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RODRIGUES, FRANCISCO XAVIER F. Pierre Bourdieu: esquema analítico e contribuição...
questões empíricas do futebol, procurando mos- dos corpos. Nesse sentido, o fenômeno esportivo
trar as possibilidades de aplicação de conceitos também é um vetor que nos permite perceber e
na construção de uma teoria do conhecimento analisar a formação do habitus. O esporte pode
na sociologia do esporte. A quarta e última parte ser entendido como um campo específico da vida
apresenta algumas considerações finais. moderna. Trata-se de um espaço social relati-
vamente autônomo, com regras de funcio-
2 O esquema analítico de Pierre Bourdieu namento, tendo atores sociais interessados em
definir essas regras e os valores dominantes.
A proposta sociológica de Pierre Bourdieu Mesmo sendo utilizada para orientar
(1998; 1995) permite-nos pensar a produção do pesquisas sobre o esporte, é válido ressaltar que
corpo com base na história incorporada pelas os jogos e as modalidades esportivas ocupam
disposições. A categoria habitus é capital nesse um pequeno espaço na teoria sociológica de
empreendimento, pois nos possibilita entender a Bourdieu. Pode-se até mesmo afirmar que o
corporificação da história, ou seja, a interna- esporte é apenas um subcampo na teoria
lização desta nos corpos dos indivíduos. Utili- sociológica desse importante sociólogo francês.
zando-se da categoria habitus, Bourdieu (1998; O esporte aparece na obra de Bourdieu talvez
1996) trata do papel do corpo no processo de muito mais pelo fato de que a teoria do campo
socialização do sujeito, preocupado em entender permite pensar o esporte como uma área
como as estruturas sociais, dentro de deter- relativamente autônoma, dotada de regras e
minadas condições sociais e históricas especí- atores sociais com interesses em disputar poder.
ficas, moldam o corpo do indivíduo, inscrevendo- Conforme Vaugrand (2001, p. 184): “This, of
lhes valores, significados e regras de conduta. course, is because of the theory of habitus,
Bourdieu (1998) considera que a dimensão which gives a great importance to human
cultural tem um importante papel na produção e bodies, even if sport is only a subfield in
manutenção de uma estrutura social dividida em Bourdieu’s theory”.
classes superiores e inferiores. Daí ser impor- A proposta analítica de Bourdieu para as
tante entender eventuais relações entre os temas práticas esportivas pode ser dividida em dois
da cultura, da dominação e da desigualdade na esquemas diferentes: (1) o esquema funcional
sociedade capitalista. Na análise de Bourdieu e (2) o esquema estrutural. Caracterizaremos a
(1998) acerca da dominação (esta como impo- seguir cada um desses esquemas.
sição de uma ordem simbólica dominante), a
relação entre a estrutura social e a posição ocu-
pada pelos atores sociais no sistema social ganha 2.1 Esquema funcional
um destaque especial. Os dominados são aque- As proposições de Bourdieu (1983; 1988;
les que têm vozes silenciadas e, às vezes, nem 1993; 1994; 1995; 1998) sobre as atividades
têm condições de participar ativamente da produ- desportivas, assim como as referentes a outros
ção simbólica, pois são moldados pelas estruturas campos de relação e fenômenos sociais, são
e valores dominantes. situadas dentro de um esquema estrutural-
Para Bourdieu, funcionalista. A cultura, em particular, tem uma
função importante. A cultura tende a funcionar
Os que ocupam as posições dominadas no
no sentido de preservar e reproduzir uma ordem
espaço social estão também em posições
social existente por meio da conservação e
dominadas no campo de produção simbólica e
não se vê de onde lhes poderiam vir os manutenção das posições e divisões no espaço
instrumentos de produção simbólica de que social e, mais particularmente, ela abriga
necessitam para exprimirem o seu próprio ponto posições dominantes. Mesmo sendo um fenô-
de vista sobre o social. (Bourdieu, 1998, p. 152) meno que pertence também à esfera cultural, o
esporte não necessariamente tem a função de
O esporte ocupa um importante lugar na preservar e reproduzir uma determinada ordem
sociedade moderna, seja na estruturação dos social. O esporte não aparece no pensamento
espaços e posições sociais, seja na construção de Bourdieu claramente como um vetor domi-
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a burguesa, que tem preocupações estéticas Na hipótese de Bourdieu (1988), que liga
associadas à pratica esportiva, isso na busca da espaço esportivo e espaço social, há outros dois
construção e conservação de um corpo consi- espaços em uma relação praticamente homó-
derado socialmente “bonito” (sadio e muscu- loga, sendo as atividades esportivas, de um lado
loso), e que existe uma outra classe social, a (demanda), e os programas esportivos (oferta),
denominada classe popular, que tem na prática por outro lado. De acordo com essa hipótese, é
esportiva a tentativa de obtenção de uma necessário considerar que
compensação psíquica ou um mecanismo de
ascensão social por meio da profissionalização […] brings two other spaces into a homolo-
no esporte. gous relation — the sport activities on the
one hand (demand), and the sporting pro-
Bourdieu sugere a seguinte hipótese geral:
grammes on the other (supply). The possible
há uma homologia entre o espaço social e o limit is in the number of items, especially in
espaço das práticas esportivas. Com isso, o autor the number of pairs of opposing items (the
advoga que existem relações entre as posições finite number of which limit an investigation).
