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A Produção do Pensamento Ocidental em Nós

Décimo terceiro Encontro

Texto extraído de gravação de palestra proferida por Luiz Fuganti, em 01/07//99, na Role Playing
Pesquisa e Aplicação - São Paulo. Texto não revisado e reprodução não autorizada pelo
palestrante.

Hoje eu vou falar alguma coisa resumidamente sobre a questão das formações sociais e a
diferença entre as principais formações sociais, do ponto de vista do inconsciente, do desejo, dos
códigos e das liberdades... a gente tem um tempo muito breve para uma exposição desse tipo de
questão... então se em um ou outro movimento a coisa ficar muito confusa vocês questionem...por
favor e ao mesmo tempo sugiram novas linhas de aprofundamento, na medida do possível por que
o nosso tempo hoje é bem curto... e a minha idéia é fazer o fechamento da última aula na semana
que vem com o capitalismo... que é a gente atingir uma análise mais ou menos singular do que a
gente entende do capitalismo.
A gente estava comentando que algumas pessoas perguntaram quando que a gente vai entrar em
Deleuse?... e eu estou falando desde o começo em Deleuse só que a gente não menciona e as
idéias elas coexistem... isso é uma compilação de idéias que são de Deleuse, de Nietzsche, de
Espinoza, de muitos pensadores e inclusive os anônimos também... então a gente mistura tudo e
faz um grande cozido... cozinha bem o acaso e vai... então é isso mais ou menos que nós hoje
vamos fazer em relação às formações sociais.
O que é importante destacar inicialmente é que no plano da natureza, no plano dos devires, dos
fluxos de desejo, do tempo, das energias e das potências... é importante se destacar que você tem
sempre um sentido afirmativo do ser que é exatamente a afirmação das diferenças, a afirmação
das singularidades, afirmação dos devires, afirmação da metamorfose, da pluralidade, da
atividade... então o que o desejo quer, digamos assim, é afirmar sua potência, é ir até o fim na sua
efetuação, o que o desejo quer é efetuar e o desejo se efetua sempre produzindo, nunca o desejo
produz fantasmas, nunca o desejo está ligado originariamente a alucinações ou a delírios a não ser
como efeitos de superfície, como maus encontros ou como efeitos de maquinações sociais, o que
acontece então é a gente tentar liberar o desejo enquanto natureza pura, enquanto potência pura
de afirmação da vida e do pensamento. O desejo na realidade é a grande unidade entre vida e
pensamento... o que a filosofia tradicional, o que as religiões, o que os pensamentos metafísicos
ocidentais fizeram sempre foi separar vida e pensamento e geralmente dando uma eminência para
o pensamento contra a vida ou contra o corpo ou contra as paixões ou contra os desejos... ... o que
a gente faz aqui é exatamente recuperar a unidade entre pensamento e vida e dizer que a
essência de ambos é o desejo... isso que é originário, e ao desejo não falta nada, o desejo não é
um ato de vontade consciente que busca um objeto que busca algum preenchimento... o desejo
não quer nenhum objeto, o desejo já na sua efetuação ele já é ligação, ele já é relação, ele já é
produção.
Então a questão fundamental é a gente apreender o se e a natureza como uma grande potência
produtiva... é como a substância de Espinoza, é uma substância auto produtora, de causa a si
mesmo e que produz realidade na mesma medida em que existe e não há diferença entre a sua
essência a sua existência e a sua ação, é algo colado e assim nós também na medida que somos
ativos e afirmativos, nós nos colamos ao nosso desejo que é pleno, não falta absolutamente nada
a ele a não ser que nós estejamos separados daquilo que podemos, daquilo que o nosso
inconsciente pode daquilo que a nossa energia é capaz.
Então a questão toda é liberar essa plura-energia essa plura-potência absolutamente inocente sem
nenhuma culpa, sem nenhuma falta, sem nenhuma desvalorização na medida em que ela não se
rebata a nenhuma entidade transcendente, não se rebata a nenhum valor superior e não encontre
nenhum valor que seja superior a ela que possa julgá-la... inclusive o nosso objetivo é tentar fazer
a gênese ou a genealogia dessas instâncias que se destacam da natureza, que se elevam e de
cima vem julgar a vida, vem julgar o desejo, vem julgar o inconsciente, inocular a culpa a falta e a
dívida infinita em nós.
Então a gente nas nossas exposições iniciais já dizia que ao dizer eu a gente deixa de falar o
nome próprio, o eu é exatamente a substituição da nossa potência própria. Quando você fala eu o
Estado já fala dentro de você, a falta já fala dentro de você, a dívida infinita o pecado o Édito seja
lá o que for... e todas as formas de inoculação de falta de culpa de dívida no inconsciente vem já
de uma instância que se destaca da natureza, que sobrevoa a terra e do alto julga a vida na
medida em que acredita que está numa posição superior... o que está instituído, então os valores
estabelecidos ou instituídos e os significantes, digamos assim, estabelecidos e instituídos formam
uma grande máquina abstrata de produção de almas e de corpos e na medida em que a gente diz
eu... inocentemente a gente acredita que fala a partir de um livre arbítrio, que a gente tem escolha
para o bem ou para o mal e que nada determina a nossa vontade do ponto de vista da natureza ou
de um ser maior quando na realidade nós estamos sendo sobredeterminados ou
subdeterminados... do modo mais imperceptível possível na medida que o nosso desejo ou a
nossa produção desejante se reparte numa máquina social que demanda um tipo de atividade ou
de ação nossa que é utilitária para a máquina... quer dizer a máquina ela é insatisfatória para a
gente... a gente está sempre na falta... a gente está sempre numa asma infinita... numa
ansiedade... numa insatisfação por que nunca isso é preenchido na medida em que o seu desejo
se cola a uma entidade fictícia e você acredita que esta entidade fictícia é o seu desejo... o Édito
não é nada mais do que isso... o ser pecador não é nada mais do que isso.
Então a gente sabe que na natureza, sob o ponto de vista das filosofias que a gente já elucidou de
alguma maneira aqui dos estóicos de Epicuro de Lucrécio de Espinoza de Nietzsche... a natureza
é uma grande potência produtiva e se a gente agora imaginar as sociedades primitivas ou as
formações sociais selvagens como sendo a representante dessa potência de natureza a gente vê
que... como dizia Espinoza... Deus ao se expressar nos seus modos ou agir através de seus
atributos e produzir os seus modos ele não se separa do seu efeito, ele é imanente ao seu efeito...
ele é causa de si na mesma medida que ele é causa das outras coisas... então o ser da natureza é
o mesmo ser imanente...isso que é fundamental em tudo... e está aí o segredo de tudo... não há
transcendência do ser... a transcendência é uma ficção... o ser é imanente então ele age aqui e
agora em tudo.
E na medida que você tem uma sociedade selvagem que tem uma necessidade de se afirmar e a
gente viu bem que sentido tem afirmação... a afirmação ela é sempre uma ação de diferenças ou
de uma pluralidade e é na afirmação da diferença que a sociedade produz e se expande, é na
afirmação da diferença que a sociedade produz e se reproduz e se multiplica.
Então você tem uma formação social selvagem que busca essa expansão e necessariamente ela
busca por que ela não tem negação dentro dela, ao menos no plano das sociedades selvagens, a
negação só emerge com o nascimento do Estado... você tem então uma grande atividade... o que
o Nietzsche chamava atividade inconsciente e genérica da cultura... Nietzsche dizia que há um
sentido nessa atividade que é o adestramento e a seleção. Adestramento e seleção é o elemento...
o objeto e ao mesmo tempo o meio que essas sociedades se servem para conquistar o futuro e o
futuro é sempre uma multiplicação e uma expansão... o futuro é como diz Nietzsche vontade de
potência, uma potência que se afirma.
