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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

O OUTRO LADO DA SÍNDROME DE ASPERGER

Simone Roballo

Dissertação apresentado ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade Católica
de Brasília como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Psicologia.

Orientadora:Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva

Brasília
Novembro de 2001
___________________________________________________________
Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Jairo Werner Júnior

______________________________________________________________________
Profa. Dra. Elizabeth Tunes.

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Aos meus pais, Maria Luiza e Nelson,
meu porto-seguro sempre, minhas referências de honestidade,
dignidade e sabedoria -
exemplos de vida.

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AGRADECIMENTOS

A minha, inicialmente, orientadora, mestra, professora, e hoje, também, amiga


Mariza Vieira da Silva - pela competência e profissionalismo com que conduziu esse trabalho,
sem, no entanto, esquecer da delicadeza, do incentivo e do carinho que permeiam as relações
entre sujeitos.
A Faculdade de Ciências da Saúde do Centro Universitário de Brasília – FACS -
UniCEUB - pela oportunidade da realização dessa pesquisa.
Aos meus sujeitos–SA, meus eternos “meninos”, e suas famílias, pela confiança
depositada em mim e por me darem a oportunidade de mudança de paradigma profissional,
A minha família, em especial, meus irmãos Sergio e Murilo, a Rosane e Renata, pela
ajuda muitas vezes desapercebida, mas fundamental; ao meu avô, Sr. Silva, que mesmo de longe
é fonte de apoio e orgulho e a pequena e linda Caroline, por sua contagiante alegria de viver.
As minhas alunas de iniciação científica – Tathiana, Márcia, Kênia, Flávia, Cecília e
Andréia – pela ajuda indispensável na realização da pesquisa.
Às Profas. Elizabeth Tunes e Albertina Martínez pelas valiosas contribuições feitas
durante o exame de qualificação.
À amiga Maria Cristina Loyola responsável pelo “empurrãozinho” na entrada da
vida acadêmica.
Às amigas de sempre Sandra, Andréia, Alessandra e Ana Cristina pelo incentivo e
compreensão nos momentos de “crise”.

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RESUMO

O presente trabalho visa à compreensão da constituição do sujeito com Síndrome de


Asperger, a partir de minha prática clínica e de uma revisão bibliográfica sobre Síndrome de
Asperger, tendo como referencial teórico e metodológico a Análise de Discurso da escola
francesa que me possibilitou entender o funcionamento da linguagem do indivíduo não apenas
como transmissão de informações, mas como um complexo processo de constituição do sujeito e
de sentidos em formações discursivas determinadas. Trabalhando com os conceitos da Análise de
Discurso vi abalada a própria posição-psicólogo e alguns conceitos dominantes da Psicologia
enquanto ciência, o que me levou a realizar um trabalho de des-construção e compreensão do
funcionamento discursivo do campo disciplinar da Psicologia e, conseqüentemente, da concepção
de deficiência daí decorrente e um trabalho de construção do conhecimento acerca das patologias
em Psicologia tendo como referência a Defectologia de Vygotsky, permitindo-me sair de uma
posição positivista e idealista e tomando consciência da contradição que envolve os conceitos de
normal e anormal. Neste processo de compreensão da constituição de uma subjetividade
específica, a do sujeito com Síndrome de Asperger, faço, também, uma incursão inicial na análise
do discurso "das" crianças com Síndrome de Asperger, contrapondo-o aos discursos "sobre" a
Síndrome de Asperger. Consideramos que os padrões de comportamento referentes à linguagem e
à interação social, que o Manual Diagnósticos e Estatísticos de Transtornos Mentais, 4a. edição,
(APA,1995) trata como déficits ou prejuízos para classificar a síndrome, sejam formas de reação
a uma sociedade que não sabe lidar institucionalmente com a diferença, com alteridade. Cabe aos
cientistas e a instituições sociais, como a escola, antes mesmo, de classificarem os indivíduos ou
proporem tratamentos, compreenderem essa forma de individuação. Concluímos, então, que o
indivíduo com esta síndrome se constitui de forma específica e, portanto, apresenta uma forma
específica de interação social e verbal.

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ABSTRACT

The present work intends to comprehend the constitution of the individual with
Asperger´s Syndrome, starting from my clinical practice and of a bibliographical review on
Asperger´s Syndrome, having as theoretical and methodological reference the Analysis of Speech
of the French school that made me able to understand the operation of the individual's language
not as a transmission of information, but as a compound process of the subject and senses
constitution in certain discursive formations. By working with the concepts of the Analysis of
Speech, I noticed shaky the own psychologist position and some dominant concepts of the
Psychology while science, what took me to accomplish a mis-construction work and
understanding of the discursive operation of the Psychology discipline field and, therefore, of the
current conception deficiency and a work of knowledge construction concerning the pathologies
in Psychology, having the Defectology of Vygotsky as a reference, allowing not being adeptedto
the positivism and idealist position and taking conscience of the contradiction that involves the
concepts of normal and abnormal. In this process of understanding of the individual with
Asperger´s Syndrome specific subjectivity constitution, I, also, make, an initial incursion in the
analysis “of” the children's speech with Asperger´s Syndrome, against the speeches "on" the
Asperger´s Syndrome. We considered that the patterns of behavior regarding the language and
the social interaction, that the Diagnostics and Statistical Manual of Mental Upset, 4a. edition,
(APA,1995) treats as deficits or damages to classify the syndrome, are reaction forms to a society
that doesn't know how to institutionaly deal with the difference, with alterity. Falls to the
scientists and social institutions, as the school, even before, classifying the individuals or suggest
treatments, to understand that individuation form. We concluded that the individual with this
syndrome is constituted in a specific way and, therefore, it presents a specific form of social and
verbal interaction.

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SUMÁRIO

0. Introdução...........................................................................................................................09

1. O Que se diz sobre a Síndrome de Asperger.....................................................................16

2. Referencial Teórico-Metodológico.....................................................................................29

3. Desconstruindo a História da Psicologia.............................................................................52

4. Conhecendo a Síndrome de Asperger por outro Caminho..................................................71

5. Vygotsky..............................................................................................................................93

6. Uma outra “escuta” das falas dos sujeitos com Síndrome de Asperger..............................111

7. Conclusão............................................................................................................................131

8. Referências Bibliográficas...................................................................................................138

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“Para explicar as formas mais complexas da vida consciente do
homem é imprescindível sair dos limites do organismo, buscar as
origens desta vida consciente e do comportamento categorial”,
não nas profundidades do cérebro, ou da alma, mas, sim, nas
condições externas da vida e em primeiro lugar, da vida social,
nas formas histórico-sociais da existência do homem”.
(Vigotsky)

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INTRODUÇÃO

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No atendimento às crianças com Transtornos graves de conduta e Transtornos
Invasivos do Desenvolvimento (TID), no Centro de Formação de Psicólogos do Centro
Universitário de Brasília, CENFOR – UniCEUB, deparei-me com algumas questões em relação
às crianças com Síndrome de Asperger (SA), que me motivaram a buscar o curso de Mestrado em
Psicologia na tentativa de compreender a constituição desses sujeitos.
Em sua maioria, as crianças com Síndrome de Asperger - crianças com SA - que
chegam a este centro de atendimento são encaminhadas pela escola, trazendo como queixas
principais a inadaptação escolar e as dificuldades de aprendizagem, ou seja, elas não realizam as
atividades escolares da forma esperada, pois só aceitam as atividades que estão relacionadas ao
seu interesse específico; apresentam dificuldades de compreensão e interpretação de textos,
apesar de conseguirem se alfabetizar (geralmente de forma independente) numa idade muito
precoce; apresentam, também, dificuldades no uso da linguagem oral, uma vez que não
conseguem estabelecer diálogos e têm dificuldades no relacionamento interpessoal.
Essas crianças encaminhadas são avaliadas de acordo com os critérios do Manual
Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais, 4a. edição- DSM IV (APA, 1995). Segundo este
manual, a Síndrome de Asperger caracteriza-se pelo trio sintomático dos Transtornos Invasivos
do Desenvolvimento (TID): déficit na interação social, prejuízos na comunicação e apresentação
de comportamentos e interesses repetitivos e estereotipados, porém num grau mais leve que os
outros TIDs, como o Transtorno Autista, Síndrome Rett e Transtorno Desintegrativo da Infância.
No centro de atendimento onde trabalho, as crianças com SA são atendidas em
sessões semanais a fim de favorecer sua “adaptação social”. Como a principal queixa das escolas
era em relação à linguagem, no que se refere à interpretação e compreensão de textos orais e
escritos, e a literatura da área centrava sua atenção sobre a linguagem, embora de forma
controvertida, apontando esta como um dos principais fatores responsável pelo problema de
aprendizagem e de dificuldades de relacionamento, decidi, então, focalizar minha prática clínica
com as crianças com SA na linguagem.
Nessa época, comecei a observar, de forma assistemática ainda, que essas crianças
apresentavam uma maneira diferenciada de se comunicarem que parecia variar de acordo com a
situação e com a posição de enunciação que elas assumiam, ou seja, a interação verbal e
comportamental se modificavam em função do número de pessoas envolvidas na situação, do

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papel social de cada interlocutor – mãe, terapeuta, colega - , do tipo de atividade solicitada,
enfim, das condições de produção dos enunciados.
Recordo-me de uma situação em que pude observar mudanças de comportamento
nas crianças em função da alteração dessas condições de produção. Os atendimentos eram sempre
realizados individualmente, ficando no consultório somente eu e a criança. Nessas ocasiões, os
diálogos eram curtos e a criança se limitava a responder o que lhe era perguntado. Em um
determinado dia, agrupei as quatro crianças com Síndrome de Asperger que atendia. Iniciei a
sessão com uma apresentação geral dizendo seus nomes, porém ninguém se olhava. Quando me
retirei da mesa, dirigindo-me ao armário para buscar o material com o qual iria trabalhar, as
crianças começaram a falar, de maneira espontânea, sobre temas relacionados ao seu interesse
específico - eletricidade, shopping, histórias da turma da Mônica, etc - mas, aparentemente, não
se dirigindo a ninguém, pois falavam todos ao mesmo tempo, continuamente, sem interrupções,
num tom de voz alto. O que me fez suspeitar de que eles estavam chamando minha atenção, para
que eu voltasse novamente ao grupo, e competindo uns com os outros. Passei, então, a duvidar da
idéia de que eles não se importavam com a presença do outro.
Chamava, ainda, minha atenção a maneira das crianças com SA estabelecerem o
vínculo interpessoal, utilizando-se de uma linguagem que parecia revelar padrões específicos,
evidenciando a possível presença de regularidades. Na verdade, tal percepção já fora mencionada
pela literatura que toma, contudo, tais regularidades como padrões para reforçar a idéia de
dificuldade e de incapacidade. Bauer (1995), por exemplo, escreve que a compreensão verbal das
crianças com Síndrome de Asperger tende ao concreto e que essas crianças apresentam
dificuldades na produção dos chamados significados literais e implícitos, na prosódia, na
manutenção de diálogos, no entendimento de trocadilhos, em suma, esses estudos concluem que
suas dificuldades estariam relacionadas à linguagem que denominam pragmática e social. Para
mim, contudo, parecia que havia um sentido outro e que eu não conseguia apreendê-lo, mas que
não se tratava de déficit ou falhas na comunicação. Neste sentido, o próprio conceito de
comunicação me parecia ambíguo e contraditório face às situações observadas.
Além disso, observava a discrepância, também já mencionada pela literatura, entre a
capacidade intelectual (normalmente essas crianças apresentam QI acima da média) e a natureza
da produção lingüística das crianças com SA que eu atendia, ou seja, crianças inteligentes
produzindo enunciados desconexos, incompletos. Rutter (em Araújo, 1997) apresenta a hipótese

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das anormalidades sociais terem sua origem em um tipo de déficit cognitivo, em uma dificuldade
de compreender o significado emocional ou social dos estímulos. Segundo Frith, Baron-Cohen e
cols. (em Araújo, 1997), mesmos as crianças do espectro autista, com boas condições
intelectuais, são incapazes de atribuir estados intencionais aos outros. Afirmam que o déficit
cognitivo, nessa área, dificulta a possibilidade da criança predizer o comportamento dos outros e
tornar o mundo compreensível. Mais uma vez, vemos a questão da interpretação de textos orais e
escritos, bem como a intenção do sujeito sendo postas como fundamentais para caracterizar a
criança com SA.
A leitura de trabalhos desenvolvidos sobre a linguagem do portador da SA, trouxe-me
uma questão interessante a ser pesquisada: será que os problemas de linguagem apresentados
pelo portador da Síndrome de Asperger, apontados pela literatura, poderiam ser realmente
considerados como “falhas” e "dificuldades" de comunicação, a ponto de serem tomados como
verdades absolutas para definirem o fechamento do diagnóstico? Uma resposta negativa levaria,
então, a questionar o próprio diagnóstico em suas bases teóricas e epistemológicas.
Tal questão, associada às observações da prática clínica feitas, anteriormente, sobre a
oscilação da produção lingüística dessas crianças no que se refere ao que poderíamos chamar de
“fala coerente, com sentido”, reafirmava a minha hipótese de que não estava diante de uma
criança com déficits mas, sim, de uma criança que inter-agia de forma diferente. Dessa forma,
outras hipóteses emergiram:
1. As regularidades encontradas, e que a literatura apontava como “dificuldades de linguagem”,
fazem parte de um funcionamento discursivo próprio dessas crianças, enquanto lugar de
constituição do sujeito com SA.
2. Se essa constituição do sujeito com SA na, com e pela linguagem se dá de forma específica, a
interação social irá ser marcada por essa diferença.
3. Se os sujeitos com SA apresentam em sua fala um funcionamento discursivo de um tipo
específico de interação verbal e social, as peculiaridades de linguagem desses sujeitos não
representariam dificuldades de comunicação, porém evidenciariam uma resistência desses
sujeitos em se integrarem a um mundo “lingüístico” de sentidos já estabelecidos.
Essas questões e hipóteses iniciais me estimularam a refletir e analisar mais direta
e especificamente a linguagem das crianças com SA em um trabalho mais sistematizado, mais
científico, o que me fez procurar um curso de mestrado, e mais, buscar na área das Ciências da

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Linguagem outros conhecimentos que me permitiriam ampliar e mesmo deslocar certos conceitos
da Psicologia.
Neste sentido, tomei como referencial teórico e metodológico para a análise dos
enunciados e textos sobre a síndrome e para aqueles produzidos por crianças portadoras da SA, a
Análise de Discurso (AD) da escola francesa, pois esta busca entender o funcionamento da
linguagem do indivíduo não apenas como transmissão de informações, mas como um complexo
processo de constituição do sujeito em formações discursivas determinadas. A AD faz-nos refletir
sobre as concepções de linguagem, língua, comunicação e interação o que me permitiu
compreender as chamadas “faltas” ou “dificuldades” do sujeito com SA.
Neste processo de analisar a linguagem da criança com SA e compreender como se dá
a constituição desse sujeito, não pude deixar de considerar uma questão relevante e que há algum
tempo vem sendo discutido na área das ciências da Saúde Mental, o conceito de patológico e a
definição diagnóstica das patologias. O trabalho de Vigotsky, especialmente os da área de
defectologia, foi tomado também como referência teórica, trazendo novos pontos de sustentação
para esta dissertação, permitindo rever e compreender o caráter fragmentário e classificatório do
diagnóstico, pois ele não somente leva em conta os aspectos qualitativos do problema, como
percebe indivíduos como essas crianças não como deficientes, mas como pessoas cujas diferenças
são marcadas e marcantes para e na vida em sociedade.
Ao refletirmos criticamente a respeito do quadro patológico da Síndrome de Asperger,
esperamos que, ao final deste trabalho, possamos ter uma maior compreensão do problema para
sustentar as práticas clínica e educativa daqueles que atuam com as crianças com SA, em moldes
distintos daqueles que as vêem como treinamento de habilidades. Esta preocupação com a
aplicação dos resultados deste trabalho, não deve obscurecer, contudo, a natureza desta
dissertação que está centrada na compreensão do processo de constituição do sujeito com SA. O
mesmo posso dizer quanto aos fatos lingüísticos por mim descritos e analisados, pois, embora vá
trabalhar com a produção textual das crianças que atendo, é do lugar de analista de discurso,
sustentada por determinada teoria psicológica, que farei a interpretação dos recortes discursivos
estabelecidos na delimitação do corpus.
Assim, no primeiro capítulo, faço uma revisão bibliográfica sobre a Síndrome de
Asperger, apresentando um histórico que vai desde a primeira descrição da síndrome na década
de 40 até a caracterização atual descrita pelo DSM IV (APA, 1995), apontando também as

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principais pesquisas desenvolvidas nos últimos dez anos, com dados e resultados relevantes,
sobre diagnóstico, etiologia, prevalência e tratamento da SA.
No segundo capítulo, apresento o dispositivo teórico da Análise do Discurso (AD) que
me possibilitou um deslocamento crucial no modo de perceber e compreender a linguagem das
crianças com SA e levou-me, ao tratar de suas bases epistemológicas - a Lingüística, o
Materialismo Histórico e a Psicanálise -, a realizar um novo recorte de análise.
Trabalhando certos conceitos afetos a essas bases epistemológicas da AD, vi abalada a
minha própria posição de psicóloga e os conceitos da Psicologia, enquanto ciência, que então
dominava. Assim, no terceiro capítulo, realizo uma análise discursiva da constituição do campo
disciplinar da Psicologia e da própria concepção de diagnóstico defendida por determinadas
correntes da Psicologia.
No capítulo seguinte, retomo o levantamento bibliográfico, de caráter descritivo,
realizado no primeiro capítulo e, à luz das reflexões e análises realizadas nos capítulos segundo e
terceiro, busco conhecer de um outro lugar teórico a Síndrome de Asperger, a partir da
classificação do DSM IV (APA, 1995).
Dentre as teorias da Psicologia, escolhi apresentar no quinto capítulo desta
dissertação, as noções de defectologia, defendidas por Vigotsky, por ser uma teoria que trabalha
com a relação dialética entre indivíduo e sociedade numa perspectiva analítico-histórica.
No sexto capítulo, faço uma incursão, inicial diria, na análise do discurso "das"
crianças com SA, contrapondo à análise dos discursos "sobre" a Síndrome de Asperger realizada,
buscando compreender o processo de constituição de uma subjetividade específica que aí se
delineia. Gostaria de observar que, inicialmente, pensava em ter como corpus tão somente as
falas dessas crianças. Contudo, nos deslocamentos produzidos pela AD, principalmente no que
diz respeito às condições de produção e a compreensão de que a relação do sujeito com o que diz
é complexa e não podemos abordá-la de maneira mecanicista e automática, percebi que os
problemas a serem compreendidos eram outros e anteriores, e os caminhos a serem percorridos
teriam de passar também por outros portos.
No sétimo e último capítulo trago as conclusões e considerações finais em relação a
uma forma de individualização determinada: a do portador da Síndrome de Asperger, bem como
sobre a posição sujeito-psicólogo, e delineio as possibilidades de futuros trabalhos sobre um tema

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que a cada passo desta dissertação mostrou-se mais produtivo e porque não dizer sedutor e
apaixonante.

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1. O QUE SE DIZ SOBRE A SÍNDROME DE ASPERGER

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Neste capítulo, faço uma revisão bibliográfica inicial sobre a Síndrome de Asperger
de caráter mais descritivo, de forma a situar o leitor face ao trabalho atual na área das Ciências da
Saúde Mental, deixando para o quarto capítulo, um trabalho de leitura crítica deste referencial
sob o crivo teórico da Análise do Discurso.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais - DSM IV (1995) da
Associação Psiquiátrica Americana (APA), em sua 4a. edição, e o Código Internacional de
Doenças - CID 10 (1993) da Organização Mundial de Saúde (OMS), em sua 10a. edição, trazem a
caracterização mais recente da Síndrome de Asperger e, atualmente, as diretrizes diagnósticas
propostas ali são as mais utilizadas para se fechar o diagnóstico da referida síndrome, por serem
considerados os manuais oficiais de classificação das doenças.
As crianças que atendo, e que deverão participar direta e indiretamente desta
dissertação, foram diagnosticadas com Síndrome de Asperger (SA), com base nos critérios deste
DSM IV (1995), que a classifica dentro dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TID),
caracterizando este transtorno da seguinte forma:
“Os Transtornos Invasivos de Desenvolvimento caracterizam-se por prejuízo severo e
invasivo em diversas áreas do desenvolvimento: habilidades de interação social recíproca,
habilidades de comunicação, ou presença de comportamentos, interesses e atividades
estereotipados. Os prejuízos qualitativos que definem essas condições representam um
desvio acentuado em relação ao nível de desenvolvimento ou idade mental do indivíduo”
(pág.65).

E quanto ao Transtorno de Asperger aponta:

“... as características essenciais do Transtorno de Asperger são: prejuízo severo e


persistente na interação social, desenvolvimento de padrões restritos e repetitivos de
comportamento, interesse e atividades. A perturbação deve causar prejuízo significativo
nas áreas social, ocupacional ou outras áreas importantes de funcionamento.” (pág. 74).

O DSM IV (1995) diferencia o Transtorno de Asperger do Transtorno Autista por


considerar que o primeiro não apresenta atrasos clinicamente significativos na linguagem, isto é,
as palavras e frases com função comunicativa aparecem na idade adequada de desenvolvimento,
além de não existir no portador de SA atrasos clinicamente significativos de desenvolvimento
cognitivo, de comportamento adaptativo, de habilidades de auto-ajuda e da curiosidade a cerca do
ambiente.
Ainda no DSM IV (1995), encontraremos considerações a respeito do curso da SA
como contínuo e de duração vitalícia. Essa síndrome pode ser identificada mais tarde que o

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transtorno autista, geralmente no período escolar, em cujo contexto a dificuldade na interação
social e os interesses idiossincráticos são mais manifestos. Atrasos motores e falta de destreza
também são citados na identificação da síndrome. Quanto à etiologia, não existe referência a
mesma no DSM IV, por não ter sido comprovado empiricamente a causa básica dos TIDs, por
não terem conseguido, ainda, identificar um marcador biológico específico e comum a todos os
casos. No entanto, vários artigos estão sendo publicados com a compreensão de que fatores
biológicos estão implicados na sua etiologia. O pensamento vigente é o da multicausalidade. Em
alguns casos há também um forte componente genético, que parece ser mais comum na SA que
no autismo clássico.
O DSM IV (1995) traz como critérios diagnósticos para o Transtorno de Asperger:
“A. Prejuízo qualitativo na interação social, manifestado por pelo menos dois dos
seguintes critérios:
(1) prejuízo acentuado no uso de múltiplos comportamentos não-verbais, tais como
contato visual direto, expressão facial, posturas corporais e gestos para regular a interação
social
(2) fracasso para desenvolver relacionamentos apropriados ao nível de
desenvolvimento com seus pares
(3) ausência de tentativa espontânea de compartilhar prazer, interesses ou realizações
com outras pessoas (por ex., deixar de mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse a
outras pessoas)
(4) falta de reciprocidade social ou emocional.

B. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e


atividades, manifestados por pelo menos um dos seguintes quesitos:
(1) insistente preocupação com um ou mais padrões estereotipados e restritos de
interesses, anormal em intensidade ou foco
(2) adesão aparentemente inflexível a rotinas e rituais específicos e não funcionais
(3) maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por ex., dar pancadinhas ou
torcer as mãos ou dedos, ou movimentos complexos de todo o corpo)
(4) insistente preocupação com partes de objetos.

C. A perturbação causa prejuízo clinicamente significativo nas áreas social e


ocupacional ou outras áreas importantes de funcionamento.

D. Não existe um atraso geral clinicamente significativo na linguagem (por ex., palavras
isoladas são usadas aos 2 anos, frases comunicativas são usadas aos 3 anos).

E. Não existe um atraso clinicamente significativo no desenvolvimento cognitivo ou no


desenvolvimento de habilidades de auto-ajuda apropriadas à idade, comportamento
adaptativo (outro que não na interação social) e curiosidade a cerca do ambiente na
infância.

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F.Não são satisfeitos os critérios para um outro Transtorno Invasivo do Desenvolvimento
ou Esquizofrenia”. (pág. 76)

Oficialmente são estes os parâmetros para o diagnóstico e classificação de crianças


com Transtorno de Asperger. Muitos trabalhos, contudo, vêm sendo desenvolvidos desde 1944,
quando Hans Asperger descreveu a síndrome pela primeira vez.
Podemos, assim, considerar como um marco de referência a década de 40, quando
Kanner descreveu, em 1943, onze crianças com um quadro único de desordem mental severa.
Suas colocações trouxeram referenciais importantes para o quadro de desordens mentais infantis,
pois apresentavam, como critérios, distorções no processo de desenvolvimento não mais baseados
nas psicoses do adulto. Nessa ocasião, ele denominou essa patologia distúrbio autístico do
contato afetivo, onde as características principais eram incapacidade para relacionamentos com
pessoas e obsessiva insistência em permanecer na mesmice. Kanner chegou a inferir que essas
crianças tinham “uma incapacidade inata para fazer contato afetivo normal com pessoas - um
dado biológico - assim como outras crianças chegam ao mundo com deficiências físicas ou
intelectuais inatas” (em Araújo, 1997). Mais tarde, substituiu-se a denominação do quadro por
autismo infantil precoce.
Um ano depois, independentemente de Kanner, um pediatra vienense, Hans Asperger
descreveu quatro casos que denominou de patologia autística da infância e esboçou como
principais características, segundo Bowler (1992).

“As crianças e adolescentes descritos por ele tinham aparência normal, mas tinham
distintos prejuízos de fala e de comunicação não-verbal, bem como de habilidades
interpessoais e sociais. Sua fala, embora surgisse numa idade adequada e apresentasse
sintaxe normal, era caracterizada por inversão pronominal, especialmente em crianças
mais jovens. Embora houvesse alguma ecolalia, a principal característica da linguagem
dos casos de Asperger era o uso do pedantismo e às vezes se envolvia com estilo de fala
literal ou concreta. Aspectos não-verbais da comunicação, tais como uso de gestos
espontâneos e expressões faciais estavam ausentes, exagerados ou usados
inapropriadamente. Nos testes de inteligência obtiveram resultados medianos e a
performance em testes de memória foi melhor. Alguns tinham desenvolvido interesses
específicos.(...) Mas a principal anormalidade notada por Asperger foi os comportamentos
sociais ingênuos e peculiares, sugerindo que eles tinham perda de qualquer conhecimento
intuitivo de como se comportar em situações sociais. Apesar de se retirarem ou evitarem
situações sociais, seus pacientes eram capazes de interagir com outras pessoas , mas
somente de maneira estranha, parcial e na qual demonstravam quase uma completa falta
de compreensão de regras que governam interações sociais.” ( págs.877 e 878).

