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Universidade Estadual de Maringá

12 a 14 de Junho de 2013

O CARÁTER EDUCACIONAL DA LEGISLAÇÃO PORTUGUESA


DO SÉCULO XVII

MONTAGNOLI, Gilmar Alves (UEM)


COSTA, Célio Juvenal (Orientador/UEM)

Introdução

Neste trabalho é analisado o que chamamos de caráter educacional das punições


previstas na legislação portuguesa do século XVII. Para tanto, é explorado o Livro V
(livro criminal) das Ordenações Filipinas, ordenamento jurídico que entrou em vigor no
ano de 1603 em todo Império português. Parte-se do pressuposto de que as penas
desempenhavam uma função pedagógica naquela sociedade uma vez que, por meio de
sua aplicação, os súditos internalizavam os valores eleitos socialmente.
Ao estudo proposto, um dos pontos a ser considerado é a associação da
representação real a questões religiosas. As Ordenações do reino deixam claro que todo
poder emana do rei, considerado a cabeça de um corpo, cujo poder provém de Deus.
Nesse sentido, chamar-se-á a atenção para alguns aspectos político-religiosos daquele
contexto, no caso do momento inicial da colonização da América Portuguesa, a ideia a
ser explorada é que os marcos teológicos cristãos, sedimentados ao longo da Idade
Média, justificavam a ordem social e o poder político (PAIVA, 2006).
A fim de entender essa lógica político-religiosa da época colonial, voltar-se-á às
suas origens, que remontam ao medievo, contexto em que havia a concepção de que o
rei tinha dois corpos, um natural e outro místico. O primeiro, essencialmente igual ao de
qualquer pessoa e sujeito às imperfeições de nascimento ou adquiridas, enquanto o
segundo seria perfeito e imortal (KANTOROWICZ, 1998). Resultado de uma
construção histórica, a doutrina mostra como conceitos utilizados pelos teólogos da
Idade Média para caracterizar a Igreja ou o próprio Cristo foram sendo lentamente
adaptados e transferidos da esfera religiosa para o campo da política e do direito.

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A ideia da pedagogia das penas será amparada nas considerações de Bartolomé


Benassar (1984), mais especificamente na discussão que realiza sobre o papel do Santo
Ofício e seus métodos no desenvolvimento daquilo que chama de “pédagogie de la
peur” (pedagogia do medo). Enfim, além de possibilitar a compreensão ampliada de
aspectos da sociedade estudada, a legislação é analisada em suas possibilidades
educacionais, uma vez que forjava modelos de comportamento.

Considerações históricas

Antes de discutirmos as legislações do período moderno, faz-se necessário,


ainda que brevemente, retomarmos aspectos da Baixa Idade Média, compreendida entre
os séculos XIII e XV, quando “[...] verifica-se uma mudança considerável na estrutura
da sociedade medieval” (GILISSEN, 2003, p. 239). O entendimento é que as
instituições feudo-vassálicas, ainda que tenham subsistido parcialmente até o fim do
Antigo Regime, passam então ao segundo plano, provocando a concentração e
consolidação do poder nas mãos de um número limitado de personagens (imperadores,
reis, duques, condes ou outros príncipes territoriais).
Suplantando a velha hierarquia feudal, desenvolve-se uma organização
administrativa estatal. Surgem, então, grandes cidades, centros de comércio e de
indústria que, conforme o autor, “[...] gozam muitas vezes de um direito próprio nascido
das necessidades das populações urbanas, e que desempenham um papel considerável
tanto no plano econômico e social como no plano político” (GILISSEN, 2003, p. 240).
Nessa forma de entendimento, a lei aparece como fonte de direito; o rei legisla tal como
os príncipes territoriais até as cidades. Deve ficar claro, no entanto, que o costume não
deixa de desempenhar um papel capital.
O direito canônico atinge o apogeu da sua autoridade nos séculos XII e XIII,
quando se encontra mais ou menos sistematicamente codificado. Sua decadência se
inicia no século XIV, com o Grande Cisma do Ocidente e a laicização do direito. Por
outro lado, é observado um renascimento do direito romano. Gilissen (2003, p. 241)
afirma que, “[...] depois de um período de lenta infiltração nos séculos XIII e XIV,