ocupadas pelos indivíduos no espaço social e a Replicating the work of Jean-Paul Clément,
preferência por determinadas práticas espor- Bourdieu (1988) demonstrated that the
tivas. Vejam as palavras de Bourdieu: internal contrasts in sporting activities such
as judo, wrestling and aikido can be asso-
ciated with significant characteristics in a
A correspondência, que é uma verdadeira
number of particular positions in social space.
homologia, é estabelecida entre o espaço das
In fighting sports, the contrast between ‘body-
práticas esportivas, ou, mais precisamente, o
to-body’ and ‘virility’ on the one hand, and
espaço das modalidades diferentes finamente
‘distanced’ and ‘light’ on the other (1988:
analisadas da prática de jogo esportivos
154), shows a connection with the body which
diferentes, e o espaço de posições sociais. Está stems from important economic and cultural
na relação entre estes dois espaços que as pro- capitals and tends to link practices to parti-
priedades pertinentes de cada prática esportiva cular dominant relations in the world which
estão definidas. (Bourdieu, 1988, p. 154) establish an important protective distance (for
example, use of the sabre prevents hand-to-
Na verdade, essa hipótese sugere que há hand fighting), and a reduction in violence
correspondência entre o espaço das práticas (which, for example, ensures possible practice
esportivas e o espaço das posições sociais, sendo of aikido at an older age, with a reduced
a relação entre esses espaços que define as possibility of trauma). (Vaugrand , 2001, p. 187)
propriedades de cada prática esportiva.
Bourdieu ainda apresenta outra hipótese: Percebe-se que Bourdieu (1988) procurou
explicitar que alguns contrastes internos em
Práticas esportivas [...] podem ser descritas determinadas práticas esportivas (tomando
como o resultado da relação entre uma oferta e como exemplos judô, lutas e aikido) podem ser
uma demanda, ou, mais precisamente, entre o relacionados com características importantes
espaço dos produtos oferecidos em um em diversas posições específicas no espaço
determinado momento e o espaço de dispo- social.
sições (associado com a posição ocupada no
espaço social) e que se expressa provavel-
mente em outro consumo em conexão com outra
3 Campo esportivo e habitus:
demanda espacial. (Bourdieu, 1988, p. 155) operacionalizando a teoria de Bourdieu
3.1 O futebol e a teoria dos campos
As práticas esportivas seriam o resultado
da relação entre oferta e procura, ou seja, Tendo em mente o esquema analítico
produto da relação entre o espaço dos produtos apresentado anteriormente, pode-se dizer que
oferecidos (em um determinado momento) e o Pierre Bourdieu fornece-nos elementos para
espaço das disposições (associado com a pensar o esporte moderno (o futebol) como uma
posição ocupada no espaço social). esfera específica da vida social. Seus conceitos
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e na preparação física. Parecia que o nosso entretenimento que deve ser regulado pelas leis
futebol-arte estava ultrapassado diante da do mercado. O ministério decretou um sistema
eficiência física e tática do futebol-força. Este rigoroso de fiscalização e prestação de contas
consistia em dotar os atletas de elevado preparo por parte dos clubes) e os clubes (interessados
físico, sem cansaço, para ocupar o campo e em manter o sistema anterior, clubes como
anular o estilo sul-americano de jogar futebol. associações sem fins lucrativos) (Rodrigues,
O futebol moderno é feito de força, velocidade 2003b; Proni, 2000).