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A literatura pesquisada por mim revela que, por volta dos anos 50, Asperger
reconheceu a similaridade de seus casos com os de Kanner, muito embora em 1979 tenha
reconhecido também serem tipos basicamente diferentes. Por outro lado, Kanner mesmo tendo
acesso a trabalhos com crianças que apresentavam traços similares à patologia autística de
Asperger, não mencionou o trabalho deste último.
Apesar de, mesmo no início dos anos 40, Asperger já ter apontado características da
síndrome que a diferenciavam do autismo, descrito originalmente por Kanner, somente em 1981,
Lorna Wing fez a primeira descrição sistemática do quadro que recebeu o nome de Síndrome de
Asperger. Wing estudou 34 casos, na Inglaterra, e encontrou em sua amostra, complementando as
características descritas por Asperger, o que chamou de ausência de jogo simbólico e ausência de
atenção dirigida.
Desde a publicação de Asperger em 1944 até o início dos anos 80, ou seja, durante
quase 40 anos, somente 4 publicações foram feitas referindo-se à patologia autística da infância,
com exceção dos próprios artigos de Asperger (Gillberg, 1998). Entendemos que a descoberta de
Asperger não teve repercussão nem reconhecimento da comunidade científica até essa época e,
basicamente, quase todas as crianças com traços similares eram diagnosticadas como pertencendo
ao quadro do autismo infantil de Kanner. Esse esquecimento parece-me, contudo, significativo,
sinalizando para a necessidade de maior compreensão da natureza dos trabalhos realizados pelo
próprio Asperger e já revelando a dificuldade em se determinar o quadro patológico da síndrome,
bem como as determinações históricas implicadas no processo de produção do conhecimento.
Apesar de existir, atualmente, um diagnóstico oficial para a Síndrome de Asperger, os
artigos recentemente publicados ainda apresentam ambigüidade e confusão nos critérios
diagnósticos, bem como no uso da nomenclatura. Considero importante fazermos uma breve
revisão destes estudos, o que redundará na apresentação de diversos pontos de vista, que dão
ênfase a um ou outro aspecto da síndrome, sendo que muitas vezes – ou quase sempre - esse
embate vai estar centrado principalmente no aspecto da linguagem dos portadores da SA.
Segundo Bowler (1992), embora houvesse diferenças marcantes entre os casos
descritos por Kanner e os casos descritos por Asperger e Wing, as características encontradas em
ambos os casos sugeriam uma compreensão comum da patologia. Por essa razão, Wing e Gould,
em 1979, desenvolveram o termo continuum autístico, argumentando que indivíduos autistas
podem exibir vários níveis de prejuízos, em diferentes dimensões, do funcionamento psicológico,

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porém todos demonstram alterações no que se refere à interação social recíproca. O quadro
clínico será determinado pelo grau do prejuízo e pela forma particular das funções prejudicadas.
A idéia de continuum implica que a Síndrome de Asperger e o Autismo clássico representam sub-
classes de uma larga população com prejuízos de interação social.
Como os enfoques atuais dos diagnósticos se prendem a idéia de desenvolvimento, ou
seja, o importante é reconhecer os efeitos desses transtornos nas etapas do desenvolvimento, a
revisão da 3a. edição do DSM (1980) introduziu o termo Pervasive Developmental Disorders para
designar as subcategorias de transtornos que apresentam prejuízo na qualidade da interação social
e nas habilidades de comunicação verbal e não-verbal. Em nossa tradução oficial, CID 10 (OMS,
1993), esse termo foi traduzido por Transtornos Invasivos do Desenvolvimento. O Transtorno de
Asperger é citado como subcategoria desta classificação.
Alguns autores, como Gillberg (em Cox, 1991) e Wing criticam esse termo
“pervasive” por considerarem que as desordens incluídas nesta categoria são especificas e/ou
parciais, ao invés de “penetrantes”, e preferem o termo “continuum” autístico, pois este sugere
uma variação de graus de habilidades nas áreas de interação e comunicação social, que vai de
indivíduos com incapacidades mais severas a indivíduos mais capazes, com um mínimo de
deficiência, podendo ser considerados, então, como indivíduos “estranhos” ou “bizarros”.
Gillberg & Gillberg (1989), em um artigo em que tece algumas considerações
epidemiológicas sobre a SA, sugeriram um esquema para explicar as desordens do espectro
autista, onde crianças com retardo mental estariam no extremo final (deficiências extremas),
seguidas pelo autismo de Kanner – estando as crianças com SA na porção média - e, no outro
extremo, representado por menor comprometimento, as crianças descritas por Gillberg com
déficit de atenção, de controle motor e de percepção (DAMP).
Gostaria de chamar atenção, nesse momento, para a proximidade entre os limites
definidores da Síndrome de Asperger e os transtornos da atenção e da percepção. Estudos
neuropsicológicos de Ehlers e cols. (1997) têm demonstrado que crianças com Síndrome de
Asperger apresentam déficits de execução o que os levam a inferir acerca de disfunções no lobo
pré-frontal, característica também presente em outras síndromes associadas com déficits de
atenção. Ehlers e cols.(1997) afirmam que crianças com SA geralmente apresentam como
problemas associados dificuldades de atenção. Concluem que a Síndrome de Asperger,

21
aparentemente, apresenta algumas disfunções neuropsicológicas pertencente tanto ao quadro do
Autismo como ao do Transtorno de Déficit da Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Entretanto, para outros autores, esta idéia de continuum favorece o estabelecimento de
uma confusão na diferenciação entre os diagnósticos de Autismo clássico, definido por Kanner, e
a Síndrome de Asperger. Uma similaridade que gera pontos de vistas divergentes no diagnóstico
da Síndrome de Asperger é o Autismo de Alto-funcionamento. Elizabeth Newson, já em 1970,
referiu-se a pessoas autistas mais capazes e, a partir da década de 80, surgiu o termo Autismo de
Alto-funcionamento (HFA) para designar indivíduos autistas com “bom” potencial cognitivo.
Alguns autores questionam se a SA apresenta características clínicas diferentes o bastante para
receber uma outra nomenclatura ou se é fenomenologicamente a mesma de HFA.
Gillberg (1998), por exemplo, considera que em um determinado momento uma
pessoa pode ser considerada autista e em outro momento asperginiana. Para ele, existem algumas
limitações que dificultam o estabelecimento dessa diferença entre SA e HFA pois: 1) não existem
critérios bem definidos para o Autismo de Alto-funcionamento; 2) pouco se conhece acerca do
prognóstico e dos tratamentos apropriados à Síndrome de Asperger e ao Autismo de Alto-
funcionamento. Gillberg ainda concebe que indivíduos com a Síndrome de Asperger podem ter
mais habilidades que os Autistas de Alto-funcionamento e levanta alguns pontos importantes para
estabelecer e marcar diferenças entre eles:
1. os problemas de coordenação motora são mais freqüentes em SA, mesmo não sendo um pré-
requisito para se fechar o diagnóstico;
2. a Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que os critérios definidores da SA não são
compatíveis com retardo geral;
3. a questão diagnóstica mais difícil relaciona-se ao desenvolvimento da linguagem. O CID 10
(1993) e o DSM IV (1995) relatam que não há sinais de retardo ou anormalidades na
linguagem inicial dos portadores da SA, e não se referem ao desenvolvimento posterior da
fala nem a problemas de linguagem. No entanto, Gillberg (1998) propõe que algumas
peculiaridades da fala e da linguagem têm estado presentes nos portadores de SA. Os
primeiros casos descritos por Gillberg apresentaram atrasos de fala e linguagem. Ele próprio
considera que esse critério talvez seja difícil de determinar pois os casos de SA são
acompanhados por especialistas, geralmente, só a partir dos 7 anos de idade, quando as

22
crianças entram na escola, e aí só se dispõe dos pais para informar se houve ou não atraso de
linguagem ou anormalidades;
4. tanto o HFA como a SA afetam mais meninos que meninas e ambos são mais comuns do que
se acredita, sendo a Síndrome de Asperger cinco vezes mais comum que o Autismo.
Temos outra vertente, a representada por Rutter, Baron-Cohen, Frith, Boucher e
Happé (em Araújo, 1997), que explica o autismo através do que denominam "teoria cognitiva",
em que procuram demonstrar que há uma relação entre o déficit cognitivo e o déficit primário no
Autismo, o que levaria a dizer que as anormalidades sociais poderiam ter suas origens no déficit
cognitivo. Esses autores, citados por Araújo, compartilham da idéia de que os autistas teriam um
déficit cognitivo específico que impediriam o desenvolvimento da teoria da mente. Teoria da
mente é a capacidade do indivíduo em atribuir estados mentais a outros, o que seria uma meta-
representação ou representação secundária. Segundo Araújo:

“Baron-Cohen (1991) ressaltou que o autismo altera a meta-representação requerida nos


padrões sociais. (...) Isto transforma a capacidade para desenvolver o faz-de-conta, o jogo
simbólico e a criatividade e originalidade, alterando também a adaptação pragmática do
mundo. Para ele, os déficits sociais e os déficits pragmáticos estão associados, uma vez
que o pragmatismo é parte da competência social.” (pág.13 - grifo meu)

Contudo, outros autores da teoria cognitiva, como Ozonoff, Rogers e Pennington


(1991), mostram que os prejuízos cognitivos não são encontrados em todos os indivíduos do
continuum autístico como na Síndrome de Asperger, por exemplo. Desta forma diferenciam o
HFA e a SA, através de evidências empíricas, em termos de medidas neuropsicológicas que são
independentes dos critérios diagnósticos, e questionam a primazia da falta de uma teoria da
mente como déficit primário no autismo.
Bowler (1992) diferencia autistas de Auto-Funcionamento de crianças com Síndrome
de Asperger, dizendo que essas últimas têm mais habilidades de resolver tarefas da teoria da
mente e de memória verbal. Os partidários desta teoria afirmam que as pessoas com Síndrome de
Asperger, por possuírem uma boa habilidade cognitiva, têm conseguido contornar sua falta de
conhecimento intuitivo e passado nos testes da teoria da mente (atribuir estados emocionais aos
outro), porém esses indivíduos teriam dificuldades na aplicação destes conhecimentos para a vida
real. Tais pesquisadores argumentam que as pessoas com SA usam processos cognitivos para
resolverem problemas que são, geralmente, tratados como sendo dos domínios afetivos e

23
emocionais. Com isso os portadores de SA apresentariam soluções corretas para os problemas
que requerem teoria da mente, mas fazendo-o por caminhos por eles considerados lentos e
incômodos, fazendo com que os portadores da SA pareçam estranhos em interações sociais do
cotidiano.
Concluem que a relação entre habilidades cognitivas e os prejuízos sociais nos
indivíduos com SA não é uma relação direta, que os prejuízos sociais são muito mais uma
inabilidade da função executiva, isto é, da aplicabilidade do conhecimento para a solução de
problemas de vida real, do que ausência de conhecimento. Para esses autores, o déficit primário
do continuum autístico não seria a teoria da mente, ou seja, a capacidade para mentalizar, mas o
uso da capacidade, a aplicação do conhecimento – uma função executiva. Porém não descartaram
o déficit de “mentalização” na justificativa da tríade de sintomas autistas. Diferenciaram os
portadores de HFA e os de SA, afirmando que crianças autistas teriam dificuldades em três áreas:
na força organizadora coesiva central, ou seja, capacidade para levar em conta o contexto; na
função executiva e na percepção emocional de si próprio e dos outros, enquanto as crianças com
SA evidenciariam mais problemas na função denominada executiva. Baseados nessas diferenças,
esses autores sugeriram a hipótese de uma disfunção no córtex pré-frontal responsável por esses
déficits.
Diante do exposto, Araújo (1997) acrescenta que estudar quadros com distúrbio
abrangente do desenvolvimento, mas com a inteligência preservada, como é o caso da Síndrome
de Asperger, permite compreender a estruturação de uma outra forma de mente, diferente, e não
necessariamente patológica. Para este autor, as crianças com SA mostram uma alteração nos
padrões básicos da espécie humana, em relação à reatividade e à interação mediante códigos,
tendo por conseqüência um funcionamento mental estruturado em outras bases, e desenvolvendo
uma forma de estar no mundo e de se adaptar a ele por manobras compensatórias. Essas
manobras são formas atípicas de perceber a realidade e de se relacionar com ela, são
compensações adaptativas conseguidas com sofrimento.
Para Araújo (1997), apesar da adequação dos portadores SA às normas sociais, eles
sempre passam uma certa estranheza em seus comportamentos e cita Van Krevelen (1971) que
diz que essas crianças com inteligência preservada vivem no nosso mundo à maneira deles e para
isso servem-se de manobras compensatórias, que não são mecanismo de defesa. Araújo aponta
algumas manobras que seriam: o mundo interpessoal das experiências sociais regulado por

24
intenções é transformado em um mundo de eventos causais; o aprendizado das normas sociais
leva a rigidez na adaptação; a previsibilidade, isto é, a antecipação das situações a serem vividas
é utilizada para controlar a ansiedade. Araújo (1997) finaliza seu artigo interrogando-se sobre as
possibilidades de ajudá-los, sobre como compreendê-los na sua tarefa de se adaptarem ao mundo,
questões também postas por nós nesta dissertação e na prática da clínica
Um outro aspecto, apontado inclusive pelo DSM IV (1995) como marco diferenciador
entre Autismo de Alto-funcionamento e Síndrome de Asperger, e que compõe o principal
interesse deste estudo, é o desenvolvimento da linguagem e da constituição do sujeito e do
sentido que aí acontece. A presença de atraso de linguagem inicial indicaria o Autismo, enquanto
que, a classificação oficial da SA caracteriza-a por não apresentar este atraso. Tal afirmação e os
critérios concernentes a prejuízos de comunicação são apresentados na literatura, de forma
controvertida e, parece-me, de forma inconsistente. Em sua descrição original, Hans Asperger
(em Eisenmajer e cols, 1998), já apontava problemas de comunicação tais como:
questionamentos repetitivos, fala pedante, uso de neologismos, déficit da linguagem atualmente
denominada de pragmática, e não acreditava que seus pacientes apresentassem atraso da
linguagem adquirida inicialmente.
Entretanto, Gillberg (1998) usa o atraso do desenvolvimento da linguagem e prejuízos
leves a moderados da linguagem compreensiva, apesar de apresentarem uma linguagem
expressiva superficialmente perfeita, como critério diagnóstico da Síndrome de Asperger. Nos
critérios da Síndrome de Asperger descritos por Gillberg, em relação à linguagem ele aponta:
“Problemas de fala e de linguagem se apresentam como: a) atraso de desenvolvimento da
linguagem comparado com o desenvolvimento de linguagem social de crianças normais; b)
linguagem expressiva superficialmente perfeita com uma forte tendência a tornar-se formal
e pedante e usualmente monótona, prosódia diferenciada e c) prejuízos leves a
moderados da linguagem compreensiva com a interpretação tendendo ao concreto contra
um desempenho muito melhor da linguagem expressiva”. (pág. 203)

Esses critérios de Gillberg (1998) contribuíram ainda mais para obscurecer o


estabelecimento das diferenças entre Autismo de Alto-funcionamento e Síndrome de Asperger.
Szartmari e cols. (1995) realizaram um dos primeiros estudos para distinguir e
classificar as crianças entre autista e portadora da Síndrome de Asperger com base nos critérios
de atraso e de desvios do desenvolvimento da linguagem. Os resultados encontrados
demonstraram que as crianças autistas apresentavam mais prejuízos que as crianças SA em
relação aos seguintes aspectos: comportamentos sociais, isto é, perda de intencionalidade social,

25
de reciprocidade social, de afetividade, procura de conforto, comportamentos de saudação;
presença maior de comportamentos estereotipados, ou seja, ritualísticos e resistência à mudança;
pior desempenho nos testes de linguagem. Estes autores sugeriram que o critério de desvios e
atraso de linguagem poderia ser um diferenciador dos subgrupos dos Transtornos Invasivos do
Desenvolvimento, porém recomendaram a necessidade de realização de estudos com crianças
mais velhas (em Eisenmajer e cols. 1998).
Em seguida, Eisenmajer e cols. (1998) desenvolveram um estudo para verificar esta
conclusão a que haviam chegado, (o uso do critério de atraso de linguagem como validade
discriminatória entre os subgrupos dos TIDs) e descobriram que esse atraso também está
associado a um atraso global do desenvolvimento, tornando possível predizer a sintomatologia
numa idade mais jovem, mas não numa idade mais avançada. É possível que os atrasos
permaneçam em forma de habilidades de linguagem receptiva mais fracas comparadas às das
crianças que não experenciaram um atraso na linguagem inicial, afirma essa vertente teórica.
A Teoria da Mente, como já foi mencionado, é utilizada por alguns autores para
explicar as deficiências apresentadas pelas crianças que fazem parte do continuum autístico,
(inclusive as crianças com Síndrome de Asperger) e explica pelo mesmo princípio os problemas
da linguagem: como derivados de um déficit cognitivo específico na habilidade de atribuir
estados mentais a outros, isto é, do que denominam “mentalizar”. De acordo com esta
abordagem, pressupõe-se que, para que se produza uma comunicação humana normal é
necessário o reconhecimento das intenções do emissor no ato da comunicação, quando se usa a
forma literal e/ou a figurativa.
Wing, Frith e Tantan (1991) colocam que o sujeito com SA apresentaria uma
inabilidade para usar o contexto social, teriam dificuldades em manter diálogos e prosseguir
coerentemente com o tema (em Pastorello, 1996).
Happé (1991) considera que as pessoas com SA teriam dificuldades com a teoria de
relevância: não conseguiriam calcular o que é relevante nos diálogos, mudando o foco da atenção
e observação, bem como inferir as intenções do outro. Segundo Happé as idiossincrasias, os mal-
entendidos e a incoerência são resultantes do cálculo de relevância que esses sujeitos realizam
por analogias, ou seja, como apresentam excelente capacidade de memória associam a situação
atual a situações já vivenciadas (em Pastorello, 1996).

26
Scheuer (em Pastorello, 1996), à luz da teoria da mente, relata que as crianças com SA
atêm-se aos aspectos estruturais e de organização do discurso e por isso têm dificuldades em
interpretar e fazer inferências. Assinala, ainda, que essas crianças, pelas dificuldades
interpretativas, evitam o confronto com situações de comunicação que não sabem lidar,
utilizando estratégias de defesa.
Segundo Happé (1994), quando a linguagem é utilizada como código não haverá
impedimentos para que a comunicação se efetue, porém, quando a linguagem é usada como
expressão dos pensamentos do falante ou como expressão de significados, o indivíduo autista
pode demonstrar prejuízos específicos.(em Araújo, 1997)
Todos os autores, na literatura sobre a Síndrome de Asperger, constatam alterações,
diferenças em relação a um padrão diríamos, na linguagem do portador da síndrome, porém
discordam quanto à posição que essas alterações ocupam no transtorno. Szatmari (1991), Cox
(1991) e Wolf (1990) colocam que tais alterações são um sintoma , caracterizam o quadro. Wing
(1991) e Bishop (1989) consideram-nas como elementos definidores, ou seja, consideram essas
alterações de linguagem como sendo eletivas e determinantes da síndrome. Happé (1991) aponta
esses elementos como responsáveis pela patologia (em Pastorello, 1996).
Este primeiro contato com a literatura específica sobre o nosso tema de trabalho
trouxe inúmeros questionamentos pela imprecisão e ambigüidade dos conceitos propostos
enquanto critérios para o estabelecimento do próprio diagnóstico e, conseqüentemente, para a
caracterização e representação do sujeito com SA - uma subjetividade específica -, sinalizando
para a necessidade de se proceder a uma análise dos mesmos e para uma compreensão da
constituição do campo disciplinar da Psicologia em que tais trabalhos são elaborados.
Esses trabalhos reafirmaram, também, o meu interesse em pensar e compreender a
estrutura e o funcionamento da linguagem e das línguas, a relação entre práticas científicas e
práticas sociais e políticas, como são as práticas pedagógicas e as terapêuticas, a relação do
sujeito com o texto que produz em instituições determinadas historicamente como são a escola e
a clínica, os diferentes modos como o sujeito se inscreve no texto que produz.
Nosso objetivo é o de compreender o estabelecimento e a transformação de uma
forma de individualização do sujeito em relação à sociedade, ao Estado, produzindo diferentes
efeitos nos processos de identificação: o do sujeito com SA. Pensamos ver no tema da

27
subjetividade, como diz Orlandi (1999, pág.17), "o acontecimento do significante no homem que
possibilita o deslocamento heurístico da noção de homem para a de sujeito".

28
2. REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO

29
Como venho sinalizando desde o início desta dissertação, a questão da linguagem - e
das línguas enquanto forma material - e de seu funcionamento em uma sociedade dada são
centrais no processo de constituição do sujeito portador da Síndrome de Asperger - sujeito com
SA -, considerando a bibliografia trabalhada e a minha prática clínica.
Na revisão bibliográfica feita anteriormente sobre a Síndrome de Asperger, pude
observar que a linguagem é vista como transparente, a língua como um código - um sistema
fechado de signos, autônomo e completo -, o texto como uma unidade significativa que para ter
coerência necessita apresentar um começo, meio e fim, o sentido como conteúdo e o sujeito como
consciente e intencional capaz de codificar e decodificar uma mensagem, e controlá-la, durante
todo o processo de interlocução.
Neste capítulo, trabalho os conceitos da Análise do Discurso (AD), criada por Michel
Pêcheux na França, na década de 60, que será utilizada como referencial metodológico, por ser
um dispositivo teórico e um instrumento de análise para interpretar textos, em que as palavras
não são tomadas como significando por si mesmas, mas pelas posições que ocupam as pessoas
que as falam, sendo a naturalidade dos sentidos construída histórica e ideologicamente. Ao pensar
esse processo de constituição do sujeito com SA, poderemos observar os sentidos possíveis que
estão em jogo em uma posição dada, a partir da análise dos discursos "sobre" a Síndrome de
Asperger e seu portador e do discurso "das" crianças com SA.
Michel Pêcheux, um filósofo por formação, mas contrário à prática da filosofia
tradicional em relação à ciência, criticava a situação teórica das Ciências Sociais, em particular
da Psicologia Social, pois considerava o estado desta ciência como pré-científico e acreditava que
para se estabelecer uma abertura teórica nesse campo era necessário um trabalho crítico a partir
da noção de instrumento, ou melhor, da utilização empírica de instrumentos. Assim, em 1969,
surge a sua primeira proposta - a Análise Automática do Discurso -, para fornecer a essas ciências
um instrumento científico que pudesse explicitar e fazer compreender a sua ligação com o
político. A AD surge também como crítica à Análise de Conteúdo, principal método de análise de
textos utilizado pela Psicologia Social, principalmente na forma de conceber as noções de
linguagem, de sujeito e de sentido.
A Análise de Discurso (AD) surge, pois, desta preocupação em produzir mudanças
nas práticas das Ciências Sociais e de significar a linguagem de uma maneira particular,
teorizando a relação do lingüístico com uma exterioridade. Pêcheux para construir esse

30
instrumento articula três áreas de conhecimento: a do Materialismo Histórico, a da Lingüística e a
da Psicanálise, mas re-elabora certas noções que as caracterizam para criar sua própria teoria, a
Análise de Discurso, que trabalha com uma noção de “discurso” que não se reduz ao objeto da
Lingüística, a língua, e não corresponde à fala. Interroga a Lingüística pela historicidade que ela
exclui a partir do corte saussureano, o Materialismo pelo simbólico que fica apagado pelo político
e se diferencia da Psicanálise ao relacionar a ideologia ao inconsciente sem que esta seja
absorvida por ele (Orlandi, 1999b). Busca, pois, como ele mesmo diz "esclarecer os fundamentos
de uma teoria materialista do discurso" (Pêcheux,1988).
A Análise de Discurso questiona a noção de “transparência” da linguagem, que
sustenta os trabalhos da Lingüística, mostrando que existe uma opacidade na linguagem que não
permite o seu controle por um sujeito cognoscente e intencional, assim como não há uma relação
palavra-coisa, pois sempre há a mediação da linguagem, que é simbólica, e do discurso que não é
sinônimo de fala, mas objeto teórico produzido a partir de hipóteses histórico-sociais. Discurso
que é efeito de sentido entre locutores e parte do funcionamento geral de uma sociedade dada.
A Análise de Discurso, que se preocupa com a produção da linguagem e não apenas
com seus produtos, trabalha ligando a linguagem à “exterioridade” - histórica e inconsciente - que
a determina. Todo discurso remete a outro discurso, a uma exterioridade “discursiva” que afeta a
textualidade, isto é, todo dizer é uma relação com outros dizeres não ditos e já-ditos – uma
memória do dizer. Para conhecermos a exterioridade, precisamos compreender como os sentidos
são trabalhados no texto, em sua discursividade, que é a inscrição dos efeitos lingüísticos
materiais na história. Essa noção de exterioridade discursiva transforma o conceito de linguagem
(pensando sua forma material), o conceito de social, de sujeito, de histórico, de ideológico, tal
como eles são descritos no campo das Ciências Humanas e Sociais. Orlandi, em seu livro
"Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico" (1998 b), retoma Pêcheux,
afirmando que:

“A discursividade não é a fala (parole), isto é, uma maneira individual concreta de habitar a
abstração da língua; não se trata de um uso, de uma utilização ou da realização de uma
função. Muito pelo contrário, a expressão processo discursivo visa explicitamente recolocar
em seu lugar (idealista) a noção de fala (parole) juntamente com o antropologismo
psicologista que ela veicula.” (pág.29)

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A linguagem, neste contexto, é tomada como prática, não é um mero instrumento de
comunicação, mas mediação entre o homem e a realidade objetiva, produção social, trabalho
simbólico. É a ação que transforma, que constitui identidades. No funcionamento da linguagem
não se dá apenas transmissão de informações, mas um complexo processo de constituição de
sujeitos e de produção de sentidos, colocando em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua
e pela história, o que me permitiu pensar de um outro lugar teórico a linguagem das crianças
portadoras da Síndrome de Asperger.

“São processos de identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de


construção da realidade etc. ...A linguagem serve para comunicar e para não comunicar.
As relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são
múltiplos e variados.” (Orlandi,1999b, pág.21).

A noção de discurso vem, pois, para romper com a idéia instrumental da linguagem e
conteudística de sentido. O discurso seria a palavra em movimento, prática de linguagem,
diferenciando-se da língua, que é o objeto de estudo da Lingüística. Língua, na AD, não é um
sistema de signos fechado em si mesmo, é a condição da possibilidade de discurso, sujeita a
falhas e equívocos e o discurso não pode ser visto, também, completamente desprovido de
condicionamentos lingüísticos e de determinações históricas. O discurso é a conjugação
necessária da língua com a história, produzindo a impressão de realidade.
Neste sentido, podemos dizer que para a AD:

“Na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto


trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história.”
(Orlandi, 1999b, pág.28).

Neste sentido, a Análise de Discurso, enquanto teoria e instrumento de análise, vem


fornecer explicações e colocar questões para o trabalho de compreensão da Síndrome de
Asperger. Para Pêcheux, instrumento e teoria devem estar juntos, eles não são independentes e
nem o instrumento é apenas uma aplicação da teoria. Afirma também que uma teoria não pode se
apropriar do instrumento de uma outra, sob pena de provocar mudanças no instrumento e no seu
campo conceitual. Assim, apropriei-me desta metodologia de leitura e de interpretação de textos,
para promover fissuras em um campo teórico - o da Psicologia - e ampliar a compreensão dos

32
fenômenos considerados patológicos, como Síndrome de Asperger, e do sujeito que se constitui
nos espaços de linguagem.
A utilização dos instrumentos como extensões de outras utilizações dos mesmos ou a
prática científica colocada na continuidade da prática técnica, são caminhos para Pêcheux
empreender sua crítica às Ciências Sociais e, principalmente à Psicologia Social. Ele acrescenta,
ainda, que a chamada “objetividade” da ciência não é senão a transposição da adequação do
instrumento às práticas técnicas no interior das quais o próprio instrumento havia sido criado.
Neste ponto, pude pensar sobre o papel dos instrumentos nos diagnósticos psicológicos que
definem os quadros patológicos, onde os conceitos diagnósticos são formados a partir dos
resultados da avaliação desses instrumentos, ou melhor, dos testes psicológicos utilizados na
prática terapêutica. Desenvolvendo sua reflexão por esses caminhos, Pêcheux considerou o
estado das Ciências Sociais, naquele momento, como pré-científico e nisso, revelando sua
filiação às propostas de Canguilhem, quando este caracterizou as ideologias pré-científicas “como
discursos que fundam sua credibilidade sobre o cálculo de um máximo de analogias com dados
estabelecidos em outros campos, na ausência de qualquer possibilidade atual de verificação experimental
em seu próprio campo” (Henry, 1990, pág.22).
A proposta da AD revela sua filiação teórica a Canguilhem, mas também a Bachelard
e Foucault, em uma apropriação específica de seus trabalhos, pela incorporação a eles de
elementos do materialismo histórico, através da influência marcante de seu mestre Althusser.
Como Pêcheux sofreu influências desses filósofos na formulação de sua teoria,
considero necessário, antes de continuarmos a trabalhar o dispositivo teórico da AD, fazermos
uma breve passagem por alguns conceitos que marcaram uma mudança do pensamento científico
na história das ciências e que serviram de inspiração para as formulações de Pêcheux. Retomar
esses percursos foi importante para mim em um momento em que começava a ver abalada a
própria concepção de diagnóstico que até então utilizara, bem como a própria posição-sujeito de
psicólogo em uma sociedade como a nossa.
Pêcheux, desde o começo da década de 60, envolve-se nos debates teóricos a respeito
do materialismo histórico, da psicanálise e da epistemologia. Assim, como Canguilhem e
Bachelard, sua reflexão situa-se, no início, no campo da história das ciências. Torna-se
pesquisador num laboratório de Psicologia Social do Centre National de Recherche Sociale -

33
CNRS - e seus questionamentos, nessa época, se dirigem às Ciências Humanas, principalmente à
Psicologia Social, como já dissemos.
Em relação às condições em que uma ciência estabelece seu objeto, Pêcheux
desenvolve proposições que se assemelham às idéias de recorrência e de descontinuidade de
Bachelard e de Canguilhem, quando considera que:

“toda ciência é produzida por uma mudança conceitual num campo ideológico em relação
ao qual esta ciência produz uma ruptura através de um movimento que tanto lhe permite o
conhecimento dos trâmites anteriores quanto lhe dá garantia de sua própria cientificidade.
Ele acrescenta que, num certo sentido, toda ciência é, antes de tudo, a ciência da
ideologia com a qual rompe. Logo, o objeto de uma ciência não é um objeto empírico, mas
uma construção.” (Henry, 1990,pág. 16).