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assiste-se nos séculos XV e XVI a uma verdadeira recepção do direito romano como
direito subsidiário na maior parte dos países da Europa Ocidental”.
No século XIII os sistemas de provas racionais substituíram as provas
irracionais. Ocorre que “As partes deixam de recorrer a Deus para resolver seus
conflitos; pedem a juízes, ou mesmo a árbitros, para investigarem a verdade e decidirem
tendo em conta regras de direito. Justiça e equidade aparecem como fundamentos do
direito” (GILISSEN, 2003, p. 241).
No contexto, a formulação de um direito objetivo sobrepõe-se à massa dos
direitos subjetivos. O autor lembra que durante a época feudal a formulação de regras
jurídicas tende quase exclusivamente para o enunciado de direitos subjetivos, ou seja,
direitos de uma ou de certas pessoas em relação a uma ou algumas outras pessoas. As
obrigações do vassalo para com seu senhor são utilizadas como exemplo pelo autor.
Enfim, o fato é que desde o século XII, por toda parte na Europa, podem ser
percebidos os primeiros esforços de formulação de um direito objetivo. São regras
aplicáveis a todos os habitantes de determinado território ou a todos os membros de um
grupo social, gozando de certa autonomia política.
No que se refere à Época Moderna (séculos XVI-XVIII), o autor chama a
atenção para certa continuidade do medievo. A afirmação é de que “A maior parte de
seus aspectos característicos aparecem já no século XIV, ou até no século XIII;
desenvolvem-se progressivamente nos séculos XV e XVI e estabilizam-se nos séculos
XVII e XVIII” (GILISSEN, 2003, p. 244).
Na discussão que faz sobre a situação política dos principais Estados, o autor
possibilita compreender que, no geral, tentativa de unificação foi prática comum a
todos. Logo, no domínio jurídico, “a unificação do direito é um dos objectivos visados
pelos soberanos de tendência absolutista; vêem aí um meio para eliminar os
particularismos regionais e locais e destruir os privilégios de certos grupos sociais”
(GILISSEN, 2003, p. 247).
Vale ainda salientar o fato de, a partir do século XVI, as regras de direito serem
estabelecidas por escrito dando maior segurança aos interessados. Conforme Gilissen
(2003), a lei escrita suplanta o costume oral, o que também acontece com processos e

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provas. A legislação torna-se por excelência a fonte viva do direito, tendendo a eliminar
progressivamente o costume, que revoga ou suplanta. É o soberano que legifera.
O autor chama a atenção para o fato de o costume permanecer a fonte principal
do direito civil, mas ter seu caráter alterado. Acontece que “os soberanos ordenam a
redução a escrito dos costumes; uma vez escrito e homologado (o que quer dizer
reconhecido oficialmente), deixa de ser um verdadeiro costume para se tornar uma lei
de origem consuetudinária” (GILISSEN, 2003, p. 248). Os soberanos reservam-se o
direito de o modificar e o interpretar. Os costumes homologados adquiriram as
características essenciais da lei: certeza, estabilidade e permanência.
É importante mencionar ainda o declínio do direito canônico ocorrido a partir do
século XVI. Conforme afirma o autor, a Reforma subtrai uma grande parte da Europa à
religião católica e, mesmo na maior parte dos países que permaneceram católicos, as
matérias de direito civil regidas na Baixa Idade Média pelo direito canônico, escapam
finalmente aos tribunais eclesiásticos para entrarem nos domínios regidos pela
legislação real.
O fato é que toda atividade legislativa tinha praticamente desaparecido no
Ocidente entre finais do século IX e o século XII. Quando muito, afirma Gilissen (2003,
p. 291), “[...] havia alguns actos legislativos no Sul da Europa, nomeadamente em Itália
e na Península Ibérica”. Situação contrária é observada na época moderna, quando a
“[...] relação entre as duas principais fontes de direito é totalmente diferente: a lei
adquire a preponderância, eliminando progressivamente o costume”. É esta a situação
de Portugal no século XVI, um poderoso império colonial que sentiu a necessidade de
compilar grandes conjuntos legislativos, conforme discutiremos na sequência.

As ordenações portuguesas

No exercício de compreensão da formulação dos códigos legislativos


portugueses a partir do século XV comecemos por analisar a expansão ultramarina
portuguesa. A partir dos desdobramentos marítimos, conforme argumenta Saraiva
(1995), a vida econômica concentrou-se no litoral e a atividade governativa do Estado
especializou-se na economia e na política militar ultramarina.