e resistência. Segundo Gil (1994, p. 107), a partir A profissionalização do jogador de futebol
de 1978 duas correntes de pensamento confron- é um processo de racionalização, diferenciação
taram-se no campo futebolístico brasileiro: (a) social e consolidação de um campo de trabalho
uma de orientação esquerdista, apoiada por específico e relativamente autônomo. A análise
João Saldanha, Nelson Rodrigues, torcedores e do processo de emergência e consolidação do
outros adeptos do futebol romântico, que futebol como um campo específico no esporte
desejava o retorno do futebol-arte na seleção brasileiro pode ser um belo exercício de opera-
brasileira (futebol alegre, de dribles, improviso, cionalização do conceito de campo. As lutas que
malandragem, magia) e criticava a imitação de possibilitaram o advento do futebol profissional
modelos e esquemas europeus de jogar futebol no Brasil nas primeiras décadas do século XX
(o futebol-força); (b) e outra que defendia são elementos da autonomização do campo
nossa integração ao futebol-força, uma forma futebolístico brasileiro (1894-1933). A consti-
de modernização do futebol brasileiro e sua tuição de um mercado de trabalho no futebol
inserção da elite do futebol mundial, por meio brasileiro consolida-se somente na década de
da adoção de um estilo racional, pragmático, 1930, quando a profissionalização é institu-
competitivo. Nessa corrente, encontram-se cionalizada. É nesse momento que surge um
técnicos estudiosos do futebol europeu, como mercado produtor e consumidor de futebol
Admildo Chirol, Cláudio Coutinho e Carlos organizado. Assim, a autonomia, a racionalização
Alberto Parreira, defensores da importação de e a especialização do campo futebolístico
modelos/estilos europeus. Na verdade, o debate resultam de um conjunto de conflitos entre duas
acima mencionado pode ser pensado com base ideologias: a do amadorismo e a do profis-
na velha oposição entre tradição e modernidade, sionalismo. A primeira era defendida pela elite,
sendo o futebol-arte um aspecto tradicional e o a qual tinha no futebol apenas um tipo de lazer.
futebol-força um elemento da modernidade. A elite praticava o futebol “puro”, símbolo de
O conceito de campo permite-nos ainda distinção social, um passatempo, um tipo de lazer,
investigar a superação do associacionismo como sem preocupações materiais (no futebol amador
forma de organização dos clubes e o advento nos anos 20 vencer uma partida não significava
do futebol-empresa. A Lei Zico (Lei no 8.672/ lucros, atração de patrocínios e investimentos,
93) estabeleceu a obrigatoriedade de os clubes nem os praticantes do futebol eram remunerados
transformarem-se em empresas, mas alguns para jogar). O futebol amador seria desvinculado
dirigentes esportivos, como Eurico Miranda, de interesses econômicos. Trata-se de um dos
Fábio Koff, entre outros, posicionaram-se pólos que marcaram o debate na sociologia do
contra, pois defendiam a manutenção do regime esporte entre “esporte de alto rendimento” e
de organização dos clubes de futebol como “esporte lazer”, entre jogo e esporte.