Nesse ponto gostaria de destacar, contudo, na citação anterior a presença do elemento


ideologia, que marca uma diferença entre estes filósofos e Pêcheux. Para ele, as ideologias
teóricas são determinadas pelas formações ideológicas dominantes, isto é, o conjunto dos
aparelhos ideológicos do Estado.
Pêcheux considera que tal uso dos instrumentos pelas Ciências Sociais está ligado a
posições ideológicas, à ordem social. Escreve Pêcheux que as Ciências Sociais, inclusive a
Psicologia, se desenvolveram, principalmente, nas sociedades em que, de modo dominante, a
prática política tentava transformar as relações sociais no seio de uma formação dada de maneira
que a estrutura global de suas práticas sociais ficasse inalterada. Pensando nessa relação entre a
prática política e as práticas das Ciências Sociais, algumas questões podem ser postas ao
analisarmos a díade normal x anormal. Temos nessa díade uma mera oposição ou uma
contradição que expressa um conflito do real que se dá pela definição de um elemento pelo que
ele não é? A quem interessa essa divisão entre pessoas normais x anormais em uma sociedade
dada? Não estaria esta classificação relacionada com um modelo econômico-social da sociedade?
Até que ponto algumas pessoas, que não correspondem-satisfazem às exigências econômicas e às
normas sociais da sociedade capitalista, podem ter sua improdutividade significada em termos de
anormalidade ou de transtornado mental?
Ao refletirmos sobre a questão da prática científica da Psicologia ser afetada pelas
condições econômicas e sociais de uma sociedade dada, podemos retomar a história do
nascimento da doença mental, conforme tratou Foucault, em sua obra “A História da Loucura”
(1997), para buscarmos sustentação para nossas formulações. Ali ele relaciona, de forma

34
exaustiva e consistente, a loucura com a (des-)ordem social, o que parece dizer respeito
diretamente às questões que nos propusemos a analisar e compreender neste trabalho.
Comecemos pela era clássica, quando, segundo Foucault (1997), a loucura surge sem
glória, dividindo o espaço dos Hospitais Gerais com a miséria e a ociosidade. A loucura é
percebida através de uma condenação ética à ociosidade. O louco é ouvido como se falasse de
outro lugar e de outro mundo, porque inflige as regras de uma ordem burguesa. É preciso, então,
oferecer trabalho obrigatório, dentro dos hospitais, como forma de libertação. Neste momento,
loucura significa incapacidade para o trabalho, impossibilidade para integrar-se no mundo, e é
percebida no campo social da pobreza.
Nos séculos XVII e XVIII, a loucura assume duas posições justapostas: a primeira,
como doença, de forma restrita, da qual se espera a cura através do processo de hospitalização, e
a segunda, que existia nessa época em maior número, como desordem social da qual procuram
livrar-se através do internamento, do castigo e da correção. Para Foucault (1997), essa
justaposição se torna um problema e é a partir dela que podemos definir a percepção do louco e
sua condição na era clássica.
A síntese dessas duas experiências da loucura constituiu os primórdios da
psicopatologia com pretensões científicas e despertou uma visão mais humanitária da loucura.
Apesar disso, Foucault (1997) critica a posição da medicina positiva, que é a nossa ainda hoje, de
tomar suas medidas com referência a um homem normal. Para ele, esse homem normal, que é
considerado como dado anterior a qualquer experiência da doença, é uma criação.
“E se é preciso situá-lo, não é num espaço natural, mas num sistema que identifique o
'socius' ao sujeito de direito; e, por conseguinte, o louco não é reconhecido como tal pelo
fato de a doença tê-lo afastado para as margens do normal, mas sim porque nossa cultura
situou-o no ponto de encontro entre o decreto social do internamento e o conhecimento
jurídico que discerne a capacidade dos sujeitos de direito.” (1997, pág. 133)

Neste ponto, gostaria de lembrar que o sujeito de direito é a forma individualizada


concreta que o indivíduo já interpelado pela ideologia em sujeito, assume na sociedade
capitalista, sob a forma de um indivíduo livre de coerções e responsável pelo que diz e faz,
devendo responder, como sujeito de direitos e de deveres, frente ao Estado e aos outros homens.
(Orlandi, 1999b, pág.25)
Retornando à terceira parte do livro de Foucault, "A História da Loucura" (1997),
observamos, e destacamos, algumas considerações feitas por ele a respeito do surgimento da

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Psicologia. Ele afirma que a Psicologia surge como forma invertida da justiça clássica, não surge
de uma humanização, mas da necessidade de complementar a moral; ela nasce da convocação
que fizeram da consciência pública como “instância universal da razão e da moral para julgar os
homens” (pág.445). Em suma, a Psicologia só é possível na crítica do homem ou na crítica de si
mesma. Vamos, assim, conhecendo, analisando embates teóricos que colocam em questão não só
um campo disciplinar, como também uma posição de sujeito: a do psicólogo.
Pêcheux trabalha também a noção de descontinuidade entre ciência e pré-ciência,
também desenvolvida por Bachelard. Isto significa dizer que para o fundador da AD as ideologias
teóricas, as matérias-primas teóricas, ou seja, os objetos de conhecimento têm uma história e um
desenvolvimento desiguais próprios, até o ponto de acumulação, quando acontece o corte
epistemológico no qual são produzidos os conceitos fundadores de uma ciência, ou seja, seu
começo histórico. Não haveria, assim, estado de ignorância pré-científica; os conhecimentos que
precedem o corte epistemológico - "ponto de não-retorno a partir do qual uma ciência começa" -
estariam inscritos na forma-sujeito, eles existiriam como um sentido evidente para os sujeitos, seu
suporte histórico. O não-retorno, um termo utilizado por Pêcheux, opõe-se a uma visão
continuísta da história das ciências, visão esta que pressupõe uma noção de "saber" como
desenvolvimento contínuo e como projeto voluntarista de um indivíduo fora de toda e qualquer
ideologia.
Neste momento, percebe-se a importância da Lingüística para que criasse a AD, ou
seja, a importância de uma leitura acurada e de uma reflexão minuciosa sobre o corte saussureano
e seus efeitos epistemológicos, como os de tornar impossíveis certos discursos ideológicos ou
filosóficos que o precedem, de traçar linhas de demarcação no terreno conflitivo da filosofia e de
determinar uma autonomia relativa da nova ciência que a partir daí se constitui e que depende de
si para a sua própria continuidade pela possibilidade de estabelecer procedimentos experimentais
que lhe sejam adequados.
Não existe, pois, um discurso científico “puro”, sem ligação com alguma ideologia. O
processo de produção de conhecimento é um “corte continuado”, que é extensivo às ideologias
das quais ele busca se separar, isto é, é compelido a se repetir circularmente através de diferentes
demarcações. Como seria isso na Psicologia? Com esse conceito de produção de conhecimento
que a AD traz, poderia ser pensado em se tratando do campo disciplinar da Psicologia? O status
da “cientificidade” dos instrumentos de avaliação, reconhecidos e valorizados pelo seu caráter

36
empírico, pode efetivamente estar desvinculado de interesses políticos e sociais dos diferentes
grupos que integram uma sociedade dada? Esses instrumentos não seriam um dos mecanismos
para se produzir e reproduzir determinada(s) ideologia(s)?
No momento histórico do corte, que é o marco inicial de uma ciência, Pêcheux
considera que se deve questionar a forma-sujeito e a evidência do sentido nela incluída. Esse
momento assume uma especificidade que é o de inaugurar, num campo epistemológico
particular, uma relação do “pensamento” com o real, de tal modo que o que é pensado não seja
sustentado por um sujeito. O processo de produção de conhecimento é um processo sem sujeito,
um processo do qual todo sujeito, como tal, está ausente. Assim Pêcheux (1988) fala do paradoxo
dos conceitos fundadores de uma ciência, “paradoxo de um pensamento do qual todo sujeito está,
como tal, ausente, de modo que os conceitos de uma ciência enquanto tais não possuem a rigor; um
sentido, mas uma função em um processo”. (pág. 193)
Foucault também foi um filósofo que rejeitou a forma tal como se concebia a
produção de conhecimento em sua época, principalmente, nas Ciências Humanas. Como
Pêcheux, que desenvolveu sua Análise de Discurso que tinha como objetivo promover uma
reviravolta nas Ciências Sociais, Foucault desenvolveu sua “arqueologia” que tinha como
objetivo promover uma reviravolta, porém, na história das idéias. Em suas obras, ele trata da
mudança epistemológica na história. O que Foucault (1986) pretendeu demonstrar com sua
arqueologia foram as formas de sujeições antropológicas, que não se inserem na estrutura, “mas
sim no campo em que se manifestam, se cruzam, se emaranham e se especificam as questões do ser
humano, da consciência, da origem e do sujeito” (pág.4).
Da leitura de trabalho desses filósofos, via abrir um imenso espaço de conhecimento e
de reflexão; de pensar, apreender e compreender os fenômenos psicológicos de forma não
positiva, que me permitiram ir avançando na compreensão do sujeito com Síndrome de Asperger
e das teorias e técnicas que constituem um lugar para ele significar o mundo e se significar.
Retornemos um pouco mais a Foucault. Para ele, analisar um enunciado, não significa
analisar a relação entre o autor e aquilo que ele quis dizer, mas determinar qual a posição que
deve ocupar um indivíduo para ser sujeito desse enunciado. Segundo Henry (1990), esta
concepção de sujeito como posição vai ser trabalhada também por Althusser e Pêcheux e uma
diferença entre eles e Foucault, Derrida e Lacan, por exemplo, consiste em que estes referiam o
sujeito a uma impossibilidade de escapar da ordem do signo, enquanto Althusser e Pêcheux

37
referiam à impossibilidade de se escapar da ideologia. Importante ressaltar, contudo, que todos
eles colocavam em questão o sujeito fundante, origem e fonte de seu dizer, e recusavam em fazer
da natureza humana um princípio explicativo capaz de por si só de colocar e especificar um
objeto de ciência.
A influência de Althusser é marcante, pois, para a constituição do campo da Análise
de Discurso, pois, tendo como referência a ideologia, introduz a noção de sujeito "enquanto efeito
ideológico elementar”. Para Althusser é “enquanto sujeito que qualquer pessoa é “interpelada” a
ocupar um lugar determinado no sistema de produção” (Henry, 1990, pág.30). Althusser afirma que,
como qualquer evidência, essa evidência de que somos sujeitos é um efeito ideológico elementar:
nada se torna sujeito, aquele que é interpelado é sempre um “já-sujeito”. A ideologia existe “por e
para o sujeito” e toda prática existe sob uma ideologia, em outras palavras, “todo sujeito humano,
isto é, social, só pode ser agente de uma prática social enquanto sujeito”.(Henry,1990, pág.30).
Segundo este mesmo autor, com o objetivo de definir o sujeito como posição e não como
entidade, Foucault, Derrida e Lacan fazem uma referência à linguagem, não como origem, mas
como exterior a qualquer falante, enquanto Althusser faz referência à ideologia prioritariamente.
Já Pêcheux busca estabelecer uma relação entre linguagem e ideologia e para estabelecer essa
ligação é que ele introduz a noção de discurso.
Pêcheux afirma que as Ciências Sociais, inclusive a Psicologia, apresentam uma
ligação crucial com a prática política, pois estão no prolongamento das ideologias que se
desenvolveram em contato com a prática política. As Ciências Sociais consistem na aplicação de
uma técnica a uma ideologia das relações sociais, adaptando e re-adaptando as relações sociais à
prática social global, tendo a prática política como função transformar as relações sociais,
reformulando a demanda social, através do discurso. O discurso é o instrumento da prática
política, e para romper com a concepção tradicional da linguagem como mero instrumento de
comunicação e considerando a relação oculta entre as Ciências Sociais e a prática política, ele
escolheu o discurso para intervir teoricamente e construir um dispositivo experimental a Análise
Automática do Discurso.
Neste sentido que a Análise do Discurso, como referencial teórico e metodológico,
adequa-se aos objetivos desta dissertação. O trabalho acadêmico com esta metodologia trouxe
ganhos teóricos substantivos, permitindo o deslocamento das noções de erro, de déficit e/ou de
dificuldade e problemas de linguagem e apontando para a necessidade de procurar outras teorias

38
psicológicas distintas daquelas até então por mim utilizadas, para dar conta do objetivo proposto.
Ao buscar na materialidade dos enunciados uma compreensão para a interpretação ali existente -
todo fato lingüístico é uma interpretação - sobre o sujeito com SA, deparei-me com a necessidade
de apreender e compreender outras abordagens que tratam da questão da patologia, como a
defectologia de Vygotsky. A AD foi, pois, a mediadora, nessa mudança de filiação teórica na área
da Psicologia, que foi se fortalecendo no desenvolvimento deste trabalho.
Feita essa breve trajetória pela história das ciências e da epistemologia, que estiveram
na base da fundação da AD, e que provocou de forma intensa a minha curiosidade de
pesquisadora, retomo o trabalho com o dispositivo teórico da AD que, junto com as questões
levantadas e o levantamento bibliográfico realizado, possibilitou o delineamento do dispositivo
analítico adotado nesta dissertação em que se fazem presentes os recortes textuais que serviram
de corpus de análise.
O discurso, objeto de estudo da Análise de Discurso, é efeito de sentidos entre os
locutores, como já dissemos. A sociedade funciona com inúmeros discursos que se (entre)
cruzam, se complementam e se confrontam. Nessa dinâmica, surgem novos sentidos que
contribuem para mudanças nas diferentes práticas ou para a permanência certos sentidos, mesmo
que deslocados, contribuindo para a reprodução e a manutenção de uma determinada ordem
social e política . O discurso é uma construção teórica, um objeto de estudo cuja especificidade
está em que sua materialidade é lingüística.
Essa noção de discurso defendida pela AD diferencia-se muito do esquema
“informacional” adotado pela maioria dos autores da área de saúde mental, apresentados na
primeira parte deste trabalho, para caracterizar a linguagem dos portadores da Síndrome de
Asperger como “deficiente” e “sem sentido”. O conceito de comunicação adotado nos trabalhos
resenhados refere-se a uma transmissão de informação, a uma passagem de um sentido único, o
poderia ser representado da seguinte maneira: um emissor envia uma mensagem ao receptor,
sendo esses sujeitos caraterizados como presenças físicas, cognoscentes e intencionais, ou seja,
pessoas que controlam plenamente o que está sendo dito e ouvido, pressupondo a linguagem
enquanto instrumento pronto e acabado, ficando as incompreensões por conta de eventuais
"ruídos". E, finalmente, para que se estabeleça a comunicação é necessário que a mensagem
enviada se refira a um código comum - algo pronto e acabado - e que requeira um contato entre
eles.

39
Para a AD a noção de comunicação é uma ideologia cuja função nas ciências
Humanas e Sociais é negar ou apagar o político no sentido de transformar as diferenças e as
contradições de uma sociedade de classes em problemas de comunicação, de adequação a
situações lingüísticas. A linguagem serve tanto para comunicar como para não comunicar. Para
Pêcheux considerar que a linguagem tem apenas uma função de comunicação, mesmo que isso
seja feito de forma muito complexa e elaborada, é reduzir o homem e a sociedade humana aos
mesmos princípios dos animais, pois, mesmo não possuindo uma linguagem como os humanos,
os animais também se comunicam. Temos, neste conceito, a naturalização das relações sociais
determinadas historicamente em uma sociedade dada. E é sob a forma do discurso que estão
apagadas as dissimetrias e as dissimilaridades entre os agentes do sistema de produção, o que não
acontece de forma explícita, mas pelo viés da comunicação que pressupõe-impõe sempre um
único sentido, a ser transportado de um indivíduo para outro.

"O que precisa ser compreendido é como os agentes deste sistema reconhecem eles
próprios seu lugar sem terem recebido formalmente uma ordem, ou mesmo sem 'saber'
que têm um lugar definido no sistema de produção. Quando alguém se vê obrigado a
ocupar um lugar dentro de um sistema de trabalho, este processo já se deu
anteriormente; tal pessoa sabe , por exemplo que é um trabalhador e sabe o que tudo isto
implica. O mesmo acontece quando alguém é, por exemplo juiz. O processo pelo qual os
agentes são colocados em seu lugar é apagado..." (Henry,1990, pág.26)

Nesse sentido importa-nos, neste trabalho, tanto compreender como a pessoa


portadora de Síndrome de Asperger foi colocada em tal lugar, analisando, para isso, os discursos
sobre a SA caracterizados pelos manuais oficiais de diagnósticos, como também, analisar os
enunciados dos portadores de SA, não apenas como produtos, mensagens, informações, mas
como efeito de sentido que são produzidos em determinadas condições. E o que vem a ser
condições de produção nos discursos “sobre” a SA e no discurso do sujeito com SA? Quais são as
discrepâncias aí existentes?
As condições de produção englobam os sujeitos envolvidos no processo de
interlocução, em um sentido restrito, o contexto de produção dos enunciados (eu/tu – aqui –
agora) e, em um sentido mais amplo, incluem o contexto histórico, ideológico, pois os sentidos
são historicamente construídos e a AD vai trabalhar com a relação da língua com a história. A
noção de historicidade é crucial para a AD, possibilitando estabelecer uma relação da memória

40
com o discurso, entre o dito e o já-dito e para tanto propõe a noção de “interdiscurso”, definindo-
o como:
“aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos
memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a
forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada
da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito
significa em uma situação discursiva dada.” (Orlandi, 1999b, pág.31).

A linguagem não é vista como origem, mas, sim, como algo exterior e maior que cada
falante, exterioridade essa que vai definir a posição enunciativa do sujeito. Sujeito e indivíduo
(biológico, empírico) não são, assim, termos intercambiáveis. Ao falar de sujeito com SA
estamos, pois, falando de um posição enunciativa, de um lugar social de fala e de escuta, de
leitura e de escrita, construído historicamente, e onde as coisas já significam, já que temos uma
língua funcionando porque a história intervém.
O sujeito é, portanto, determinado, mas para agir, deve ter a ilusão de ser livre mesmo
quando se submete. Para subjetivar-se o sujeito se submete a uma língua que já tem um
funcionamento próprio e já significa quando o filho do homem se torna falante; se o indivíduo
não se assujeitar à língua e à história ele não se constitui como sujeito, não produz sentido. É
importante, nesse momento, diferenciar o significado do que na AD denominamos de
assujeitamento à língua, da palavra dicionarizada, “sujeitar”. Esta última significa tornar-se
obediente ou dependente, enquanto, assujeitamento, na AD, seria o indivíduo, afetado pelo
simbólico, pela ideologia, se subjetiva. Não há como não se ser sujeito. Como diz Orlandi
(1999b, pág.18), "a subjetivação é uma questão de qualidade, de natureza: não se é mais ou menos
sujeito, não se é pouco ou muito subjetivado".
Quando nascemos, a língua já está em funcionamento, os discursos já estão em
processo e nós é que nos inserimos neles. Isso não significa que não exista singularidade. O
modo como acontece o assujeitamento é o ponto central desse processo, pois, segundo Silva
(2000a), vão daí resultar as formas de individualização do sujeito que irão produzir ou reproduzir
os discursos. A individualidade do sujeito que vai se constituir na apropriação social da língua, se
caracteriza pelo modo como o faz e não pelo objeto do qual se apropria, até porque o objeto, no
caso a linguagem, não é um objeto empírico, mas determinada pela exterioridade histórica e
inconsciente. A partir do assujeitamento ao simbólico, afetado pela história, é que se pode
compreender as noções de sujeito e de sentido.

41
O discurso tem como ponto fundamental à “subjetividade”, que é constituída a partir
da materialidade do discurso. Subjetividade que resulta da polifonia de formações discursivas a
que cada indivíduo, no processo de interpelação – de entrada na rede de sentidos já existentes -
se filia de forma histórica e inconsciente. E para tanto, Pêcheux trabalha com a noção de forma-
sujeito:
“Todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática se se revestir
da forma-sujeito, que é a forma existência histórica de qualquer indivíduo, agente das
práticas sociais.” (1988, pág.183)

A noção de sujeito é, pois, histórica; o sujeito resulta de um processo discursivo


histórico e inconsciente que é apagado, tornando-se este sujeito, então como causa de si e origem
do seu dizer. O sujeito constitui-se, pois, pelo esquecimento daquilo que o determina.
Esquecimento que não significa perda de alguma coisa que se tenha sabido um dia, mas "o
acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito”, e se apresenta sob duas formas que
Pêcheux denomina de esquecimento nº 1 e esquecimento nº 2. "O primeiro dá conta do fato de que o
sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina"
(Pêcheux, 1988, pág.173); trata-se de um esquecimento da instância do inconsciente e é ele que
nos dá a ilusão de ser a origem do dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos pré-
existentes. Quanto ao segundo, diz respeito ao intradiscurso - a seqüência discursiva - e trata-se
do esquecimento que produz em nós a impressão da realidade do pensamento - a ilusão
referencial -, estabelecendo uma relação "natural" entre as palavras e as coisas. "Ao falarmos, o
fazemos de uma maneira e não de outra e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que
indicam que o dizer sempre podia ser outro". (Orlandi, 1999b, pág.35)
Essa entrada do indivíduo no simbólico, pela interpelação ideológica, se faz por sua
inscrição em determinada formação discursiva referida às formações ideológicas, e portanto, esse
assujeitamento, como afirma Silva (2000a), vai se dar de formas diferentes. Para Pêcheux, a
formação discursiva é:

“aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa
conjuntura dada, determinado pelo estado da luta de classes, determina o que pode e
deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de
uma exposição, de um programa, etc.).” (1988, pág. 160)

42
Orlandi (1999b) considera as formações discursivas como uma espécie de
regionalizações do interdiscurso, pois “O interdiscurso disponibiliza dizeres, determinando, pelo já-dito,
aquilo que constituiu uma formação discursiva em relação a outra” (pág. 44). Os sentidos não estariam
pré-determinados, mas dependeriam das relações entre formações discursivas.
Pela referência à formação discursiva, é que, segundo Orlandi (1999b), podemos
compreender dois pontos fundamentais para a AD: 1) as palavras não têm sentido nelas mesmas,
seus sentidos derivam das formações discursivas, e no discurso as formações discursivas
representariam as formações ideológicas, o que torna possível compreender que os sentidos são
determinados ideologicamente; 2) palavras iguais podem ter sentidos diferentes, porque seus usos
se dão em condições de produção diferentes e se inscrevem em formações discursivas diferentes.
A noção de sentido é, pois, histórica, e a transparência dos sentidos que emanam de um texto é
aparente, pois há mecanismos ideológicos em jogo. No funcionamento da ideologia, o leitor e/ou
o autor são instalados nesse processo de produção de sentidos como elementos constitutivos da
história desse processo.
Silva (2000a), em seu artigo “Alfabetização: sujeito e autoria”, apropria-se
discursivamente de alguns conceitos da teoria de Vygotsky, permitindo trabalhar a contradição
indivíduo-sociedade, o que podemos observar, retomando a epígrafe que norteou meu trabalho
desde a elaboração do projeto:

"Para explicar as formas mais complexas da vida consciente do homem é imprescindível


sair dos limites do organismo, buscar as origens desta vida consciente e do
comportamento “categorial”, não nas profundidades do cérebro, ou da alma, mas, sim, nas
condições externas da vida e em primeiro lugar, da vida social, nas formas histórico-sociais
da existência do homem. (grifo meu)

Vygotsky foi um autor que também tomou o materialismo como base epistemológica
para formular sua teoria sobre as formas sociais de existência do homem e que postulou uma
subjetividade produzida em um processo histórico-social. Explicou o processo da consciência
humana através da maneira como o indivíduo assimila a experiência social, por meio da palavra,
como reflete - e refrata - a realidade.
Silva (2000a), no trabalho mencionado, estabelece algumas relações entre conceitos
da AD e da teoria de Vygotsky, tomando como objeto de reflexão e análise o artigo em que este
autor discute o papel do brinquedo, como o processo de filiação discursiva. Vygotsky (1998)

43
considera o brinquedo como um mediador no processo de internalização das funções psicológicas
superiores, “o caminho pelo qual a criança aprende a seguir os caminhos mais difíceis, subordinados a
regras e, por conseguinte, renunciando ao que ela quer”. Para a AD, “o brinquedo é, pois, um lugar social
de interpelação, de assujeitamento, de configuração de subjetividade, lugar enunciativo em que o sujeito se
submete livremente à ordem do significante” (Silva, 2000a, pág. 450). No processo de constituição
do sujeito temos filiação a determinados sentidos e não aprendizagem. Ainda, nesse paralelo,
como aponta Silva (2000a), Vygotsky quando se refere à inscrição em uma cultura dada, nos
remete a importância da memória, pois, o que eu digo, faz sentido, porque entra-se em uma
memória do dizer, onde as coisas já significam.
Para a AD, não há sujeito sem ideologia. Orlandi (1999a) afirma que a ideologia é a
condição para a constituição do sujeito e dos sentidos, para o indivíduo produzir linguagem. A
ideologia, em AD, é a condição para a relação do mundo com a linguagem, não é um conteúdo,
mas o mecanismo de produzir sentidos que se apresentam como evidentes, naturais, universais.
A ideologia, assim, conceituada, marca, pois, a diferença da AD em relação à Análise de
Conteúdo, uma vez que essa trata dos conteúdos da linguagem, dos conteúdos da ideologia,
pressupondo uma linguagem transparente e uma distinção entre forma e conteúdo, sendo aquela
apenas a forma, o meio para expressar-manifestar este que já se encontra posto em outro lugar,
como no mundo das idéias. Interessa-nos, ao contrário, não os conteúdos das palavras, que
seriam reconhecidos uma vez atravessada uma linguagem transparente, mas o funcionamento do
discurso na produção dos sentidos, possibilitando o reconhecimento e a compreensão dos
mecanismos ideológicos que o sustentam. Como diz Orlandi (1999a):
"Na figura da interpelação estão criticadas essas duas formas de evidência: a da
constituição do sujeito e do sentido. Crítica feita pela teoria (materialista) do discurso à
filosofia idealista da linguagem que se apresenta quer sob o modo do objetivismo abstrato
(a língua como sistema neutro, abstrato), ou do subjetivismo idealista (o sujeito como
centro e causa de si)" (pág. 19)

A língua para a AD, enquanto um sistema com uma autonomia relativa porque afetado
pela história, é sujeito a falhas. A inscrição dos efeitos lingüísticos materiais, na história, é a
discursividade. (Orlandi, 1999b). Os sentidos são trabalhados no texto pela discursividade. No
espaço da constituição dos sentidos e na sua formulação intervém a ideologia e os efeitos
imaginários. O funcionamento do discurso deve ser compreendido na produção de sentidos,
podendo-se assim, explicitar os mecanismos ideológicos que o sustentam.

