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I.

Me arrisco a escrever sobrevoos


Luz do sol, luz, lusco-fusco
Avião perfurando as nuvens
risos infantis

Me arrisco um voo
na areia, às pegadas de um tempo feliz
de amores, de sonhos
sem palavra alguma para ser dita

Animal arisco
noite de estrelas que riem
um amigo eterno
tesouros no peito que amamos sem precisar de palavras
um abraço em que cabem universos.
II.
Taxidermia elementar no café da manhã,
fios de lembranças esquecidas na fumaça do holocausto nuclear
a náusea cotidiana
cartas de amor escritas com sangue
anorexia e retardamentos mentais na esquina
a marcha do progresso que progride
A marcas do sucesso sucessivo
paranoias sucessivas
obsessões paralelas
a sombra do caminho do eclipse lunar e solar se dissolvem
sucessivos ataques de riso
paraísos perdidos
paraísos de ópio recuperados
bunkers de ácido são soluções simples
estorvos fora do caminho,
estorvos esquecidos
estorvos que não estorvarão mais
entulhos que não turvarão mais
amores que não retornarão mais
III.
As luzes brancas da cela da prisão deixam cair as penas dos dias irremediáveis
O gosto na boca do pão de cloro
No estômago, o bronze das horas
no muro, sombras de bichos rastejantes
O tempo é o circuito do relógio seguindo seu curso
Os galhos da laranjeira atravessam o portão de memórias
Nos dentes, a lâmina do sacrifício
Ao longe, as cigarras asfixiadas oram adeus pelo nevoeiro
O cão de caça procura os sonhos
os vermes se refazem, se refesseram
o indissolúvel se dissolve nas frestas da tarde
em carmesim, as pétalas carbonizadas
os dias mais doces devorados no ato
IV.
Eu sei que há o momento do mormaço e do cansaço
Estou cansado de flutuar
Minha alma se desfaz com a fumaça do café
Penso em mim e nos meus trilhos da tarde quebrada
mas sem autopiedade
Me imagino morrendo de mil formas diferentes
e meu corpo estourando em pus debaixo da terra.
Cada célula contém em si a energia de uma bomba H
Cada segundo contém em si a esperança de um sonho
Cada beijo
cada espera, a potência de não existir nunca mais
V.
Nunca mais alguém para amar
nunca mais tinta para derramar carícias de um coração feito em pedaços
nunca mais atinos
nunca mais tempos antigos
nunca mais o vidro
nunca mais os vestígios
nunca mais os outonos da alma
nunca mais.
VI.
É um sábado de mormaço da tarde leve
no laranjal me perco em sonhos de jovem
na varanda dos sóis das guitarras e dos sons de chocalhos da alameda
de serpentes vis e sorrateiras escondendo o perfume, a cera e a casca
entre as folhas secas do caminho do sonho
É tarde e Dire Straits toca na vitrola dos meus defuntos favoritos
em mil anos não poderei encontrar o caminho de volta
estou sem saída e sem volta aos tabloides de assassinato sem solução
em vinte anos comprarei um aquário e me resignarei como um peixe
Um peixe que encontrou a felicidade nas mãos de seu provedor descuidado
sinto medo nos acordes dos cogumelos atômicos da república de amores fracassados
É estúpido raciocinar com o corpo das horas
pois o nunca é agora
VII.
Lendo estorvo e Benjamim num dia calmo que nunca chove
nos sonhos de menino sem chances de se reencontrar consigo mesmo
mesmo se uma máquina do tempo levasse você pelos personagens da tv que você
criou
nada se compara ao que você se transformou
Kafka Nem imagina a coisa que habita em seus labirintos nos sábados à noite
ou quando você resolve se apaixonar
um dia talvez você compreenda a falta que amores mortos fazem, mas não hoje
sobretudo amores gentis de pessoas gentis em um mundo autopiedoso
Um mundo sem futuro, sem legenda, sem ambição no escuro
do outro lado
o avesso das coisas
do sol, das trombetas, dos anjos colossais, de cabelos ruivos pintados com o sangue
até o freio dos cavalos em mil estádios
de músicas de conforto e danças de conforto
de Kali rezando por seus filhos tempestuosos
amém e amém
VIII.
É fácil, é fácil, é fácil
dizem os tambores de Marduk
festejam os rouxinóis ante o amor das medusas
e seus cabelos esvoaçam ao vento

é tão lindo, e lindo e lindo


dizem os querubins de Deus
derrubando leite e especiarias
é fácil, é dócil, é verão.
IX.
É só no limiar das coisas que eu existo
no luminar da luz que teimo em aparecer
No toque da luz é que revelo os objetos obscuros
E onde deixo transparecer meus sonhos mais profundos
o que não dizemos
o dedo que não estiamos
O grito que não lutamos
a faca cortando a carne
E a pena escrevendo poemas que não deveriam ser vistos
que ninguém irá ler em um século ou mais
até ser tarde demais,
é sempre tarde demais
através do vidro e das almas das pessoas através da multidão
um soluço que não é solução
dissolvido na complacência das massas
que clamam ao carrasco uma morte que elas mesmas mereceriam
Uma morte violenta a que elas não estão dispostas
Ecoando ao coração da estrela mais próxima
no coração da cidade sonâmbula
Dorme o poeta e o profeta
Sem boas novas, ou sem nenhuma nova
ao pé da montanha dos delírios indecifráveis
apelos surdos, cegos
suicídios

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