harmonia
daquele mundo
girando sem planos

quase sem enganos


redondo...girando...
e de uma ponta a outra

atravessando avessas
criaturas de sonhos:
em pé ou de ponta cabeça

arrastando histórias
em figuras de roupas
coloridas e risonhas

desfiando as horas
muitas, agora poucas,
e catando as sobras

em grãos de poeira
trazendo na pá
a lavra do poema.
DEUS PLANTA

a planta Deus
suas raízes
o pai a mãe o filho a filha
florando sonhos ossos
no jardim
do cosmos

dentro de nós
cantam
girassóis crianças
plantando manhãs
galáxias em arco-íris
soltas notas musicaos
em brilhos sonantes
longe se vê ouve
a tanta força do silêncio

a crescente planta Deus


encarna pétalas
de estrelas
até o fundo do fogo
fungos de gases
devorando expelindo
lavas luas
raias de olhos
orbitando
viajando vigiando

a noite extensa intensa


onde mal cabe
seu sono
no expandido
útero mãe Terra

a planta Deus
é a palavra e sua gesta
na dança oculta
da semente
DEUS

que Deus é o seu


mora em que céu
em qual inferno
é de hoje
é do eterno?

voa com botas


anda com asas
se o perdes
nem notas?...
se o encontra
nele te achas?
nele te acodes
dele tu foges?
nele te escondes?

por que Deus


assusta os seus?
porque os seus
espantam o Deus
do outro?

deuses poetas
deuses profetas
que Deus lhes deu
a Palavra?

a Palavra é Deus
e as palavras
são Deusas?

Deus dança na selva


com seus índios
e seus ritmos?

Deus dança e canta


seus quânticos
lances de dados
com seus algoritmos?

Deus é deuses?
deuses são Deus?
que Deus é esse
DeusConhecido?
RODAVENTO

rodavento
na boca da seca
o ninho d’água
rodopia no poço
é o pensamento
em alvoroço
querendo voar
palavras que vêm
de ecos silenciosos
abrindo outros poços
de sentimentos

se passo por você


negra lua
vejo logo a luz
da pele escura
lembrando além
das lendas
astrais
dos seus e nossos
ancentrais

chegando banhados
de cores vertidas
em feitiços
de penas enfeitados
pés na terra em giros
de danças cantos gritos
possuídos de pássaros
deuses e demônios
chegando dos sonhos

hoje orfeu do asfalto


sem camafeu
não evoco
nem convoco
tantos santos e deuses
mas não reprovo
abrindo deserto
no mar aberto
sou arauto
do Deus único

que entre muitos


morre assassinado
a cada minuto
na vã e corrupta
idolatria
do consumo
do distorcido evangelho

aqui o inevitável velho


com a mente
quase vazia
deixa fluir a poesia
nesse rio corrente
e me desvencilho
de traumas
a alma é o beco
do céu onde vejo
seu filho nascendo

para crer e ser


o que venha
da Libertação
levando a bandeira
do Amor
de todas as cores
a compor
uma nova canção
RESSURREIÇÃO

do som que assim


silencio aqui
súbito alcanço
o percurso da algazarra
vinda onda a onda
que narra
o que me levando
me leva nela
longe dela
dentro dela
soo o silêncio
chama de vela
palavra que é ave
me chama
me cava
até a voz
que me fale:
- voe!
toque as partículas
soe as sílabas
notas
dessa música
quando enquanto
eco ando
aqui a sós
num resto de silêncio
num resto de voz
onde falarei
por mim e por fim
para quem quiser
ouvir
na palavra que destravo
leve luz resvalo

mas não quero


mais do que mereço
a folha
sabe o que peço
quando passa
me olha
meu poema acolhe
sem maus
nem bens
sem mais
nem menos
e se deixa levar
e em mim ficar
entre tantos
desnudos
sacrificados na cruz
da poesia
e sua luz
ressurreta
eis o poeta

armado
da palavra
BURACOS

meu poema só quer achar


a passagem misteriosa
o buraco
no qual cairá cairei
para o outro mundo

pode ser aquele buraco negro


mergulhado na luz
do horizonte de eventos

buraco da boca do silêncio


dos autistas
que falam todas as línguas
e cantam todas as músicas

buraco da cabeça de Deus


que está
em todas as cabeças

buraco do poço d’água da infância


de onde lá do fundo escuro
subia água clarinha
como manhã de sol

buracos quânticos
como dizem os teóricos
estão constelando ao nosso redor
sem que saibamos
mas sabemos que estão por aí
dançando à nossa volta

caído aqui fora


quem sabe
o poema já está dentro dele
construindo outros mundos
outras vidas outros seres
SONANTE

deixo que os sons


me apurem os ouvidos –
cantos de galos
e bentevis em acordes

se agora dorme
e me morde o sonho
não o acorde

aqui e ali arrumo


os enganos
nos quais tropeço
e meço os danos

alguem me dizia:
fantasia é ilusão
utopia é esperança

com razão
a poesia
é uma
criança de rua

nela fisgo
recolho
seus sonhos mendigos

e trago
para que escutem
suas vozes
em risos ruidosas
SONANTE II

ruídos do silêncio
falam mais do que penso –
a mudez dispenso.

