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“A partir do momento em que escrever não é, todas as vezes, todas as coisas confundidas

numa só, por essência inqualificável, escrever não passa de publicidade. Mas a maior parte das
vezes não tenho opinião, vejo que todos os campos estão abertos, que não haveria mais
paredes, que o escrito já não saberia onde se meter para se esconder, se fazer, se ler, que a
sua inconveniência fundamental deixaria de ser respeitada”

Marguerite Duras (O amante)

O que é possível dizer acerca de escrever livros? O quanto é importante


publicar ou não? Escrever não é nada, sobretudo nada que tenha a ver com
subsistência. A partir do momento que tenha, deixa de ser a realização de
vocação. Não é exatamente o que acontece com quem escreve textos
jornalísticos? Não escrevem, subsistem. Se em algum momento escreverem,
está instalado o impasse. Não, não dá para conciliar. Escrever para ganhar a
vida e Escrever são coisas excludentes cujo único ponto em comum é serem
iguais no ato. O caso, para ficar em tempos atuais, de Rosa Montero. É possível
escrever divinamente e não ter o chamado e, ao contrário, ter uma outra
escrita, aquela a que Rilke se refere – a de que não se pode prescindir para
sobreviver.

Não sei se todos os que ganham prêmios literários estão nessa condição. É
possível. Ou não. Sei lá. O que parece certo, mas não incluindo o caso do
próprio Rilke. Mas de Proust, e de Joyce. De Duras, de Dujardim. Dostoievski.
Clarice. As irmãs Bronte. Etc. De qualquer escritor que tenha de escrever
romances ainda que não viva disso – a contos, acredito, todos em algum
momento se arriscam (exceções como Katherine Mansfield, penso, confirmam a
regra); e poesia está numa outra dimensão do que se trata neste texto: a
dimensão de Rilke e Eliot. Após a lei da obrigatoriedade de diploma de
jornalismo, eu perco o emprego, mas continuo escrevendo; quando o mercado
de livros de bolso acaba, continuo escrevendo; passando fome e frio nas ruas,
eu precisava tanto de um caderno e caneta quanto de comida e teto. Vaidade
dizer isso? Só se for como a vaidade da beleza física, de cuja feitura quem é
belo não participou. Não virtude mas condenação.

Escrevo livros. É minha justificativa pela insistência em sobreviver.

Que loucos os sonhos de ser escritor!... Ou já se é ou se jamais será. “E assim,


desanimado, renunciava a literatura para sempre. Tal sentimento íntimo,
imediato, que eu possuía do nada do meu pensamento prevalecia com todas as
palavras elogiosas que me dirigiam, como os remorsos na consciência de um
malvado cujas boas ações todos louvam” (Proust, No caminho de Swann). E se a
virtude do texto será sempre discutível, se os assuntos abordados não serão de
acordo com as leis da moral, da estética, da sintaxe e do gosto vigentes,
alguma outra coisa existe, inelutável, inexorável, impregnando os romances.
Todos os romances? Vale a regra mencionada. Todos os romances cujos autores
são escritores. “...senti mais uma vez a minha nulidade intelectual e percebi
que não nascera para a literatura” (Proust, À sombra das moças em flor). Se
Proust pode duvidar da própria qualidade literária, ninguém está a salvo. “Meus
inquietos esforços descontentes eram eles mesmos um sinal de amor, de um
amor sem prazer mais profundo. E assim, quando, subitamente, encontrava tais
frases na obra de outro escritor, deixava-me enfim levar, deliciado, pelo gosto
que me causavam, como um cozinheiro que, por uma vez, quando não precisa
cozinhar, encontra tempo de ser um gourmand”

Quando Joyce diz “Escreva, desgraçado, escreva sobre isso! Pra que mais você
serve?” (Giácomo Joyce) não deixa espaço para grandes teorias. É assim e
pronto, e ponto. Quem escreve serve para escrever e olhe lá. Quando escrever
traz celebridade em vida, e tudo o que, por exemplo, seria bastante adequado
a um diplomata ou um cientista, parece que há no ar um cheiro de arroz
queimado. Esse escritor talvez tenha sua única referência na qualidade de seu
sentir e de seu ser que devem estar de algum modo melhores após o livro – um
sentir que é ainda mais subjetivo porquanto estará também ligado ao sentir de
seu leitor. Então escreva, desgraçado.

Nas minhas andanças mundo afora,


Na busca de longos anos, a esperança
Virou fantasma incapaz de lidar
Com a alegria e o alarde do sucesso —
Já não censurava a fonte que havia
No coração, fracasso alegando.(...)
Dos companheiros que me precederam:
Fulano era tão forte, outro tão bravo,
Beltrano iluminado;
E todos perdidos
!
Browning, Torre sombria

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