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Assim, a partir do século XV cessou-se o esforço de colonização interna que


progredira desde o início da monarquia, entrando a vida campesina numa estagnação
profunda, conservando, até finais do século XIX, numerosas sobrevivências medievais.
O autor acredita que a expansão marítima portuguesa foi decisiva para o início de um
novo ciclo da história de Portugal. Os empreendimentos ultramarinos possibilitaram à
coroa adquiri uma nova dimensão: o pequeno Portugal ibérico transformara-se numa
das maiores potências navais e comerciais da Europa.
O crescimento da corte é apontado como uma forma de exteriorizar a crescente
grandeza da dignidade real, além de evidenciar o resultado da centralização e de um
enorme aumento da atividade do serviço público. Saraiva (1995) chama a atenção para o
fato de que durante os reinados de D. Manuel, D. João III e D. Sebastião, foram
publicadas numerosas reformas legislativas a fim de regulamentar minuciosamente
muitas atividades do estado: fazenda, justiça, exército, administração central e local.
Para ele, o Estado moderno substitui, nas leis como nas armas e nas ideias, o Estado
medieval.
Os códigos legislativos portugueses mais abrangentes eram denominados
Ordenações do Reino, que eram regulamentos cujos nomes faziam referência aos reis
que os promulgaram e que pretendiam dar conta de todos os aspectos legais da vida dos
súditos. Trata-se das Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações Manuelinas (1521) e
Ordenações Filipinas, promulgadas no ano de 1595 e editadas em 1603, período de
domínio espanhol do império luso.
Cláudio Valentim Cristiani (2003), na obra O direito no Brasil colonial,
apresenta o contexto de publicação de cada Ordenação, bem como as necessidades de
tais sistematizações. O autor esclarece que as Ordenações Afonsinas foram a primeira
grande compilação das leis esparsas em vigor. Criadas no reinado de D. Afonso V, que
reinou em Portugal de 1438 a 1481, são divididas em cinco livros que tratam desde a
história da própria necessidade daquelas leis, passando pelos bens e privilégios da
Igreja, pelos direitos régios e de sua cobrança, pela jurisdição dos donatários, pelas
prerrogativas da nobreza e pela legislação especial para os judeus e mouros; o livro IV
trata mais especificamente do chamado direito civil; e o Livro V diz respeito às questões
penais.

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As Ordenações Manuelinas foram publicadas pela primeira vez em 1514 e


receberam sua versão definitiva em 1521, ano da morte do rei do rei D. Manuel I.
Foram obra da reunião das leis extravagantes promulgadas até então com as Ordenações
Afonsinas, visando a um melhor entendimento das normas vigentes. A invenção da
imprensa e a necessidade de correção e atualização das normas contidas nas Ordenações
Afonsinas foram justificativas para a elaboração das novas leis. A estrutura de cinco
livros foi mantida, algumas leis foram suprimidas e/ou modificadas e um estilo mais
conciso foi adotado.
As Ordenações Filipinas, promulgadas em 1603, durante o reinado de Felipe II
(1598 a 1621), compuseram-se da união das Ordenações Manuelinas com as leis
extravagantes em vigência. No período conhecido como União Ibérica, no qual Portugal
foi submetido ao domínio da Espanha (1580 a 1640), foram concebidas as últimas leis
que o reino lusitano teve até ver o fim na monarquia. As novas Ordenações foram
necessárias devido à atualização com o direito vigente, pois algumas normas já estavam
em desuso e outras precisavam ser revistas. Felipe II, apesar de ser Espanhol, mostrando
habilidade política, promulgou as novas leis dentro de um espírito tradicional
respeitando as leis portuguesas, mantendo-se, inclusive, a mesma forma das Ordenações
anteriores.
Além das relações que se estabelecem entre a legislação e as vicissitudes do seu
contexto histórico, é fundamental termos claro, sobretudo no contexto em questão, a
marca da religiosidade, expressa na legislação, conforme passamos a discutir.

Direito e religião

Uma das principais características dos ordenamentos jurídicos apresentados é a


não distinção entre direito, moral e religião. Isso fica evidenciado logo nos primeiros
títulos do livro V (Livro criminal) das Ordenações Filipinas, quando são previstas penas
para hereges e apóstatas, também para os blasfemadores, para os feiticeiros e para os
benzedores de animais. Chama a atenção o fato de a pena de morte ter sido largamente
utilizada para os casos de atentados contra o rei e o Estado e repressão dos pecados.