palavras amam-se
mas cuidado
palavras tramam-se

o que é essência
pode ser excrescência
esse som enviesado

***

mas nenhum conflito:


a barriga da alma
abriga
o corpo do espírito
SONANTE III

palavras se descon
versam
o que querem
erram
emperram

o que querem ser


em som
ao abrirem o tampo
do tempo apontam

para o sonho
quando menos se espera
não desespera
lixa que lixa
capricha
e se vê remexendo
rabo cortado de largatixa

rasteja
na terra do céu caído
caiado de rudeza

até que se desgrude


de si que ruge
em silêncio
e se transmute ao que sou

isso tudo tenho


é o que doo –
de onde venho?

do meu lugar de fala


o lá
da palavra
ANJO

ao poeta para que serve


discutir o sexo dos anjos –
basta que verse.

a língua
como anjo voa
não explica.

à poesia
um dever –
ver de cima

verde
que te quero
ver-te

e voar
pisar
anagramas
CAMALEÃO

caminhante recluso
pelos lugares da mente
o poeta
em pensamento
se contorcendo
de cor em cor
escorrega pelo dia e noite
saindo pela
ramagem ocular
entre galhos
atenta a língua
fareja o ar
com olfato longínquo
oblíquo olholuar
espia poesia
dentro de si
deslizando lá
descreVendo cá
pelo espaço e tempo
imãs ancestrais
nascidos há milênios
– quem veio primeiro?

terá sido eu agora


nesses mínimos sonhos
camuflados?
SOMBRAS

poema – venho
das palavras
que desconheço

como a sombra primeira


encontrando a criança
e se entrevendo
não sabe quem
vem de quem
quem foge de quem

sem medo
ambas brincam
de esconde esconde
sem se acharem
fugindo uma da outra

quando então:
a criança adulta
se esconde na sombra

é quando se vê
e se assusta.

***

todo corte
inteiro
é tudo sol
ombra
O MENINO QUE DESCOBRIU O VENTO
Poema de um filme.

soletrando a pele da seca


por metragem das margens do sol
molhando os rios da colheita

enfarinhadas de sacas de fome


de injustiças descasos e violências
deixando a gravidez morta no barro

mas o fogo nasce de dentro


da pedra semente no coração vaso
de um moleque resiliente

dentro de si o devotado sonhador


não compreende as passagens
em seus céus de percursos

mas supera os infernos


em seus turnos
de atalhos bloqueados

a vida não pode engolir a vida


do ventre em que foi gerado
na aérea roda do ar está a escrita

que pode ser o invento


de puxar a energia invisível
do fundo da terra

para espraiar o plantio


de esperança
por infinita gleba
RESQUÍCIOS DO CURTA METRAGEM
O Menino que lia cartas

o menino que lia e escrevia sonhos


o papel era o tecido
de um vestido
pendurado no cabide da espera

o lápis é a agulha
que a esperança rascunha

a carta não enviada


foi a que chegou antes
no coração
STALKER – uma releitura do filme de Andrei Tarkovski

escuro tempo
num túnel mundo desabado
meteoro rondando ameaçador
ferro de barro despejando
nuvens de lama
asa de rocha mergulhando
no trilhos de águas
das cabeças imprevistas
bolhas de sementes crepitam
um deserto de águas brotando
dentro da zona do quarto
pisando na grama
andamos os pés enterrados no lago
de sombras movediças
de joelhos no chão do rio
encontrei a voz
da manhã em oração
ondas se erguem em vozerio
de peixes sedentos
sobre os cacos de ruídos
uivando dos pelos latidos
do cão tremebundo na tubulação
mas há um mistério de vida
na menina esperança
correndo no futuro
sobre os trilhos da fé
bebendo no copo da última música
NO AVESSO DA PELE
Sobre o livro de Jefferson Tenório

a marca da cor
do poema
as palavras
são pretas
como a pele
e queimam

o pelo da poesia
é ar
invisível olhar
de dentro
do inquieto vento

brisa e ventania
a contrapelo
a pele e seu avesso
são o mesmo espelho
que da janela reflete
o avesso da pele
PERGUNTA

