Você está na página 1de 7

Cristiane Madanêlo de Oliveira

Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(DES)CONSTRUINDO RELAÇÕES DE GÊNERO ATRAVÉS DA OBRA DE ANA


MARIA MACHADO

No encontro com qualquer forma de arte (re-presente-ação da realidade), os


seres humanos têm a oportunidade de ampliar, transformar e enriquecer sua própria
experiência de vida. A literatura, enquanto manifestação de arte, desempenha um
papel fundamental na formação do pensamento da sociedade ocidentalizada
contemporânea que está estruturada com base na palavra escrita.
Nesse sentido, o presente estudo deter-se-á à análise da arte da palavra que
é produzida para a infância e que, pela especificidade do público alvo, relaciona-se a
seres em processo de formação identitária. Pela natureza deste trabalho, fez-se
necessário um recorte temático somado à restrição de um corpus representativo de
análise. Para tanto, a escolha de Ana Maria Machado não se deu apenas pela sua
representatividade no cenário da literatura brasileira, mas também porque à mão
escritora soma-se o olhar crítico que recai freqüentemente sobre o próprio fazer
literário. Diante do quantitativo de livros publicados por Ana Maria Machado1, optou-
se pelos estudos de gênero que serão observados em dois livros da autora
recentemente editados: O príncipe que bocejava (2004) e A princesa que escolhia
(2006).
No lastro da pós-modernidade, os papéis sociais delimitados para os sexos
feminino e masculino passam por um profundo processo de transformação. Como
bem destaca o sociólogo espanhol Manuel Castells (2000), a força de trabalho
feminina remunerada abalou a legitimidade da dominação masculina, em que o
homem assumia o papel de provedor da família, base do patriarcalismo. Por conta
dessa e de outras significativas mudanças no panorama mundial, os estudos de
gênero vêm crescendo e ganhando novos contornos.
O momento inicial desses estudos atrela-se a uma necessidade de garantir
visibilidade ao feminino no mercado de trabalho, na produção intelectual, na
sociedade, enfim, em todos os aspectos. Para tanto, houve momentos de
exacerbação de ânimos e discursos acalorados. Recentemente, entretanto, o foco
dos estudos de gênero tem-se voltado também para o ser masculino frente a uma
nova posição social da mulher.
A partir da distinção entre sexo e gênero, na década de 80, sabe-se que a
diferença comportamental entre homens e mulheres e as características ditas
masculinas ou femininas são constructos sociais. Conforme sistematizou o professor
Sócrates Nolasco (2001): “Homem e mulher, masculino e feminino são aspectos
distintos do ser” (p. 151).
Por ser uma construção social e ligar-se às identidades culturais, a categoria
de gênero encontra-se em freqüente processo de des-re-construção sob influência
1
Registra-se até o primeiro semestre de 2007 em torno de 150 obras, entre romances, textos para crianças e
jovens, além de obras de teor crítico.
de cada sociedade e época. Portanto, pensar as novas perspectivas de papéis
sociais para homens e mulheres requer que se observe como se está “ensinando”
culturalmente a meninos e meninas o que é ser homem ou mulher no mundo
contemporâneo. Nesse sentido, a literatura infantil tem um papel importante para a
reprodução ou a transformação de modelos sociais de base patriarcal.
Em nível acadêmico, encontram-se muitas pesquisas que se dedicam a
questões ligadas ao feminino nos livros de Ana Maria Machado. Nessa linha, Regina
Zilberman, uma das maiores especialistas em literatura infantil brasileira, no capítulo
“Meninas que assoviam” que integra o livro Como e por que ler a literatura infantil
brasileira (2005) analisa algumas personagens femininas fortes criadas pela
escritora em títulos como Raul da ferrugem azul e Bisa Bia, Bisa Bel. Nessa
perspectiva, as palavras de Ana Maria Machado trazem a consciência de que a
literatura carece de personagens femininas fortes pintadas por escritoras:
Até mesmo porque tradicionalmente os homens ocuparam os
espaços, também na literatura, a mulher leitora se forma por meio de
um processo completamente diferente do homem leitor. Ou seja,
cresce lendo uma quantidade enorme de livros escritos por homens e
não por mulheres, tendo mais possibilidades de compreender a alma
masculina graças ao poder da literatura de fazer a gente se botar no
lugar do outro. Por um lado, isso empobrece um pouco as mulheres,
negando-lhes modelos femininos fortes e verdadeiros, vistos de
dentro. [...] Mas, por outro lado, isso amplia muito os horizontes da
mulher leitora em relação ao homem, porque ela passa a conhecê-lo
melhor do que ele a ela. (MACHADO apud BASTOS, 1995, p. 64-65)