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Os crimes de lesa-majestade, por exemplo, eram punidos com a morte, mais o


confisco de todos os bens do criminoso, uma forma de impor o temor àqueles que
tivessem em mente atentar contra o rei e o Estado (intimidação). Não bastasse a pena ser
imposta sobre o criminoso, visava atingir seus amigos mais próximos e familiares.
Tantas outras penas eram aplicadas, como o açoite e a tortura. Para tanto, ao legislador
era atribuída ampla arbitrariedade.
Isso porque a sociedade portuguesa em questão via como natural a atribuição ao
rei da guarda e vigilância da fé e da prática cristã. Para Paiva (2007), isso sugere que a
religiosidade cristã fosse a forma de ser da sociedade portuguesa, forma que lhe garantia
a identidade e a unidade, cabendo, portanto, ao rei sua preservação, o que o fazia por
meio do direito e da educação. Nas palavras do autor, “Deus ocupa todo o espaço da
realidade. O rei o representa” (PAIVA, 2007, p. 12).
A fim de entender essa lógica político-religiosa, faz-se necessário voltar às suas
origens que remontam ao medievo, contexto no qual havia a concepção de que o rei
tinha dois corpos: um natural, essencialmente igual ao de qualquer pessoa, e outro
místico. O primeiro, sujeito às imperfeições de nascimento ou adquiridas, e o segundo,
perfeito e imortal. Essa é a compreensão apresentada por Ernest H. Kantorowicz (1998)
na obra “Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia e política medieval”.
Ao longo da obra o autor mostra como conceitos utilizados pelos teólogos da
Idade Média para caracterizar a Igreja ou o próprio Cristo foram sendo lentamente
adaptados e transferidos da esfera religiosa para o campo da política e do direito. Sua
proposta é recuperar nas tradições medieval e moderna o corpo místico que envolve a
figura do rei nas cortes da Europa, em especial, a inglesa. Trata-se de uma obra densa, o
que inviabiliza maior aprofundamento, no entanto algumas considerações são
necessárias para a compreensão aqui requerida.
O título da obra (“Os Dois Corpos do Rei”) faz referência à característica dupla
da imagem do rei. O primeiro dos corpos, o corpo natural, é superado pelo segundo, o
político, uma vez que este se revela possuidor de uma mistificação que o faz
indiscutível e eterno.
Pode-se afirmar que a predominância do corpo político sobre o natural se
caracteriza pela destreza com que os juízes a utilizam na defesa das ações das suas

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respectivas cortes. A fim de fundamentar tal tese, Kantorowicz (1998) recorre a uma
vasta documentação e aborda variadas temáticas, as quais não é o caso de aqui
reproduzir integralmente, mas trazer aspectos centrais da discussão.
No que se refere à ideia da realeza centrada em Cristo, questão imprescindível
para os objetivos propostos neste trabalho, elementos importantes são discutidos. Uma
de suas considerações é que a documentação analisada perpetua a figura gemina do
monarca, concentrada no poder divino e humano nela contida. A tradição religiosa cristã
medieval compatibiliza-se com o corpo político do rei exatamente por que nele está
contida uma condição religiosa perpetuada pelo cargo, apesar de sua natureza humana.
O rei, que aparece enquanto seguidor e imitador de Cristo, nada mais é do que o
mediador entre céu e a terra, entre a instância divina e a terrena (humana).
Na análise de Kantorowicz (1998), o rei aparece “como um ser temporal” (na
sua qualidade natural) e um ser atemporal (sujeito às coisas públicas de maneira
eternizada). É observado que, na Baixa Idade Média, a promoção dos mecanismos e
teorias de mistificação do aparelho político e religioso tendem a ser cada vez mais
fortes. Talvez, a aproximação, do ponto de vista normativo, entre a monarquia moderna
e o sistema medieval reside, exatamente, na racionalização corporativa e mística da
Igreja. Nesse caso, a figura do Papa, na junção entre Igreja e Estado, define uma
apropriação política do corpo místico da Igreja, o que, por fim, dá determinada
funcionalidade ao sistema, mesmo na Idade Média, antes do absolutismo.
O fato é que, em virtude de uma legitimação historicamente construída, à época
do Império português o soberano constituía o centro único e indissolúvel do poder,
responsável, portanto, pela organização do corpo social. Para tanto, uma estrutura
hierárquica de jurisdições e alçadas o possibilitava estar presente em todo o Reino. Na
sequência, discutiremos, além dessa organização, outras práticas desse modo de
conceber a política, que também se afirmava e se fazia presente por meio de
dispositivos simbólicos e rituais.