entidades futebolísticas não-comerciais, asso- A segunda ideologia era defendida pelos
ciações esportivas e/ou filantrópicas, livres de jogadores-operários, pressionando pela profis-
fiscalizações do governo. Na verdade, dois sionalização. Os jogadores de futebol eram
atores enfrentavam-se e enfrentam-se: governo trabalhadores, exerciam outras atividades além
(por meio do Ministério dos Esportes, defensor do futebol, pois não eram profissionais. Aqui vale
do fim da filantropia no futebol brasileiro, sob o lembrar dois exemplos clássicos de jogador-
argumento de que o incentivo estatal e as operário: Garrincha e Tesourinha. O primeiro
isenções fiscais seriam anacronismos, pois o começou sua carreira futebolística no Sport Club
futebol é um produto da indústria cultural de Pau Grande em 1949, time organizado pelos
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operários da tecelagem Cia. América Fabril de se o mesmo com a esfera cultural, retratada por
Pau Grande no Rio de Janeiro (Antunes, 1994, Bourdieu (1999). Consideramos que: (a) o futebol
p. 109; Castro 1995). Além de receber o salário ganha um mercado produtor: os jogadores e
como operário, ganhava presentes e gratifi- empresários que organizam o espetáculo tor-
cações como segundo salário. É ilustrativo por nam-se profissionais que instituem normas e
demais o caso de Tesourinha, um dos grandes regras para gerenciar esse negócio como um
jogadores do SC Internacional na década de ramo da indústria cultural, pertencente ao setor
1940. Ao assinar seu primeiro contrato profis- de serviços de entretenimento – multiplicam-se
sional por 200$000 mensais e mais dois litros de as instâncias de legitimação da prática fute-
leite e um quilo de carne diariamente, Tesourinha bolística (clubes, associações, confederações,
continuou no seu antigo emprego de artífice de ligas, federações) e de difusão do futebol (a
armeiro na Brigada Militar (Ostermann, 1999, imprensa); (b) emerge um mercado consumidor
p. 46). Os jogadores não viviam da profissão do do produto futebol: os torcedores pagam para
futebol exatamente porque não havia um campo ver o espetáculo e compram os produtos que
futebolístico autônomo de outras esferas sociais. levam as marcas dos clubes (Rodrigues, 2003a,
Em 1933, a profissionalização finalmente 2002a).
ocorre. A partir daí constitui-se um novo e Com a produção do futebol para o mercado,
promissor mercado de trabalho no Brasil.1 Os o futebol amador restringe-se a determinados
dirigentes esportivos agora têm o poder de tomar setores sociais. O elitismo também chega ao seu
decisões e legislar sobre o futebol. É também fim. A legitimidade do futebol parece derivar
nesse período que o jogador surge como um dos próprios organizadores, que ganham autono-
trabalhador que vive da carreira no futebol. As mia para criar normas, leis, decidir sobre regula-
lutas e os conflitos pela definição legítima da mentos e competições, sem levar em conta
prática futebolística podem ser entendidos como fatores externos. O campo futebolístico ganha
disputas por posições e imposições entre os contornos externos, tornando-se cada vez mais
defensores do amadorismo – “a elite tentando diferenciado e autônomo socialmente.
manter o privilégio de ser a única classe social
a praticar o futebol como forma de lazer”
3.2 Transformações na legislação do
(Caldas,1990, p. 59) – e a classe operária, adepta
campo futebolístico brasileiro: atores,
do profissionalismo, tentando institucionalizar o
disputas e o fim do passe
futebol como uma profissão. Essa oposição
amadorismo/profissionalismo configura-se como O futebol brasileiro pode ser entendido
um conflito de classes. como um subcampo do campo esportivo.
A autonomização do futebol, entendida aqui Considerando a noção de campo de Bourdieu,
como a formação de um campo, consolida-se entendemos que os principais atores (dotados
com o processo de profissionalização, momento de interesses em impor suas percepções, visões
no qual o futebol constitui uma esfera relati- e padrões de classificação) do campo futebo-
vamente separada da economia; os jogadores- lístico brasileiro são as instituições reguladoras
operários transformam-se em trabalhadores do (Ministério dos Esportes, CBF, federações esta-
futebol. Podemos até comparar o jogador com duais de futebol), clubes, empresários e joga-
um artista, produtor de bens culturais, livres de dores. Abordaremos aqui brevemente as dispu-
outras preocupações materiais, pois sua profis- tas, as lutas e os conflitos em torno do fim do
são lhe garante emancipação financeira. passe no futebol brasileiro, descrevendo e anali-
A organização do futebol agora deixa de sando algumas posições dos atores envolvidos.