44
"... podemos dizer que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. A ideologia,
por sua vez, é interpretação de sentido em certa direção, direção determinada pela relação
da linguagem com a história em seus mecanismos imaginários. A ideologia não é, pois,
ocultação mas função da relação necessária entre a linguagem e o mundo".
(Orlandi,1998b, pág.31)

A filiação à rede de sentidos já existentes, quando falamos, a formação discursiva, não


se dá de forma consciente, fica por conta da ideologia e do inconsciente. Diante do simbólico, o
homem é levado a interpretar, quando o sujeito fala, ele está realizando um ato de interpretação,
está atribuindo sentido às suas próprias palavras e, nesse movimento de interpretação, o sentido e
o sujeito aparecem como evidências. É a evidência do sentido que faz com que a palavra designe
uma coisa, (noção de transparência da linguagem), apagando o seu caráter material e a evidência
do sujeito, como origem do que diz, apagando o fato do indivíduo ser interpelado pela ideologia.
Essas evidências que vão tornar, para o sujeito, as significações percebidas e experimentadas
como realidade, funcionando pelos esquecimentos, anteriormente explicitados.
Todo dito já é uma interpretação, pois filia-se a determinada(s) formação(s)
discursiva(s). Compreender a interpretação, produzida e reproduzida nos enunciados, nos textos,
é esclarecer a relação entre ideologia e inconsciente, tendo a língua como lugar onde isso se dá
materialmente. Analisar discursividade num enunciado não é atribuir sentidos, é entender a
opacidade do texto, explicitar como um sujeito simbólico produz sentidos, o que resulta saber que
o sentido sempre pode ser outro.
“Devemos entender como os textos produzem sentidos e a ideologia será então percebida
como o processo de produção de um imaginário, isto é, produção de uma interpretação
particular que apareceria, como a interpretação necessária e que atribui sentidos fixos às
palavras, em um contexto histórico dado.” (Orlandi, 1998b, pág.65).

Os textos produzidos pelo sujeito com SA têm, pois, sentido, já estão interpretados,
pois ele está no mundo, tem uma história e dela participa. O desafio para o terapeuta e para o
cientista é compreender essa interpretação. Da mesma forma que a relação em linguagem é
sempre entre sujeitos, tendo o texto, a língua, o discurso como mediação, sempre há, pois, para a
AD, inter-ação, diálogo, o que nos leva a pensar que quando os manuais de classificação apontam
os “déficits” de interação social como critério diagnóstico da SA, estão atribuindo juízos de valor
às interações, considerando-as como socialmente não-aceitas, ou menos aceitas, baseados num

45
conceito de linguagem como transparente, na noção de comunicação como algo homogeneizante
e sem falhas.
Temos, contudo, em AD, um outro conceito que, será fundamental em nosso trabalho:
o de autoria. O sujeito que ao produzir linguagem se representa na sua origem,
responsabilizando-se pela organização do sentido, pela coerência, progressão e não-contradição
do texto está, conforme a AD, exercendo sua função de autor. Observamos, assim, um dos modos
de o sujeito se inscreve no que diz, no texto que produz, e ao exercê-la o sujeito se percebe
subjetivamente. O autor seria uma função do sujeito, enquanto responsável pela organização do
sentido e pela unidade do texto, garantindo, desta forma, o efeito de univocidade do sujeito.
Orlandi (1998) caracteriza a função-autor da seguinte maneira:

“Ao nosso ver a função de autor é tocada de modo particular pela história (...). O que
significa que, embora, ele se constitua pela repetição, esta é a parte da história e não mero
exercício mnemônico. Ou seja, o autor, embora não instaure discursividade ( como o autor
“original”de Foucault), produz, no entanto, um lugar de interpretação no meio dos outros.
Esta é sua particularidade. O sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável.”
(Orlandi, 1998b, pág.69).

Entendemos que para o indivíduo se tornar autor ele precisa historicizar-se, ou seja, o
mundo para fazer sentido para o indivíduo precisa ressoar em sua consciência, inscrever sua
formulação no interdiscurso - historicizar seu discurso - e o que produz essa possibilidade é a
linguagem, em que o sujeito e os sentidos se constituem. É importante dizer que, inscrever-se no
repetível, na memória do dizer (interdiscurso), não significa, simplesmente, repetir, ou melhor,
realizar um exercício mnemônico. Para assumir sua posição de autor o sujeito faz interpretações e
o que ele produz precisa ser interpretável, ele “historiciza seu dizer”. (Orlandi, 1998b, pág. 70)
É no exercício dessa função que o sujeito em sua relação com a linguagem está mais
submetido ao controle social, pois é do autor que se exige coesão e coerência, clareza e
objetividade, originalidade, correção gramatical, não-contradição, tornando visível, identificável,
controlável. Há aí uma injunção a um modo de dizer padronizado, institucionalizado no qual se
cobra responsabilidade do sujeito por aquilo que diz.
A formação do autor se processa, portanto, em uma sociedade letrada como a nossa,
aparece como uma questão da subjetividade na relação com a escrita na escola, enquanto uma
forma de representação do sujeito. Estamos, pois, no cerne dos problemas enfrentados pelas

46
crianças com SA. E como se dá essa formação do autor na escola? Essa é uma questão que
iremos respondendo aos poucos.
Só é possível dizer algo inserido o meu dizer no repetível, é impossível o autor evitar
a repetição em seus enunciados. As palavras assumem sentido porque já tinham sentidos, como já
dissemos anteriormente. Só podemos dizer (formular) algo se nos colocamos no lugar do dizível
(memória). Orlandi, chega mesmo a afirmar que “o dizível é o repetível, ou melhor, tem como
condição a repetição. Não porque é o mesmo, mas é o que é passível de interpretação.” (1998b; 71). A
repetição faz parte da história e não é apenas um exercício mnemônico. O sujeito pela repetição
diz o já dito e pode reproduzir outros sentidos pelo deslocamento, historicização.
Em Orlandi (1996), podemos encontrar três modos de compreender e classificar essa
repetição: a repetição empírica que é uma mera repetição, efeito papagaio, a pessoa não sabe o
que está repetindo, não historiciza o dizer; a repetição formal que é uma forma mais abstrata da
língua, o indivíduo repete com outras palavras, há só uma organização mas não historiciza, então
o dizer não sai do lugar; a repetição histórica, ou seja, a pessoa inscreve seu dizer num saber
discursivo, produz deslizamentos, e com eles a possibilidade de produzir outros dizeres a partir
daquele. Então, o ideal da aprendizagem é levar o aluno a passar da repetição empírica à
histórica, para que haja ruptura e o sentido novo possa emergir.
Em relação ao portador de SA, observamos pelo trabalho na clínica e pelo trabalho
bibliográfico, que a repetição ocupa um lugar central. Para mim, parece haver uma apropriação
da palavra do outro para que seu discurso produza sentido e não como mera reprodução.
A repetição histórica vai aparecer mais visível quando pensamos em trabalhar a
função autor. Como já mencionamos, para a AD, o sujeito se constitui nas formações discursivas,
na interpelação do indivíduo pela ideologia, constituindo a forma-sujeito na sua autonomia,
responsabilidade e na sua determinação pela exterioridade. Neste ponto, podemos levantar
algumas hipóteses sobre a considerada dificuldade de linguagem do portador de SA, como
tratando-se não de problemas de linguagem pragmática ou dificuldades de atribuir estados
mentais aos outros, mas como um lugar onde se mostra as resistências no exercício de uma
autoria em que se produziria o efeito-sujeito autônomo e responsável. Parece estar aí a maior
dificuldade do portador de SA: a de ser reconhecido e se reconhecer como autor. Parece existir
uma resistência em interagir com os outros de forma pré-estabelecida, de ajustar-se às regras do

47
jogo social e uma recusa de se autonomizar e de se responsabilizar pelo o que é dito, utilizando,
assim, a fala do outro como garantia para uma comunicação aceitável.
Segundo Orlandi (1998a), a função autor é aquela em que o sujeito está mais afetado
pelo social e suas coerções. Nessa função exige-se uma relação institucional com a linguagem e
onde se vai cobrar mais essa função autor é na escola, como dissemos. Talvez esteja aí a
explicação, ou parte da explicação, de que grande parte das crianças com SA seja diagnosticada
como tal quando de sua entrada na escola, quando fica mais evidente a relação dessas crianças
com as regras do jogo social, as que devem se submeter livremente.
Orlandi (1996) diz “há no discurso informações novas que se apóiam em conhecimentos
anteriores partilhados pelos agentes do discurso.” (pág.125) Com isso, ela vê o funcionamento da
linguagem como um jogo entre os processos parafrásicos e polissêmicos, a relação contraditória
entre o mesmo e o diferente, distinguindo a produtividade e a criatividade na linguagem. A
paráfrase representa o dizível, a memória, o que se mantém, e a polissemia, a produção da
diferença. A paráfrase é a estabilização e a polissemia, o deslocamento. É nesse jogo
contraditório entre o já-dito e o a dizer que os sujeitos e os sentidos se significam, a condição de
existência dos sujeitos e dos sentidos se constituem na relação da paráfrase e da polissemia. A
repetição congela, estabiliza, porém, no plano do interdiscurso, a repetição é a possibilidade do
sentido vir a ser outro, dependendo de como os sujeitos são afetados pela língua e pela história.
Este jogo marca o confronto entre o simbólico e o político, pois todo dizer é ideologicamente
marcado e é na língua que essa ideologia se materializa. “Como o sujeito (e os sentidos), pela
repetição, estão sempre tangenciando o novo, o possível, o diferente. Entre o efêmero e o que se
eternaliza. Num espaço fortemente regido pela simbolização das relações de poder.” (Orlandi, 1999b,
pág. 38)
Isto nos permite distinguir produtividade de criatividade.
“Regida pelo processo parafrástico, a produtividade mantém o homem num retorno
constante ao mesmo espaço dizível: produz a variedade do mesmo. ... Já a criatividade
implica na ruptura do processo de produção da linguagem, pelo deslocamento das regras,
fazendo intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos
na sua relação com a história e com a língua. Irrompem assim sentidos diferentes.”
(Orlandi, 1999b, pág.37).

Trata-se de uma contradição a ser explorada nos enunciados do sujeito com SA. Apesar de ser
comum na fala dessas crianças, a repetição da fala do outro, demonstrando, assim,

48
aparentemente, o predomínio da paráfrase, da produtividade, não podemos considerar que não há
criatividade no discurso do sujeito com SA, que não há irrupção do diferente, pois, como afirma
Orlandi (1998a, pág.15) “... nas mesmas condições de produção imediatas há no entanto um
deslocamento, um deslizamento de sentidos. (...) Há então nesse caso do diferente a produção de efeitos
metafóricos, transferências de sentidos, re-significação.”
Analisando os discursos apresentados pelos portadores da Síndrome de Asperger
entendemos que a repetição tem, pois, sua especificidade e pode ser um lugar importante na
constituição desses sujeitos, o que será melhor trabalhado no quinto capítulo desta dissertação,
quando analisaremos a linguagem das crianças diagnosticadas com Síndrome de Asperger,
colhidas em sessões de atendimento.
A noção de discurso como trabalhamos, pela AD, introduz o lugar de falha, de
equívoco, da incompletude, do trabalho do inconsciente e da ideologia, como espaço de
interpretação. Como afirma Orlandi (1998b, pág.64), “ideologia não se aprende e inconsciente não se
controla com o saber. Eis o homem, ou melhor, o sujeito, posto na ordem dos efeitos do simbólico e da
história.”
Para se compreender melhor o aspecto histórico da noção de sujeito em sua função de
autoria, podemos trazer para o nosso campo de análise uma outra noção importante em AD, o
silêncio. É nesse lugar de silêncio que podemos falar da incompletude da linguagem, o
incompleto, o não-dito na AD é considerado um lugar do possível, de movimento dos sentidos e
dos sujeitos.
O silêncio, na AD, é constitutivo, isto é, necessário para que o sujeito estabeleça sua
posição, o lugar do seu dizer. Existe um silenciamento das formulações já feitas que constrói a
história dos sentidos, dando a ilusão de que o sentido nasce ali, no sujeito e não tem história, com
isso é permitido ao sujeito experenciar os “seus” sentidos. Para Orlandi (1999, pág.83), esse é um
tipo de silêncio que ela denomina de fundador que faz com que o dizer signifique. Porém, existe,
ainda, para ela, a “política do silêncio” ou o silenciamento que se divide em: constitutivo, quando
uma palavra apaga a outra e silêncio local, que é a censura, aquilo que é proibido falar numa
determinada conjuntura. Segundo Orlandi, isso deve fazer parte da observação do analista, pois
“entre o dizer e o não dizer desenrola-se todo um espaço de interpretação no qual o sujeito se move”
(1999, p. 85). Nesta perspectiva, ao analisarmos a fala do sujeito com SA, no sexto capítulo desta
dissertação, explicitaremos e analisaremos o que estamos chamando de formas de silenciamento.

49
Diante, das noções de silêncio trazidas pela AD poderíamos, realmente, considerar o silêncio do
sujeito com SA como falta de entendimento ou como de uma forma de censura, de uma crítica, de
uma resistência?
Como subproduto desse silenciamento, Orlandi (1998b) trata do plágio, que considero
importante destacar, uma vez que o plágio da maneira como é dicionarizado, “imitação da obra
alheia” (Holanda, 1977), é muito reconhecido na produção das pessoas com SA. O plágio,
segundo Orlandi, seria uma forma de silenciamento da autoria, ele cala a voz do outro que ele
retoma, é uma forma imposta de silêncio, interferindo assim na trajetória dos sentidos e no
processo de identificação do sujeito. O plagiador esquece que o dizer é sempre heterogêneo, que
na incompletude da linguagem, no dito e no não-dito, que o sentido e o sujeito podem ganhar (ou
não) novas determinações. Ou então, como disse Orlandi (1998b), o plágio pode representar uma
mudança na forma da função autor, em que estaria se devolvendo ao texto sua dispersão e ao
sujeito sua descontinuidade, seria uma outra forma de dizer que deixa passar a fragmentariedade,
a dispersão e a não-unidade do sujeito e dos sentidos. Mas, existiria aí, sim, o processo de
subjetivação, talvez um outro processo histórico de exercício dessa função. Como vimos, a
subjetivação é um processo vivido por todo indivíduo já sujeito, pois só se pode dizer afetado
pelo simbólico, se é sempre sujeito pelo assujeitamento à língua, na história. Na verdade não
significa que o sujeito com SA não exerceria essa função autor, mas que haveria uma outra forma
histórica de autoria, uma outra relação do sujeito com a interpretação.
Daí, termos pensado em analisar e compreender o funcionamento tanto dos discursos
das crianças com SA como dos discursos “sobre” a SA, constituídos em formações discursivas
referidas às formações ideológicas específicas, em que os instrumentos como os diagnósticos,
que classificam os indivíduos e que sustentam a prática terapêutica, têm um lugar privilegiado.
Trabalhando com esses conceitos, pudemos constituir o nosso corpus de análise,
considerando que os recortes que fizermos já são considerados em AD como fazendo parte da
análise. Os dados considerados empiricamente não têm história, só enquanto fatos,
acontecimentos lingüísticos é que eles podem nos conduzir à memória discursiva, permitindo-nos
trabalhar a relação do simbólico com o político. Como diz Orlandi (1998b), "o que nos interessa é
o que o texto organiza em sua discursividade, em relação à ordem da língua e a das coisas: a sua
materialidade".

50
Para a AD, os enunciados, os textos são unidades de análise afetadas pelas condições
de produção que permitem ao analista ter acesso ao discurso enquanto objeto teórico. São
material bruto, mas também espaço significante. O texto é lugar de jogo de sentido, de trabalho
da linguagem e é parte de toda uma rede discursiva. A AD, nessa perspectiva, não está
interessada no texto como unidade final, mas como uma unidade que nos permite, enquanto
analista, ter acesso ao discurso. O trabalho do analista para se chegar à ordem significante é
percorrer a materialidade discursiva do texto. Os procedimentos de análise são vários, mas existe
um postulado a ser seguido por todo analista: “o sentido sempre pode ser outro e o sujeito não tem
controle daquilo que está dizendo”. (Orlandi, 1998b, pág.68)
Em AD, dispomos de um dispositivo teórico já estabelecido, que foi aqui delineado,
mas cabe ao analista construir seu dispositivo analítico, considerando a natureza do tema, as
questões e hipóteses levantadas, a bibliografia trabalhada e as próprias noções da AD, apoiando-
se firmemente na própria organização da língua enquanto um sistema relativamente autônomo
porque é afetado pela história e pelo inconsciente, o que aqui fomos fazendo ao longo desses dois
capítulos iniciais.
Nesse processo de construção do dispositivo analítico, optamos por trabalhar com
dois tipos de discurso na constituição de nosso corpus: o discurso sobre as patologias e sobre a
SA, considerando a bibliografia existente, e o discurso do sujeito com SA, considerando as
crianças com quem trabalho já diagnosticadas como portadoras de SA.
Na verdade, inicialmente pensei em trabalhar imediatamente e quase com
exclusividade com a linguagem das crianças com SA. No decorrer do trabalho, fui me dando
conta que não era possível tomar tais dados como o início de tudo, como evidências, deixando
intacto o próprio lugar de onde falava e a parte de onde era falado. Era preciso dar visibilidade a
um outro que apontava para esse sujeito e o (re)conhecia e o tornava reconhecível e identificável
como portador de uma deficiência. Teria, pois, de colocar em questão a própria posição-sujeito
psicóloga, compreender as relações entre práticas científicas e práticas terapêuticas em uma
formação social dada, para só então ser capaz de outra escuta. Pude sentir, então, na minha
própria posição de psicóloga, o que Pêcheux fala da apropriação de um instrumento e da crítica à
aplicação neutra de instrumentos e de metodologias de análise.

51
3. DESCONSTRUINDO A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

52
O trabalho de leitura e de interpretação de textos, em que se evidenciam as estreitas
relações entre as concepções teóricas da Análise de Discurso e as propostas de Foucault,
Bachelard e Canguilhem, ampliou significativamente a minha compreensão do que seja uma
ciência e seus instrumentos, do que seja a experimentação científica, enquanto parte e efeito das
condições de reprodução-transformação das relações de produção econômicas e sociais de uma
sociedade dada. Nessas abordagens da história das ciências - não-positivistas e anti-empiristas -
pude apreender e compreender que trata-se de uma "evidência" produzida ideologicamente o fato
de se atribuir ao homem - sujeito pensante e consciente - ou aos homens - sujeito universal e
transcendente - a produção de conhecimentos científicos ao longo de uma história descontínua e
marcada por rupturas.
Assim, neste capítulo proponho-me a percorrer o caminho da história da constituição do
campo disciplinar da Psicologia, como forma de dar consistência ao meu trabalho de
compreensão de uma subjetividade - a do sujeito com SA - que se constitui enquanto patológica,
sustentada por teorias e instrumentos científicos e por uma prática terapêutica, produzindo
sentidos em que os sujeitos envolvidos nesse processo discursivo de classificação, identificação e
controle social e político dos cidadãos de uma sociedade, significam o mundo e a si mesmos.
Começo, pois, com o trabalho de Foucault, desenvolvido em sua obra “A Ordem do
Discurso” (1996), em que demonstra como o desenvolvimento de uma certa concepção de ciência
dominante, criticada por diferentes filósofos como aqueles mencionados no início desse capítulo,
possibilita o estabelecimento e o fortalecimento de limitações, coerções, exclusões no que se
refere ao nascimento, organização e circulação dos discursos em uma sociedade, apagando a
especificidade do discurso enquanto mediação entre o pensamento e a palavra. Essa elisão da
realidade do discurso tomou várias formas no pensamento filosófico e podemos encontrá-la sob
diversos temas: no tema do sujeito origem quando este, aparentemente, impõe a uma estrutura
vazia da língua sua intenção; no tema da experiência originária, em que as coisas já teriam um
sentido que nós, como fonte de nosso dizer, deveríamos apenas manifestar; e finalmente no tema
de mediação universal, onde as coisas e os acontecimentos se tornam discursos, manifestando o
segredo de sua própria essência.
Foucault (1996) apresenta a divisão entre o discurso verdadeiro e o discurso falso como
um procedimento de exclusão do discurso. Essa divisão seria uma divisão histórica, que dá forma
à nossa vontade de saber e que pode sempre se deslocar: a vontade de saber da cultura clássica,

53
por exemplo, é muito diferente da vontade de saber do século XIX que se baseava numa busca da
verdade, que é quando se dá o nascimento da Psicologia, como ciência. Segundo Foucault, as
grandes mudanças nas ciências não se devem somente às grandes descobertas, mas às novas
formas assumidas por essa vontade de saber, apoiada institucionalmente e reforçada e
reconduzida pelo modo como o saber é aplicado, valorizado, distribuído em uma sociedade. Essa
vontade de saber, assim constituída, exerce sobre os discursos de uma sociedade o poder de
coerção, como é o caso do discurso científico ocidental que, desde o século XIX, vem tentando
buscar apoio no verossímil, no natural, no discurso verdadeiro.
Em nossa sociedade ocidental -capitalista, branca e cristã - existe uma espécie de medo de
tudo o que esse discurso possa trazer ou revelar e, para Foucault, para analisarmos esse temor, é
preciso questionar nossa vontade de verdade, devolver ao discurso seu caráter de acontecimento.
Nesta obra, Foucault (1996) ao analisar os perigos do discurso, pela inquietações que
provoca, pelos poderes e perigos inimagináveis que traz, discute certos procedimentos de
exclusão de um discurso, dividindo-os em internos e externos ao discurso. Quanto a esses
princípios de limitação, interessa-nos, particularmente, explorar o princípio da "disciplina", um
princípio de controle interno do próprio discurso que busca conjurar o acaso e o acontecimento.
Ele considera a "disciplina" como um conjunto de métodos, um corpus de proposições
consideradas verdadeiras, um jogo de regras, de técnicas, de instrumentos, um sistema anônimo
que está à disposição de quem quer servir-se dele, sem que sua validade esteja relacionada ao seu
inventor. Para haver disciplina é preciso que haja possibilidade de formular proposições novas.
Uma proposição para fazer parte de uma disciplina, segundo Foucault, não precisa
necessariamente ser verdadeira ou ter um princípio de coerência e sistematicidade, pois esta é
feita tanto de verdades como de erros, que têm funções positivas e uma eficácia histórica. Além
disso, o autor menciona, criticando, algumas condições que uma proposição precisa atingir para
fazer parte de uma disciplina, que não seja apenas “a pura e simples verdade” (1996, pág.31):
precisa dirigir-se a um plano de objetos determinados; utilizar instrumentos conceituais e técnicos
bem definidos e inscrever-se num campo teórico.
Foucault (1996) conclui reafirmando o caráter restritivo da disciplina, quando diz que
uma proposição para pertencer ao conjunto de uma disciplina precisa preencher várias exigências
pesadas e complexas, o que significa a necessidade de encontrar-se “no verdadeiro”. Segundo o
autor há uma diferença entre “dizer a verdade” de “estar no verdadeiro” – este último significa:

54
obedecer regras de uma “polícia” discursiva, jogo de identidade que tem a forma de uma re-
atualização permanente das regras. Daí, o princípio de controle da disciplina em relação à
produção do discurso. Pensamos ter aí um outro caminho a explorar: o da formação do campo
disciplinar da Psicologia.
Neste sentido, poderíamos buscar respaldo nas afirmações de Yaroscheski (1983), quando
afirma que o interesse pelas possibilidades e perspectivas da Psicologia aumentou muito quando
esta disciplina foi reconhecida enquanto ciência. Esta ciência, segundo Yaroscheski, que tem
como objeto o homem, desenvolve-se em uma formação social enquanto princípio explicativo,
logo, é produzida por forças político-sociais e ideológicas em conflito e confronto e sujeita a
influência dessas forças. Por isso, justifica o autor, a Psicologia apresenta diferenças radicais em
sua orientação metodológica, logo, social e política, nos países em que as forças produtivas se
organizam diferentemente.
A caracterização dos quadros patológicos, dentre eles o da Síndrome de Asperger, pode
ser pensada, então, como uma proposição que integra esse campo disciplinar e, que portanto,
encontra-se, também, vinculada à(s) ideologia(s). Daí, podermos encontrar duas vertentes na
definição dos transtornos mentais, assim denominadas por Yaroscheski: uma médico-psicológica
e uma visão social, o que significa que a primeira seria a-social ou não-social, ou melhor,
considera a cientificidade como sendo marcada pela neutralidade. Tunes, Rangel e Souza (1992),
em um artigo sobre a deficiência mental, denominado “Sobre a deficiência Mental”, articulam
essas vertentes com a concepção de desenvolvimento humano, e falam, então, da existência de
concepção “naturalista” e de uma concepção “social” dividindo o campo de trabalho da
Psicologia, o que será apresentado e discutido no decorrer desta dissertação.
Outra questão importante, que merece destaque nessa análise discursiva sobre a
construção dos diagnósticos que possibilitam re-conhecer e caracterizar os quadros patológicos
defendidos pela Psicologia, é o seu caráter empírico. Como vimos anteriormente, a caracterização
do quadro clínico da Síndrome de Asperger, definido pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais 4a. edição – DSM IV (1995) – e considerado, hoje, como a classificação
oficial que deve ser aplicável a vários contextos com finalidades clínicas, educacionais e de
pesquisa, é legitimado sob uma base empírica como podemos encontrar dito em sua introdução:
“A utilidade e a credibilidade do DSM IV exigem que seu foco (...) esteja apoiado por uma ampla base

55
empírica” (APA, 1995, pág.XV), o que revela sua coerência com os fundamentos de uma ciência
moderna dominante.
Como já vimos, a Psicologia para se firmar como uma disciplina científica, necessita
encontrar-se “no verdadeiro”, ou melhor, responder às exigências de forças políticas e
ideológicas em alianças, conflitos e/ou confrontos. Tal proposição nos remete ao conceito de
formação discursiva da AD referida a uma formação ideológica, que pensamos ser importante
explicitar novamente aqui:
“A formação discursiva, se define como aquilo que determina o que pode e deve ser dito,
a partir de uma formação ideológica, ou seja, a partir de uma posição dada em uma
conjuntura sócio-histórica determinada” (Orlandi, 1999b, pág.43)
.
Enquanto analista de discurso o que pretendemos fazer, neste capítulo, em relação a
Psicologia, enquanto uma disciplina formal, é exatamente construir uma escuta que nos permita
identificar o efeito da língua na história, ou seja, explicitar a relação existente entre as
proposições da Psicologia referentes aos diagnósticos que se construíram em um processo
historicamente determinado e a(s) ideologia(s) dominante(s) da época.
Interessa-nos, portanto, traçar um paralelo entre a história do pensamento científico, o
surgimento da Psicologia enquanto ciência e a história da doença mental, evidenciando que, a
partir do momento em que a Psicologia se firma como ciência e com o modelo diagnóstico
classificatório daí decorrente, torna-se pouco a pouco oficial, dominante. Como o diagnóstico
adquire uma natureza e um funcionamento diferentes, dependendo da concepção de
desenvolvimento psicológico adotado, procuraremos, também, analisar os sistemas diagnósticos
defendidos por diferentes correntes da Psicologia, a partir das duas grandes vertentes existentes
na área de desenvolvimento, propostas por Tunes e cols (1992): a naturalista e a social,
considerando o funcionamento ideológico através do imaginário que então se constrói.
A tese de doutorado de Jairo Werner Júnior “Transtornos Hipercinéticos: contribuições do
trabalho de Vygotsky para reavaliar o significado do diagnóstico” (1997), defendida no Curso de
Pós-Graduação em Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de
Campinas foi outra referência fundamental para esse processo de des-construção do campo
disciplinar da Psicologia em geral, e dos diagnósticos aí produzidos, em particular.
Werner (1997), em seu trabalho, traça um histórico da racionalidade científica moderna e
considera o Renascimento como o berço dessa racionalidade, quando rompe com os princípios