Se isso existe é necessário também a gente distinguir dois planos que a gente falou ao longo das
várias exposições dos vários filósofos também, mas a gente nunca teve isso como objeto
específico... que é o seguinte aspecto do real... o real ele se desdobra em duas instâncias
basicamente, uma que é atualizada, atualização ou ato e a outra que é potência, que é virtualidade
mas que não existe no plano existencial comum que a gente está habituado a sentir a perceber e a
apreender, mas que existe ou que tem uma realidade no campo do imperceptível, no campo do
insensível ou aquilo que só é apreendido pelo pensamento ou por uma relação com o tempo que
ultrapassa em velocidade as nossas sensações ou a nossa sensibilidade ou o sentido estético...
então há um campo do real que não é apreendido pela sensibilidade, esse campo do real ele é
virtual. O virtual não é um campo de possibilidades, não é uma possibilidade lógica como dizia
Atristóteles, o virtual é uma potência real, ele não é possível ele já é real... para o Aristóteles o
virtual era um possível que não existia mas que era possível existir... nesse caso não o virtual já é
real, ele já tem um mínimo de ato nele mesmo e ele é uma intensidade... então é necessário a
gente ter sempre em mente ou saber apreender esse campo de intensidades para não fazer certos
paralogismos mistificadores que levam a gente a confundir uma série de idéias que em geral
beneficiam um ponto de vista moral, um ponto de vista do Estado das leis das religiões
mistificadoras, um ponto de vista de uma instância transcendente. Então você só faz a distinção
real e a gênese dessa instância transcendente na medida que você distingue um plano de
intensidades que não existe a nível sensível mas que atravessa o sensível, que está aqui presente
mas de modo imperceptível... e ao mesmo tempo o plano de atualização, o plano da existência, o
plano da extensão. Em filosofia a gente chama isso de intensidade de um lado e de extensão de
outro lado. A extensão são os corpos, são a extensão no espaço e a intensidade é a concentração
energética no tempo. Então essa capacidade de apreender as potências energéticas no tempo é
fundamental para se fazer a diferenciação entre o que nós vamos chamar agora de instância ou
máquina produtiva desejante que gera um campo social selvagem e primitivo que opera por
adestramento e seleção através de codificação de fluxos e ao mesmo tempo algo que se dobra
sobre esse mesmo campo social, sobre essa mesma quantidade de energia, sobre essa mesma
potência geradora desse campo que é uma espécie de instância recalcante ou que recalca algo
que não deve passar. Então aí está a origem e a dualidade ou a ambigüidade do desejo que se
deixa reprimir ou recalcar ou até num certo momento com certas formações sociais acaba
desejando a sua própria repressão... esse é o grande enigma... como o desejo deseja a sua
própria repressão?... ( mas onde você localizou isso?...) olha, você tem sempre uma quantidade
energética que é intensiva e não extensiva... e se ela é intensiva ela é puro fluxo, ela é puro devir,
ela não tem forma, ela não tem codificação, não tem código, ela não tem nenhuma camisa de força
que a constitua como uma qualidade, como uma quantidade, como um ser, é um fluxo puro de
energia, é um devir puro, então o que você tem na origem e no fundo de toda a natureza são esses
puros fluxos, puros devires e puras diferenças, é isso que existe, e você tem, como dizia o
Nietzsche, um ser que afirma isso e ao afirmar você tem a condição de retorno... ora numa
sociedade primitiva isso se dá de modo inconsciente e genérico, então o Nietzsche diz, isso é uma
atividade genérica que tem como objetivo produzir o indivíduo livre e soberano e os meios que
essa atividade genérica de cultura se utiliza são exatamente o adestramento e a seleção daquilo
que é secundário na natureza, é secundário mas é necessário que são o que o Nietzsche chama
de forças reativas ou o que a gente pode falar de uma maneira mais genérica, uma matéria que
deve ser lapidada e dobrada, uma matéria que deve ser moldada, que é mais ou menos aquilo que
forma as funções de conservação, de reprodução e de preservação dos seres na existência, são
essas funções que devem ser adestradas, formalizadas, disciplinadas para que forças mais
elevadas e mais nobres façam o seu trabalho de expansão e tenham exatamente o sentido da
atividade mais nobre desenvolvida que é exatamente a atividade de criação. Então a criação só
funciona na medida em que essas forças que são secundárias mas necessárias elas estão
recalcadas ou adestradas ou formalizadas de modo tal que a criação fica liberada para encontrar
novos devires novos fluxos novas pluralidades. ...-...-... é o que o Nietzsche chama de forças
reativas, é o que os estóicos chamam de uma matéria passiva, o que os pré-socráticos chamam de
quantidades de energias que recebem as qualidades, é uma dobra do ser... você tem isso de
alguma forma em todos os pensadores que vislumbram isso ou apreendem de alguma maneira... o
que ocorre geralmente é que muitos vão dar uma deturpada nesse tipo de matéria e fazer dela
algo que deve ser dominado de modo absoluto e ligar a ela tudo o que essa ficção acredita ser
inferior que é a sexualidade o desejo as paixões os devires a matéria os fluxos que são inferiores a
uma espiritualidade a uma forma pura a um ascetismo religioso a crença num outro mundo e essas
coisas todas...
O que vai distinguir uma sociedade selvagem é exatamente esse meio do qual ela se serve para
adestrar e selecionar o que interessa para a sua situação para sua multiplicação para a exumação
das suas diferenças com o objetivo de produzir o indivíduo livre e soberano segundo a visão
nietzschiana. Do ponto de vista do Anti-Édipo de Deleuse e Guatarri você tem a interpretação de
que essa sociedade desejam codificar os seus fluxos e isso é exatamente a tradução do que o
Nietzsche diz de adestrar e selecionar as forças, é exatamente a mesma coisa... então essa
sociedade quer codificar os fluxos de desejos inconscientes e a codificação deles é exatamente
que algo deve passar e algo não deve passar... o que deve passar imediatamente aquilo é
interrompido e cortado e ligado com outra coisa que passa e que se corta, então você tem uma
forma de relacionar as coisas os produtos o que é produzido o que é memorizado o que é
consumido o que inscrito num sócius, o que é inscrito num campo social como uma memória
coletiva, o que é produzido e o que é consumido, você tem um meio de fazer com que certas
forças e agentes produzam certas coisas que vão ser ligadas com outras séries a partir do
momento que essa produção é rebatida em um campo de registro ou de inscrição social e é
redistribuída para um consumo coletivo... então algo que é produzido não é consumido pelo
mesmo agente que o produziu... assim um caçador na floresta que mata a sua caça, ele não pode
consumir a sua caça ele mesmo, ele tem que levar a caça para o acampamento e no
acampamento aquilo é redistribuído... então isso é uma forma de você fazer a codificação do
fluxo... você tem um agente que obtém o elemento da caça, isso é uma produção, só que o sócius
se rebate em cima desse fluxo, dessa produção e se apropria disso como sendo a quase causa
que gera esse tipo de energia e na medida que ele se apropria disso através de um código de uma
forma expressiva ele redistribui para uma outra série, para uma outra linhagem que pode ser de um
outro clã, de uma outra aldeia... há uma redistribuição.
O que é fundamental é que esse sócius ou essa formação social primitiva ela funciona por
codificação de fluxos e a codificação é que seleciona que adestra que deixa passar certas coisas e
recalca outras, ou seja, esse adestramento, essa seleção, essa codificação nada mais é do que
um filtro, do que um fígado, do que um rim... é uma lente através da qual certas coisas passam e
outras não. Só que o que não passa é exatamente o que é recalcado e o que é recalcado é a
memória biológica, é a memória biocósmica, é uma parte desse ser que é pura intensidade que se
dobra sobre si mesmo e que se permanecesse enquanto intensidade pura, enquanto campo virtual
puro nunca se atualizaria, nunca somaria nenhuma expansão nenhuma multiplicação nenhuma
diferenciação... e como o sentido da natureza é a diferenciação e afirmação da própria diferença é
necessário que algo se rebata sobre esse mesmo campo intensivo e filtre, deixe passar o que faz
com que essa intensidade vá mais longe e recalque aquilo que faz com que essa intensidade se
dissolva nela mesma. Então é uma instância recalcante que vem do próprio sócius primitivo e essa
instância chama-se o poder político e econômico das alianças, é a potência de fazer alianças que
recalca uma parte dos fluxos e deixa passar outra parte dos fluxos. As sociedades primitivas em
geral se organizam por uma relação de filiação e de aliança e os etinólogos e psicanalistas que vão
em busca de uma origem do édipo do incesto ou da castração buscam sempre uma interpretação
e uma valorização da filiação como sendo a questão dominante em relação a instância da aliança.
Então você tem sempre a aliança e filiação. Uma se dá de modo lateral na articulação dos
agenciamentos de corpos e de idéias e a outra se dá de modo vertical na descendência das
gerações. Essa instância que opera como instância que recalca é exatamente aquilo que o
Nietzsche chamou na Genealogia da Moral de uma produção de um homem que é capaz de
prometer, ou seja, é na aliança ou nos blocos móveis de dívida que funcionam, através dessa
aliança... olha gente eu estou falando uma série de termos e de conceitos que eu não vou ter
nenhum tempo de explicar agora e infelizmente vai ter que ser mesmo dessa forma e eu só estou
esboçando de modo muito genérico o que isso é complexo para que no futuro a gente possa ter
estudos específicos do que é uma formação social selvagem, o que é uma formação social
despótica, o que é uma formação social capitalista... e se vocês acharem que está muito difícil
vocês intervenham de alguma forma...