ser negócio da elite política. Na realidade, deu- Da mesma forma que o estabelecimento
do “bicho”2 pelo Vasco da Gama em 1923 tor-
1. Para uma análise do processo de profissionalização do
futebol no Brasil, ver RODRIGUES, F. X. F. A sociologia
das profissões e a sociologia do esporte: profissionalização 2. Quantia em dinheiro paga aos jogadores como premiação
e mercado de trabalho no futebol gaúcho. In: ENCONTRO por vitórias. É muito comum após a conquista de campeo-
ANUAL DA ANPOCS, 26, 2002. Anais... Caxambu/MG, natos. Para uma definição de “bicho”, com base na lingua-
2002. gem utilizada no início do século XX, ver Rosenfeld (1993).
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nou a profissionalização inevitável (Caldas, 1990, negociar melhor vai sair ganhando. (Proni, 2000,
p. 79-83), a Lei Pelé (Lei Pelé no 9.615/98, p. 200-1)
modificada pela Lei Pelé no 9.981/00) é o motor
do novo cenário de transformações no futebol O discurso acima representa a posição e
brasileiro, pois exige uma reestruturação aos os interesses de um dos atores estratégicos
moldes do futebol europeu, começando com a envolvidos nas disputas e nos conflitos em torno
flexibilização das relações de trabalho, ou seja, da nova legislação futebolística brasileira.
com o fim do passe (Proni, 2000). Percebe-se que determinados interesses estão
As transformações na legislação futebo- em jogo nesse campo. A análise das disputas
lística brasileira, nas últimas décadas do século em torno do fim do passe e pelo estabelecimento
XX, criaram condições para a emergência de dos novos critérios de contratação de jogadores
uma configuração pós-moderna (Giulianotti, e regulamentação do futebol brasileiro revela
que o Estado, os clubes, os empresários e os
2002) na organização e na produção do espe-
jogadores de futebol defendem interesses
táculo futebolístico em nosso país. Ocorreu a
divergentes.
liberalização nas transferências e nas relações
A visão de um dirigente da área sobre as
de trabalho no futebol, algo indicador das mudan-
mudanças na legislação do futebol brasileiro
ças no campo futebolístico brasileiro nos últimos
revela o que pensa esse segmento. Vejamos o
anos. O fim do passe representa uma faceta do
que diz o presidente da Federação Paulista de
sistema de acumulação flexível no futebol,
Futebol, Eduardo José Farah:
facilitando os contratos temporários e um reju-
venescimento da força de trabalho no futebol A Lei Pelé trouxe benefícios para o futebol, mas
brasileiro. O que, em outras palavras, pode ser há defeitos. A lei do passe, por exemplo. Não
o encurtamento da vida útil do atleta (Rodrigues, dá para os clubes investirem nos times se o
2003b, 2003c). jogador está regulado pela CLT. Como pagar
Dissemos em outro texto que “o discurso adicional noturno, horas extras, periculosidade,
defensor da lei do passe mostra uma sintonia por causa das viagens? É preciso uma legis-
lação específica, voltada para o futebol e que
com o neoliberalismo, modelo no qual o mercado
permita, também, a definição de uma multa
redefine as relações sociais de produção” rescisória, para não prejudicar os clubes que
(Rodrigues, 2003d, p. 89). Nesse sentido, é investem milhões em um jogador que pode
importante recuperar a opinião de Hélio Vianna, rescindir o contrato, pagar uma multa baixa,
o vice-presidente do Conselho Deliberativo do conforme a CLT, e ir embora. (Esporte S.A.!, 4
Idesp, na época da entrada em vigor da Lei Pelé. abr. 2000)
Ele defendia que o fim do passe viria acabar
com o paternalismo no futebol e modernizar as O dirigente, em defesa de interesses espe-
relações de trabalho e o sistema de transfe- cíficos, sugere alterações na legislação, tendo
rências de jogadores. em vista evitar eventuais perdas (sobretudo
financeiras) para os clubes com a formação de
Com a Lei, não vai ter mais clube vendendo jogadores. Percebe-se, em seu discurso, a defe-
jogador. Vai ser sempre como no caso do sa de uma legislação especial para o futebol,
Ronaldinho. O jogador recebe proposta melhor, pois considera que o futebol é uma modalidade
paga a multa e vai embora [...]. Não pode haver esportiva transformada em atividade industrial
paternalismo. Esse projeto não é para proteger de entretenimento que guarda muitas peculia-
jogador. É para colocar o futebol na moderni- ridades. Fica evidente aqui a idéia de autonomia
dade. [...], com os clubes-empresa, em um ano relativa desse campo diante de outros, princi-
somem os Euricos da vida. A relação vai ser
palmente quando se trata da regulamentação das
profissional. É claro que um ou outro [jogador]
vai assinar em branco. Mas depois aprende e relações e condições de trabalho. José Farah
não faz mais. [...] O mercado é sábio. Nele, os sugere que a profissão de jogador de futebol
jogadores são trabalhadores normais. Sem as não pode ser regulada pela CLT, pois é muito
leis especiais, a categoria vai crescer e vai se especial. Na verdade, outros interesses susten-
conscientizar. Como em toda parte, quem tam a posição do referido dirigente.