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Punição e educação: reflexões acerca da função disciplinadora do castigo

No contexto discutido, constituíam elementos inerentes ao poder real: “Punir,


controlar os comportamentos e instituir uma ordem social, castigar as violações a essa
ordem e afirmar o poder do soberano”. Tal consideração já sugere o importante papel
dos mecanismos de punição à manutenção daquela sociedade. Conforme afirma Lara
(1999, p. 21), “[...] a punição devia ser afirmativa e exemplar: como exercício de poder,
ela devia explicitar a norma, fazer-se inexorável e suscitar o temor”.
A autora observa que tal concepção de poder “aparecia também nas relações
entre senhores e escravos no interior das fazendas e casas senhoriais”. Ao fazê-lo, cita a
seguinte advertência que fazia o jesuíta italiano Jorge Benci no final do século XVII: “o
escravo calejado com o castigo já não o teme; e, porque não o teme, não lhe aproveita”.
Por isso, ela lembra sua recomendação de “açoites moderados” (BENCI, 1977 apud
LARA, 1999, p. 26). Pedagogicamente, pode-se afirmar que o castigo físico exemplar
exibia o poder do senhor a todos que acompanhavam ao suplício e, infundindo temor,
produzia obediência e sujeição.
Benci considera que a escravidão implica em obrigações mútuas entre senhores e
escravos pois, “[...] assim como o servo está obrigado ao senhor, assim o senhor está
obrigado ao servo”. Para o jesuíta, dar ao escravo sustento, trabalho e castigo é, além de
direito, uma obrigação devida por um senhor cristão aos seus escravos (BENCI, 1977,
p. 50). Nesse sentido, estabelece como obrigações do senhor para com o escravo: o
“sustento”; o “vestido” e o cuidado, que devem ter em suas enfermidades; a “doutrina
cristã”, que os senhores são obrigados a ensinar e, finalmente, o castigo, ponto que
merece destaque nesta discussão.
É enfática consideração de Benci (1977) de que, quando merecido, os senhores
têm obrigação de castigar fisicamente os escravos. No seu entendimento, castigo não é
direito, é obrigação do senhor. Para os objetivos deste texto, merece destaque a função
disciplinadora do castigo naquela sociedade.
Conforme mencionado, essa era a concepção de poder do período, podendo ser
percebida, também, na legislação que então vigorava. Da mesma forma, punia-se com o
objetivo de educar os súditos, conforme afirma Lara (1999):

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Para ser eficaz, portanto, a punição devia ser afirmativa e exemplar:


como exercício de poder, ela devia explicitar a norma, fazer-se
inexorável e suscitar o temor. Não é por outra razão que as punições
no Antigo Regime transformavam-se em espetáculo, em
pedagogia capaz de atingir o corpo do criminoso e, principalmente,
impressionar os sentidos dos demais súditos e vassalos. [...] Não se
trata de simplesmente matar o criminoso, mas de relacionar a
gravidade de sua falta ao rigor da punição, fazer com que o sofrimento
do condenado inspire temor e sirva de exemplo, expiando suas culpas
e restaurando o poder real violado pelo crime em toda a sua força e
plenitude (LARA, 1999, p. 21-22).

Vale ainda refletir sobre aspectos da forma como era realizada a aplicação das
penas. Na maior parte das vezes as penas eram aplicadas em cerimônias conhecidas
como os autos-de-fé, ocasiões em que publicamente eram lidas e executadas as
sentenças da Inquisição. Os autos, com o tempo, passaram a constituir um grandioso
espetáculo, seguindo um cerimonial rigorosamente estabelecido. Além de autoridades
religiosas e civis, grande parte da população da cidade comparecia para assistir. Apesar
de rápida, a apresentação de tal cerimonial é aqui realizada com o objetivo de fortalecer
a ideia de uma pedagogia das penas. Ao tornar públicas as punições, se pretendia causar
medo na população, educado-a para que evitasse cometer os mesmos delitos.
Dessa forma, este trabalho apresenta uma compreensão ampla de educação, não
restrita a mecanismos formais, mas entendida como um processo de aprendizagem da
forma de ser que se dá em todas as relações humanas, no caso, as punições. Tal forma
de entendimento permite, com base nas Ordenações Portuguesas, refletir sobre o ideal
de homem que se queria formar naquele contexto.
Nessa perspectiva, a educação é entendida como a tarefa de suscitar valores ou,
em outras palavras, como uma possibilidade de adaptar o sujeito à sua sociedade. O fato
é que toda sociedade define qual o indivíduo ideal para nela viver e agir, o que permite
afirmar ser o fim da educação constituir um ser social nos seres humanos.
Com base no exposto, consideramos o direito um instrumento educacional, ao
passo que ensina e obriga os sujeitos a se adaptarem à sociedade em que vivem,
fazendo-os cumprir regras e deveres. Isso posto, passamos a analisar aspectos da
legislação portuguesa do XVII, consubstanciada nas Ordenações Filipinas, publicadas
em 1603, mais especificamente em seu livro V (parte criminal).