Mas o que é importante a gente marcar é que essa capacidade de se relacionar de se diferenciar
de se fazer alianças e de se expandir é exatamente uma instância que emerge no interior desse
sócius ou dessa formação social selvagem, que se dobra sobre a própria capacidade de produção
inconsciente desse desejo do sócius e que funciona através de inscrição e de marcação, esse que
é o ponto fundamental a ser registrado aqui. A inscrição ou a marca ou a escritura nos corpos. O
sistema das formações sociais selvagens é o sistema de crueldade, é um teatro de crueldade por
que o que importa para esse sócius é codificar os fluxos através da inscrição na carne, através dos
rituais mais terríveis, através das ações mais impiedosas, mais horrendas aos olhos dos ocidentais
brancos que de fato vão dizer não o que o desejo significa ou revelar o fundo inconsciente desse
desejo que eventualmente seria culpado ou incestuoso ou então pecador, mas vão marcar
exatamente a posição topológica do desejo e isso se faz através das práticas de aliança... então no
fundo você não tem uma estrutura de parentesco que estaria funcionando como modelo para
essas formações sociais que se aproximariam mais ou menos desse modelo ideal na medida em
que elas tem um desequilíbrio ou uma falhas... o que funciona na realidade é invenção de uma
estrutura de sistema de parentesco através de práticas de aliança, no fundo você não tem uma
estrutura uma lei ou uma forma que organiza essa sociedade primitiva... o que você tem são
práticas políticas e econômicas, econômicas no sentido de deslocamento de blocos de dívidas
finitas e políticas na medida mesmo em que um segmento que é destacado e vai para outro
segmento ou outra série de fluxo gera um desequilíbrio que ao ser doado esse produto você vai ter
uma mais valia de código ou então um prestígio para esse tipo de fluxo e uma dívida para o outro
tipo que recebeu esse produto. Então você tem na origem a inscrição e a fundação de uma dívida
e nunca a troca, nunca uma troca estrutural, nunca uma troca de parentesco que no fundo seria
testemunha de uma forma plura da via no inconsciente coletivo das sociedades selvagens...-...-... a
dívida é um artifício, um meio que a sociedade inventa para codificar os fluxos e ela é um meio da
inscrição nos corpos por que o que codifica de fato os fluxos são a inscrição ou a escrita nos
corpos não uma escrita linear como essa que a gente escreve mas a escrita geral ou ampla... uma
dança na terra é uma escrita... um gesto é uma escrita... a escrita é gestual é estética, uma pintura
é uma escrita e fundamentalmente a escrita no corpo, você rasga uma carne, fura uma orelha, fura
o nariz... tem os rituais mais cruéis possíveis na medida então que você quer fazer a codificação de
um fluxo essa dimensão da escrita é fundamental... a outra dimensão é a voz e a voz não está
numa relação hierárquica com a escrita e a outra dimensão é um terceiro termo que tira uma mais
valia de código dessa relação que é o olho que tem prazer com a dor do outro, que é exatamente o
que a gente falou sobre a questão do Nietzsche. ...-...-...-... a codificação dos fluxos está na
afirmação do poder imanente da tribo... do poder imanente da sociedade... nunca há uma instância
transcendente que se destaca, ao contrário essa sociedade ao decodificar o fluxo e um dos
sentidos que tem a codificação dos fluxos é exatamente esconjurar o nascimento do Estado ou a
morte que vem de dentro... o que a gente viu com Espinoza, Nietzsche, Epicuro, Lucrécio e com
todos os pensadores da inocência e que da vida que a morte não é imanente à vida, a morte é
sempre um efeito de superfície, um mal é um efeito de superfície, assim como o bem é um efeito
de superfície... que na origem você tem o ser que não é nem bem nem mal, então você tem uma
potência de afirmação...-...-... a gente viu que o cristianismo nasce exatamente com o ato de São
Paulo que dá o sentido interno da dor... São Paulo diz... Cristo morreu pêlos nossos pecados...
aliás existem várias interpretações da morte de Deus, um desses sentidos é apropriado por São
Paulo que vai dar a fundação para a igreja que é exatamente o sentido interno da dor, da culpa ou
da má consciência que é o Édito moderno, o Édito é isso... então nessas sociedades não tem
ressentimento não tem má consciência não tem culpa, existe dívida mas a dívida é finita e é dívida
de código de memória de futuro, a memória não é de passado é a memória como função de futuro,
então é uma função de futuro para aumentar a sua potência... então é você trazer o seu futuro para
o seu passado e o seu presente, você colar no mesmo ato o presente o passado e o futuro... é isso
é que tem a função de codificação dos fluxos... então no momento em que você marca um corpo
você está dizendo assim essa é a sua memória é a memória de futuro, você está dando uma
função a eles, uma máscara a eles, um rosto a eles, uma voz a eles... então você está codificando
fluxos, você está qualificando e quantificando um fluxo que não tem uma qualidade e uma
quantidade inicialmente definida, ele é uma quantidade pura de energia sem nenhum território sem
nenhuma forma expressiva, ele é puro fluxo... então você não tem nenhuma sociedade que se
preserve que se conserve que se expanda se você tiver puros fluxos, ele simplesmente escoe e
nada se forma nada se produz.
Então é fundamental a codificação de fluxos como meios... a gente vai ver depois que a liberdade
ela se alia a uma descodificação mas não ao modo que fez o sistema capitalista, por que a nossa
formação social não é mais uma sociedade de código, a nossa formação social ela descodifica e
extrai uma quantidade abstrata e troca, existe um preço para tudo... o índio produz um objeto e
você compra o objeto, aquilo tem um equivalente abstrato então você tem uma axiomática
substituindo o código. E as formações sociais primitivas elas tinham horror a isso, não é que são
sociedades que não tem mercado que não tem dinheiro que não tem Estado, elas são sociedades
contra o dinheiro contra o mercado e contra o Estado, não é que elas não tem história elas tem um
outro tipo de história, elas não tem a história da má consciência, do ressentimento, a história de um
Estado que as domina e que as recalca... essa história elas não tem... mas é evidente que existem
acontecimentos, existem mutações, existe uma cultura, existe uma evolução... a gente vê isso até
com a etologia atual, a evolução do canto dos pássaros, eles criam uma evolução própria, eles
inventam ensaiações naqueles cantos herdados pelo código genético, eles tem uma cultura de
comunicação, eles inventam formas novas de se expressar e de se comunicar... os pássaros, os
peixes, as árvores, os vegetais... a natureza é uma grande potência de expressão... então nessa
medida mesma tudo na natureza pensa e tem sentido, então o pássaro pensa a ameba pensa o ar
pensa... onde houver tempo tem pensamento... isso que é essencial em tudo...
A sobrecodificação vem com o nascimento do Estado despótico, é o momento em que a cultura ou
que esse movimento de cultura é interrompido, então aí já vem uma captura de uma mais valia de
código e a instância transcendente nasce exatamente aí...
Então o que é essencial não é trocar como fala Levistraux e uma série de outros etinólogos,
antropólogos e até os psicanalistas na sociedade primitiva, o essencial é inscrever é marcar é
codificar e é na codificação dos desejos dos devires dos fluxos que você seleciona o que deve
passar e o que deve ficar bloqueado e recalcado. E aí, nesse efeito de codificação você vai ter
uma filiação intensiva que é recalcada... filiação intensiva é aquela que diz o meu pai o meu avô
meu bisavô... sou eu... eu vivo tudo isso no mesmo bloco, isso é a filiação intensiva.
A filiação extensiva é aquela que diferencia o meu pai da minha mãe... e bababah...
Uma se dá num plano existencial e outra se dá num plano virtual real e ao mesmo tempo isso é
feito pelas práticas de aliança que são os perversos de aldeia que são aqueles que maquinam os
casamentos, maquinam as alianças enfim... E essas alianças são feitas essencialmente nos rituais
de crueldade, nos rituais de passagem no momento em que os jovens se transformam em
guerreiros, no momento em que uma moça casa, no momento da morte ou da passagem de
alguém, quer dizer você tem os rituais de passagem que marcam os códigos essenciais dessa
sociedade que mantém a sua multiplicidade coesa em um único objetivo que é exatamente o
adestramento dos fluxos.