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Para compreendermos o habitus dos Outros fatores como o clima hostil – frio,
jogadores de futebol formados no SC Interna- chuvoso, etc. –, por extensão, os gramados
cional, é necessário um breve esclarecimento enlameados do interior do estado, exigiriam
mais ênfase na preparação física dos jogadores
acerca das peculiaridades do futebol do Rio
em detrimento da técnica e, conseqüentemente,
Grande do Sul, ou seja, algumas notas sobre o isso teria sido determinante para o estilo
contexto no qual se insere a escola de futebol diferenciado do futebol gaúcho, mais europeu
do referido clube gaúcho. e portenho do que propriamente brasileiro.
Sabe-se que, historicamente, o futebol do (Damo, 2002, p. 132)
Rio Grande do Sul tem sido caracterizado pela
disposição de luta, aplicação tática, pelo futebol- O autor argumenta que o tipo de clima do
força, pela marcação e pelo excessivo discipli- Rio Grande do Sul tem influência marcante na
namento. É consenso entre os especialistas em formação de um estilo de jogar futebol
futebol, sejam jornalistas (Ostermann, Falcão, diferenciado do restante do país, sendo muito
Casagrande), sejam acadêmicos (Toledo, 2002; mais próximo dos padrões de jogo do futebol
Damo, 2002; Leite Lopes, 1994; Rodrigues, europeu e dos demais países latino-americanos.
2003a) o fato de que o futebol gaúcho valoriza Concordamos com esse argumento, por acre-
demasiadamente a preparação física e a ditarmos que os fatores geográficos também
aplicação tática. Portanto, a “escola gaúcha” incidem sobre o tipo de jogador produzido na
de jogar futebol apresenta peculiaridades que a escola do SC Internacional, mesmo sem se
diferenciam das escolas “carioca”, “paulista” e tratar de determinismo geográfico. Pois somos
“baiana” (Toledo, 2002). A valentia e a força contra explicações monocausais baseadas no
são traços da identidade social gaúcha, atributos argumento do determinismo, seja ele geográfico,
historicamente valorizados pelos gaúchos. racial ou cultural. A idéia de considerar múltiplas
Levando em conta o que foi dito acima, pode- influências causais é mais importante nas
se dizer que o futebol é também um excelente explicações sociológicas.
tema para discutir a identidade regional. Pois, Os técnicos e os jogadores dos times
no futebol de cada estado, região ou nação, gaúchos argumentam que para se obter sucesso
inscrevem-se traços sociais típicos da identidade no campeonato estadual, quando se referem aos
social e cultural. Na verdade, o futebol é um clubes do interior, é necessária força, vontade e
produto cultural que tem regras universais, mas muita preparação física, pois os campos ruins
recebe um banho do caldo cultural das diferentes do interior e as constantes chuvas são obstáculos
regiões, estados e nações onde é praticado. Isso à habilidade e ao jogo leve, técnico. Com isso,
fica claro quando se fala em futebol alemão, procuram justificar o primado pela força e
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de jogo, a identidade e os esquemas de formação futebol brasileiro (novo jogador, novo tipo de
e trabalho do SC Internacional são “raça” (70%) empresário, de dirigente).
e disciplina (18%).