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O caráter punitivo e educacional das Ordenações Filipinas

Publicada com o título de “Ordenações e leis do reino de Portugal, recopiladas


por mandado do muito alto, católico e poderoso rei dom Felipe, o primeiro”, a
compilação é apresentada na introdução do livro V, organizado por Silvia Hunold Lara,
como “o mais bem-feito e duradouro código legal português” (LARA, 1999, p. 34). O
texto conserva a mesma divisão em cinco livros das ordenações anteriores, igualmente
subdivididos em títulos e parágrafos.
Convém, para a reflexão aqui proposta, apresentar alguns pontos deste
ordenamento jurídico. Na impossibilidade de tratar de toda a legislação, foram
selecionados Títulos significativos no que se refere à rigorosidade da punição, isso
porque, além de revelarem as maiores preocupações do contexto, fornecem elementos
que subsidiam a compreensão de uma “pedagogia punitiva”, impulsionada pelo medo
causado.
O Título I, “Dos Hereges e Apostatas”i, crime cujo conhecimento pertencia
principalmente aos juízes eclesiásticos, mas sua execução, por ser de sangue, era
remetida ao Estado, é um retrato da Inquisição medieval no País, instituição criada em
1536 com o objetivo de punir os condenados com penas que variavam do confisco de
bens e perda de liberdade, até a pena de morte.
No Título II, ao definir as penas daqueles que blasfemassem de Deus ou dos
santos, as Ordenações estabeleciam que:

Qualquer que arrenegar, descrer, ou pezar de Deos, ou de sua Santa


Fé, ou disses outras blasfemias, pola primeira vez, sendo Fidalgo,
pague vinte cruzados, e seja degredado hum anno para a Africa.
E sendo Cavalleiro, ou Scudeiro, pague quatro mil reis, e seja
degradado hum anno para Africa.
E se fôr peão, dem-lhe trinta açoutes ao pé do Pelourinho com baraço
e pregão, e pague dous mil reis.
E póla segunda vez, todos os sobreditos incorram nas mesmas penas
em dobro.
E póla terceira vez, além da pena pecuniaria, sejam degradados trez
annos para Africa, e se fôr peão, para as Galés. (ORDENAÇÕES
FILIPINAS, liv. 5.º, tit. II).

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Outro crime a ser destacado é o de Lesa-Magestade. O título VI das Ordenações


condena todo o tipo de traição ao rei ou ao reino e estabelece como pena uma morte
cruel. É possível afirmar que a grande preocupação com a fidelidade ao rei deve-se ao
fato de que, naquele ideário, o seu poder ser dado por Deus, sendo o monarca
considerado seu próprio representante na terra e cabeça de um corpo, como se percebe
no título a seguir:

Lesa-Magestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rey,


ou seu Real estado, que é tão grave e abominável crime, e que os
antigos Sabedores tanto estranharam que o comparavam à lepra,
porque assim como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca
mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem,
e aos que com ele conversam, pelo que é apartado comunicação da
gente, assim o erro da traição condena o que a comete, e empece e
infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa
(ORDENAÇÕES FILIPINAS, liv. 5.º, tit. VI).