Essa prática é feita então através de uma escrita ampla que pode ser uma dança um gesto uma
inscrição na carne de uma voz de aliança, que você emite um som ao mesmo tempo que alguém
está lá inscrevendo num corpo, e você cola o som a esse ideograma ou esse gesto ou essa
inscrita no corpo e é assim que se forma a memória ou a posição de desejo ou código e você tem
um olho coletivo que a tribo infesta gozando ou tendo prazer com a dor do outro que está sendo
supliciado mas é o suplício e a dor de um ganho, de alguém que conquistou o futuro... a sociedade
aumenta a sua pluralidade ou a sua virtualidade ou a sua capacidade de afirmação e de expansão.
Então de fato a dor é sempre o prazer de alguém, ela tem um sentido externo, é com o
ressentimento e com a má consciência que a dor vai ser algo que vai se o testemunho de que a
existência é culpada de alguma coisa... é por que a gente sofre, por que a gente tem dor, que a
gente é criminoso ou a gente cometeu algum ato ilícito e a gente tem culpa de alguma forma. A dor
vai passar a ser um signo de depreciação da existência na medida mesma que ela perde esse
sentido de exterioridade, por que a dor ela nada mais é do que uma função orgânica, a dor é o
elemento que diz olha, certas forças em seu corpo tem que estar assim posicionada e certas outras
de outro modo e a relação do prazer é exatamente o sintoma de que essa função está sendo
exercida e essa sociedade inconscientemente e coletivamente goza e faz festa sempre nos rituais
de crueldade exatamente por esse aspecto, então há um olho coletivo inconsciente que registra
isso, então essa memória é coletiva, ela é registrada exatamente no ato do ritual de passagem ou
de codificação de algum fluxo, é assim que ela opera. Então o fundamental no sócius primitivo e
selvagem é exatamente a codificação de fluxos, é marcar e ser marcado e extrair daí uma mais
valia de código para organizar e expandir essa sociedade. E isso funciona através dos blocos
móveis de dívida. Então a dívida é sempre uma dívida de memória, ou seja, você se individa na
medida que você esquece e você paga a dívida na medida que você lembra do futuro, você não
lembra de uma marca passada, você lembra de uma função que é exatamente a sua expansão, o
seu aumento de potência, aumento de energia e não há nunca uma instância que se destaca e
vem utilizar ou usurpar essa mais valia de código para melhor explorar o outro, não há nem sentido
de indivíduo nem de ego aqui por que os nossos órgãos são coletivamente investidos nos rituais...
então a minha boca, o meu nariz, o meu ouvido, a minha mão não são minhas são do coletivo, elas
investem coletivamente alguma coisa, elas são codificadas, elas produzem fluxos e esses fluxos
eles passam ou não de acordo com os códigos coletivos nessa inscrição social que é feita através
dos rituais.
Então essa superfície metafísica, digamos assim, de registro ela acontece exatamente nessa
grande memória coletiva que na realidade é memória de palavras e essa memória de palavras
recalca a memória de signos ou a memória sensível que é exatamente aquela memória das forças
reativas ou daqueles elementos que no corpo devem ser adestradas e selecionadas.
Então há um rebatimento sobre esse outro plano e as minhas marcas são agidas, eu não ressinto
a minha marca... o que que o ocidental faz? se ele é marcado ele é impotente para se subtrair a
ação da marca e não consegue reagir, ele apenas ressente ele é demasiado sensível... é a
memória de marcas que invade a consciência e que impede o devir, que impede exatamente a
pureza da experimentação...-...-...-... por que ele é culpado daquela impotência daquele ser que
está ali marcado e não consegue se subtrair aquelas marcas...-... no caso do sócius primitivo você
age as marcas e as marcas são agidas, elas são investidas...
O casamento nas tribos são feitos... a moça se deita no centro e recebe uma tigela que contém
algum elemento que marcou o corpo do noivo e ela é marcada em seu corpo ao mesmo tempo em
que ela ouve uma voz, aquilo é associado, há uma conjugação de signo auditivo e signo visual, e
essa escrita desses registros sonoros e visuais é uma síntese que marca a posição de desejo
daquela mulher, a partir daquele instante a reprodução daquela mulher está dirigida para uma
linhagem da tribo... a geração, os filhos dela vão pertencer a uma linhagem de que a mulher vai ser
usada para um tipo de aliança e o que é homem vai ser usado para outro tipo de aliança, então é
sempre uma prática de aliança através da inscrição nos corpos e de uma espécie de apropriação
pelo sócius do sentido daquele fluxo... então os filhos dela vão estar relacionados com um tipo de
linhagem que determinou mesmo no momento em que ela se casa com outro... você determina
para onde vai o sentido dos fluxos dos filhos dela.
Então não há nenhuma troca sem a restrição essencial. O que funda a sociedade selvagem e tribal
é exatamente a marca, a inscrição, essa memória de palavras ou essa memória de futuro, uma
memória do ser, uma memória da vontade de potência e não uma memória psicológica, de marcas,
de ressentimento, de má consciência... é uma memória do desejo e da vida, uma memórias
ontológica digamos assim, é uma aliança com a memória ontológica do ser e não uma memória
tipológica do ser, isso que é fundamental...-...-... eu disse que o corpo só é sensível às marcas e
nessa medida mesma ele é incapaz de reagir... o corpo que tem a sensibilidade plena mesmo é
um corpo que recalca suas marcas e só investe em fluxos, é isso que faz o corpo livre, mas esse
corpo ressentido que já dá um sentido culposo para dor, ou seja, se eu sofro é por que eu tenho
alguma culpa, ou por que alguém é culpado, aí o ressentimento ou a má consciência, a culpa é tua
ou minha, é exatamente na medida que esse corpo está impotente para se subtrair as marcas que
o mundo e a sociedade impinge nele... quando no sócius primitivo isso é uma função de expansão,
é uma função de vida, são regras de passagem, a lei nunca é fundo de natureza, então existem
aplicanistas e psicanalistas que buscaram e encontraram... aquele livro do ... Édito Africano... eles
vão lá e não encontram nenhuma matéria e nenhuma forma do édipo lá, mas a estrutura está lá,
não tem o pai mas tem o tio o avô... não tem o filho mas tem o primo e eles tentam buscar essa
forma vazia estrutural que organiza esse tipo de sociedade e que funda esse tipo de sociedade
como se o fundo de toda cultura de toda uma civilização fosse uma culpa uma castração um
incesto uma falta um édipo... então eles ligam por exemplo o édipo a essa posição original do
desejo que é desejo inconsciente coletivo e se tem algo que deve ser recalcado não é o desejo
incestuoso e parrecido do édipo por que isso não existe, nem mesmo o incesto existe, por que o
incesto só existe no momento da extensão, da extensividade dos corpos, o incesto só existe
quando você forma uma figura e aí a figura de pai de mãe e de filho... ora, o momento mesmo do
investimento do desejo é essa figura e ela se dissolve, o incesto é impossível, não é o real que é
impossível é o incesto que é impossível... não existe incesto, incesto é uma ficção, incesto é uma
regra de passagem que a sociedade inventa para a expansão, aí sim, mas dizer que o incesto ou
que o édipo ou que a culpa é o fundo da natureza o que narra a verdade do meu inconsciente da
minha alma ou do meu espírito ao modo de padre cristão que faz o desejo confessar a sua culpa...
então era isso que você queria, comer a sua mãe e matar o seu pai... isso que é édipo e tem que
inocular isso o tempo inteiro no desejo primitivo ou em todo o tipo de desejo... e quem acredita
nisso está perdido evidentemente, ou seja, fica separado do que pode... ...-...-...-... é uma invenção
bárbara... é uma sobrecodificação bárbara que vai dar sentido acético, vai dar o sentido de uma
instância que sobrevoa a terra e julga o desejo, quer aniquilar, quer reprimir o desejo...agora, numa
sociedade primitiva a circuncisão tem o efeito de codificação mas não para mutilar ou para recalcar
ou diminuir a vida, ao contrário, para expandir o desejo, é exatamente o sentido de uma regra de
passagem que é passagem e não lei de natureza... é um artifício que a vida inventa para se
expandir, assim o incesto também, assim todos os tipos de lei, acontece que no momento que
nasce o ressentimento e a má consciência junto com o estado, por que é o estado que funda o
ressentimento, você vê a lei de uma maneira invertida, a lei é a própria imagem invertida e o que
que é a lei vista de forma reativa ou pelo ressentimento ou pelo homem culpado? é exatamente
aquilo que diz a sua verdade, a lei vista sob a ótica do niilismo, do ressentimento, da má
consciência ou do estado ou de uma instância transcendente qualquer ou de Deus, digamos
assim, a lei é sempre vista assim, você tem a sua verdade ali inscrita nela e ela é uma verdade
universal, ela não é só sua é do outro do outro e do outro... quando o tempo inteiro o que a gente
ensinou aqui é o contrário, é que cada um tem a sua verdade e essa verdade não é uma só, essa
verdade é uma energia, uma quantidade de energia. E as formas nós inventamos múltiplas para a
gente se efetuar... então, forma é sempre uma efetuação plural, é uma produção de máscaras
expressivas e o que nos constitui enquanto fundo de natureza é sempre uma quantidade de
energia singular, única sempre e o que faz a lei é dizer assim, a sua verdade é uma forma e não
singular, é uma forma universal, ela universaliza, a imagem é invertida, é um não ao seu desejo, é
isso que faz a lei.