Consideramos necessário definir o que se 4 Considerações finais
entende por “raça” e disciplina na sociologia do
futebol. “Raça” é utilizada aqui no sentido de Este trabalho teve por objetivo descrever e
empenho, disposição para lutar, força de vontade, definir o esquema analítico de Bourdieu como
dedicação. Portanto, “raça” significa um pouco um dos principais paradigmas na sociologia do
de paixão e empenho em campo para buscar a esporte. Realizamos um exercício analítico
vitória. Esta paixão não é exatamente o amor à utilizando os conceitos de campo e habitus com
camisa nem a devoção ao clube. Mas “[...] se base na investigação de casos concretos no
refere à disposição que todo jogador precisa futebol brasileiro.
ter para lutar o máximo possível pela vitória das Temos consciência de que a natureza deste
‘cores’, quaisquer que elas sejam” (Araújo, 1980, trabalho não permite algo mais do que simples
p. 51). Raçudo é aquele jogador que luta, é herói, indicações gerais acerca dos temas e questões
joga mesmo contundido, arrisca sua forma física discutidos. As análises e interpretações elabo-
radas aqui são provisórias, não devem ser
para jogar pelo seu time. “Raça” está ligada
tomadas como conclusões, visto que nossa
também à coragem. “Raça” pode se tornar
pretensão era fazer um simples exercício.
violência quando levada ao extremo (Rodrigues,
Portanto, nossa reflexão deve ser entendida
2003a, p.167).
como indicações para trabalhos posteriores na
Disciplina significa obediência aos esque-
sociologia do esporte.
mas, aplicação técnica e tática, atender ao
Sintetizando, vimos que o esquema analítico
técnico e fazer o que foi ordenado. Trata-se
de Bourdieu pode ser dividido em dois: funcional
basicamente da aplicação tática, do jogo em e estrutural. Em ambos, podem-se analisar as
conjunto, no qual o grupo é maior do que o práticas e as modalidades esportivas como
indivíduo. O coletivo sobrepõe-se ao individual. campos especiais e relativamente autônomos
Disciplinamento também significa aprendizagem dos campos econômico, político, religioso e
de técnicas futebolísticas por meio de diferentes social. Entretanto, a perspectiva de Bourdieu
tipos de treinamentos pelos quais passam os sugere que há relações e associações entre o
jogadores. espaço social e o espaço do esporte, podendo
As transformações pelas quais está passan- haver homologia entre as posições ocupadas por
do o mercado futebolístico brasileiro permitem determinados atores sociais em ambos os espa-
perceber a emergência de um novo jogador de ços. Não se trata de determinismo estrutural.
futebol, dotado de um habitus típico do futebol Vimos também que o paradigma de
profissional, empresarial, burocrático. As mu- Bourdieu abre inúmeras possibilidades de aná-
danças no sistema de regulação das relações lises na sociologia do esporte, incluindo uma
de trabalho no futebol europeu criaram condi- variedade de temas. Os estilos de jogo, a profis-
ções para o advento de um jogador de futebol sionalização do jogador de futebol, o fim do
mais politizado, consciente de seus direitos e passe, a modernização, a flexibilização das rela-
participativo. O crescimento nos índices de ções de trabalho no futebol, as disputas adminis-
sindicalização dos jogadores na Europa e na trativas e organizacionais travadas nos clubes,
Argentina indica que o jogador de futebol da federações e governo são alguns dos temas que
era pós-moderna (Giulianotti, 2002, p. 9) é dotado podem ser investigados à luz da teoria de
de uma nova ética, um habitus profissional Bourdieu.
distinto dos comportamentos predominantes na Em suma, podemos assegurar que a pro-
época do associacionismo como padrão de posta analítica de Bourdieu para o esporte é um
organização dos clubes. Em nossa agenda de convite para pensar e investigar, de modo crítico,
pesquisa consta a tentativa de apreender e a economia, o Estado, a política e suas relações
analisar a construção desse novo habitus no com o esporte, a cultura e a vida cotidiana. Trata-
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se de fazer uma sociologia política do esporte e _____. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1995.
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