A partir desse ponto de vista, nota-se que a obra da escritora está repleta de
personagens femininas que assumem a própria voz. Frente a essas figuras
decididas e seus comportamentos, algumas personagens masculinas mostram-se
despreparadas e, muitas vezes, desconsertadas em meio a essa mudança.
Um dos referencias de literatura infantil são os contos de fadas que, muitas
vezes, tematizam histórias que reproduzem um sistema social de base patriarcal na
caracterização de príncipes e princesas. Já com a publicação de História meio ao
contrário (1979), Ana Maria Machado problematiza os papéis tradicionais dessas
personagens. Nessa obra, percebe-se, desde o título, uma predisposição para
questionamentos dos valores tradicionais. Quanto aos papéis gendrados, também
são marcadas quebras de paradigmas quando, por exemplo, o príncipe prefere ficar
com uma pastora a casar-se com a princesa.
Nessa mesma perspectiva, as narrativas de O príncipe que bocejava (2004) e
A princesa que escolhia (2006) apresentam protagonistas que rompem com os
referenciais de comportamento dos contos de fadas tradicionais. Ambos os textos
apresentam estruturas narrativas parecidas, o que favorece o entendimento de uma
intencionalidade na produção dessas obras. Some-se a isso o fato de os títulos
também se assemelharem pela inclusão de uma oração de caráter adjetivo para
restringir os substantivos príncipe e princesa.
Os protagonistas dos títulos em exame passam, igualmente, por um processo
de aprendizado do que é ser futuros rei e rainha. Nesse sentido, o menino é
preparado para escolher sua futura esposa e a menina, para obedecer e ser
escolhida por um pretendente. O rompimento com esses papéis tradicionais pode
ser observado nos dois textos de maneiras diferentes.
A escolha do ato de bocejar como caracterizador do protagonista de O
príncipe que bocejava marca o desinteresse pelas pretendentes à posição de futuras
rainhas. Tal enfado deve-se ao comportamento conhecido culturalmente como
“tipicamente feminino”. Na passagem a seguir, pode-se notar a caracterização
pejorativa dada a essas figuras femininas pelo príncipe:
É que nem podia ouvir falar em princesa que se lembrava das
conversas que tinha ouvido. De todas aquelas moças falando de
roupas e do cabeleireiro e do namorado de uma amiga e da irmã da
vizinha e do último lançamento da butique e do regime que a prima
da cunhada tinha feito e da festa do duque e do número de calorias
do empadão e do chapéu novo da marquesa e do chapéu velho da
baronesa e do corte de cabelo esquisito da condessa e da...
(MACHADO, 2004, p. 11)

Assim, a narrativa mostra que o elemento masculino não deseja mais


mulheres com quem não se pudesse compartilhar, conversar, enfim, dividir a vida.
Tanto é assim que no final da história, o protagonista recebe uma nova designação:
“Príncipe que não bocejava mais”. Essa transformação advém do rompimento que o
príncipe empreende e de uma viagem2 que ele faz como uma espécie de
aprendizado por experimentação. Em meio a essa viagem, o príncipe conhece uma
moça a qual está viajando de trem sozinha e que recebe, posteriormente, a
designação de Princesa que lia.
Em A princesa que escolhia, a protagonista também não se interessa pelos
pretendentes que se apresentam para desposá-la. Assim como na outra história,
existe um baile no reino para que o casamento seja “arranjado”. A princesa, mesmo
sendo bastante educada, prefere encaminhar os príncipes a outras moças
casadoiras que, no caso, são as protagonistas de contos de fadas tradicionais como
Rapunzel, Cinderela e Bela Adormecida.
Percebe-se, assim, que há um posicionamento crítico por parte de Ana Maria
MAchado quanto ao comportamento tradicional de príncipes e princesas. Na maioria
dos contos de fadas, cabe ao príncipe o papel da viagem para aprender pela
experiência e enfrentar provas e desafios a fim de marcar sua virilidade. Nesse
contexto tradicional, o elemento feminino assume um papel passivo e restrito ao
ambiente doméstico enquanto espera ser salva pelo valoroso pretendente.
Nesse sentido, a princesa que escolhia tem comportamento diferente da
princesa que lia que protagoniza o outro texto de Ana Maria Machado. Enquanto a
primeira é colocada de castigo pelo pai numa torre por causa de sua “rebeldia”, a
2
A questão da viagem como um processo de aprendizado é uma característica da produção de Ana Maria
Machado marcada também em outros textos.
segunda não tem marcados referenciais familiares que limitem suas ações enquanto
viaja sozinha de trem. A Princesa que escolhia aproveitou seu isolamento na torre
para se aperfeiçoar, uma vez que o referido castigo é caracterizado como algo
positivo, como se pode notar no seguinte fragmento:
Foi a maior sorte da vida da princesa. Porque essa torre ficava bem
isolada do resto do castelo. Na verdade, eram os antigos aposentos
de um mago que saíra para viajar e nunca mais voltou. Tinha uma
biblioteca aonde quase ninguém ia. E dava para um jardim fechado
por um muro alto, onde quase ninguém entrava. (...) A maior das
maravilhas. Tinha um monte de livros e computador com acesso à
internet. E ela lia, lia, sem parar. (MACHADO, 2006, p. 5-9)