56
epistêmicos da época medieval, caracterizados pela razão teleológica, oferecendo subsídios para a
compreensão de nosso objeto de estudo.
Esse rompimento com a visão religiosa pode também ser observada quando nos
debruçamos sobre a história do nascimento da doença mental, tomando como ponto de partida a
obra de Foucault, "A História da Loucura” (1997), no ponto em que ele mostra que na era
clássica a loucura surge dividindo espaço com a desordem social e não como algo vindo de outro
mundo, que peregrinava e precisava ser acolhido; tratava-se então de um problema de polícia e o
louco precisava ser excluído do convívio social. Deixa-se de lado a sensibilidade religiosa para se
dar lugar a uma sensibilidade moral que servirá de sustentação à vida civil. Vemos aí, a
transformação da forma-sujeito, na passagem do sujeito-religioso para o sujeito-moral.
O Renascimento vai iniciar a história da racionalidade científica moderna, pois emerge,
nesta época, uma razão soberana que estabelece uma divisão entre a ordem divina, a natural e
humana, ou melhor, em termos epistemológicos, entre sujeito e objeto, onde o homem (sujeito)
deve utilizar-se da razão e da experimentação para dominar a natureza (objeto). Com isso,
estabelecem-se as bases para o nascimento das duas teorias do conhecimento que vão caracterizar
a ciência moderna: o Empirismo e o Racionalismo.(Werner, 1997).
O Racionalismo pode ser considerado como tendo sido fundado por Descartes que com o
livro “O discurso do método” em 1637, século XVII, define o método científico como a forma
mais correta de conduzir a razão e a busca da verdade. Sendo as idéias inatas e originadas da
razão, não dependem da experiência.
Em relação à doença mental, Foucault (1997) considera a era clássica como dominação da
razão e, também, aponta Descartes como um marco para se compreender o processo de produção
de conhecimento dessa época. Descartes foi o primeiro a excluir a loucura da razão, pois rompe
com a relação entre razão e des-razão, pois a dúvida bane a loucura. A loucura está fora da razão,
fora do domínio no qual o sujeito detém e exerce seus direitos à verdade. O homem pode ser
louco, mas o pensamento que é o exercício da soberania de um sujeito que se atribui o dever de
perceber o verdadeiro, não pode ser insensato. Vemos nascer, aí, o sujeito-do-conhecimento para
atuar na estruturação e gestão de uma formação social que ganhava terreno: a capitalista.
O Empirismo, a outra teoria dominante, tem como principal representante o médico
inglês, John Locke, que enfatiza o papel das experiências. Considera que o real são fatos
observáveis e que o conhecimento da realidade deriva da experiência, através dos sentidos ou da

57
reflexão sobre os dados sensoriais. Ele não admitia a existência de idéias inatas. Os empiristas
estão ligados às ciências da natureza, marcadas pelo experimentalismo. (Werner, 1997;8)
Os empiristas britânicos usaram os mesmos princípios associacionistas sugeridos por
Aristóteles, séculos atrás, quando propôs que os itens semelhantes, opostos ou contíguos tendiam
a associar-se entre si. Nascia aí, a tradicional associação de idéias. Embora os filósofos empiristas
estivessem mais interessados em problemas epistemológicos sobre a produção de conhecimento,
as suas tentativas de explicar a atividade mental com o princípio associacionista, anteciparam os
progressos psicológicos subseqüentes. O pensamento representava uma formação de associações
em consonância com as regras da lógica. O associacionismo, como sistema que se desenvolveu a
partir do empirismo, fundado no século XVIII, tornou-se um princípio utilizado por grande parte
da Psicologia, precedeu e influenciou a formação de escolas psicológicas.
Essa transição da Psicologia enquanto parte da filosofia para uma ciência empírica e
natural, caracteriza-se pela mudança do princípio de associacionismo das idéias para o de
associação de estímulos-respostas, o que possibilitou a aplicação laboratorial dos princípios do
associacionismo. Esse caráter experimental marcaria a história do que é comumente denominado
de Psicologia científica. Segundo Marx e Hillix (1973), o associacionismo como instrumento
metodológico permanece, até hoje, incorporado ao campo disciplinar da Psicologia, uma vez que
a associação de variáveis é geralmente reconhecida como um dos procedimentos básicos das
investigações.
A fundação do primeiro laboratório formal de Psicologia, em 1879, por Wilhelm Wundt,
pode ser visto como um acontecimento, pois a partir de então a Psicologia tomou um forte
impulso como ciência, tornando-se independente da Filosofia e da Fisiologia, marcada por esse
caráter empirista/experimentalista. Wundt considerava que o estudo da Psicologia deveria
concentrar-se na experiência e o estudo da experiência tinha de ser realizado por introspecção e
em condições experimentais. Essa Psicologia introspectiva dessa época recebeu o nome de
Estruturalismo ou Existencialismo, tornando-se a chamada primeira escola psicológica.
Esse processo de construção do conhecimento, limitando-se ao domínio dos fatos
observáveis (noção advinda do empirismo), àquilo que pode ser verificado, enfim, aos limites da
razão, defendido pela Psicologia experimental, era condizente com o pensamento filosófico da
época, o Positivismo, fundado no século XIX por Auguste Comte, que postulava a ciência como
a nova religião da humanidade. O Positivismo adota para as Ciências Sociais as mesmas leis que

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regem as Ciências Naturais, leis que, conforme Comte, independem da ação humana, são livres
de julgamentos de valor e independem de ideologias, pressupondo um método científico único
que irá garantir a objetividade e a neutralidade dessas ciências.
Essa busca da objetividade e da neutralidade para caracterizar a ciência, influenciou
também o conceito de doença mental, como é demonstrado por Foucault em sua obra “A História
da Loucura” (1997). A era clássica não conhecia a origem da loucura mas a apreendia como
“desorganização da família, desordem social e perigo para o Estado” (pág. 80). Aos poucos se sentia a
necessidade de evoluir da experiência social para o conhecimento científico, progredindo da
consciência de grupo para a ciência positiva. A percepção da loucura começa a ser organizada
numa consciência médica como doença da natureza.
Segundo Foucault (1997), o século XVIII introduziu a loucura no campo da doença, a
loucura não seria mais a experiência do louco. A doença mental não era mais entendida como a
ligação do louco com sua loucura e o desatino como essa ruptura entre o louco e a loucura, o que
os torna estranhos uns aos outros, retendo cada um, em si, sua verdade. A loucura, agora, é
construída no campo da racionalidade, no domínio da doença. E para se definir uma doença deve-
se levar em consideração seus sintomas positivos, observáveis, assim se define o método
sintomático da medicina. A loucura então se integra às normas médicas, onde passa a ser
analisada no espaço da classificação. Foucault considera que essa inserção da loucura no mundo
das doenças tem um significado e que é necessário aceitar “...esta curiosa oposição entre uma
consciência perceptiva do louco (que no século XVIII foi singularmente viva, tanto era sem dúvida negativa)
e um conhecimento discursivo da loucura que comodamente se inscreveria no plano positivo e ordenado
de todas as doenças possíveis.” (pág. 192)
No século XVIII, a loucura assume, pois, uma relação complexa com a razão, uma dupla
maneira de se colocar ante a razão: de um lado, a loucura seria uma ausência da razão,
negatividade, existindo em relação aos outros que a representam e lhe atribuindo valor de
exigência; do outro lado, a loucura estaria sob o olhar da razão, de uma consciência ideal, cujas
características seriam próprias e não se encontrariam nas pessoas normais; assim, a razão seria
um termo de julgamento. Foucault afirma que em toda época houve uma dupla apreensão da
loucura: “uma moral sobre o fundo do razoável e outra objetiva e médica sobre o fundo da racionalidade”
(pág. 184).

59
Neste sentido, a experiência psiquiátrica da primeira metade do século XIX vai propor
uma divisão da loucura segundo as regras de uma percepção moral: a loucura reconhecida e
aceita às margens da razão, “se se considera que ela é explicável, é porque ela se revela invadida por
opções morais nas quais as pessoas se reconhecem” (pág. 453); e a loucura má, que é o resíduo dos
desatinos e que a era moderna não consegue assimilar, e da qual, só se pode proteger pela
negatividade, através da recusa e da exclusão. Assim, esse sujeito do conhecimento que então se
constituía como posição enunciativa, como efeito-sujeito, vê-se atravessado por um sujeito da
moral, revelando as alianças entre as formações discursivas na constituição de sujeitos e de
sentidos.
A partir dos efeitos de sentido produzidos por um sujeito moral no interior da ciência, já
estaríamos conhecendo um sistema de classificação: a loucura boa e a loucura má. No século
XIX, toda loucura deveria ter seu equivalente externo, uma exterioridade, pois a essência da
loucura era objetivar no homem sua relação com a atividade delirante. Segundo Foucault (1997),
a Psicologia é criada como complemento para a moral. Foucault considera ingênuo dizer que, ao
longo da história do louco, descreveu-se o tipo psicológico do louco. O que fizemos, na verdade,
foi uma história que tornou possível o aparecimento da Psicologia, ou seja, discursivizou-se a
loucura, possibilitando a sua institucionalização. Ele afirma que a psicologia surge como forma
invertida da justiça clássica, não surge de uma humanização, convocação que fizeram da
consciência pública como “instância universal da razão e da moral para julgar os homens” (pág. 445).
Em suma, a Psicologia só é possível na crítica do homem ou na crítica de si mesma.
Isso posto, podemos pensar em uma retomada de Pêcheux, quando ele fala das relações
das Ciências Sociais com o político. Para ele, as Ciências Sociais não são ciências mas ideologias
que se desenvolveram em contato direto com a prática política. Os seus especialistas agem de
acordo com uma demanda social, pela aplicação de uma técnica que adapte ou re-adapte as
relações sociais à prática social global, produzindo formas de individualização do sujeito e a
normalização da força de trabalho.(Henry,1990)
Voltando à constituição do campo da Psiquiatria, pelas relações que ele mantém com as
questões do patológico também trabalhado pela Psicologia, podemos observar a articulação de
formações discursivas, ao definir a loucura no século XX como sendo aquilo que fecha o homem
na objetividade. Essa ambigüidade que faz da loucura um elemento interno sob a forma de
exterioridade reproduz um modelo adotado pela Psicologia positiva do século XIX: passar para a

60
objetividade da loucura moral aquilo que é subjetivo. A subjetividade só pode ter uma existência
concreta na objetividade, só é aceitável e só tem sentido naquilo que ela exprime do sujeito, o que
Foucault (1997) considera como psicologização, como apagamento, denegação de uma
contradição constitutivo deste campo disciplinar, que é a da relação entre objetividade x
subjetividade. Essa ambigüidade mascara, na verdade, uma outra, a da constituição do sujeito e
do sentido, falando em termos de processos discursivos.
Na era clássica, a loucura escapava da visão objetiva porque ela era considerada “o contato
instantâneo do não-ser do erro com o nada da imagem” (Foucault, 1997, pág. 518), e o que a tornava
acessível era também aquilo que a esquivava como loucura: a linguagem da razão revelada na
lógica do delírio. No século XIX, acontece exatamente o contrário, o homem mesmo em sua
razão torna-se verdade concreta e objetiva através da loucura. “A verdade do homem só é dita no
momento de seu desaparecimento; ela só se manifesta quando já se tornou outra coisa que não ela
mesma” (pág. 518). Dessa forma, segundo Foucault, surge o paradoxo da psicologia positiva, só
se é possível existir a partir da negatividade: psicologia do “normal” pelo “anormal”, psicologia
da linguagem pelas afasias, psicologia da inteligência pela deficiência mental.
Foucault reafirma, dessa maneira, que o Positivismo do século XIX se baseia nessa
dialética, desprezando tudo que há de mítico, opondo-se, assim, ao pensamento clássico, quando
afirma que a verdade da loucura é a razão do homem e que todo conhecimento a respeito da
loucura será a própria razão, o desenlace da alienação.
Neste momento histórico do século XIX, a loucura passa a ser vista como um mecanismo
patológico da natureza, como uma doença e o que era visto, inicialmente, como espiritual e,
depois, como a animalidade do homem que precisa ser domesticada, passa, então, a ser vista
como uma alteração do sistema nervoso, do cérebro, localizada no corpo. É o início de uma visão
que podemos denominar, naturalística, que recebeu grandes contribuições de Philippe Pinel, ao
buscar nos aspectos orgânicos e/ou funcionais critérios para diferenciar os quadros de idiotia,
retardo, cretinia. Em virtude da preocupação com o diagnóstico, Pinel propôs vários quadros de
características ou sintomas através da anatomofisiologia.
Para compreendermos melhor essa visão naturalística que se impõe a partir de então, é
importante ressaltar que ela não nasce propriamente no século XIX. Quando Werner (1997) fala
da ruptura do pensamento teológico em busca da racionalidade científica, vinda com o
Renascimento, ele evidencia como este também carregou em si uma transformação no que se

61
refere à concepção da Humanidade: o homem passou a ser seu próprio ponto de referência e não
mais Deus. A busca da compreensão da vida humana não estava mais na religiosidade, mas no
“dom da inteligência” e no próprio corpo do homem.
Assim, no século XIX, em um outro momento histórico, vemos uma preocupação em se
conhecer as origens do homem e várias teorias sendo elaboradas com essa finalidade, podendo
ser englobadas no que chamamos de corrente naturalística: teoria da evolução espontânea; o
criacionismo, teoria da origem do homem por criação e a teoria da evolução de Charles Darwin.
Esta última considera que os seres vivos são sistemas capazes de se auto-replicar e, ao longo de
sucessivas gerações, evoluir. Essas replicações dariam origem a mutações, que sofreriam a
atuação de forças seletivas, justificando a idéia de evolução. A evolução ocorreria pela seleção
natural.
A teoria de Darwin trouxe uma nova - ou antiga deslocada? - contribuição às formas de
vinculação do indivíduo com o meio: as das conexões de adaptação e de acomodação, abolindo
e/ou negando a tensão entre os contrários, ou seja, a contradição indivíduo-sociedade própria de
uma sociedade de classes como a capitalista. Como na sua teoria em que a seleção natural
destruía aquilo que não estava a serviço da adaptação, as funções psíquicas também foram
consideradas instrumentos de sobrevivência e de adaptação ao meio, importantes fatores de
evolução. O princípio de adaptação ao meio explica as particularidades individuais, de acordo
com essa concepção, sendo que o organismo é impulsionado a agir não só pela ação dos instintos,
mas pelo próprio meio que obriga o organismo a adquirir novas formas de reação. (Yaroscheski,
1983)
Esse movimento evolucionista se expandiu, atingindo, portanto, as Ciências Sociais,
aparecendo o darwinismo social, movimento que busca explicar as diferenças raciais, sociais e
culturais entre os homens, fundamentando-se nos aspectos biológicos, ou melhor, na
hereditariedade. Galton estudando as diferenças individuais, concluiu que as diferenças de ordem
psicológica devem ser explicadas a partir das diferenças corporais, ou seja, pela herança
genética.
A psiconeurologia, um campo médico-psicológico, interessou-se em explicar o problema
de certas peculiaridades do indivíduo realidades psíquicas especiais. O estudo das perturbações
nervosas e psíquicas que levam a alteração do comportamento buscava sua causa na anatomia e
na histologia do sistema nervoso.

62
Podemos, assim, evidenciar que as teorias evolucionistas forneceram uma explicação
naturalística para os fenômenos humanos e compreender mesmo porque a realidade psíquica foi
inicialmente explicada por naturalistas: médicos, fisiólogos, biólogos e físicos. Tais explicações
significaram a instauração definitiva de uma visão naturalizada sobre o homem, adotada ainda
hoje por diversas correntes psicológicas. Temos, aí, pois, discursos fundadores de uma memória
discursiva em que sujeitos e sentidos irão se constituir, e emergindo ainda hoje no dito enquanto
pré-construído, elidindo a realidade do discurso pelo efeito de um sujeito fundante e de um
sentido primitivo. Discursos fundadores em que se constituem posições de sujeito, como a de
sujeito-psicólogo.
Poderíamos ver, então, nesses discursos fundadores uma discursividade determinada por
uma visibilidade e uma legibilidade do homem, enquanto objeto de uma ciência, de forma a
torná-la uma entidade homogênea e transparente. Determinar discursivamente, na instância da
subjetividade, significa isolar, controlar o sujeito e o sentido, que se constituem nessas formações
discursivas - o que pode e deve ser dito - em que se assenta ao efeito de evidência produzido pela
ideologia e a conseqüente impressão da literalidade e a impressão de unicidade do sentido
permanente. Esses discursos, em que a classificação é fundamental, construíram uma memória
discursiva em que a objetividade do mundo natural produz sentidos cujos efeitos dão uma
identidade inequívoca às coisas e aos homens.
A partir de então podemos observar os desdobramentos desses discursos. A noção de que
a causa para um fenômeno psíquico encontra-se em bases biológicas é utilizada por uma corrente
de estudo do comportamento, o determinismo biológico. Essa abordagem, embora reconheça o
papel do ambiente no desenvolvimento humano, vai considerar que o indivíduo está limitado a
sua herança genética, o foco está no organismo. O papel social quando enunciado é focalizado
no indivíduo, devido a sua doença é incapaz de se integrar, de se comunicar. Vemos, nessa visão
naturalista, as relações que mantém com o individualismo e o papel que virá a ser desempenhado
pela noção de “comunicação” enquanto apagamento de diferenças e negação do político.
Na Psicologia, a visão naturalista do homem, isto é, essa ênfase dada ao organismo,
construindo mesmo um modelo organicista, vai iniciar-se com a corrente Funcionalista, no
começo do século XX. O funcionalismo, uma vertente do positivismo, que exerceu muita
influência tanto na Medicina como na Psicologia, constituindo-se em uma segunda escola
psicológica e no primeiro sistema de psicologia verdadeiramente americano. Os psicólogos

63
funcionalistas se interessaram pela função do comportamento e da consciência do organismo, na
sua adaptação ao meio, bem como pelas relações funcionais ou de dependência entre
antecedentes e conseqüentes. Seus postulados principais eram: 1. o comportamento é
intrinsecamente adaptativo e intencional; 2. todos os estímulos sensoriais afetam o
comportamento; 3. toda resposta ou reação é iniciada por algum estímulo; 4. cada resposta
modifica a situação estimulante. Tal corrente afirmava que as funções psíquicas eram
dependentes das relações objetivas que o organismo estabelecia com o meio, a psicologia estava
subordinada às leis do desenvolvimento biológico e a consciência era um instrumento a serviço
do organismo.
As teorias que antecederam o funcionalismo e o influenciaram diretamente, como a teoria
da evolução de Darwin e o estudo das capacidades humanas e das diferenças individuais de
Francis Galton, contribuíram para que o funcionalismo desenvolvesse uma argumentação - um
discurso científico-natural: as leis da seleção natural formam o modelo para as leis naturais da
sociedade e organismos vivos servem de modelo para os organismos sociais. (Werner, 1997, pág.
10). Essa concepção evolucionista para explicar o desenvolvimento psíquico, isto é, em que o
psiquismo tem função de sobrevivência e adaptação ao meio, característica da corrente
funcionalista da Psicologia, está em consonância com a perspectiva organicista.
Uma outra corrente que fazia oposição a esse pensamento funcionalista, era a corrente
denominada Estruturalismo. Tal corrente liderada por Titchener considerava que o objeto de
Psicologia era a matéria da consciência. O psíquico era formado por diversos elementos como
sensações, imagens, sentimentos, que formam a matéria da consciência, cuja estrutura a
Psicologia deveria estudar. Segundo Titchener não se poderia querer entender a função da
consciência antes que se conhecesse sua estrutura, o exame estrutural antecede o funcional.
(Yaroschevski, 1983)
A corrente estruturalista desenvolveu o método introspectivo, em laboratório, para tentar
compreender as estruturas que formavam esse mundo psíquico. Porém, essa idéia de que a
consciência era entendida como um mundo fechado em si e a observação interior o melhor
método para compreendê-la, eram alvos de críticas por parte dos investigadores da linha
experimental. Essas críticas aliadas às exigências político-sociais que se faziam presentes no
campo da Psicologia e o modelo darwiniano dominante, fortaleceram o movimento funcionalista
que compreende a vida psíquica segundo o modelo biológico.

64
Com isso não queremos dizer que o funcionalismo, também, não tenha recebido suas
críticas no que se refere a estabelecer os fundamentos causais da consciência ao determinismo
biológico, pois foram acusados de desenvolverem explicações teleológicas, ou seja, de
explicarem o comportamento humano por suas conseqüências últimas. Segundo Yaroscheski
(1983, pág.75), as concepções de William James no campo da Psicologia, o principal
representante do funcionalismo, foram consideradas contraditórias pela combinação eclética da
biologização do psiquismo com o espiritualismo, aliança que sempre esteve presente na história
das ciências, acrescentaríamos.
Henry (1990) falando da apropriação do estruturalismo lingüístico por outros campos do
saber sem ter sofrido reelaborações fundamentais diz que:
"Ao fazer isto, os estruturalistas se comportaram de modo semelhante aos nossos
medidores de cérebro. Por este motivo, e este é um ponto fundamental, eles não se
encontraram em uma posição que lhes teria permitido se desfazer do hábito de fazer da
natureza humana (ou do espírito humano) um princípio explicativo. Tal hábito foi herdade
da teologia cristã (a qual colocava Deus atrás da natureza ou do espírito humano - assim
como atrás de cada coisa, mas em uma posição privilegiada, de eleição - como princípio
explicativo último de tudo o que é concernente ao homem) e da filosofia clássica, que
elaborou sobre esta base sua concepção do sujeito humano (sob diversas denominações
como, por exemplo, a Razão)”. (pág. 27)

Gould (1991), também, faz críticas as posições do determinismo biológico, discordando


do darwinismo social, que afirma que o biológico determina as diferenças entre pessoas, entre
raças. Segundo este autor, os biólogos já reconhecem que as diferenças genéticas entre as raças
são muito pequenas. Para Gould (1991), a evolução cultural é a responsável pela mudança nas
sociedades e não a evolução biológica. “Os argumentos clássicos do determinismo biológico fracassam
porque os caracteres que invocam para estabelecer diferenças entre grupos são, em geral, produtos da
evolução cultural.” (Gould,1991;347).
A grande contribuição de Darwin, na opinião deste autor, é o reconhecimento da unidade
entre a evolução humana e das demais espécies. Entretanto, Gould (1991) afirma que a
peculiaridade do homem vai permitir a introdução de um outro tipo de evolução, a cultural, que
permite transmitir conhecimento e comportamento por processos de aprendizagem ao longo de
gerações. Ou seja, para Gould (1991;347) a própria base biológica do caráter único do homem
permite a descaracterização do determinismo biológico, pois a inteligência do homem, que é um
fundamento biológico exclusivamente humano é a base da cultura, e esta por sua vez vai criar
um novo tipo de evolução, a mais rápida e mais eficaz que a darwiniana.

65
Podemos observar, contudo, operando aí uma outra contradição, aquela entre indivíduo e
sociedade, que parece também ser elemento do processo de constituição do campo disciplinar da
Psicologia. Tal contradição é aí apagada e transformada em uma oposição, entre elementos
autônomos, “esquecendo-se” de que os contrários se engendram mutuamente e que um não existe
sem o outro, cada coisa exigindo a existência do seu contrário, como determinação e negação do
outro, sendo que a propriedade das coisas decorre dessa determinação recíproca e não das
relações de exterioridade. As determinações mútuas das coisas se encontram em relação interna
de antagonismo, na contradição, e cada realidade no seu devir é limitada por outra e assim a
totalidade é sempre aberta. O que nos faz lembrar Saussure (1974), dizendo que na língua,
enquanto sistema (estrutura) só há diferenças e o valor (significado) de um elemento só pode ser
produzido na relação entre elementos, sendo cada um o que o outro não é.
Diante das críticas sofridas pelo Funcionalismo e pelo Estruturalismo, surge na
Psicologia, no começo do século XX, uma outra escola psicológica, o Behaviorismo, que toma
como objeto de estudo o comportamento, retomando, de um outro lugar, os ideais positivistas ou
neo-positivistas visando compreender os fenômenos subjetivos de uma forma objetiva.
O Behaviorismo, uma escola americana, que desempenhou um dos papéis mais
preponderantes no cenário da Psicologia, que era/é vista como ramo puramente objetivo e
experimental da ciência natural e que tinha/tem como finalidade a previsão e o controle do
comportamento. O Behaviorismo prioriza as condições ambientais, ou seja, o comportamento do
indivíduo é condicionado pelo ambiente e o organismo é modificado pelas contingências
ambientais. Nesta corrente psicológica, a mente é um órgão executor, portanto, os processos
internos, emoção, cognição, são processos comportamentais, são coisas que as pessoas fazem. O
desenvolvimento para os Behavioristas não pode ser atribuído somente aos genes, porque não
estão em processo durante toda a vida. O desenvolvimento é acumulo de respostas, é
aprendizagem.
Surge, então, uma explicação com uma visão sociologizante para o transtorno patológico:
o que determinaria a patologia não seriam os traços incapacitantes, mas as contingências
reforçadoras sociais do ambiente a que está sujeito o indivíduo durante a sua vida.. Só poderemos
compreender o comportamento da pessoa com doença mental a partir do ambiente que o cerca.
Novamente, toma-se a exterioridade empírica como causa de um problema considerado como
patológico, transformando uma contradição em oposição.

66
Para que pudéssemos analisar o sistema atual classificatório de doenças utilizado pela
Psicologia, se fez necessária essa análise discursiva da constituição do campo disciplinar da
Psicologia, que nos levou a concluir sobre o lugar central que o Positivismo ocupa nessa história,
e, portanto, na elaboração de seus instrumentos como os diagnósticos que trataremos em
separado, no próximo capítulo.
Como vimos, a Psicologia se tornou verdadeiramente ciência com o Positivismo, quando
a natureza da ciência afirma-se pela adoção do método empírico-experimental, distanciando-se
das especulações filosóficas e procurando servir-se da lógica para estabelecer seus objetos e
metodologias. Sob esse legado, a Psicologia iniciou-se como ciência formal.
Bachelard desenvolveu seus trabalhos na época em que a filosofia científica predominante
era o neopositivismo e criticava a filosofia, então dominante, porque considerava que ela estava
sempre atrasada em relação às mudanças científicas, defendendo que a filosofia deveria ser
contemporânea da ciência, instruída por ela, e esta filosofia, denominada de científica, teria
como características a falta de unidade, a abertura e a historicidade. Bachelard opunha-se aos dois
princípios fortes do neopositivismo, o empirismo e o racionalismo: não aceitava o princípio
rígido de verificação capaz de estabelecer a cientificidade das ciências. Para ele não é a razão
filosófica que determina a ciência, mas “a ciência que instrui a razão” (Reale e Antiseri, 1991).
Quanto ao empirismo, Bachelard critica a idéia de se encontrar o real absoluto no dado imediato,
não considerando a ciência em seu devir, pois o conhecimento tem história e o instrumento
utilizado para a investigação da filosofia da ciência não é a lógica e, sim, a história das ciências.
Ao buscarmos compreender a história da Psicologia no mundo ocidental, fomos
percebendo que esse caráter positivista que está na fundação dessa ciência persiste até os dias de
hoje, como no caso dos diagnósticos, uma área fortemente firmada sob os critérios do
racionalismo e empirismo. E assim é que podemos encontrar na "introdução" da última versão do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 4a. edição – DSM IV (1995), objeto de
análise dessa dissertação, critérios marcados por um tipo de cientificidade, produzindo efeitos de
verdades claras e transparentes, capazes de classificar qualquer indivíduo pertencente a qualquer
grupo social e a qualquer cultura:
“Acreditamos que a principal inovação do DSM IV não está em quaisquer de suas
mudanças específicas no conteúdo, mas sim no processo sistemático e explícito pelo qual
foi elaborado e documentado. Mais do que qualquer outra nomenclatura de transtornos
mentais, o DSM IV está baseado em evidências empíricas” (APA, 1995).