Então, o que essas sociedades selvagens nos ensinam fundamentalmente é que o desejo é
inocente, que a vida é inocente, que o corpo é inocente, não tem culpa não tem acusação, essas
dívidas e essas responsabilizações de dívidas são no fundo simplesmente são meios e artifícios de
adestrar o que é reativo e o que pode trazer a morte e a impotência de dentro da tribo. Na medida
mesma que essa tribo imagina que o incesto pode ascender enquanto chefe ela já inventa
mecanismos para destituir essa possibilidade de o chefe ascender como chefe de sobrecodificar a
tribo segundo os seus desejos e suas vontades. Assim por exemplo o Pierre Clastres ao narrar
algumas atividades de tribos Guaiaquis aqui no Brasil... o chefe só tem a função de chefe na
coordenação de uma atividade de guerra mas na tribo ele tem que falar muito para ninguém ouvir e
dar muito presente, então o chefe sofre muito, ele não tem nenhuma função de privilégio, muito
pelo contrário ele tem que dar muito... e isso é um mecanismo de esconjuração do estado no
interior da tribo... então ela esconjura o estado o mercado... um fluxo não é trocado por outro... um
produto não é trocado por outro, você tem uma inscrição uma memória e uma dívida, um bloco de
dívida que se desloca, só que esse bloco de dívida nunca é suprimido por outro bloco de crédito,
digamos assim, você não tem equivalência entre a dívida e o crédito, há sempre desequilíbrio
funcional e esse desequilíbrio funcional que mantém as linhagens abertas, tanto a título de filiação
vertical como a título de alianças horizontais, você tem sempre uma sociedade aberta e
desequilibrada, o desequilíbrio é essencial para a sociedade, então é por não funcionar bem que
uma sociedade funciona bem, ou seja, ela inventa exatamente mecanismos de segmentação, é
uma máquina de segmentação no momento em que ela percebe que vai haver uma fusão, uma
unidade, um estado que emerge ali, alguma coisa que se destaca ela imediatamente segmenta...
na medida que uma linhagem fica muito extensa, imediatamente ela já cria uma revolta, uma
ruptura e cria uma outra linhagem... então o segmento se mantém sempre autônomo em relação
ao outro segmento, não há instância que se destaque e venha sobrecodificar os códigos ou a
memória coletiva da tribo ou dessa formação social.
Então eu acho que no momento mesmo que a gente entende esse funcionamento a gente também
sabe que é impossível surgir aí a pessoa responsável pelos seus órgãos, pelos seus atos com livre
arbítrio... aí é impossível nascer édipo, nascer a culpa o pecado a má consciência por que não há
um entidade unitária e egóica que se responsabilize por uma quantidade de energia abstrata, o
meu desejo é a minha quantidade de energia abstrata que ao produzir alguma coisa aquilo produz
um equivalente abstrato que é trocado por outro equivalente através de uma forma dinheiro
abstrata que funda o mercado e que fecha o círculo de uma troca. Aqui você não tem círculo
fechado de trocas, você tem a troca sempre subjugada a essa relação de inscrição e de memória e
ao mesmo tempo os órgãos são investidos coletivamente. O ânus é o primeiro órgão a ser
privatizado...-...-...
Aí é uma longa estória...a psicanálise até descreveu alguma coisa nesse sentido só que ela dizia
que a matéria do anus ela é sublimada e o que o Deleuse fala é justamente ao contrário, que não é
a matéria que é sublimada que é o próprio ânus que sobe, o espírito é que se torna capaz de cagar
e defecar, o espírito caga e defeca, é essa a idéia do ânus privatizado e do eu privatizado... no
momento em que há um eu só merda sai desse tipo de atividade de codificação do eu... o eu ele
culpabiliza, ele deprecia, rebaixa e nega tudo... é por isso que ele diz que na medida que a gente
não sai da analidade a gente não sai da merda...
...-...-...-... privatização é o seguinte... no momento que um fluxo ou que alguma atividade ou que
alguma relação é investida coletivamente passa a ser responsabilidade de um indivíduo... por
exemplo eu vou ser responsável pelo meu olho pela minha boca pelo meu ouvido pelo meu ânus,
pela minha merda, digamos assim, e inicialmente nessa sociedade você vai ter ao contrário, você
tem o investimento coletivo de fluxos que é a forma que ela encontra para se expandir, esse
investimento coletivo de fluxos é também traduzido por investimento coletivo de órgãos... os órgãos
nunca são de responsabilidade de uma pessoa, os órgãos que são investidos coletivamente eles
não ficam abstratos ou não se transformam em equivalentes de troca, essa é a grande sacada,
eles impedem o nascimento da propriedade privada... mas isso aí exigiria uma explicação mais
longa e não é o caso da gente fazer hoje aqui...
...-... a dívida é necessária como um meio de adestrar a relação dívida e crédito... a sociedade
inventa esse meio... por que ela diz o seguinte, se você não se liga ou não investe em certa
relação que vai fazer bem coletivamente você vai diminuir a nossa energia, diminuir a nossa
potência... isso é inconsciente, não é que ela entende isso e explica isso e enuncia isso, isso se dá
de forma inconsciente... por exemplo se a rata educando os ratinhos... os ratinhos querem
brincar... eles são alegres, expansivos... então eles estão soltos no mundo... esses fluxos soltos...
aí a rata vem e... morde eles, raia com eles, codifica eles... aquele ato que faz com eles se atentem
para os perigos do mundo... então a educação é sempre uma educação cruel contra a educação
piedosa, a piedade é que mata, a piedade é a pior coisa que pode acontecer a um ser... educação
piedosa é eu ter amor pelas tuas fraquezas... coitado de você, você é fraco e passo a mão pela tua
cabeça... então meu filho mantenha e conserve as suas fraquezas, encontre um jeito de se manter
fraco e miserável e estúpido... coitadinho...
A educação cruel é exatamente aquela que funciona na base da agressividade, não da violência e
da vingança, é uma agressividade que diz olha... aquilo é melhor... dá uma cutucada, uma
espetada... veja, que belo que bonito por aqui... só que isso se dá com uma certa agressão... a
doçura pode ser muito agressiva também... a palavra agressiva as vezes engana a gente... ela
quer dizer que tem energia... então é uma educação com energia, uma prática enérgica.
Então isso que é a codificação, é uma educação um adestramento uma cultura um direito ao
futuro...
dívida, por que se você esquece você cai na liberalidade dos fluxos e acaba enfraquecendo a si
próprio e os outros como unidade inteira... então a dor na realidade é o equivalente de uma
marca... se você não é suficientemente marcado você precisa sofrer uma dor... a dívida não tem o
significado abstrato da nossa dívida capitalista ou da nossa dívida espiritual infinita como ocorre
com as religiões ou com um ser que nunca paga a sua dívida mas paga só os juros dela... é uma
dívida que na realidade se você quiser usar uma outra palavra você usa, mas o fundamental é
você entender o sentido disso, há um deslocamento em você através de uma indicação, algo no
seu corpo é marcado e através dessa marca o seu desejo vai estar investindo aquele canal, aquela
formalização, aquela inscrição, aquela expressão, é um modo de ser do ser, um modo do desejo...
então a marca é isso, é um modo do seu desejo... não é que o seu desejo signifique alguma coisa
através daquela marca, não quer dizer nada, o seu desejo simplesmente é real ele quer se afirmar
mas ele vai atravessar através daquela marca, daquela memória e a dívida é o que? se você não
tem essa marca... é uma falta mas que você paga imediatamente na medida que você lembra do
futuro, da sua função. Então você emerge como personagem, é como máscara e não como ego
como indivíduo, é sempre uma máscara que emerge em você, e essa máscara é sempre plural.
Então o código ele produz máscaras, personagens acentrados não individuados, pré-individuais e
impessoais.