Assim, o que interliga as duas princesas das diferentes histórias é um mesmo


elemento comum: a leitura. Enquanto a Princesa que lia se liga ao príncipe porque
eles têm assuntos comuns a conversar, a Princesa que escolhia apresenta, no final
da história, uma posição ativa ao assumir o poder político do reino e conquistar o
poder de escolha de seu futuro marido.
Outro ponto de convergência entre as narrativas é a questão do casamento e
as implicações que essa união entre seres pertencentes à nobreza pode apresentar.
A posição social do protagonista de O príncipe que bocejava, obriga-o a constituir
um casamento enquanto decisão política. Para isso, foi promovido “um grande baile,
daqueles de escolher noiva” (MACHADO, 2004, p. 6). Tal evento, como um ritual de
passagem, representa simbolicamente a transição para a idade adulta e,
conseqüente, reconhecimento na sociedade. A expressão caracterizadora atribuída
ao baile confirma a idéia de que, tradicionalmente, caberia ao homem o poder de
escolha de sua parceira. Diante dessa situação, o príncipe não se mostra indiferente
e participa de dois bailes com o intuito de encontrar uma futura rainha até que se
depara com as conversas enfadonhas de suas pretendentes.
A posição de escolha da protagonista da outra obra em análise já aparece
marcada desde o título: A princesa que escolhia. A primeira escolha que ela faz,
depois de ser liberada do castigo na torre, foi a de não se casar antes de estudar,
viajar e conhecer outros lugares e pessoas. Sendo assim, o adiamento do
matrimônio para que a figura feminina possa investir em sua formação intelectual
instaura uma quebra de paradigma quanto à proposta tradicional dos contos de
fadas.
Interessante notar que, mesmo viajando sozinha, a princesa não se assusta
ou se mostra arredia à investida do príncipe. Dessa forma, ele não enfrenta a
rejeição feminina e a aproximação se faz sem maiores problemas. É, por intermédio
da leitura que se realiza o primeiro contato que acaba despertando interesse por
parte do rapaz. Cumpre notar também que os questionamentos do príncipe acerca
da incomum liberdade daquela moça só se manifestam quando ele já se encontra
interessado por ela.
Mas um dia começou a pensar: “Que mistério era aquele? Como é
que aquela moça podia ir para onde quisesse, daquele jeito? Não
tinha família? Não morava em lugar nenhum? De onde vinha? Para
onde ia?” Resolveu perguntar. (MACHADO, 2004, p. 19)