67
Canguilhem é quem orienta Pêcheux para suas incursões pela história das ciências e pela
epistemologia, principalmente com a discussão de certas noções como as de conceito, de
descontinuidade e de recorrência, que nos pareceram relevantes, neste momento, para
compreender a natureza e a especificidade dos instrumentos como os diagnósticos. A sua
epistemologia centra-se na história dos conceitos, pois, para ele é através do conceito, que se
conhece a normatividade do discurso científico, em outras palavras, é a formação do conceito que
define a racionalidade do discurso científico, além de ser, através do conceito também, que se
manifesta a historicidade deste discurso. Machado (1981) escreve como Canguilhem definiu
conceito “é uma denominação e uma definição; é um nome dotado de um sentido capaz de interpretar as
observações e as experiências” (pág.22).
Em relação à formação dos conceitos, Foucault (1986) também escreveu algo que nos
interessa discutir por estarmos tratando dos conceitos de normal e anormal, em sua historicidade,
no campo da Psicologia. Para ele, não se trata de descrever os conceitos, de fazer seu
levantamento, de classificá-lo, mas de determinar segundo o tipo de esquemas como os
enunciados estão ligados, explicitar e compreender a dispersão que caracteriza um tipo de
discurso. O que vai determinar a formação conceitual é maneira pela qual os diversos conceitos
estão relacionados. Segundo Foucault, “para analisar a formação dos conceitos não é preciso relacioná-
los nem ao horizonte da idealidade nem ao curso empírico das idéias” (pág.70).
O progresso em ciência para esses teóricos, como vimos observando, é descontínuo, isto
é, a história das ciências se realiza por uma série de rupturas, dentre as quais eles destacam: a
descontinuidade entre a racionalidade científica e o saber vulgar, o que significa uma ruptura
entre a razão e a percepção, o que significa que a ciência vai contra o conhecimento imediato, ela
depende do seu devir, que é contraditório; e a descontinuidade entre uma ciência e uma pré-
ciência, pois não existe um desenrolar contínuo do pensamento científico, não se pode encontrar
precursores para todo conhecimento científico. A especificidade da teoria de Canguilhem, para os
nossos propósitos, está no fato dele ter analisado a idéia de descontinuidade no nível do conceito,
ou seja, de ter evidenciado as filiações descontínuas, das quais um conceito faz parte, desde o
momento do seu surgimento em um momento histórico determinado (Machado,1981).
Bachelard e Canguilhem não consideram também o tempo em seu sentido cronológico
nem como único e homogêneo na ciência. Estabelecem-se, então, descontinuidades históricas em
que as mudanças de paradigmas não são compreendidos dentro de uma linha evolutiva. Foucault

68
(1986) também se referiu às descontinuidades históricas e criticou os diversos enunciados
médicos que se constituíram ao longo do tempo sobre a loucura e que produziram o efeito de
continuidade e de transparência dos conceitos: “a doença mental foi constituída pelo conjunto do que
foi dito no grupo de todos os enunciados que a nomeavam, recortavam, descreviam, explicavam, (...),
julgavam-na e, eventualmente, emprestavam-lhe a palavra, articulando, em seu nome, discursos que
deviam passar por seus” (pág.36). Para ele, esses enunciados não se referem a um único objeto, não
têm um único referente, ou seja, não se trata da mesma doença nem dos mesmos loucos. Então,
assim, a unidade dos discursos não estaria no objeto, mas na sua lei de repartição, ou seja, na
descrição da dispersão desses objetos, na definição das transformações destes ao longo do tempo,
sua não identidade, a ruptura que existe, a descontinuidade interna que suspende sua
permanência.
Com base nos trabalhos desses filósofos é que questiono a universalidade dos critérios
diagnósticos definidos nos manuais de classificação dos transtornos mentais, que são utilizados
para classificar diferentes pessoas, localizadas em diversas partes do mundo e por um tempo
indeterminado, ou pelo menos, por um tempo, até que se elabore um outro manual. Apesar de
buscar uma homogeneidade na classificação diagnóstica, o DSM IV (1995) não pode deixar de
reconhecer a heterogeneidade das situações encontradas na clínica, quando diz que “também não
existe nele (no DSM IV) a suposição de que todos os indivíduos descritos como tendo o mesmo transtorno
mental são semelhantes em um grau importante” (APA, 1995, pág. XXI). E para facilitar o
diagnóstico incluiu conjuntos de critérios múltiplos, numa lista longa, onde o indivíduo a ser
diagnosticado precisa apenas de apresentar um subconjunto dos itens de critérios. Ora, o que se
percebe é que o DSM IV reconhece a heterogeneidade, por não poder deixar de fazê-lo dado o
estado atual do desenvolvimento científico, mas enfatiza o aspecto quantitativo. Quanto às
diferenças étnicas e culturais, o DSM IV sabedor do uso que dele é feita por profissionais de
diferentes culturas - de sua eficácia ideológica -, traz em seu Apêndice I, um “Plano para
formulação cultural e glossário para síndromes ligadas à cultura”. Contudo, este plano também se
apresenta em um modelo categorial e tem como objetivo auxiliar o clínico a determinar o impacto
do contexto cultural no indivíduo.
Esse trabalho de des-construção e compreensão do funcionamento discursivo do campo
disciplinar da Psicologia, entendido como um lugar institucional de controle, distribuição e
circulação de discursos, ou melhor, de efeitos de sentidos entre os locutores, de constituição de

69
um efeito-sujeito de univocidade, intencionalidade e consciente, de produção de um sentido
literal, estável e unívoco, em que práticas científicas e práticas terapêuticas se articulam, foi
fundamental para o desenvolvimento dessa primeira - hoje sei muito bem - investigação sobre a
Síndrome de Asperger e a subjetividade que aí se constitui..
Mas, esse processo de des-construção, como todo movimento contraditório que busca
tocar o real - da língua, da história - também o é de construção. E neste sentido, o encontro, de
forma mais sistemática e consistente com a teoria de Vygotsky, mediada por uma leitura
discursiva de seus textos, principalmente os referentes à Defectologia, e por discussões em um
grupo de estudos deste Mestrado, ajudaram-me a dar os primeiros passos nesse novo processo de
construção de conhecimentos sobre as patologias em Psicologia pelo deslocamentos produzidos
no interior da posição sujeito-psicólogo, permitindo-me sair de uma posição positivista e idealista
e tomando consciência da contradição no momento em que ela se torna princípio explicativo do
real.

70
4. CONHECENDO A SÍNDROME DE ASPERGER POR OUTRO
CAMINHO

71
No capítulo anterior, a partir de um trabalho de compreensão da história da
constituição do campo disciplinar da Psicologia, identificamos e analisamos as principais teorias
psicológicas que constituíram e configuraram esse campo com ênfase nas concepções de
desenvolvimento humano defendida por cada uma delas e, conseqüentemente, de deficiência ou
de defeito daí decorrentes.
Neste capítulo, gostaríamos de analisar, discursivamente, o diagnóstico proposto para
identificar a Síndrome de Asperger, observando o funcionamento dessas teorias em um
instrumento específico, bem como questionando as filiações teóricas dominantes aí presentes que
vão levar a uma classificação do sujeito nos domínios do patológico, da anormalidade, trilhando
os caminhos dos prejuízos, das dificuldades, das falhas, dos déficits. Para tanto, faremos uma
análise de um dos manuais oficiais utilizado, hoje, para classificar a Síndrome de Asperger, o
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 4a. edição – DSM IV - (APA, 1995), (o
mesmo que foi utilizado no fechamento do diagnóstico das crianças que participaram desta
dissertação) e, conseqüentemente, re-significando a resenha bibliográfica sobre o tema realizada
no primeiro capítulo.
Gostaria de ressaltar que analisar o DSM IV (APA, 1995), obrigou-me a todo esse
percurso para que, a partir da materialidade lingüística dos enunciados, pudesse atravessar a
transparência da linguagem, a evidência da literalidade, e do confronto entre o dito, o não-dito e o
já-dito (sentidos que ficaram na memória significando) emergissem novos sentidos e uma
compreensão dos gestos de interpretação ali existentes.
Tunes e cols. (1992), em seu artigo “Sobre a Deficiência Mental”, ao identificarem as
concepções acerca da deficiência mental (DM) no âmbito das publicações científicas e no
universo das práticas sociais e educativas, encontraram duas vertentes dominantes: a médico-
psicológica e a social, e, analisaram-nas, relacionando-as com a concepção de desenvolvimento
defendida pelas teorias psicológicas.
A visão médico-psicológica, segundo Tunes e cols. (1992), é a mais antiga e tomou
uma proporção bem maior com o surgimento da psicometria, uma ciência da Psicologia,
implantada sob a ótica do Positivismo, que tende a fragmentar o homem como objeto de estudo,
criando instrumentos que mensuram, de forma estanque, a inteligência, a percepção, a
subjetividade. Esta visão da deficiência está diretamente relacionada com o determinismo
biológico, ou seja, “a noção de que existem pessoas construídas com material intrinsecamente inferior

72
(cérebros mais pobres, genes de má qualidade ou coisas semelhantes)” (pág.10). Esta concepção de
desenvolvimento é decorrente da aplicação da teoria da evolução (seleção natural) que explica os
fenômenos humanos. E desta aplicação decorrem as práticas de segregação e eugenia. Gould
(1991), em seu livro, critica a tese maior desta concepção que é a de determinar o valor do
indivíduo e dos grupos sociais através da medida da inteligência como quantidade isolada.
Já as concepções sociais, que tiveram sua origem na perspectiva de desenvolvimento
histórico-social proposto por Vygotsky, consideram, segundo Omote (1979) que a DM é fruto de
um “status social adquirido”, ou seja, é um produto resultante de determinadas condições em que
atuam os sujeitos envolvidos, a situação imediata e o contexto histórico mais amplo, de acordo
com a Análise de Discurso, o que, de outra forma, é ressaltado por esse mesmo autor. Ele admite
a existência de condições médicas incapacitadoras, porém, admite também que essas condições
podem não ser a causa direta da deficiência, pois existe à história do indivíduo deficiente, que é
marcada, geralmente, por um sentimento de inferioridade, que limita seu potencial e por
conseqüência, traz efeitos negativos na sua auto-imagem e em seus níveis de expectativa. E ele
fala também de condições sociais incapacitadoras, que irão restringir a participação igualitária do
deficiente, pois mesmo que apresente um desempenho de outras habilidades adequadamente,
continuará a ser encarado como deficiente. Causas sociais e culturais, como nível sócio-
econômico baixo de determinados indivíduos, também aparecem para explicar a deficiência
mental.
Da leitura atenta desse Manual, reconhece-se que a Síndrome de Asperger da forma
como é ali classificada e descrita, situa-se de conformidade com a concepção médico-psicológica,
pois a partir da identificação de uma quantidade “x” de quesitos numa lista de critérios
diagnósticos é que se estabelece a patologia no indivíduo, ou seja, a partir de um instrumento de
medida que avalia de forma fragmentada o homem, identificamos o portador da SA.
Essa maneira de conceber a deficiência, numa visão médico-psicológica, está
condizente com a perspectiva da Psicologia científica tradicional dominante, em que o conceito
de deficiente é definido a partir dos resultados obtidos na aplicação de instrumentos avaliativos
(testes ou escalas psicométricas). Como já mostramos em outras partes deste trabalho, foi essa
prática das Ciências Sociais, principalmente da Psicologia Social, que Pêcheux criticava quando
criou a AD no final da década de 60. O uso dos instrumentos, para ele, aparecia como estando
ligado a uma ordem social, a uma prática política. A busca da cientificidade que se caracterizava

73
pela objetividade era a transposição da adequação do instrumento às práticas técnicas. Assim,
Pêcheux criticava a prática científica que, para ele, se encontrava na continuidade das práticas
técnicas, contribuindo, na verdade, para a normalização da força de trabalho sem alterar a
estrutura global da sociedade. E é sob esse referencial teórico, sustentado por todo esse trabalho
de análise do campo epistemológico da Psicologia, que questionamos a definição diagnóstica da
Síndrome de Asperger, concebida a partir de parâmetros marcados pelo quantitativo, pelas
generalizações homogeneizantes e pelas ambigüidades conceituais.
Werner (1997), analisa e critica dois modelos metateóricos, identificados com o
pensamento positivista, que vão caracterizar a racionalidade científica moderna na compreensão
dos fenômenos naturais e humanos: o organicismo e o mecanicismo. A Psicologia, então, em
consonância com essa racionalidade científica, vai sofrer influência de tais paradigmas na
formulação, classificação e no sistema diagnóstico dos transtornos mentais, como veremos a
seguir.
O modelo mecanicista, elaborado a partir da Física, considera a natureza uma matéria,
composta por elementos que podem ser decompostos e analisados, facilitando, assim, a
exploração e ordenação do mundo. Os elementos são mecanicamente combinados pela própria
razão. Tem-se no século XVII o predomínio dos conceitos mecanicistas de doença, que vão dar
origem às categorias denominadas de normal e patológico. Os fenômenos patológicos são, a
partir de então, definidos por variações quantitativas.
Em termos epistemológicos, no modelo mecanicista o objeto se sobrepõe ao sujeito,
cabendo ao homem ter um papel passivo na construção do conhecimento.
O modelo organicista vai se destacar no século XIX e se encontra presente no
pensamento positivista de Comte em relação à sociedade, que a considera um organismo vivo,
fruto de uma evolução do inferior para o superior. Desde a antiguidade, que o modelo organicista
vai estar presente no conceito de doença, representando-a de forma dinâmica e totalizante. A
natureza seria o equilíbrio e a doença qualquer perturbação desse equilíbrio, o mal não estaria
num órgão humano, mas no homem como um todo, como um sistema organizado.
Pode-se concluir, provisoriamente, que o modelo mecanicista vai deixar de herança o
sistema classificatório, quantitativo e associacionista das doenças, o que implica uma relação
linear de causa e efeito, passível de ser quantificada e prevista: a diferença entre normal e
patológico é quantitativa. Já na concepção funcionalista-organicista, a doença é a quebra do

74
equilíbrio, não está em uma parte mas está no todo do homem e é toda dele e o que determina a
diferença entre normal e patológico são os aspectos qualitativos tomados da perspectiva
individualista. A doença pode ser vista nessa concepção como um esforço do organismo para
curar a si próprio, objetivando uma reestruturação totalizante do organismo e o equilíbrio
funcional com o meio.(Canguilhem, 1995) Ressalte-se que estamos falando aqui de função e não
de funcionamento e que a noção de totalidade daria o caráter de acabado, logo a-histórico, ao
homem.
Os dois atuais manuais oficiais de classificação de doenças, DSM e o CID,
elaborados, respectivamente, pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) e pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), refletem a influência de uma determinada forma de
racionalidade científica. Tais manuais trazem conceitos relacionados a esses dois modelos,
organicista e mecanicista, como os de normal e patológico, desvio e equilíbrio, deficiência e
eficiência numa relação de oposição. Vejamos o funcionamento discursivo do DSM IV
(APA,1995):

“Os Transtornos Invasivos de Desenvolvimento caracterizam-se por prejuízo severo e


invasivo em diversas áreas do desenvolvimento: habilidades de interação social recíproca,
habilidades de comunicação, ou presença de comportamentos, interesses e atividades
estereotipados. Os prejuízos qualitativos que definem essas condições representam um
desvio acentuado em relação ao nível de desenvolvimento ou idade mental do indivíduo”
(pág. 65).
“As características essenciais do Transtorno de Asperger são: prejuízo severo e
persistente na interação social, desenvolvimento de padrões restritos e repetitivos de
comportamento, interesse e atividades. A perturbação deve causar prejuízo significativo
nas áreas social, ocupacional ou outras áreas importantes de funcionamento.” (pág. 74).

O uso dos termos “prejuízo”, “estereotipados” e “desvio acentuado em relação ao


nível de desenvolvimento”, leva-nos a considerar que as características apontadas nestes critérios
diagnósticos são definidoras de padrões e parâmetros e estão apoiadas na noção de
“desenvolvimento” enquanto uma categoria fechada, constituída de níveis perfeitamente
demarcados: "Os prejuízos qualitativos que definem essas condições representam um desvio acentuado
em relação ao nível de desenvolvimento ou idade mental do indivíduo”
Vigotsky, em seu artigo sobre “Problemas Fundamentais da Defectologia
Contemporânea” (1989), fala da necessidade de uma nova direção da investigação patológica
para reconstruir os fundamentos da defectologia, entendida como conhecimento teórico e

75
trabalho científico prático sobre a criança com deficiência. Para ele, a ciência deve dominar e
explicar as diferentes formas de desenvolvimento infantil, estabelecer os ciclos e as mudanças
deste desenvolvimento, bem como suas variações e seus níveis em sua diversidade.

“En realidad, existe una correspondencia total entre la peculiaridad de cada etapa evolutiva
en el desarrollo del niño y la peculiaridad de los diferentes tipos de desarrollo.”( pág. 3)

Outro aspecto que fica bastante evidente na caracterização da Síndrome pelo DSM IV
(APA, 1995) é a ênfase no caráter quantitativo da deficiência, manifestado, paradoxalmente por
determinações qualitativas, em que a criança, que apresenta o problema, é sempre vista numa
posição negativa, como evidenciam os termos: “transtorno”, “prejuízo”, “perturbação”. .
Os teóricos que defendem a concepção social acerca da deficiência, dentre deles
Vigotsky, criticam os métodos psicológicos de investigação baseados numa concepção
quantitativa de desenvolvimento infantil, pois, segundo eles, este tipo de caracterização somente
considera o grau da redução causada pelo problema, esquecendo-se da estrutura e do
funcionamento da personalidade - forma de subjetividade - originada por este problema. A
individuação do sujeito se dá no lugar mesmo que o constitui como o problema a ser tratado. Para
Vigotsky (1989), a defectologia só pode se firmar como ciência se estudar seus fenômenos e
processos numa perspectiva qualitativa, partindo de premissas positivas.

“Com esta idea, ante la defectologia se abre un sistema de tareas positivas, teóricas y
prácticas; la defectologia se hace posible como ciência, ya que adquiere un objeto de
estudio especial, delimitado desde el punto de vista metodológico de estudio y de
conocimiento.” (1989, pág. 4)

Considerando os postulados de Adler que trabalha com a noção de “compensação”, a


ser discutida no próximo capítulo, Vigotsky (1989) e demais teóricos que trabalham com uma
visão social da deficiência, como Omote (1979), ao se referirem às crianças com problemas
psicopatológicos criticam a posição de se buscar a causa em anomalias orgânicas ou no próprio
indivíduo. Para eles, a sintomatologia da disposição psicológica peculiar das crianças socialmente
desadaptadas é um fenômeno sociológico e psicológico, a ser pensado, diríamos seguindo a AD e
Vygotsky, no quadro do materialismo histórico, que tem como categoria básica de interpretação
do real a contradição. Esses autores postulam que certas alterações no meio podem favorecer a
criança a desenvolver comportamentos de auto-defesa, de voltar-se para si mesma, adotando uma
couraça biológica, para proteger-se deste mesmo meio.

76
É importante ressaltar que esses autores estão se referindo aos deficientes mentais,
visuais ou auditivos, enfim, a deficiências que são provocadas por condições físicas, ou melhor,
por algum defeito orgânico que traz uma forma de limitação, que parece não ser o caso do
indivíduo com SA. Para eles, que defendem uma visão social da deficiência, a situação empírica
acarretaria mais limitação, ainda, impedindo o desenvolvimento de outras habilidades desse
indivíduo, uma vez que desenvolveria nele sentimentos de inferioridade. Não se trata, portanto,
de um ambiente empírico, mas de um ambiente sustentado por representações determinadas
historicamente, de um imaginário em funcionamento, diríamos como analistas de discurso, que
faz funcionar essa sociedade.
Pensando desta maneira, podemos retomar alguns questionamentos feitos
anteriormente. Haveria um sistema de defesa por parte do sujeito com SA? Como ele teria se
constituído? Do que estamos falando quando falamos de "déficit de interação social" em uma
sociedade de classes, com relações sociais desiguais e até mesmo injustas como no Brasil? Na
criança com SA o déficit de interação, ou seja, o isolamento social que essas crianças "preferem",
já poderia ser uma formação secundária psicológica a qual se referiu Vygotsky (1989), em um
contexto histórico-social determinado?
Poderíamos pensar que uma configuração psicológica superior diferenciada nos
sujeitos com SA, em conflito-confronto com um imaginário que limita, restringe a aproximação
das pessoas em relação a essas crianças, acarretaria uma resistência por parte dessas crianças de
se relacionarem socialmente, ou seja, a falta de interação não estaria no sujeito com SA, mas
entre sujeitos mediados por um discurso preconceituoso. Neste sentido, poderíamos pensar em
tomar certas “dificuldades” de comunicação, como uma resistência do sujeito em adequar-se a
uma sociedade e a uma instituição escolar que o destitui do lugar de sujeito produtor de sentido.
Poderíamos, então, considerar o isolamento ou a falta de comunicação, que é uma forma de
apagamento do social, do político, da história, da diferença – caracterizados pelo DSM IV - como
efeitos de sentido, ou como diz Vygotsky (1989), uma particularidade da estrutura da
personalidade da criança SA, e não características determinantes de uma patologia.
Lembrando do que Omote (1979) falou a respeito das causas sociais que vão, muitas
vezes, determinar a DM, no caso da criança com SA o próprio diagnóstico de déficit de interação
pode imputar falta de interesse social, para determinadas atividades institucionalizadas, a essas

77
crianças, quando, na verdade, elas apenas o "demonstram" de forma mais radical que as outras
crianças dessa mesma sociedade.
Outro autor que compartilha dessa visão da deficiência, como determinada pelo social,
é Jannuzzi (1985), reforçando de certa forma as análises que vimos fazendo. Ela afirma que a
deficiência dá “visibilidade” a um “modelo de homem, baseado principalmente em atributos
valorizados pelas relações sociais surgidas num determinado modo de produção” (em Tunes e cols.,
1992). Essa autora coloca que a deficiência está ligada aos desvios – ou nos casos dos portadores
da SA podemos pensar em resistência - às normas sociais estabelecidas e as práticas pedagógicas,
que reproduzem as expectativas históricas de um grupo dominante. Desta forma, ela considera
que a caracterização do deficiente e o tratamento dispensado a ele estão vinculados à(s)
ideologia(s). Omote (1979) também coloca a necessidade de se compreender as razões sociais
pela quais determinados grupos sociais atribuem o rótulo de deficiente a outros indivíduos.
A caracterização da SA e do diagnóstico classificatório são, pois, marcados pelas
formações ideológicas dominantes, pelo interesse de determinados grupos de apontarem tal
dificuldade em outros. Por que somente em 1994 esta síndrome foi reconhecida oficialmente,
sendo que foi descoberta e descrita em 1944? Por que durante quase 40 anos a descoberta de
Asperger, o médico vienense, não teve repercussão na comunidade científica? Parece-nos que
essas respostas encontram-se na questão da ideologia, o que significa dizer que as ideologias
teóricas próprias de uma época histórica dada, com suas formações discursivas, são determinadas
pelo conjunto dos aparelhos ideológicos do Estado (Pêcheux, 1988).
Nesse ponto, poderíamos lembrar aqui vários teóricos que escreveram sobre essas
relações entre práticas científicas e práticas políticas, que já foram também trabalhados nessa
dissertação e que retomo parcialmente. Foucault (1996) quando diz que uma proposição para
fazer parte de uma disciplina, antes mesmo de dizer a verdade precisa encontrar-se no verdadeiro,
isto é, obedecer a regras de uma “polícia” discursiva; Pêcheux (1988) também afirma o caráter
ideológico do discurso científico afirmando que toda produção de conhecimento é um corte
continuado, extensivo às ideologias das quais ele busca se separar; e Yaroscheski (1983)
considera que a Psicologia se desenvolve num mundo formado por forças político-sociais e
ideológicas, ficando sujeita ao jogo dessas forças, a seus conflitos e alianças.
Gostaríamos de chamar atenção, para a presença da(s) ideologia(s) e de uma memória
discursiva - histórica e inconsciente - não só relacionadas ao diagnóstico, como também à prática

78
terapêutica e, principalmente, à prática educacional. Tunes e cols.(1992), finalizando seu artigo,
afirmam que há muito se fala e se pensa a DM de outra forma, porém na prática ainda se encontra
cristalizada a idéia - sentidos sedimentados se reproduzindo, diria a AD - de que o problema está
no indivíduo, decorrente do determinismo biológico. Nessa corrente que enfatiza o biológico, a
sociedade “é um reflexo fiel da biologia” (Gould, 1991), e pouco se pode fazer, então, por esses
deficientes, já que o valor do indivíduo é determinado por avaliações isoladas e quantitativas de
suas habilidades. Há, pois, posições-sujeito funcionando, ou seja, lugares enunciativos de fala e
de escuta, de leitura e de escrita, que impõem uma forma de apreender - de significar - o mundo
coerente com um modo de relacionamento com o real.
Na verdade, o que se encontra nas "escolas especiais" é uma preocupação com o
diagnóstico, pois é preciso se definir com maior rapidez e precisão qual é a patologia da criança,
não se perguntando se a questão do encaminhamento da criança é mesmo de natureza patológica.
Ou melhor, o que está se entendendo por patológico. Não podemos negar que a prática do
diagnóstico classificatório, auxilia sobremaneira o trabalho institucional de delimitação,
organização e controle de uma determinada estrutura e funcionamento escolar, e produz o efeito
de clarificação da patologia.
Trata-se, pois, de um instrumento que diminui a responsabilidade da escola enquanto
instituição social determinada por um modo de produção, pois a partir do momento em que se
coloca o problema como estando no indivíduo - determinismo biológico - , o que resta a escola é
tentar trabalhar com esse indivíduo, sempre ressaltando o que ele não consegue fazer, ou melhor,
nunca se esquecendo da sua deficiência, dos seus déficits, e o que não conseguir ser feito é
porque essa criança é incapaz, o fracasso é de responsabilidade do indivíduo. A escola, assim,
enquanto instituição social, teria como prática a preservação da estrutura da sociedade e a
contradição entre indivíduo e sociedade se resolveria tanto pela adequação do indivíduo à ordem,
quanto pela correção da ordem através do aperfeiçoamento continuado dos indivíduos.
Silva (2000 b), em sua dissertação de mestrado "Um lugar de visibilidade do sujeito
deficiente mental", analisa a legislação da Secretaria de Educação Especial do Ministério da
Educação e do Desporto, optando por verificar os modos de silenciamento ali efetuados. Tais
documentos revelam o entrecruzamento do discurso jurídico e pedagógico, ambos referidos a
formações ideológicas determinadas e marcados por relações assimétricas e autoritárias entre
sujeitos, o que desfaz qualquer possibilidade de tratá-los como transparentes e neutros. Quando

79
Silva afirma que se cruzam os discursos pedagógicos e jurídicos, está se referindo à representação
da voz da ciência efetuada pelo pedagógico e à representação da normatização, pelo jurídico.
Ambos produzem o engessamento do sentido que impõe a literalidade, num amplo controle dos
sentidos. Os sentidos são distribuídos por um processo social em que a voz das autoridades é que
administra a produção de sentidos, a partir de lugares sociais legitimados.
Barbosa (2000), em seu artigo sobre como prevenir diagnósticos equivocados,
também se refere a prática educacional. Ela critica a prática dos diagnósticos formais e a da
escola como produtores de deficientes, em que os conceitos são socialmente construídos e se
legitimam por critérios médicos. Compara os diagnósticos com padrões externos de habilidades e
competências e chama a atenção para o fato de que os testes revelam apenas o que a criança não
faz.
Mas, voltemos aos enunciados do DSM IV (APA,1995), e continuemos a observar
como o funcionamento discursivo de certos termos, como “transtorno”, “prejuízo”, “desvio”,
“perturbação”, vai produzindo certos efeitos de sentido que reproduzem - e ajudam a construir -
um imaginário específico para o desenvolvimento das práticas psicopedagógicas em que os
sujeitos - enquanto posições enunciativas - irão estabelecer determinado tipo de interlocução e de
interação marcada por uma representação do sujeito com SA como sendo “transtornado”,
“prejudicado”, “desviante”, “perturbado” em relação a um padrão, a uma norma ambígua, mas
eficaz, no processo de discriminação da diferença. Baseando-me nos conceitos de defectologia de
Vigotsky, considero, que mesmo apresentando funções particulares diferentes da norma, a
constituição desse sujeito não seria necessariamente deficiente entendida como falta, déficit:

“W. Stern plantea el seguiente postulado: las funciones particulares pueden


representar una desviación de la norma y, sin embargo, la personalidad o el
organismo en su conjunto pueden pertenecer al tipo completamente normal. El
niño con defecto no es indispensablemente un niño deficiente” ( 1989, pág.10).