...-...-... inclusive mãe e guerreiro são só uma das outras funções que eles podem ter... a mãe não
é só uma mãe como é na nossa sociedade, a mãe ela tem uma pluralidade de funções e ser mãe é
apenas um dos modos que ela tem de ser na tribo e mãe é uma produção de aliança e não de
herança genética de ascendência ou de descendência ou de relações de parentesco... a relação
de parentesco não é originária ela é sempre criada por práticas de aliança, você tem uma praxis e
não uma estrutura...-...-...-... então você introjeta um elemento esquizo no indivíduo... o indivíduo
que hoje somos nós, a gente não imagina que pode haver uma forma completamente diferente de
se relacionar com a natureza e com os outros corpos... sempre a gente imagina que o que é
diferente de nós é uma perversão é uma transgressão é uma inferioridade e é por isso que a gente
diz que às sociedades selvagens falta história falta estado falta lei falta o édipo falta castração e
tenta jogar uma estrutura nela...
...-...-... é a nossa questão, como foi que isso aconteceu?... o Nietzsche tem uma reposta, o
Espinoza tem outra resposta, a gente aqui está elucidando algumas respostas exatamente no
sentido de entender que isso não era necessário, isso não estava inscrito, isso não era o nosso
carma, digamos assim... Existe uma tendência de certos historiadores marxistas de dizer que há
um evolucionismo e um determinismo histórico e que aí é necessário as sociedades selvagens
evoluírem para a sociedades bárbaras e daí para as sociedades capitalistas e as sociedades
capitalistas evoluírem para as sociedades comunistas...-... é uma instância transcendentes que
está interpretando assim a partir de um centro ou de um fim que é um fim da história ao modo
hegleriano... então o que a gente está o tempo inteiro insistindo aqui é que na realidade existem
rupturas, cortes... a história é feita de acasos e de contingências e um desses acasos foi
justamente o nascimento do estado e o que foi necessário para a emergir o estado? é isso que nós
vamos ver agora...
...-...-... a questão aí é de velocidade de poder... o Kafka e o Nietzsche tem formas muito parecidas
para narrar o nascimento do estado, das bestas loiras, dos homens de olhar de bronze que
chegam como o vento como o destino, que chegam como raio como relâmpago... diz o Kafka é
impossível odiá-los, afastá-los ou fazer alguma coisa por que eles são tão rápidos, violentos,
imediatos e sem nenhum propósito e sem destino que eles simplesmente se impõe enquanto tal e
mais, eles nem falam a língua desses povos que são reprimidos ou que são sobrecodificados,
então não há nem comunicação possível... eles chegam como destino, como uma flecha mesmo e
caem em cima dessas sociedades primitivas...-...-...
"o estado foi o pior encontro que a vida teve... ou a morte que vem de fora...(Nietzsche)... você
reprime, você recalca aquela morte que vem de dentro que é o nascimento de um mercado de uma
propriedade privada ou de um estado ou de uma culpa de um édipo... você reprime isso com vários
mecanismos de vias de esconjuração e de tanto reprimir internamente é que surge essa estória... e
como é que ele surge de fora? de onde vieram esses homens, essas bestas loiras, esses artistas
de olhar de bronze como diz o Nietzsche? eles não vieram do acaso, eles vieram de tribos
também... então os homens da selva, os homens da floresta, uma parte deles se destaca e vai
para o deserto e é lá que eles tramam... sempre tem o paranóico e o seu belo perverso que o
acompanha, a sua força, o seu poder...
Já nas práticas de aliança de uma tribo você tem um bando perverso que maquina dos
casamentos e as codificações e esse bando perverso é sempre ligado a aldeia ou ao
acampamento e você tem aquele paranóico, o caçador solitário que se liga com os fluxos da
floresta, que se liga com os fluxos produtivos e que se identifica com uma filiação intensa e diz eu
sou o maior, a fortaleza, eu sou o todo poderoso, uma natureza que é capaz de dominar a força e
os fluxos da floresta e que se rebate no sócius com essa virtude mas é uma paranóia inocente, é
uma paranóia natural por que não tem uma identidade ou uma idéia fixa que se rebate sobre ele,
tem só uma energia que é rebatida, então você tem o paranóico da floresta e o perverso de
acampamento ou de aldeia.
No momento em que alguns elementos dessa cadeia começam a se destacar e ficam no limite do
sócius tribal e compõe uma outra formação fora da tribo, no limiar dessa tribo, o perverso de
acampamento ou de aldeia se transforma em perverso de cidade e o paranóico da floresta se
transforma no paranóico do deserto. E dessa forma é que eles constituem bandos, máquinas de
guerras com propósitos de formação de outro tipo de sociedade e se abatem ou se rebatem sobre
essas sociedades primitivas. Assim na muralha da China o Kafka descreve as sociedades
selvagens ou então primitivas ou então camponesas sobre as quais essa máquina despótica se
rebate e sobrecodifica e funda nessa mesma forma de relação ou de sobrecodificação um modo
que é o seu meio de capturar o desejo e a vida. Esse modo ou esse meio é exatamente uma nova
aliança e uma nova filiação e nova aliança e nova filiação são termos inclusive usados muito na
bíblia... então a função de você montar império espiritual ou império material pouco importa, ... tudo
que tende a esse poder transcendente, a esse estado transcendente, seja ele material ou espiritual
e que se efetua de uma maneira concreta, tem o meio através de uma aliança e de uma filiação,
uma nova aliança e uma filiação direta. A filiação direta é eu corpo pleno sem órgãos, o déspota, o
paranóico me identifico com Deus, eu sou filho direto de Deus, a minha filiação agora é direta, não
tem mais uma ascendência seqüencial de gerações e nem aquela identificação intensiva da
filiação, eu sou o pai a mãe o avô, eu sou todos os nomes da estória... nesse caso ela só funciona
ligada a uma idéia fixa que é uma idéia do paranóico e a idéia fixa que tem o paranóico é que para
desenvolver o seu poder ele precisa sobrecodificar todos os códigos. Nenhum código e nenhum
fluxo deve escapar à sua formação social. E, na medida mesma que nenhum código e nenhum
fluxo deve escapar é que ele é um paranóico, o que essa sociedade inventa um regime de signos
que é paranóico interpretativo e vai criar uma semiologia, uma escrita articulada com uma voz que
agora sim é uma escrita da história, que agora sim é a escrita do estado, agora sim é uma escrita
linear que subordina a voz do déspota ou a interpretação da voz do déspota através dos seus
escribas dos seus sacerdotes que dizem o sentido da lei que ele funda... o sentido da lei que
deriva do seu poder de fundação.
A gente viu nas nossas exposições iniciais que Dumezil ao narrar as formações sociais em Dorotea
ele distinguia sempre três funções sociais, uma de fecundidade e abundância que era a função da
terra em geral representada pelos camponeses que é a sexualidade, a alimentação e a
reprodução, outra que era a função guerreira que era uma função autônoma, independente que
não se submetia nem aos camponeses, nem à função de fecundidade e abundância e nem a essa
outra função que é de soberania. E a função de soberania é a função exatamente que se liga ao
estado e diz o Dumezil o estado ou essa função de soberania tem duas cabeças, uma é o poder
violento de fundação e outra é a lei pacífica de regulação. Então você tem um poder violento de
fundação que é a medida que chega o déspota com o seu bando perverso e se dobra sobre essas
sociedades primitivas e o outro momento é exatamente a sua lei, o seu significante que vem da
sua voz interpretadas por seus escribas e por seus sacerdotes que diz exatamente o sentido da
codificação dos fluxos e sobrecodificações dos fluxos e daí é inventada uma escrita divina por que
o déspota é o próprio Deus, ele se identifica a Deus, ele faz aliança direta, ele é filho de Deus e ao
mesmo tempo ele é o Deus, ele que é a causa agora da sexualidade, dos alimentos, da
fecundidade, da abundância, da chuva, do sol, da ordem, da paz, da segurança, ele que é a causa
de tudo, ele é o grande corpo sem órgãos e a grande superfície de registro onde tudo vai se
inscrever agora, não mais uma superfície inconsciente coletivo onde o sócius projetava a memória
de seus rituais de investimento coletivo de órgãos, mas sim agora uma sobrecodificação dessa
vontade ou desse poder sobre os códigos de uma sociedade primitiva e o rebatimento desses
códigos e mais valia de códigos que vão ser apropriados por essa instância que agora passa a ser
uma instância transcendente... é uma instância que se descola da imanência produtiva do desejo e
da natureza e começa a sobrevoar a terra e julgar a vida. É assim que emerge a transcendência e
nesse mesmo movimento uma quantidade imensa e aí o sentido daquela sua questão, uma
quantidade imensa de liberdade sobre a terra é abolida, é o que o Nietzsche fala na Genealogia da
Moral...
uma quantidade imensa de liberdade de fluxos é abolida e vida se sente num beco sem saída... as
culturas, as tribos, as formações sociais primitivas se sentem alienadas, atreladas a esse sentido
que é externo e parasitário da vida e da atividade do sócius territorial primitivo.