Por um bom tempo, eles empreenderam uma viagem juntos sem que
houvesse estranhamento da parte dele ou medo dela em relação à aproximação de
um rapaz desconhecido. Ainda que tenha ocorrido uma espécie de modernização do
príncipe, os questionamentos dele reforçam as noções de gênero e anunciam um
desconserto diante de tanta liberdade e autonomia daquela moça.
As perguntas do protagonista tratam de relação de poder, pois ainda é
incomum mulheres viajando sozinhas, sem proteção ou controle de representantes
do sexo masculino. Outro ponto interessante é a relação com a família, pois essa
representante do sexo feminino não está mais enredada nos laços de familiares. É o
príncipe que se preocupa com a questão familiar, enquanto a moça não fala a
respeito disso em momento algum no texto. A relação de pertencimento e o destino
são preocupações também por parte do rapaz.
O final apresenta uma releitura do “e foram felizes para sempre” através da
intervenção da voz narradora que assume a primeira pessoa do singular: “Não sei se
viveram felizes para sempre. Mas por muitos e muitos anos, até onde a memória
alcança, tiveram assunto para conversar e se divertir.” (MACHADO, 2004, p. 20).
Esse desfecho alude não somente a uma nova forma de terminar os contos
tradicionais, mas repensa a idéia de príncipe encantado e de casamento.
Como as mulheres passam por um processo de libertação do poder
econômico masculino no casamento, esperar por um príncipe encantado também
merece revisão. A força de trabalho remunerada para as mulheres abalou a
legitimidade da dominação masculina enquanto provedor da família. Dessa forma,
não é fundamental na vida de uma mulher encontrar um excelente provedor para
reger sua vida e de sua família. Muitos são os lares em que a sustentabilidade é
garantida exclusivamente pela força de trabalho feminina.
Nessa nova configuração social, intimamente influenciada pelos referenciais
de trabalho, homens e mulheres criam novas expectativas em relação a um
relacionamento pessoal. A espera pelo príncipe encantado ou a busca de uma
princesa indefesa perdem espaço para a figura do/a companheiro/a. Os novos
paradigmas sociais exigem dos casais maior co-participação em várias instâncias
como a questão financeira, a educação dos filhos e os afazeres domésticos.
Por conta das sucessivas mudanças sociais e dos ajustes das posições de
homens e mulheres nessa nova situação, a idéia de tempo prolongado para um
relacionamento revela dois problemas. Um deles é a mudança de perspectiva do
tempo que é visto como acelerado demais, não sendo condizente com a
imutabilidade do “para sempre”. Outro ponto importante é que o casamento não está
mais atrelado a uma cobrança social de indissolubilidade.
Na pós-modernidade nada é imutável, está tudo em movimento constante de
transformação, inclusive as relações afetivas e o casamento. Desde a década de 60,
os valores que estruturavam a sociedade ocidental passaram a ser questionados,
gerando uma crise de identidade nos sujeitos. O polonês Zygmunt Bauman, um dos
mais prestigiados estudiosos do mundo pós-moderno, trata da fluidez das relações
humanas no livro Amor líquido de 2004.
Segundo o sociólogo, o longo processo de desaprendizado do amor, na
líquida sociedade pós-moderna, relaciona-se à vivência e formas de relacionar-se
que obedecem aos princípios do consumismo. Um dos pressupostos do capitalismo
se baseia na compra de bens, mas não com o objetivo de acumulá-los e, sim, de
usá-los e descartá-los, freneticamente. Assim, o homo consumens vê o seu próximo
como um objeto de consumo, inclusive os seus próprios parceiros, transformados
em objetos de consumo emocional.
Com olhar crítico quanto à paisagem humana da “modernidade líquida”,
Bauman constata que o desaprendizado do amor ultrapassa o plano das relações
afetivas e familiares para atingir a sociedade. Esse quadro de relações humanas
mercantilizadas e de liquefação dos laços sociais gera altos níveis de insegurança
nos indivíduos, um “mal-estar da pós-modernidade”.
Mergulhado nessas mudanças, o casamento também passa por reajustes e
não representa mais um ideal de segurança. Como afirma o sociólogo,
“relacionamentos são investimentos como quaisquer outros” (BAUMAN, 2004, p. 29),
por isso as promessas de compromisso a longo prazo mostram-se sem sentido.
Dessa forma, não se pode mais pensar em “felizes para sempre”, até porque o
“sempre” parece não resistir aos constantes processos de mudança do mundo
contemporâneo. Sendo assim, a voz narradora de O príncipe que bocejava não
poderia afirmar que foram felizes para sempre, uma vez que não faz mais sentido tal
posição.
Ainda que sejam perceptíveis mudanças no comportamento dos príncipe e
princesas, personagens das obras estudadas, alguns padrões de comportamento
masculino reduplicam a estrutura patriarcal. Mesmo assim, há indícios de
reavaliação dos paradigmas de papéis femininos e masculinos dentro da sociedade.

Referências bibliográficas
BASTOS, Dau (org). Ana & Ruth. Rio de Janeiro: Salamandra, 1995.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
CASTELLS, Manuel. “O fim do patriarcalismo: movimentos sociais, família e
sexualidade na era da informação”. In: __________. O poder da identidade. 3. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. p. 169-285.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 5. ed.
Petropólis: Vozes, 1987.
MACHADO, Ana Maria. A princesa que escolhia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2006.
__________. O príncipe que bocejava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
__________. História meio ao contrário. São Paulo: Ática, 1982.
NOLASCO, Sócrates. De Tarzan a Homer Simpson: banalização e violência
masculina em sociedades contemporâneas ocidentais. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2005.

Você também pode gostar