Tomando como referência a problemática da descontinuidade e do conceito,


apontados por Bachelard e Canguilhem nos trabalhos que tratam do progresso da ciência, gostaria
de me remeter, agora, à história dos transtornos mentais, do patológico, na Psicologia. É
importante salientar que a primeira tentativa de se colher informações a respeito da doença
mental surge nos Estados Unidos com o censo de 1840. A partir daí, se trabalhou no sentido de se
definir uma nomenclatura nacionalmente aceitável a fim de se diagnosticar os pacientes

80
internados com transtornos psiquiátricos e neurológicos. Em 1952, foi publicada a primeira
edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM I), considerado o
primeiro manual oficial de transtornos mentais a focalizar a atividade clínica e, desde então,
várias revisões nos diagnósticos foram realizadas, estando atualmente na 4a. edição do DSM.
Os avanços no campo das classificações diagnósticas estão descritos nos antecedentes
históricos, da introdução do DSM IV (APA, 1995), para justificar a necessidade da 2a. edição:

“... a necessidade de definições explícitas como um meio de promover diagnósticos


clínicos confiáveis.”; o surgimento do DSM III [...] “O DSM III introduziu um número
importante de inovações metodológicas, incluindo critérios explícitos de diagnóstico, um
sistema multiaxial e um enfoque descritivo que tentava ser neutro em relação às teorias
etiológicas”; em relação à criação do DSM IV: 'Com objetivo de aumentar a
praticidade e a utilidade clínica do DSM IV , os conjuntos de critérios foram simplificados e
esclarecidos, quando isso podia ser justificado por dados empíricos”.(pág.xvii)

O que se observa ao longo dessas alterações é que as nomenclaturas já diferiram


muito, mas o que se busca é a mudança da etiologia, da fenomenologia, do curso da doença ou de
suas características passíveis de integrar uma definição. O progresso da psicopatologia, até agora,
tem sido marcado pelo aprimoramento dos métodos investigativos, por uma linguagem mais
descritiva, pela clareza e simplicidade dos critérios ou pelo uso de dados cada vez mais
empíricos. Não existem rupturas, não se estabelecem as descontinuidades das filiações teóricas
dos conceitos, não se descrevem as transformações ou a maneira pela qual os diversos conceitos
estão relacionados.
Voltando à revisão bibliográfica feita no primeiro capítulo desta dissertação, gostaria
de lembrar que também no diagnóstico da Síndrome de Asperger encontramos dificuldades no
estabelecimento desses limites, levando os próprios estudiosos da área a proporem um outro
termo, “continuum” autístico, para contemplar os diversos níveis de prejuízos em diferentes
funções psicológicas. O uso deste termo revela uma diminuição da rigidez na caracterização da
patologia, porém a ênfase dada neste conceito continua sendo a idéia quantitativa de prejuízo,
falta, déficit. Não se trata, portanto, como afirmam os autores da proposta de uma “preferência”
por uma terminologia, mas de um deslocamento do conceito que mantém contudo a mesma
concepção de patologia, bem como de sujeito por ela afetado. Seria, como diria Pêcheux (1988),
a reorganização da desigualdade em outro lugar ou patamar.

81
Temos, então, diferentes (ou mesmos?) conceitos de patológico que merecem ser bem
discutidos e compreendidos, pois as concepções em ciência têm e fazem história, como podemos
ver por exemplo em Assumpção (1994) quando trata das diferentes concepções da neurose ao
longo do tempo, em diferentes teorias.
Segundo Souza (2000), existe na Psicologia e na Psiquiatria uma prática comum que é
a de mudar os nomes das psicopatologias para tentar fugir do estigma e do caráter pejorativo ou,
melhor, diríamos, da contradição constitutiva desse campo. Para a AD, a mudança de nomes pode
provocar deslocamentos de sentidos, mas não apaga os sentidos já produzidos, os sentidos
fundadores das classificações dos transtornos psicopatológicos, que continuam a funcionar em
uma memória discursiva, em que se constituem os sujeitos, e que retornam na forma de pré-
construídos.
Essas questões emergem no próprio funcionamento discursivo da tradução da
nomenclatura, revelando, através de uma generalização e indeterminação um efeito de
determinação do sujeito, as dificuldades na definição de traços característicos da patologia.
Observamos na tradução da nomenclatura, da metalinguagem usada para caracterizar a SA, a
substituição do termo “disorders”, que corresponderia no português à palavra “desordem”, para
“transtornos”, e a de "pervasive" para "invasivo". Isso aponta para o fato de que há uma rede
discursiva em que os discursos – formações discursivas – estão sempre articulados sejam em
relação de conflitos, confrontos ou alianças.
Vejamos, pois, como se apresentam alguns termos em verbetes de dicionários. Em
inglês, o termo utilizado é Pervasive Developmental Disordes, no qual a Asperger’s Syndrome é
uma sub-categoria, traduzido na última edição do DSM IV (1995) como Trantorno Invasivo do
Desenvolvimento e Transtorno de Asperger, respectivamente. Consideraremos o significado
dicionarizado dessas palavras. Primeiro em inglês:

“Disorder – n 1. disarray, confusion, chaos, disorderliness, disorganization, untidiness,


mess, muddle, jumble, hash, mishmash, tangle, hotchpotch or US and Canadian also
hodgepodge, derangement, shambles, clutter 2. tumult, riot, disturbance, pandemonium,
upheaval ferment, fuss, unrest, uproar, hubbub, hullabaloo, commotion, clamor, turbulence,
turmoil, violence, bedlam, free-for-all, rumpus, brouhaha, fracas, affray, fray, brawl,
donnybrook, scuffle, fight, melee, battle royal, batlle, civil disorder, breach of the peace,
Colloq Brit kerfuffle, Slang Brit bovver 3. aliment, illness, sickness, affliction, malady,
affection, complaint, disease –v. 4. upset, disarrange, muddle, confuse, confound, unsettle,
disorganize, discompose, shake up, disturb, mix (up), befuddle, jumble, scramble,
tangle,snarl.”(Urdang, 1996).

82
“Disorder n. 1. {U} a confunsed or untidy state; a lack of order: My papers/financial affairs
were in (complete) disorder. Everyone began shouting at once and the meeting broke up in
disorder. 2. [U] disturbance of public order: The capital is calm, but continuing disorder has
been reported elsewhere. 3. [C, U] a disturbance of the normal process of the body or mind:
people suffering from severe mental disorders. A rare disorder of the liver.” (Hornby, 1995).

“Disorder – n. desordem f; (med) perturbações fpl, disfunção f. ~ly a desordenado; (riotous)


desordeiro.” (Whitlam, 1996).

“Pervasive - adj. Penetrating, pervading, omnipresent; general, inescapable; prevalent;


universal, widespread, ubiquitous, permeating, permeative.” (Urdang, 1996).

“Pervasive – adj. Present and seen or felt everywhere: a pervasive smell of damp º
Her influence is all pervasive. ‫ ڤ‬pervasively adv. Pervasiveness n [U].” (Hornby, 1995).

“Perva/de – vt espalhar-se por, invadir. ~sive a penetrante.”(Whitlam, 1996).

Tomemos agora esses termos em alguns dicionários de Língua Portuguesa:

“Transtorno – s.m. (de transtornar) 1. Ação ou efeito de transtornar. 2. Contrariedade,


contratempo, decepção. 3. Prejuízo. 4. Perturbação do juízo. 5. Desarranjo. Pl.:
transtornos”. (Mirador, 1980).

“Desordem – sf. 1. Falta de ordem. 2. Desalinho. 3. Confusão, algazarra. 4. Tumulto,


briga.” (Holanda, 1977).

“Invasivo – adj. (1. invasu).1. Que se refere a invasão. 2. Agressivo, hostil ”.(Mirador,
1980).

Em primeiro lugar, observamos que a palavra "disorders", em inglês, está associada a


algo provocado pelo indivíduo face a uma ordem - social, política, pública - estabelecida por
outros indivíduos que apontam para aquele causador do chaos, disorderliness, disorganization, da
disturbance of public order.
No caso do verbete "trantorno", em português, encontramos um deslocamento da
ação, ou do efeito, de transtornar para o plano individual, o que produz diferentes efeitos de
sentido. Parece que se busca, em português, minimizar o efeito do conceito de patológico,
deslocando-o do plano social e político para o da esfera do individual, transferindo a contradição
aí existente para uma oposição razão x emoção, ou ainda, objetivo x subjetivo. A palavra
"desordem", no português, está relacionada à “confusão”, “tumulto”, transferindo, assim, a culpa

83
também para o indivíduo. Por outro lado, “transtorno” refere-se a algo externo ao indivíduo e
sobre o qual ele não tem muita responsabilidade, mas que, contudo, atribui-lhe um caráter
negativo, de déficits e prejuízos. Tal discrepância aparente deve ser explicitada para que
possamos avançar na análise desse discurso enquanto parte do funcionamento de uma sociedade
dada.
Outro termo que considero importante analisarmos é a relação que se estabelece entre
“invasivo” e “pervasive”, como termos intercambiáveis em uma tradução. Pervasive em uma
tradução ao pé-da-letra seria tomado como “penetrante”. Neste ponto, percebemos pelo
movimento e jogo das palavras que ambos se referem a algo que atinge o indivíduo de fora para
dentro, ficando, portanto, difícil entender como ele pode se responsabilizar por algo vindo de
fora, ou mesmo, ser o culpado por tal desordem social e/ou transtorno individual. Observamos,
ainda, que o termo “invasivo” produz um efeito de algo mais agressivo, ao passo que “pervasive”
parece estar mais relacionado à intensidade do problema, o que parece reiterar a discrepância
anteriormente percebida, sinalizando para a necessidade de um retorno a essa análise, de forma
mais exaustiva, no desenvolvimento do trabalho de dissertação.
Souza (2000), em seu trabalho, refere-se também às diferentes nomenclaturas
referentes aos Transtornos de Personalidade. O que existe de consenso é o discurso da moral
social como regulador, o discurso do certo e errado, o que possibilita identificar o normal e
anormal como oposições. A Psicologia e a Psiquiatria vão trabalhar a relação entre normal e
anormal como oposição, uma forma de conceber saúde e doença. Saussure (1974) afirma que na
língua não há positividades, só há diferenças e que a significação - o valor - se produz na
diferença, um indivíduo só é anormal porque não é normal, o que indicaria a presença de uma
contradição e não de uma oposição. A Psicologia trabalha com relações de oposição quando
investe em um dos termos e elimina o outro, e/ou correlaciona os termos das dicotomias em
termos de causa e efeito. A prática terapêutica procede metodologicamente da mesma maneira,
pois o objetivo desta prática é tornar o anormal o mais normal possível, eliminando a diferença,
não dando visibilidade ao normal que seria a referência para o anormal. Para a AD, sustentada
pelo materialismo histórico, trabalha-se a contradição para compreendê-la e produzir
transformações efetivas e não para eliminá-la; não podemos superar a contradição, porque as
coisas valem - significam - na relação e não por si só.

84
À Psicologia e à Psiquiatria, respaldadas pela cientificidade, couberam importante
papel na criação e atribuição dos rótulos, das classificações nesse campo de padronização do
comportamento normal, inspirado no modelo do homem padrão, ou seja, no controle, seleção,
organização e redistribuição dos discursos de uma sociedade dada. Qualquer pessoa que se desvie
do padrão socialmente aceito - ideologicamente produzido - é considerado como anormal e
desviante e seu discurso como falso, deficiente, incoerente... O homem, enquanto uma totalidade
homogênea - saudável física e mentalmente - foi imposto ao mundo ocidental e é a esse modelo
que a psicologia e a psiquiatria dominantes, acadêmica e cientificamente, recorrem para
classificar, rotular. Embora o diagnóstico clínico do sujeito patológico seja produzido pela área
médica, outras instituições da sociedade, como a escola, colaboram decisivamente na construção
e reprodução-transformação dessa rede discursiva.
O DSM IV (APA, 1995) tem um funcionamento diferente, pois ele não adota
oposições do tipo normal/anormal; as afirmações vão se configurando explicitamente em torno da
doença. Não precisam a causa, dizem que tudo não é, como se estivessem impedidos de dizer o
que é e, conseqüentemente, de dizer como se trata, como se cura. Esse código localizador de cada
portador de uma síndrome, contudo, é único e intransferível e possibilita apartá-lo dos outros
homens e de sua própria subjetividade.
Prosseguindo nessa caracterização discursiva da visão do diagnóstico da Síndrome de
Asperger numa perspectiva médico-psicológica, retomo, nesse momento uma passagem da
introdução do DSM IV em que se justifica o uso de uma classificação categorial:

“O DSM IV é uma classificação categorial, que divide os transtornos mentais em tipos com
base nos conjuntos de critérios com características que o definem. Essa designação de
categorias é o método tradicional de organização e transmissão de informações na vida
cotidiana, e tem sido a abordagem fundamental usada em todos os sistemas de
diagnóstico médico ”. (APA, 1995; xxi)

Vimos que a classificação categorial é justificada por esses autores para garantir a
transmissão correta da informação. Ora, como já afirmamos anteriormente, a noção de
comunicação adotada por esse manual refere-se ao esquema “informacional”, pois o DSM IV
para cumprir com seu objetivo deve produzir o efeito de clareza, de coerência, de objetividade,
enquanto um sujeito - efeito-autor - que controla o que está sendo dito e é a origem desse dizer;
enquanto o avaliador, por outro lado, o sujeito-leitor deve "recuperar" um sentido ali escrito, um

85
sentido unívoco e permanente, para que não haja dúvidas no diagnóstico do indivíduo. Conceito
bem diferente de "comunicação" defendida pela AD, em que o discurso é efeito de sentidos entre
locutores que são produzidos em determinadas condições de produção. Para a AD, repetimos essa
noção de comunicação como transmissão de informação é uma forma de apagar o político, de
negar a vinculação das práticas cientificas e terapêuticas às práticas sociais.
Analisar um enunciado, para a AD, é compreender a interpretação presente nos
enunciados. Compreender o sentido que ali está, produzido, não significa interpretar o que o autor
quis dizer, mas compreender qual a posição que esse sujeito ocupa para ser autor desse
enunciado.
Neste sentido, gostaria de trazer, para discussão, a contribuição do trabalho de
mestrado de Olimpia Maluf Souza (2000) sobre “As condições de produção dos laudos periciais
de indivíduos com suspeição de insanidade mental”, no que diz respeito ao que ela chama de
inaudibilidade constitutiva do perito em relação à fala do periciando enquanto posição-sujeito,
para refletir sobre o papel de um psicólogo-avaliador fazendo uso do DSM IV (APA,1995). A
leitura feita por esse avaliador se dá em uma posição sujeito, ou seja, uma posição enunciativa em
que há sentidos lá postos mas que não são interpretados, pois são apagados, para o sujeito-
avaliador, pelo próprio processo de constituição deste sujeito e pela historicidade em que se
constitui a posição-avaliador.
E como são mensurados esses comportamentos, quer dizer, esses sujeitos?
Voltemos ao DSM IV (1995) e a nossa análise na busca de resposta a essa questão...
Transcrevo novamente, para facilitar o trabalho do leitor, os critérios diagnósticos da Síndrome
de Asperger, ali contidos, começando pelo item A que diz:

“A. Prejuízo qualitativo na interação social, manifestado por pelo menos dois dos seguintes
critérios:

(1) prejuízo acentuado no uso de múltiplos comportamentos não-verbais, tais como contato
visual direto, expressão facial, posturas corporais e gestos para regular a interação
social;
(1) fracasso para desenvolver relacionamentos apropriados ao nível de desenvolvimento
com seus pares;
(2) ausência de tentativa espontânea de compartilhar prazer, interesses ou realizações
com outras pessoas (por ex., deixar de mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse
a outras pessoas);
(3) falta de reciprocidade social ou emocional.” (pág. 76)

86
Estes critérios pretendem ser objetivos para que os profissionais da área da saúde
mental possam diagnosticar de maneira eficaz qualquer indivíduo. Observamos, contudo, que
os termos-chaves deste critério, como “prejuízo qualitativo”, “fracasso”, “relacionamentos
apropriados”, “ausência de tentativa espontânea”, “falta de reciprocidade”, são extremamente
imprecisos e vagos, fazendo-me lembrar das “infelicidades” austinianas, ou seja, todo enunciado
está fadado aos mal-entendidos e ao insucesso (Austin, 1990). No caso, diríamos que estes
termos, em sua ambigüidade, produzem mais de um sentido, dependendo da história de vida de
cada leitor, da circunstância em que o diagnóstico é feito, da situação sócio-econômica do
paciente, em situação de conflito/aliança com os já-ditos aí inscritos. Trago algumas situações
que ocorreram nos meus atendimentos com as crianças com Síndrome de Asperger para ilustrar o
caráter impreciso e incerto desses termos.
Certa vez, no consultório, onde eu estava atendendo a uma criança diagnosticada
como portadora da SA, com 9 anos de idade, que denominarei aqui de M., precisei interpretar um
gesto seu que não posso deixar de considerar como espontâneo. M. estava explorando uma caixa
que continha vários brinquedos, enquanto eu me encontrava sentado na poltrona distante e
observando. Depois de manipular muitos brinquedos, M. pega a peteca e fica passeando pela sala
com esse objeto na mão, olhando para mim e passando na minha frente várias vezes, até que lhe
pergunto se quer brincar. M. olhando para mim, dá um sorriso e balança a cabeça dizendo que
sim. Durante todo o jogo M. interage comigo, mandando a peteca para mim e rindo muito quando
erramos. Em uma outra sessão com essa mesma criança, ela realiza a mesma estratégia para me
dizer que gostaria de brincar de luta de espadas comigo. Posso entender que M. utilizou um tipo
de interação que não era tão explícita, ou melhor, menos usual, porém foi espontânea e eficaz a
partir do momento que eu pude dar uma resposta a ele, estabelecer uma comunicação no sentido
de troca, de inter-ação.
Um outro questionamento se faz necessário neste item A do DSM IV (APA,1995).
Como definir “interação”? Orlandi (1998 a) traz uma reflexão que propicia a crítica ao que se tem
dito da noção de interação, e que nos faz pensar em relação aos chamados “prejuízos” de
interação dos sujeitos com SA, quando estabelece uma diferença entre intercambiabilidade e
reversibilidade. A intercambiabilidade possibilita a substituição de posições-sujeitos
equivalentes, por exemplo, os discursos se equivalem em diferentes alunos que ocupam a

87
posição-aluno. Enquanto que a reversibilidade, de forma mais complexa, exige movimento nessas
posições; é a possibilidade, por exemplo, da posição-aluno ter a mesma legitimidade no processo
discursivo quando confrontado com a posição-professor ou que não quer dizer ocupar a posição
do outro. É com a reversibilidade que se pode produzir deslocamentos na voz dominante.
Desta forma, poderíamos questionar a forma de interação que se tem proporcionado
aos alunos nas escolas, e que podem levar o aluno a ser encaminhado ao psicólogo para
avaliação. Para Orlandi (1998 a), o aluno deve falar do seu lugar de aluno, mas cabe ao professor
estimular o aluno no aprofundamento de sua posição, produzindo formulações a partir de um
trabalho histórico relevantes dos sentidos aí presentes. Ora, sabemos que essa é a maior
dificuldade das escolas: criar condições para que o aluno produza deslizamentos de sentidos e
não somente reproduza mecânica ou formalmente; dificuldade determinada por uma formação
social e dela fazendo parte. Neste sentido, podemos afirmar que é a própria escola - de uma
sociedade dada - que produz impedimentos no processo de interação dos sujeitos, o que levaria os
sujeitos com SA a reagiram a exercer uma função - de autor - que os integraria a essa mesma
sociedade que os exclui. Não poderíamos, portanto, classificar sua forma de interação como
deficitária ou prejudicada, mas talvez como uma resistência em se integrarem a um mundo de
sentidos já estabelecidos por efeitos ideológicos dominantes.
Analisaremos o próximo item do DSM IV (APA,1995):

“B. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e


atividades, manifestados por pelo menos um dos seguintes quesitos:

(1) insistente preocupação com um ou mais padrões estereotipados e restritos de


interesses, anormal em intensidade ou foco
(2) adesão aparentemente inflexível a rotinas e rituais específicos e não funcionais
(3) maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por ex., dar pancadinhas ou torcer
as mãos ou dedos, ou movimentos complexos de todo o corpo)
(4) insistente preocupação com partes de objetos.”(pág. 76).

Vemos aqui uma insistência na “repetição” colocada em relação direta com


“restrição” e “estereotipia”1. Sabemos que existe toda uma discussão e teorização sobre o
“repetível” feita por filósofos2, lingüistas3 e psicólogos4, deslocando tal conceito e propondo-o

1
“estereotipia sf .Tip. Processo pelo qual se duplica uma composição tipográfica, transformando-a em forma
compacta, mediante moldagem de uma matriz sobre a qual se vaza metal-tipo.” (Buarque de Holanda, 1977)
2
Para citar apenas alguns: Derrida, 1972; Foucault, 1970; Pêcheux, 1998.

88
como sendo algo constitutivo da linguagem e, conseqüentemente, do comportamento. Logo,
temos que nos colocar de sobreaviso para entendermos essa repetição de um outro lugar e, por
conseqüência, tais padrões comportamentais como algo distinto de “restrito” e “estereotipado”,
para que possamos compreender e explicitar o conceito de patológico.
Observo nos atendimentos com as crianças portadoras de SA, a repetição como uma
característica marcante de sua produção lingüística. Muitas vezes essas repetições parecem
realmente estar mais próximas do que chamamos de ecolalia, outras vezes, porém, parecem ser
um recurso diferente de produção de sentido, de lidar com a dispersão do sujeito e do texto, como
exemplificada no caso a seguir.
Em uma situação de lanche coletivo com 4 crianças com SA, ofereço o lanche a H.,
um menino de 9 anos, reconhecido por sua excelente capacidade mnemônica, que se recusa
comer. Em seguida, com todas as crianças sentadas à mesa e lanchando, H. começa a repetir uma
receita de pão de queijo com todos seus passos, aparentemente não se dirigindo a ninguém, como
se fosse uma cantoria. Permanece assim até o final, quando lhe ofereço novamente o lanche
disponível e ele recusa, e quando questiono se ele gostaria de comer pães de queijo, aceita
imediatamente e me pergunta onde poderia consegui-los. Posso notar, contudo, que mesmo
utilizando-se da repetição H. pretendia transmitir sua idéia ou falar sobre aquilo de que mais
gostava, marcando a presença de um desejo, colocando em circulação outros sentidos.
A repetição faz parte da história e não é apenas um exercício mnemônico. Em AD, o
repetível se coloca como uma das dimensões da historicidade, e não como informação, como
redundância. Quando falamos, há uma relação entre o dito e o não-dito, mas também com o já-
dito - histórico e inconsciente - e o sujeito; pela repetição diz-se o já dito, mas pode também
produzir outros sentidos pelo deslocamento que se dá entre o enunciado elaborado e o lugar -
esquecido pelo sujeito - onde se elabora o saber da formação discursiva. E é nesta relação entre
um eu-aqui-agora, que se materializa no enunciado, e uma história em que esse mesmo enunciado
se constituiu, que os objetos de discurso adquirem sua estabilidade referencial. Há, pois, uma
relação entre linguagem e exterioridade que é constitutiva. O sujeito não se apropria da
linguagem em um movimento individual e a forma dessa apropriação é social. O dizer, portanto,

3
Orlandi, 1996;
4 Vygotsky, 1998

89
não é coisa só do falante, pois tem a ver com as condições em que se produz e com os outros
dizeres já existentes.
Orlandi (1998a) fala em três modos de repetição: a repetição empírica, a formal e a
histórica. No primeiro caso, temos uma mera repetição, um efeito papagaio, a pessoa não sabe o
que está repetindo; no segundo, a repetição formal, que é um trabalho com a forma mais abstrata
da língua, o indivíduo repete com outras palavras, há uma nova organização, mas desprovida das
marcas daquele sujeito, então o dizer não sai do lugar; na repetição histórica a pessoa inscreve
seu dizer num saber discursivo já existente, entra de forma ativa nessa rede de discursividades,
produz deslizamentos, o que possibilita a produção de outros sentidos. Ela afirma que:

"A inscrição do dizer no repetível histórico (interdiscurso) é que traz para a questão do
autor a relação com a interpretação, pois o sentido que não se historiciza é ininteligível,
ininterpretável, incompreensível (cf. Orlandi,1987). Isto nos leva a afirmar que a
constituição do autor supõe a repetição, logo como estamos procurando mostrar, a
interpretação. Mais extensamente podemos mesmo afirmar que o dizível é o repetível,
ou melhor, tem como condição a repetição." (pág. 71)

Analisando os discursos apresentados pelos portadores da Síndrome de Asperger,


entendemos que a repetição tem, pois, sua especificidade e pode ser um lugar importante para se
observar o processo de constituição desses sujeitos. Os portadores de Síndrome de Asperger,
poderíamos dizer, seguindo a literatura analisada, realizam uma mera repetição empírica para
produzirem seu dizer, reproduzindo a fala do outro pela dificuldade de inter-agirem. Ou de quem
chega no limite da repetição formal enquanto "técnica de produzir frases, exercício gramática",
como diz Orlandi (1998a). Ousamos ir, contudo, além e lançar a hipótese de que a repetição para
elas seja uma forma de entrar na rede de discursividades existentes na sociedade para significar o
mundo e se significar, trabalhando de uma forma específica a heterogeneidade constitutiva de
todo discurso, buscando construir uma forma de individualização do sujeito em meio ao
funcionamento das instituições. Nessa forma de repetição histórica, ele estabeleceria uma relação
com outro se apropriando de suas palavras para torná-las suas, marcando o espaço de
interlocução.
Quanto ao item C do DSM IV (APA,1995), observamos que a ênfase dada é ao
funcionamento deste sujeito em uma organização social e política determinada, um
funcionamento que deve ser eficaz de acordo com as normas estabelecidas.

90
“C. A perturbação causa prejuízo clinicamente significativo nas áreas social e
ocupacional ou outras áreas importantes de funcionamento.” (1995,pág. 76).

A idéia que está subentendida aqui é a de enquadramento do indivíduo a uma ordem dada
historicamente. É interessante observar que não há um complemento explícito para o termo
“funcionamento”, entendido como funcional. É possível, então, questionarmos o que seria
funcional e para quem?
Em se tratando de escola, uma instituição desta sociedade, responderíamos, que
significa muitas vezes a realização de tarefas mecânicas e repetitivas e a submissão
inquestionável por parte dos alunos a um dizer, que se apresenta respaldada pelas noções de
neutralidade e de cientificidade. Por esta razão, é comum ouvirmos queixas, em relação às
crianças com Síndrome de Asperger, a propósito de sua inadaptação escolar: não realizam as
provas, não copiam tarefas do quadro-negro e se recusam a fazer exercícios, sendo consideradas
“disfuncionais” ao ambiente escolar. Devemos, pois, explorar o funcionamento do discurso
pedagógico, as condições de produção dos enunciados que marcam esses prejuízos sociais, bem
como as relações ocupacionais em uma sociedade capitalista, evidenciando o entrecruzamento de
diferentes formações discursivas - pedagógica, psicológica, econômica, jurídica - na base de um
conceito de patologia.
Prosseguindo, chama-nos a atenção os itens D e E do DSM IV por serem marcados
por aquilo que o sujeito com SA não tem:

“E. Não existe um atraso clinicamente significativo no desenvolvimento cognitivo ou no


desenvolvimento de habilidades de auto-ajuda apropriadas à idade, comportamento
adaptativo (outro que não na interação social) e curiosidade a cerca do ambiente na
infância.