por que a cor do humano


é desacordo
para a convivência?
AVISO

a pele que repeles


feito corpo espinho
crescerá em torno

de ti, num abraço


de terno sufoco
MILTON
Entrevista imaginária

milton
você não é daqui
você vem de onde
de que planeta sonho?
você trouxe seus amigos
seus bichos
suas estrelas
para nos encantar
cantar cantar cantar
qualquer dia amigo
a gente vai se encontrar
nos bailes da vida
caçadores de nós
corações civis
nos encontros
e despedidas
GERA CIRCO
Em memória da atriz Edna Rosa
Integrante da Cia. Gera Circo
que partiu em 12.03.2022
mas sem antes tirar seus sonhos
da cartola mágica da vida.

o mundo é circo
onde Deus jogou dentro a Vida

e a Vida
é feita de palavras
que se viram reviram
se põe em raras fantasias

espécies que não cessam


de viver e reviver
acrobacias
saltos mortais
magias
palhaçadas

nesse devir
ir e vir
de ver rever

Sonho e Realidade
se trançam as pernas
no trapézio
saltam no vazio nada
jogados no ar
sem cama elástica
sem rede de segrança

guardados no riso espanto


das crianças e dos velhos
encantando mistérios

no contorcionismo
da bailarina incerta
a poesia
nos braços
do malabarista palhaço
aquele a quem chamam – poeta

no fundo
o que Deus quer do mundo
é a alegria do viver criança
nesse picadeiro
onde o tigre e o jumento
jun tos
num mesmo cumprimento
ao respeitável público

a pata do elefante
no peito do domador
numa mútua confiança
de amor

e o globo sem morte


seja a Terra
sem cortes
sem guerras
CADEADO

o cadeado emperrado
a chave não entra
vejo que o céu
continua longe
desde a infância
quando a velhice
ainda caminhava
despercebida

contudo hoje vi
a passagem é curta
ou senão imediata
FAMÍLIA

a família
bem sabe
sou o que dizem

e o que não dizem


sou muito mais

mas pelo que sei


não tive jeito
no que me quis ser

sou poeta
com muito de feito
MARILDA

mira no mar
de amor
de marilda
vinda em Vida

luz que irradia


dia a dia
para minha
sua e nossa

prosa poesia
desentendendo
nos entendemos
o que tem
de ser
sempre será

sua força
minha fraqueza
nessa leve pena
nos escrevendo
ÁGUA ACESA
Ao meu mano Juarez Reinaldo de Lima

vejo a vela
queimando em lágrimas
e a água acesa

derramando luz
nos lugares clareando
uma voz ventando

saindo dos olhos


um jeito de ser
na terra de todos nós

um rio vivendo
pela raiz da fé
germinando oásis

trazendo refrigério
em tudo mais
que dizes em sua vivência

e que pouco ou nada


posso dizer
em minhas metáforas
MATRIARCA
Em memória de Martha Prado de Lima

a casa maior
era a mãe
e toda a sua manhã

estendida no amor
para abrigar
a quem chegasse

e o primeiro abraço
foi para os dois irmãos
depois três em um coração

aconchegaram de seu ventre


as manas Eglair, Egler e Elci
para todo o sempre
CONFRARIA DA PALAVRA
Aos amigos Eliane Tavelli, Luci Goshima, Leila Rodrigues, Leila Guedes, Patrícia
Oliveira, Carlos Augusto, Eliz Ferreira, Alexandre Alves, Maria Cristina, Cris Novaes,
Mônica Bastos, Rita Morais, André Schulle, João Nery, Adriana Monteiro

andarilhos exploradores
de uma confraria
de imaginadores

caminham
nas sendas dos livros
trilham uma e outra

folha solta
da árvore dos signos
tocando os sinos

o tempo da ilha
nos conduz
pela eterna idade

o dia a dia rodopia


na manhã da lua
no olho da coruja

histórias tecidas
nos corpos dentro e fora
acontecendo na pele do fogo

nos cosmos dos deuses


e anjos desenhados
nos cadernos das crianças

em lendas e histórias
documentadas
nas páginas das pedras

onde aranhas emendam teias


taturanas rasteiam
escritas nas cavernas

gruídos indecifráveis
fraseiam sons nas rochas
buscando silêncios

da sombra da chamas
as curvas ilustram
futuras imagens
e aqui chegamos
nas telas de computadores
postos holograficamente

traçando a jornada do livro


seguem os andarilhos
à caça do mito de Joseph Campbell

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