Daí a extração de mais valia de código que era gerado pelo bloco dívida finita das sociedades
territoriais primitivas agora vira uma extração de mais valia pelo déspota. O déspota se apropria
dessa mais valia de código e faz da dívida que era um bloco finito de memória de futuro, uma
dívida infinita que é em forma de tributo para sustentar o déspota e o seu bando e a sua corte,
impagável... por que você tem um imposto que você tem toda hora que pagar... o déspota ele tem
cartas... nessa transformação social bárbara e despótica ela não funciona mais na forma de grupos
como nas sociedades selvagens e nem como ao modo de Clastres como na sociedade capitalista,
ela funciona com cartas e as cartas que servem ao déspota são aqueles coletores de impostos que
estão sempre indo lá recolher a sua parte de alimento, de artefato, de mulheres, de homens, de
sacerdotes... ou seja, eles extraem a energia de uma atividade real e produzem um devir reativo
em cima de um devir ativo ou primitivo. O devir reativo é que o sentido daquela atividade primitiva
se separa daquilo que era o seu objetivo imanente, daquilo que era o seu alvo imanente que era
afirmar a pluralidade e a diferenciação ou aos olhos de Nietzsche que era produzir um indivíduo
livre e soberano que era o sentido pós-histórico da cultura. Agora você tem então um bloqueio, um
corte, uma interrupção disso e a mais valia e a energia, a atividade que é produzida pelos povos
selvagens e primitivos é capturada, usurpada para fazer o estoque do déspota, das suas cartas e
da sua corte. Então esse estoque serve para aumentar o seu poder, para produzir uma máquina
cada vez mais implacável que se submete de uma maneira cada vez mais inequívoca e fatal à vida
que acontecia nessas sociedades selvagens e primitivas.
Então a vida se separa daquilo que ela pode e entra num devir reativo. No momento mesmo que
essa quantidade de energia de vidas e de corpos são incapazes de vislumbrar um sentido mais
afirmativo, emerge um sentido inútil da dor que desvaloriza a existência e começa a ser
interpretado como algo que pode acusar a existência e você começa a julgar a existência a partir
do momento que a sua dor é uma coisa dolorida e não mais algo que seria o prazer de uma
memória coletiva de futuro que atravessa o sentido original da vida.
Então o sentido da dor passa a ser algo que leva a uma acusação. Por exemplo os judeus ao
saírem do Egito, o movimento que faz Moisés ao libertar os judeus ao fazerem a fuga daquela
sociedade imperial despótica, o mesmo Moisés através da sua arca de códigos paranóicos que ele
ouve na montanha... aquele sentido da voz do déspota é o mesmo sentido que tem na voz de
Moisés... dá uma formalização ao ressentimento material do povo judeu... ele dirige a acusação...
você começa a responsabilizar a vida, os corpos, as entidades, você identifica e responsabiliza e
leva essa acusação a um ponto tal que vai ter um instante que nada mais sobre a terra é ativo,
tudo vai caiu num devir reativo de tanto a acusação ser levada a termo e a acusação é levada a
termo e triunfa no momento em que aquilo que é acusado diz assim, realmente eu sou culpado e aí
é o momento da má consciência, é o nascimento do cristianismo, é... a culpa é minha e a minha
máxima culpa por que minha dívida é infinita, o meu pecado é infinito. Eu sofro por que eu sou
pecador mas é pela minha dor que eu expio os meus pecados, que eu pago a minha dívida... só
que eu nunca paro de pagar a minha dívida por que o meu modo de vida como impotente e reativo
não cessa de multiplicar a minha dor e quanto mais dor eu tenho mais eu sei que eu sou culpado,
mais eu tenho que sofrer para expiar a minha culpa... a máquina imunda diz Nietzsche... máquina
horrenda...-... é a privatização do sofrimento, é o sentido interno da dor...
Então você já tem uma condição de emergência e de contágio do ressentimento exatamente com o
surgimento dessa máquina despótica ou do estado bárbaro. E a forma que ele tem para
sobrecodificar os códigos é exatamente fazer uma nova aliança, no caso de Moisés uma aliança
com Deus, que restabelece a velha aliança com Abraão e ... depois isso não cessa de ser revisto
até uma nova aliança que vai inventar um novo Deus que é o Deus do amor que é o Deus de
Cristo, não mais aquele Deus do ódio judaico mas um Deus do amor cristão que vai ter um outro
sentido, mas você sempre funda um império, um poder através dessas novas alianças e de uma
filiação direta... eu sou o filho de Deus... seja aí um déspota, um Cristo, um Moisés... seja lá o que
eu for que eu seja... mas eu sou filho direto de Deus e eu tenho uma aliança direta com ele, uma
aliança que funda um novo poder.
Se você tem esse ato de fundação em cima de aliança e de filiação é exatamente dessa forma que
eu vou sobrecodificar as alianças de base e as filiações de base que já existem nas sociedades
primitivas territoriais... é aí que vai dar a incidência direta... então eu rebato o sistema filiativo e o
sistema de alianças que tinha na sociedade primitiva em cima dessa nova aliança e dessa nova
filiação direta do déspota... Então agora a causa de tudo ou a quase causa de tudo é o corpo pleno
sem órgãos do déspota, é a grande superfície de registro, é o grande Deus, o grande articulador
de todos os fluxos e é para ele que todos os fluxos se convergem, ou seja, há uma finalidade e
uma origem, ele é o princípio e o fim de tudo que ocorre na sociedade e na natureza... ele é o
grande paranóico.
Então a questão d você ter o estado com essas duas formas de articulação que é esse poder
violento de fundação e a lei pacífica de regulação vai se preencher esse tipo de função nos rituais
que se repetem nas várias estações ou nos vários acontecimentos ao longo de um ciclo ou ao
longo de um ano e essas encarnações de rituais são sempre encarnações de mitos ou de modelos
ou de narrativas míticas que revivem, que repetem ou que reestabelecem o poder de fundação do
déspota e ao mesmo tempo a sua lei de regulação. Então através dessas práticas rituais, das
festas e das suas narrativas místicas e interpretações dessa mesma narrativa através das escritas
dos escribas e dos sacerdotes que vai te dar o sentido da sobrecodificação dos códigos e um
desses rituais se dá exatamente na medida que o déspota ele comete o incesto com a mãe e com
a irmã... é só vocês lerem a história que vocês vão ver uma infinidade de exemplos de déspotas
que se casam com a mãe, com a irmã por que eles vão ter a relação direta com o Deus e uma
nova aliança que é representada exatamente no casamento com a mãe. Então eles fundam a
descendência no casamento com a mãe e são a causa da aliança no casamento com a irmã.
Existe aí toda uma questão a ser explicitada e desenvolvida numa outra oportunidade para ver
exatamente como isso se dá...
mas para resumir esse tipo de formação social bárbara que faz emergir o estado inventa também
um regime de signos chamado regime de signos paranóico interpretativo que nos atravessa até
hoje na nossa linguagem no momento em que nós nos identificamos ao édipo.
Édipo não é nada mais que o regime paranóico interpretativo em nós... mas isso já dá a indicação
de um outro regime de signos que é o passional reivindicativo, só que no campo despótico esse
regime está submetido ao regime paranóico interpretativo que é o regime do poder violento de
fundação, mas na lei de regulação pacífica você já tem uma forma de articular significado com
significado através da forma significante. Você rebate o significado no significante e produz um
outro significado e daí você vai ter uma relação não mais com o simbólico ou com o significante
mas com o imaginário e o imaginário é que vai fundar a dimensão submetida do nosso eu ou do
nosso édipo... é o édipo que aceita finalmente que ele é incestuoso e quer superar o complexo
abaixando a cabeça como dizia o Nietzsche. No momento que você abaixa a cabeça e diz eu sou
culpado você se supera e entra na cultura... a santa castração...
O que é fundamental marcar aqui é que na formação social do mundo despótico você tem não só o
nascimento do estado como também o nascimento dos dois regimes de signos que atravessam a
nossa subjetividade e o que vai acontecer com o sistema capitalista é a interiorização de um
estado que até então era exterior. Então o déspota e a lei que estavam fora, o déspota e o
sacerdote vão ser o déspota e o sacerdote dentro de nós no momento em que a gente interiorizar
o édipo... o déspota e o sacerdote dentro de nós vão ser a condição básica de funcionamento da
sociedade capitalista.