Percebemos, pelas comparações feitas, o quanto o crime de Lesa-Majestade era


preocupante uma vez que colocava em risco a própria ordem social. Isso porque a
traição cometida contra a pessoa do rei poderia provocar sérios danos ao Estado, já que
a substituição não poderia ser realizada facilmente em virtude de que tal legitimação
levava em conta a hereditariedade. Em virtude da gravidade do delito, as penas
aplicadas tinham como objetivo advertir quanto aos “perigos” em se praticar tal ação, ou
seja, além de punir ao infrator, as penas tinham como objetivo advertir a todos das
consequências de tal crime. Nesse sentido, é importante reforçar, as próprias penas
tinham função educativa.
A fim de evitar o caos na sociedade e preservar a ordem vigente, a legislação em
questão apresenta uma série de punições que variavam de leis para casos de resistência
aos oficiais de justiça e desacato a juízes ou demais oficiais, até a morte para o escravo
que tirasse arma para o seu senhor. Mas, conforme mencionado, os Títulos
apresentados, ainda que rapidamente, são significativos para os objetivos da discussão
proposta uma vez que neles são estipuladas punições exemplares.
Bennassar (1984), na discussão que realiza sobre aquilo que chama de
“pedagogía del medo”, apesar de focar a Inquisição espanhola (primeiros objetivos e
rumos que a instituição tomou), oferece elementos importantes para discutir a legislação

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portuguesa em questão, mais especificamente no que se refere às punições nela


previstas.
Nesse sentido, vale destacar o seguinte posicionamento do autor, o qual defende
que a difusão do medo entre os súditos teve um papel imprescindível: “A fin de obtener
[...] conformidad con el modelo oficial, que es a la vez religioso, político y social, y que
no puede lograrse con la sola promugación de leyes, el método predilecto del Santo
Oficio es, en mi opinión, la sutil difusión del miedo entre las capas del cuerpo social”
(BENNASSAR, 1984, p. 175. Grifo no original). Baseado em textos normativos, cartas
e informes dos próprios inquisidores, o autor insiste na ideia de que havia todo um
método para punir, cujo objetivo era aterrorizar o povo.
Bennassar (1984) chama a atenção para algumas considerações de Francisco
Tomás y Valiente, mais especificamente na conferência realizada no Simpósio sobre a
inquisição em Cuenca, em 1978. Na ocasião, o processo inquisitorial foi comparado aos
procedimentos penais da jurisdição real ordinária e a canônica. Entre os dois, “la praxis
inquisitorial fue creando un proceso penal peculiar, sin duda más severo y más temido
que ellos” (BENNASSAR, 1984, p. 176). Para os objetivos deste trabalho, convém,
mesmo brevemente, refletir sobre os métodos dessa “pedagogia do medo”.
Em primeiro lugar, a tortura foi uma prática constante em casos de suspeitos de
judaizar ou de pertencer às “seitas” de Maomé ou Lutero. Ou seja, casos de fé na maior
parte das vezes e, quase nunca, em casos de moral, de blasfêmias ou de proposições
errôneas ou escandalosas. É discutido o fato de toda a gente de meados do século XVI
em diante saber que a Inquisição matava pouco e que os piores castigos se reservavam
aos judaizantes. Nesse sentido, questiona: “¿ cómo se explica que to el pueblo tuviera
tanto terror al Santo Oficio? ¿ Por qué? (BENNASSAR, 1984, p. 177).
Como resposta, alguns fatores são apresentados. Primeiro fator: “el secreto y el
engrenaje del secreto”. Mantido totalmente incomunicável e desconhecedor das
acusações que lhe eram feitas, o réu chegava a confessar feitos e detalhes desconhecidos
dos inquisidores. Além disso, o sigilo favorecia a delação, inclusive pelos próprios
membros da família. Esse mecanismo inquisitorial permitia ainda aos juízes exercerem
um poder arbitrário.

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Outros dois fatores, de certo modo combinados, são apresentados pelo autor a
fim de explicar o medo provocado no povo pelo Santo Oficio: “la memoria de infamia”
e a “amenaza de la miseria”. Sobre o primeiro, esclarece:

Dicho en pocas palabras, la infamia se hacía pública al publicarse las


sentencias en los autos de fe, al exponer a vergüenza pública, al
administrar azotes a personas condenadas fuera de auto, finalmente, en
los casos graves, al abligar a llevar el sambenito. Llevar um sambenito
por la calle equivalía a caminar con un cartel que proclamara la propia
indignidad (BENNASSAR, 1984, p. 179).

É importante esclarecer que os ditos sambenitos eram utilizados pela Inquisição


com o objetivo de humilhar os condenados, que o vestiam e exibiam pela cidade,
fixando na memória de todos. Tal exposição acarretava uma série de proibições
relativas ao modo de vida, como vestir vestidos de seda, carregar espada ou jóias ou,
ainda mais grave, impedimentos referentes à vida profissional e social não apenas do
réu como dos seus descendentes.
De modo semelhante, é hipótese aqui aventada, as punições previstas no Livro V
das Ordenações Filipinas eram carregadas de significados que são próprios contexto.
Provocar o medo nos demais súditos por meio dos rituais punitivos é o ponto central da
discussão, ponto este que sustenta o que chamnamos de caráter educacional das
punições.

Considerações finais

Considerando que na lei estão presentes os valores que a sociedade quer proteger
e tutelar, o direito, como tentamos evidenciar, possui uma função educacional. No caso
do contexto e do código legislativo estudados, as punições previstas oferecem
possibilidades para refletir sobre essa hipótese, principalmente no que se refere ao medo
causado entre os súditos.
Além disso, as penas previstas nas ordenações portuguesas possibilitaram, ainda
que em linhas gerais, compreender aspectos daquela organização social. A
religiosidade, a Monarquia, a expansão marítimo-comercial e a hierarquia estabelecida,

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eram valores cujas penas estavam atreladas. Ou seja, as punições tinham o objetivo de
despertar nas pessoas a percepção de que tais questões eram socialmente relevantes para
a vida coletiva e, portanto, deveriam evitar qualquer infração aos referidos valores.
Enfim, na análise (pedagógica) das punições no Império português, a educação é
entendida como uma ampla experiência social, derivante das relações estabelecidas
pelos indivíduos ao longo de suas vidas. Trata-se de uma aprendizagem que ocorre na
interação e troca de experiências entre os indivíduos, uma aprendizagem que significa
incorporar elementos de uma forma específica de ser. Assim, os comportamentos
sociais provocados por iniciativas da legislação, ou pelo menos a tentativa de suscitá-
los, são analisados no âmbito educacional.
Concluímos que os elementos ritualísticos das situações punitivas somados aos
duros castigos aplicados causavam temor entre os súditos. Entre as maneiras de fazer
morrer há a “morte natural”, que podia ser causada por meio do uso de veneno, de
instrumentos de ferro ou ainda do fogo, além de uma modalidade de morte “civil”,
iniciativa de torná-lo infame pelo delito cometido. Ser lançado ao esquecimento
significava desonra e os prejuízos chegavam a atingir os herdeiros do condenado.
Nosso entendimento é que, independente da punição, a possibilidade de ser
exposto publicamente era motivo de temor ao português do século XVII. Vários são os
Títulos referentes aos humilhantes açoitamentos públicos, os quais podiam ser
combinados com outras punições, como o corte de membros ou o degredo, que
dependia da gravidade do crime cometido e/ou da posição ocupada pelo indivíduo na
sociedade.
Em suma, a legislação não estava descolada da realidade, podendo ser
considerada como fruto das ações humanas, refletindo aspectos importantes do
contexto. São elementos objetivos e subjetivos referentes aos valores culturais da
sociedade estudada, características do modo de circulação da riqueza, de ideias, de
crenças e elementos da cultura.
Para aceitar e perpetuar tudo isso as pessoas precisavam ser ensinadas. São esses
os elementos formativos que tentamos identificar com base no caráter punitivo da
legislação vigente, afinal o ato de educar insere-se em um extensivo processo, ao qual
todos nós estamos expostos. Independentemente da temporalidade ou localização

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espacial, a educação expressa o viver coletivamente, indicando a forma de ser de cada


vivente, conforme a sociedade em que ele está inserido.

REFERÊNCIAS

BENCI, Jorge. Economia Cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo:
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CRISTIANI, Cláudio Valentim. O direito no Brasil colonial. In: Wolkmer, Antônio


Carlos. Fundamentos de história do direito. Belo Horizinte: Del Rey, 2003. pp. 331 –
347.

KANTOROWICZ, Ernest H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política


medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

LARA, Silvia Hunold. (Org.). Ordenações Filipinas: Livro V. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.

ORDENAÇÕES FILIPINAS. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.

PAIVA, J. M. Colonização e Catequese. São Paulo: Arké, 2006.

SARAIVA, J. H. História Concisa de Portugal. Portugal: Publicações Europa-


América, 1995.

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Chamava-se herege a pessoa que criava ou sustentava um sentimento declarado contra a Igreja. O
apostata era aquele que abandonava inteiramente a fé cristã, passando a pertencer à religião maometana,
judaica ou pagã.

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