A idéia fundamental é que o nascimento do estado ele é contingente, ele é acidental e ele vem de
um tipo de energia que se descola da sociedade selvagem... sai dela e se rebate sobre ela... é
assim que nasce o estado a culpa a falta a lei o devir reativo das forças, que nasce a vontade de
negar, de negar esse mundo e a vida e de depreciar a existência... essa seria a origem do niilismo
para falar ao modo de Nietzsche.
...-...-...são acasos, acidentes que se fazem num certo momento apenas a ocasião mas isso não
significa que venha a se desenvolver ou a se instituir, não significa que o devir reativo niilista fosse
necessário...-... revertido não pode, deve ser acelerado...-... pode-se fazer a reversão desse tipo de
sociedade, desse tipo de prática e de valor, mas existe uma ocasião onde isso se dá por que você
não tem ressentimento ou má consciência a não ser com um mal encontro... o estado é um mal
encontro como diz Nietzsche... o pior encontro... você tem encontro com a morte, com a morte que
vem de fora... a morte de uma sociedade que buscava uma atividade expansiva plural... você
começa a ser oprimido na medida que sua atividade é reduzida a uma unidade, a uma
interpretação central despótica que não é somente a origem como a finalidade de todas as suas
ações, idéias e existências... é o momento onde nasce uma dívida de existência... mas isso é
ocasional, isso não é da essência da natureza, no entanto é a natureza que produz... não há
nenhuma instância ou uma entidade demoníaca que venha gerar o mal entre os homens... é o mal
encontro, assim como um veneno que decompõe o sangue... uma trombada mesmo... Agora você
tem o paranóico que desenvolve uma energia maluca... ele não é um homem reativo, ele tem uma
potência imensa, ele tem uma vontade imensa de formalizar alguma coisa, é por isso que o
Nietzsche diz... artistas de olhar de bronze...
...-... o Kant funda o homem no dever no sentido que ele tem um horizonte fundador, ele é um
formador, ele forma um corpo social, ele forma um organismo mesmo, ele é um organizador... mas
ao formar ele tem a capacidade de se instituir de repetir essa idéia formadora e na medida que ele
repete essa idéia formadora e essa idéia só se dá entre povos que já tem uma formação de base,
ele consegue instituir esse estado ou essa formação a custa de uma negação de uma atividade
imanente a sociedade primitiva... ele passa a ser então uma vontade de negar... a vontade dele é
formar mas no encontro com esse tipo de sociedade passa a ser uma vontade de negar aquela
velha forma primitiva... por que não se esqueçam que ele saiu desse tipo de sociedade e ele não
se adaptou, alguma coisa houve com ele, com ele e com os perversos de aldeias...-...-... não há
ressentimento nem má consciência nem no déspota nem no perverso... não tem isso ainda a não
ser enquanto matéria...-...-...-... a marca não foi suficiente e o fluxo escapou... o horror que tinha no
sócius primitivo era exatamente essa desterritorialização dos fluxos e que aconteceu...-...-...-...
...-... sem dúvida há um medo incrível de que o mal, a desagregação, a desorganização se emerja
a partir do momento em que aquele fluxo não foi suficientemente marcado, ... tanto é que se vocês
analisarem vários relatos etimológicos e antropológicos de que como se dá a cura de um doente
ou até de um efeminado que os psicanalistas interpretariam como um édipo de tribo, você vai ver
que a doença ou o mal tem relação direta com uma marca que se desfaz... aí intervém entidades
que são códigos já desencarnados mas que se reatualizam, se reencarnam e que daí voltam ao
modo de personagens e aí é aquilo que você falou sobre os orixás... são retornos de funções,
retornos de papéis de memórias de futuro... que voltam para sanar aquela falta, aquela
desenergização, enfraquecimento ou aquela doença...
então com o déspota isso ocorre de fato por que eles não conseguem mais se subtrair a ação do
déspota e do seu bando... eles vão ter sempre que dar uma parte da sua produção para o déspota,
as filhas vão antes para o deflorador sagrado e aí elas são sobrecodificadas numa nova aliança e
numa filiação direta antes de se relacionarem com outros homens no campo social... então há um
rebatimento de todo tipo de atividade das sociedades tribais primitivas sobre o corpo do déspota e
o seu código significante supremo que é identificado na sua voz.
A voz do déspota faz aquela escrita ampla que existia no sócius primitivo agora uma escrita linear
subjugada a voz e é essa a origem da escrita linear não tem outra...-...-... agora os escribas e os
sacerdotes são os intérpretes da vontade do déspota... os escribas nada mais são do que os
contadores, eles vão contar o estoque a produção e regular o consumo e os sacerdotes vão dizer o
sentido da lei, vão dizer o que passa e o que não passa e o sentido da sobrecodificação... então
são funções essenciais para que esse tipo de sociedade exista mas, o déspota também tem horror
aos fluxos que são descodificados por que o mercado e a propriedade que é privada não emergem
ainda com esse sistema. Existe o dinheiro, uma operação mercantil, existe os mercadores que tem
uma função de ir buscar outras iguarias em outros impérios... mas o dinheiro ele é regulado só
para fazer aquisição nesse tipo de necessidade... tem um limite para a necessidade desse tipo de
sócius, assim uma mina de ouro ela é fechada no momento em que é satisfeito o estoque
necessário a essa formação social. a quantidade de moedas impressas é uma quantidade
reduzida, limitada, então é impossível haver um mercado livre de troca no interior dessas
sociedades... há um pensador francês chamado Etiane Balasse que escreveu um livro dizendo por
que não emergiu o capitalismo na China no sec. 13... é por que você tem uma sociedade
extremamente fechada que limita a circulação do dinheiro e atrela o dinheiro fundamentalmente ao
pagamento de impostos, então se tem uma relação direta do pagamento de impostos e a extração
de mais valia de códigos e de bens de produtos e você não tem nem o dinheiro que serve de
equivalente abstrato para a troca e nem essa troca generalizada onde o sistema se fecharia e se
funcionaria por si próprio através de uma produção independente da demanda do sócius e de uma
apropriação também independente da alimentação de uma moeda. Agora você tem uma moeda
ilimitada e uma produção independente. Assim a produção industrial de um sistema capitalista, o
fluxo de trabalhadores livres e o trabalho como uma quantidade de energia abstrata regulada por
um tempo abstrato, a propriedade privada e acumulação primitiva de alguns mercadores e o
rebatimento dessa acumulação primitiva em cima de uma produção industrial, de uma força de
trabalho. Essas condições não são dadas numa sociedade do tipo bárbara e despótica. Então isso
é essencial para a gente entender a diferença de uma sociedade capitalista de uma sociedade
despótica ou de uma formação social primitiva.
Existe uma certa tendência de as pessoas acreditarem que o capitalismo sempre existiu, isso é
uma ilusão retrospectiva. O capitalismo é muito recente e ele nasceu no sec.18/19. Então o tipo de
sujeitos que nós somos, o tipo de almas que nós temos, o tipo de corpo e de organismo que nós
temos, as funções que nós exercemos são funções próprias de uma época e de uma sociedade
que é a nossa... capitalista.
A nossa sensibilidade, o nosso modo de perceber e de sentir de pensar de agir e de sentir, se a
gente está submisso a esse plano existencial a gente não capta o sentido que ultrapassa o sentido
de época, a gente está atrelado ao sentido de época, a gente vive numa cegueira de época através
desse fechamento de sentido e de valor de época que a gente acredita não ter nada além da
cortina, mas essa cortina é apenas uma dobra e atrás dessa dobra existem outras dobras muitas
dobras e muitas maneiras de ver que a vida deve e pode inventar para se liberar desse tipo de
engodo que é a sociedade capitalista que cria não mais uma codificação nem uma
sobrecodificação mas uma descodificação através de uma axiomática equivalente de fluxos e de
agentes de forças que criam efeitos na máquina política.
Enfim essa sensação de solipcismos que o Descartes narrava na sua invenção do código na
realidade já era o prenúncio do eu moderno que tem a sua quantidade de energia de desejos
sempre abstrata que vale por um tempo que vale por uma troca, que não vê afirmada a sua própria
diferença mas vê trocada a sua energia por uma quantidade abstrata que por sua vez vai
possibilitar adquirir a falta já inoculada no seu ser através dessa quantidade abstrata que o meu
desejo troca e obtém. Aqui é o sentido de uma propriedade privada de acumulação do dinheiro e
do exercício da troca. Eu acho que isso é uma introdução para a gente começar a desenvolver
esse aspecto na nossa última aula a semana que vem.

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