F. Não são satisfeitos os critérios para um outro Transtorno Invasivo do Desenvolvimento


ou Esquizofrenia”.(1995,pág. 76)

Estes itens podem mesmo provocar surpresas, pois uma criança ou adulto com tantas
faltas, prejuízos e inadaptações, não apresenta problemas de atraso significativo de linguagem e
de cognição. Sabemos, contudo, que, atualmente, os pesquisadores da área vêm demonstrando
interesse por esses dois aspectos, buscando desvelar os problemas que essas categorias trazem.
Isto, contudo, ao mesmo tempo, que traz inúmeros benefícios para a compreensão da Síndrome

91
de Asperger, acaba, muitas vezes, por recolocar a ambigüidade e a imprecisão quanto à noção de
patologia.
Essa análise do DSM IV foi mais um passo de uma des-construção já iniciada e, ao
mesmo tempo, mais um elemento que me levava a um processo também já desencadeado de
construção e que me apontava caminhos a serem necessariamente seguidos. Uma nova forma de
conceber a relação teoria-prática se pusera de forma irreversível, pois a desestabilização
provocada pela reflexão teórica que empreendera produzia deslocamentos na minha concepção de
prática clínica e na relação direta com as crianças com a SA, em que uma nova "escuta"
começava a se instalar. A linearidade da língua e a necessidade de expor, de forma metódica, os
passos de uma investigação, levaram-nos a estabelecer uma estrutura para esta dissertação que
não reflete completamente o ritmo real deste processo mencionado, pois havia o que AD chama
de batimento, de ir-e-vir constante entre teoria e análise dos dados. Assim, é que, decidimos, por
trabalhar neste ponto algumas propostas teóricas de Vygotsky por considerarmos estar aí a
grande possibilidade de se dar um passo, grande, no caminho da construção sempre provisória.

92
5. VYGOTSKY

93
No trabalho de análise discursiva da constituição do campo disciplinar da Psicologia,
realizada no terceiro capítulo e complementada, de um outro lugar enunciativo, no capítulo
anterior, pudemos perceber as estreitas relações existentes entre as práticas científicas e as
práticas sociais e políticas e fomos vendo tomar força os trabalhos desenvolvidos por cientistas
soviéticos, como os Yaroscheski e de Vygotsky, principalmente.
Yaroscheski (1983), em sua obra “La Psicologia del siglo XX”, mostra de forma
ampla e o modo como os princípios do materialismo histórico, através do marxismo-leninismo
foram aplicados na análise do desenvolvimento histórico da Psicologia. Ao tratar da crise na
Psicologia científica no início do século XX, dá conta de como as concepções mecanicistas e
organicistas desenvolvidas até então, eram insuficientes para o estudo do organismo humano e da
atividade psíquica. Segundo Haeckel, citado por Yaroscheski (pág.79), em nenhuma outra ciência
encontramos tantas concepções contraditórias e inconsistentes como as que imperam na
Psicologia, sobretudo no que se refere a sua definição e as suas tarefas principais.
Para Yaroscheski (1983), Lenin foi um pensador que levantou e analisou as causas e
as tendências da crise da ciência em sua totalidade, as relações complexas e contraditórias entre a
filosofia e a ciência, criando condições para que se desenvolvesse um trabalho com base no
materialismo dialético sobre o psiquismo e se generalizasse a experiência histórica de sua
investigação científica, através de uma orientação metodológica segura. Os problemas
psicológicos assim tratados foram convertidos mais tarde em uma base metodológica para as
investigações científicas no campo da Psicologia soviética, dentre as quais encontramos as
propostas de Vygotsky, que ganharam força pouco a pouco dentro e fora da antiga União
Soviética, e que serão aqui tratadas em separado, como contraponto necessário para as propostas
dominantes em nosso campo de interesse, mostrando o caráter contraditório da produção do
conhecimento e as possibilidades de reprodução-transformação que fazem parte deste processo.
A teoria de Vygotsky surgiu na União Soviética, no período pós-revolucionário
compreendido entre 1917 e 1934, e centrou-se na natureza histórico-cultural dos fenômenos
psicológicos, tendo por base o materialismo histórico, logo, trazendo outras referências
epistemológicas que não as do Positivismo, do Empirismo ou do Idealismo, e confrontando-as. A
mente humana passa, então, a ser concebida, por ele, como um produto cultural, historicamente
determinado; o homem como um ser social, produto e sujeito da história, e a cultura, sendo
historicamente acumulada, influencia o desenvolvimento do indivíduo. A epígrafe deste trabalho,

94
que retomo nesse momento, sintetiza um pouco essa nova posição teórica e metodológica no
campo disciplinar da Psicologia:
“Para explicar as formas mais complexas da vida consciente do homem é imprescindível
sair dos limites do organismo, buscar as origens desta vida consciente e do
comportamento “categorial”, não nas profundidades do cérebro, ou da alma, mas, sim, nas
condições externas da vida e em primeiro lugar, da vida social, nas formas histórico-
sociais da existência do homem”.

Vygotsky elaborou uma teoria geral da Psicologia com enfoque no desenvolvimento e


em uma perspectiva analítico-histórica, o que vai marcar uma posição epistemológica diferente
neste campo, pois, além de considerar o aspecto social no/do desenvolvimento, o que já fora
apontado pelo Behaviorismo mas de outra maneira, trouxe o conceito de história, com tudo o que
ele implica para a compreensão de uma formação social, buscando trabalhar a categoria da
contradição, e não da oposição, entre indivíduo e a sociedade.
Vygotsky (1989) considerava que a concepção tradicional sobre o desenvolvimento
era errônea e unilateral, porque não considerava todos os eixos, "esquecendo-se", por exemplo,
do eixo do desenvolvimento histórico, não distinguindo natural e cultural, natural e histórico,
biológico e social, quando se pensa no e quando se analisa o desenvolvimento de uma criança.
Ou seja, ele considerava que as correntes dominantes - oficiais - tinham uma compreensão
inadequada dos fenômenos que estudavam, pois ignoravam o movimento histórico e formulavam
os problemas de forma positiva e a-histórica. As funções psíquicas superiores e as complexas
formas culturais de conduta, com suas especificidades de estrutura e funcionamento, não eram
investigadas. Por outro lado, fazia-se uma análise elementar e fragmentária dos elementos
constituintes dessas formações psíquicas superiores que perdiam, assim, sua qualidade
fundamental, pois quando reduzidas a processos elementares deixavam de ser elas mesmas.
Vygotsky (1989) criticou também a maneira com que a Psicologia tradicional
operava, substituindo o estudo da gênese pela análise da forma complexa de comportamento em
diferentes estágios de desenvolvimento, dando uma idéia de que o que se desenvolve não é a
forma em sua unidade e totalidade sempre inacabada, mas os elementos agrupados que, em suma,
constituem em cada etapa uma ou outra fase de desenvolvimento de forma articulada. Para ele, a
Psicologia não tinha conseguido explicar as diferenças entre os processos orgânicos e culturais do
desenvolvimento e da maturação ao dividir o desenvolvimento em fases estanques, e não
conseguia também responder porque determinado comportamento aparecia em determinada

95
idade, nem a partir de quê, nem como se desenvolvia. Não trabalhando os conceitos de histórico e
cultural, e tratando a estrutura, enquanto algo fechado e completo, essas correntes psicológicas
iam penetrando, gradualmente, no fisiológico da atividade nervosa, e o histórico ia se diluindo no
natural, produzindo as evidências, um efeito ideológico, diria a Análise de Discurso.
A psicologia subjetiva empirista - o Estruturalismo - e a psicologia objetiva - o
Behaviorismo - eram, para Vygotsky, semelhantes, quando pensadas da perspectiva do
materialismo histórico, pois tendiam a analisar e fracionar os processos psíquicos complexos e
superiores em combinações de fenômenos elementares em meras oposições deixando de captar o
movimento do real (do real da língua e do real da história, diríamos como analistas de discurso).
Podia-se observar o funcionamento dessas correntes pela forma como estruturavam seu
desenvolvimento em três momentos: o estudo das funções psíquicas superiores a partir da
combinação dos processos naturais que as integram; a redução dos processos complexos e
superiores a processos elementares; a não consideração da peculiaridade e das leis específicas do
desenvolvimento cultural. Ou seja, ambas coincidem no fato de sua prática científica não ser
dialética e negam-denegam a história, o político.
Vygotsky defendeu a tese de que a Psicologia apresentava uma complexidade
qualitativa que só poderia ser apreendida a partir da relação dialética entre realidade social e
fenômenos tipicamente humanos, como a consciência e a linguagem. Com o materialismo
histórico, como artefato teórico sustentando suas posições, ele pensava o desenvolvimento
histórico da sociedade humana em suas condições materiais de existência, considerando as
relações de produção de uma sociedade dada, e não somente do espírito humano, como vinha
sendo posto pela Psicologia tradicional, que, quando se refere à história, trata-a como a-social. O
aspecto histórico das relações sociais, na teoria de Vygotsky não se refere à história como
sucessão de fatos no tempo ou como progresso das idéias, mas ao modo como o homem concreto,
em condições objetivas, cria instrumentos e formas culturais em sua existência social,
reproduzindo-transformando o econômico, o social, o político e o próprio cultural. (Chauí, 1989)
Para a Análise de Discurso a noção de história é também fundamental para a
compreensão da estrutura e do funcionamento da linguagem e das línguas, bem como do processo
de produção do conhecimento científico. Uma história que não é cronologia, sucessão de fatos no
tempo, nem lugar onde se busca a origem dos acontecimentos ou a explicação do que existe.
Como diz Henry (1994):

96
"Não há 'fato' ou 'evento' histórico que não faça sentido, que não peça interpretação, que
não reclame que lhe achemos causas e conseqüências. É nisso que consiste para nós a
história, nesse fazer sentido, mesmo que possamos divergir sobre esse sentido em cada
caso”. (pág. 51)

Para Pêcheux (1988), a história da produção de conhecimento não está separada da


história das lutas de classes, e produção histórica de conhecimento não significa inovação ou
criação da imaginação humana, mas um efeito (e parte) de um processo histórico que é
determinado pela própria produção econômica. “As ideologias teóricas e as diferentes formas de
filosofias espontâneas que as acompanham – não estão separadas da história (da luta de classes)” (pág.
190) Daí, pensar-se em descontinuidades históricas na ciência, como já dissemos anteriormente,
não considerando o tempo como único e homogêneo.
Com isso não está se dizendo que as Ciências Sociais não trabalhem com a história.
Vygotsky e a Análise de Discurso, entretanto, chamam a atenção para um conceito de história
determinado, pressuposto em seus trabalhos, e para a forma como essa mesma história entra no
campo dessas ciências, seja como algo a parte, complementar, seja como não tendo objeto
próprio. Henry (1994), pode nos ajudar nessa reflexão ao falar sobre o lugar da história nos
trabalhos científicos dessas ciências ao dizer que:
"A história não representaria mais do que o lugar ou o espaço da combinação, da
articulação, da complementaridade desses processos ou mecanismos por si mesmos a-
históricos. A história não teria mais então conteúdos específicos mas representaria
somente o ponto de vista da 'totalidade' e da complementaridade do que estudam as
diversas ciências humanas e sociais. Para cada uma delas, ela representaria o 'contexto'
no qual operariam os mecanismo ou os processos particulares que estudam." (pág.30)

O modelo histórico-cultural vai conceber o homem como diferente dos modelos


organicista e mecanicista, pois não o considera só como um organismo (ser vivo), nem
comparável a uma máquina. No modelo histórico-cultural, o sujeito é constituído intrinsecamente
por relações sociais, culturais e históricas. Nesta concepção de Vygotsky, deparamo-nos com
uma nova compreensão epistemológica da relação sujeito-objeto. Enquanto o mecanicismo
atribuía importância ao objeto e o organicismo ao sujeito, tratando-os como dicotomias, o modelo
histórico-cultural estabelece o princípio da interação dialética entre sujeito-objeto e, considera,
que esta interação é mediada pelas significações que cada grupo social atribui a cultura. (Werner,
1997). Mediado pelo discurso, diria a Análise de Discurso.

97
O destaque dado, por Vygotsky, ao processo de mediação cultural na formação dos
processos mentais superiores, também, encontra pontos de contato com o conceito de formações
discursivas trazido pela Análise do Discurso. Para a AD, o sujeito para se constituir e produzir
sentido precisa se assujeitar à língua e a história, ou seja, precisa se inscrever em determinada
formação discursiva que se refere às formações ideológicas de uma conjuntura sócio-histórica
determinada.
O referencial teórico e metodológico - o modelo histórico-cultural -, proposto por
Vygotsky, constitui-se em um novo paradigma para o estudo do psiquismo humano e do
comportamento, trazendo, também, novas concepções para se pensar as patologias. Gostaríamos
de explorá-lo em nosso trabalho pelo que ele possa trazer de sentidos outros para a compreensão
do sujeito com SA, de re-significação da prática clínica ao possibilitar uma outra relação entre
teoria e prática. Antes de entendermos como esse modelo compreende a noção de
desenvolvimento normal e anormal, é importante conhecermos os elementos, que segundo
Vygotsky, compõem o desenvolvimento psicológico do indivíduo.
No desenvolvimento psicológico do ser humano, podemos distinguir processos
mentais elementares de processos mentais superiores. Os processos elementares são de origem
biológica e desencadeados pelos fatores ambientais, enquanto os processos superiores possuem
origem histórico-cultural e são caracterizados por elementos simbólicos, principalmente, a
linguagem. Nesta forma de pensamento, o aparato biológico do indivíduo representa a condição
necessária para a formação das funções complexas, mas não as determina; a aprendizagem é um
aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas
culturalmente organizadas e especificamente humanas, o que significa que a aprendizagem
antecede o desenvolvimento. À medida que os processos mentais complexos vão se formando, os
órgãos funcionais cerebrais vão se constituindo, e o desenvolvimento, então, representa uma mera
atividade orgânica. Não existe, para Vygotsky, um sistema interno “natural” para cada função
psicológica, mas sistemas funcionais interrelacionados, que são organizados a partir do
aparecimento das funções psicológicas superiores, as quais podem rearrumá-los por substituição
ou por compensação.(Lapa, 1995)
Este novo modelo psicológico, portanto, considera que o desenvolvimento humano é
formado por dinâmicas interfuncionais, e que o psiquismo não pode ser explicado por uma lista
quantitativa de várias funções individuais. O materialismo dialético adotado por Vygotsky levou

98
a Psicologia a considerar a pessoa e a mente como um todo em movimento e em relação
contraditória. Ele desenvolveu leis gerais, uma teoria norteadora para a compreensão do homem
concreto. Para Vygotsky (1989), a Psicologia deve, para conhecer o desenvolvimento humano,
saber como se formou a estrutura interfuncional de cada um.
A ênfase dada à interação, a um funcionamento específico entre as funções
elementares e complexas abriu uma nova perspectiva para se pensar o problema da patologia, do
sujeito-deficiente, que aparece caracterizada em sua obra, “Os fundamentos da Defectologia”
(1989). Este livro foi publicado em 1983, como parte integrante das Obras Completas de L. S.
Vygotsky, editadas em seis tomos e preparadas para sua publicação por seus discípulos e
seguidores. Este trabalho constitui a base teórica essencial do desenvolvimento da pedagogia
especial científica.
A defectologia, segundo Vygotsky (1989), deve estudar em que condições se dão as
variações no processo de desenvolvimento. Nesta dissertação, fizemos uma leitura e análise -
primeiras, diríamos - de seu trabalho no campo dessas variações e levantamos algumas hipóteses
referentes ao desenvolvimento psicológico da criança com SA, à luz da teoria histórico-cultural,
dando alguns passos na compreensão do homem concreto com SA, deixando para a tese de
doutorado, um estudo mais aprofundado da dinâmica interfuncional dos indivíduos com
Síndrome de Asperger, considerando os outros caminhos que tive que trilhar para compreender
de forma consistente tal modelo.
Como foi dito anteriormente, a peculiaridade do desenvolvimento infantil, para
Vygotsky (1989), está no entrelaçamento dos processos do desenvolvimento cultural e biológico,
ambos convergindo, influenciando-se reciprocamente e formando uma única série: a formação
sociobiológica da personalidade. Na criança deficiente não se observa a fusão desses processos,
pois os planos de desenvolvimento divergem quanto ao grau e a causa da divergência é o defeito
orgânico.
A defectologia tradicional, no entanto, está impregnada pela idéia de homogeneidade
e unidade no processo de desenvolvimento infantil; e isto se deve ao fato de que a noção de
cultura dominante está organizada em função de um “tipo biológico humano” ideal, considerando
uma formação social dada. Assim, a gradação e a sucessão do processo de apropriação da cultura
estão condicionados ao desenvolvimento orgânico da pessoa e, o desenvolvimento atípico não
pode se fixar na cultura como uma forma diferente. Isso me leva a compreender um pouco mais o

99
efeito ideológico da homogeneização tal como é pensado pela AD, ou seja, uma voz social
homogeneizante procedendo ao apagamento de outras vozes para fazer soar a voz autorizada.
Na AD, consideramos os lugares de não-coincidência do dizer, os lugares de ruptura
do dizer que conduzem ao que se denomina heterogeneidades. Authier-Revuz (1990) aborda essa
questão analisando as heterogeneidades enunciativas: a constitutiva e a mostrada. Sabemos que
não há neutralidade no discurso, pois sua produção se processa pelo interdiscurso. Da relação
com o simbólico, com a alteridade, da relação do sujeito consigo mesmo e com o Outro, produz-
se uma heterogeneidade, a constitutiva, e da relação do sujeito com o outro, a mostrada, em que
as formas lingüísticas funcionam como diferentes formas de negociação do sujeito falante com a
heterogeneidade constitutiva de seu discurso, que não pode por ele ser atingida.
Voltando a Vygotsky (1989), observamos que ele considera que essa dificuldade da
criança deficiente em se inserir na cultura, alcança seu grau máximo no âmbito próprio do
desenvolvimento psicológico-cultural, isto é, na área das funções psíquicas superiores, do
domínio dos procedimentos e modos culturais de conduta. Assim, como o uso dos instrumentos
pressupõe a premissa biológica do desenvolvimento das mãos e do cérebro, o desenvolvimento
psicofisiológico normal da criança é a premissa indispensável para seu desenvolvimento
psicológico-cultural.
O defeito, então, em um certo sentido, produz dificuldades para o desenvolvimento
cultural, ou melhor, para uma adaptação do sujeito aos padrões culturais dominantes. Assim
sendo, as limitações das pessoas deficientes estão diretamente relacionadas, construídas e
estabelecidas pelo social. Para Vygotsky (1989), os princípios que fundamentam o
desenvolvimento das crianças normais e deficientes são os mesmos, representando o defeito uma
limitação, mas não, necessariamente, uma incapacidade. “En resumidas cuentas, el defecto por si solo
no decide el destino de la personalidad, sino las consecuencias sociales y su realización sociopsicológica.”
(pág. 30). Essa limitação representaria um confronto/conflito com determinada organização
social, com a forma de lidar com a diferença, com a alteridade, ao mesmo tempo, que tais
indivíduos com defeito provocam no outro, desconfortos individuais e sociais, bem como
desestabilizam em um certo sentido a ordem estabelecida.
Temos aí, no trabalho de Vygotsky (1989), uma referência para se pensar o defeito
orgânico, que dificultaria a apropriação da cultura pela criança deficiente, como um lugar de
bloqueio para a integração do indivíduo, uma vez que a lei social é a homogeneidade, a unidade.

100
O defeito orgânico levaria, neste sentido, à limitação do desenvolvimento psicológico-cultural da
criança, que ele define como sendo o domínio dos instrumentos psicológicos-culturais criados
pela Humanidade no processo do desenvolvimento histórico (pág.19).
Neste ponto, gostaria de discutir essa questão do defeito como característica da
criança com Síndrome de Asperger. Sabemos pela bibliografia levantada que SA, até o presente
momento, não apresenta evidências de que essa criança teria uma incapacidade orgânica, como a
surdez, cegueira, afetando o seu desenvolvimento. Os critérios definidores da SA, segundo o
DSM IV (1995), referem-se às áreas do uso da linguagem, da interação social e dos padrões
comportamentais. Ora, à luz da proposta de Vygotsky (1989) para a defectologia, podemos
questionar a própria classificação aplicada aos comportamentos dessa criança como patológicos.
Seriam realmente esses os “defeitos” da criança com SA? Poderíamos considerar essas
"dificuldades", amplamente analisadas no capítulo anterior, como características determinantes
para se diagnosticar uma patologia, uma vez que tais características se referem às áreas do
desenvolvimento psicológico-cultural da criança? Não seriam esses padrões de comportamento já
um produto, um resultado da interação do sujeito com SA com uma sociedade que não sabe lidar
com a diferença? Pensando numa perspectiva vygotskyana, qual seria, então, realmente o defeito
das funções elementares na SA?
Para Vygotsky (1989), o defeito possuiria uma dupla função: ao mesmo tempo que
dificultaria para a criança trilhar os mesmos caminhos da criança normal na obtenção dos fins
pretendidos, estimularia a busca de outros caminhos, conduzindo-a aos processos
compensatórios. A lei de compensação é o postulado central da teoria de Vygotsky no que diz
respeito à deficiência orgânica. Toda criança com defeito se engajaria numa via compensatória,
alcançando um desenvolvimento diferente. Compensação não significaria aí uma substituição,
mas um processo criativo, orgânico, psicológico, significaria estimular capacidades a partir da
deficiência. Podemos pensar no desenvolvimento da criança com defeito em termos de rupturas,
de produção de sentidos novos, em re-significação, pois ela se desenvolve por caminhos não-
convencionais. E a criança com SA, sem defeito orgânico comprovado, por quais caminhos
estaria se desenvolvendo?
É importante ressaltar, mais uma vez, que, até hoje, não se encontrou na Síndrome de
Asperger nada de específico, considerando o exame físico e as condições médicas, que
justificassem seu diagnóstico como patologia. No entanto, apesar do DSM IV (APA,1995) não

101
fazer menção à etiologia da Síndrome (talvez porque ainda não se têm evidências empíricas
precisas – uma exigência para garantir a “cientificidade” do DSM), há hipóteses sobre a
possibilidade de alguma disfunção cerebral para justificar a SA, além das referentes a uma alta
freqüência de incidências genéticas.
No entanto, parecem existir nas crianças com SA diferenças em suas funções
psicológicas superiores. Observa-se, por exemplo, que essas crianças apresentam um
hiperdesenvolvimento da memória. Talvez se fosse comprovada a existência de algum defeito
orgânico, pudéssemos justificar um outro tipo de configuração das funções psicológicas
superiores, pois Vygotsky (1989) considera, em seu tratado, que uma função alterada vai
determinar uma estrutura psíquica diferente. Nos limites desta dissertação, no entanto, levanto
apenas como hipótese a ser aprofundada em outro momento: a de que o hiperdesenvolvimento da
memória poderia ser decorrente de uma dificuldade referente à atenção seletiva. Talvez os
indivíduos com SA não consigam passar da atenção difusa, geral, para a atenção seletiva, sendo,
contudo, importante pensar na função exercida pela palavra - uma categoria de análise complexa
- na construção-reconstrução da atenção, enquanto centro móvel e dinâmico para o campo
perceptivo, considerando que o sentido estável - literal - é produzido historicamente. A forma,
então, de estabelecer o contato social, interação, linguagem, seria diferente, marcado por essas
funções psicológicas: memória super-desenvolvida e atenção difusa, que poderiam ser
compreendidas como lugares de funcionamento daquela heterogeneidade mostrada.
Mas, continuemos o nosso processo de análise e compreensão da obra de Vygotsky
(1989). A sua teoria de compensação baseou-se nas idéias de Adler, W. Stern e T. Lipps, que de
uma maneira geral, consideram que o organismo possui uma reserva potencial que é ativada por
situações de perigo, e reage com muita mais força que aquela necessária para parar o perigo.
Desta forma, o organismo não só compensa o prejuízo causado, como aumenta
consideravelmente sua proteção.
A compensação dá origem a um novo tipo de desenvolvimento, e muito do que é
inerente ao desenvolvimento “normal” desaparece ou se reduz em função do defeito. De forma
semelhante se pode dizer, segundo Vygotsky (1989), que se forma a peculiaridade do psiquismo
da pessoa deficiente, originando uma formação psicológica secundária, e nestas condições ainda
não se pode sentir diretamente sua insuficiência física. A ação do defeito na personalidade da
pessoa deficiente, acaba sendo secundária, indireta, pois o indivíduo não sente diretamente seu

102
defeito, mas percebe as dificuldades que resultam dele, ou melhor, as conseqüências sociais de
ser diferente. O defeito funciona como uma “luxação social”, sua conseqüência direta é o
decréscimo em sua posição social, o que significa que a interação, a comunicação dar-se-á entre
posições de sujeito assimétricas e hierarquizadas em função da deficiência.
O defeito, que conduz à compensação, vai criar uma posição psicológica peculiar para
a pessoa deficiente, que Adler, citado por Vygotsky (1989) denominou de sentimento de menos-
valia, ou seja, uma valoração psicológica decorrente da sua própria situação social. Vygotsky
afirma com muita propriedade que somente através dessa posição é que poderíamos notar a ação
do defeito no desenvolvimento da criança, ou melhor, não do defeito mas, o defeito sustentado
por formações ideológicas dominantes. Diríamos que temos aí o estabelecimento de uma forma
de individualização do sujeito em relação a uma sociedade, a um Estado.
O que Vygotsky (1989) vai, pois, denominar de formação psicológica secundária ou
posição psicológica de menos-valia originada pelas condições materiais de existência do
indivíduo em uma sociedade dada, podemos analisar discursivamente, considerando a categoria
da forma-sujeito e o seu processo histórico - e inconsciente - de constituição: o indivíduo com
defeito se constitui como sujeito-deficiente, sujeito-menos-capaz, por sua filiação a redes de
sentidos já existentes, pela ideologia, e não pelo defeito físico que apresenta. Estão em jogo,
portanto, formações imaginárias em que cada sujeito "sabe" o lugar a ser ocupado enquanto
deficiente. Segundo Pêcheux (1988), algo fala sempre antes, em outro lugar, sob o domínio das
formações ideológicas. É nas formações discursivas que o sujeito adquire sua identidade e o
sentido sua unidade, é este o lugar em que o sujeito reconhece sua relação consigo mesmo e com
os outros sujeitos. As palavras mudam de sentido de acordo com as formações ideológicas em
relações de alianças, conflitos e confrontos, que são representadas pelas formações discursivas.
Aí se dá o processo de constituição dos sujeitos e dos sentidos, pela inscrição em uma memória
do dizer - o interdiscurso -, no domínio dos dizeres já-ditos que garantem a formulação do que
será enunciado.
Mas, o desenvolvimento dificultado por um defeito vai se constituir, paradoxalmente,
em um processo criador, novo, de reconstrução, com surgimento de novas vias de ação,
denominadas por Vygotsky de caminhos isotrópicos. O papel da Educação Especial seria, então,
o de descobrir novas “vias colaterais de desenvolvimento cultural” (Vygotsky: 1989, pág.43), como a
de historicizar a relação da criança com e na sociedade. Vygotsky critica a forma como as escolas

103
especiais trabalham com crianças portadoras de defeito e, apesar de seus escritos datarem da
década de 30, ainda hoje suas críticas se fazem atuais: Essas críticas incidem, principalmente,
sobre a falta de fundamentos e princípios para a educação do deficiente, o que leva a adoção de
procedimentos pedagógicos mecanizados, treino comportamental, estimulação sensorial, ou seja,
atividades superficiais que não vão contribuir para a descoberta daquelas vias entendidas como
compensatórias e, sim, reforçar ainda mais o defeito, contribuindo para a formação psicológica
secundária a que Vygotsky se referiu, produzindo o sentimento de inferioridade.
Ao se falar do sentimento de menos-valia, da formação psicológica secundária
decorrente dos efeitos sociais, gostaria de retomar uma questão, penso que importante, levantada
no decorrer deste trabalho referentes aos sujeitos com SA, e que será tratada no quinto capítulo: a
da resistência. Talvez possamos considerar que os padrões de comportamento referentes à
linguagem e à interação social, que o DSM IV (APA,1995) trata como déficits ou prejuízos para
classificar a síndrome, sejam formas de reação a uma sociedade que não sabe lidar
institucionalmente com a diferença, com alteridade, considerando que, em sua maioria, os casos
da Síndrome de Asperger são diagnosticados com a entrada da criança na escola.
Podemos pensar, assim, nos padrões de comportamento apresentados pelos sujeitos
com SA, apontados pelo DSM IV como “prejuízo severo e persistente na interação social,
desenvolvimento de padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades” (1995,
pág.74), como comportamento de resistência dos sujeitos com SA contra as exigências de
unidade e homogeneidade da sociedade.
Vygotsky (1989) critica a concepção quantitativa da maioria dos métodos de
diagnósticos, pois estes somente revelam o grau de insuficiência, não caracterizam o defeito, nem
levam em conta a estrutura da personalidade originada pelo problema em relação à formação
social. Para Vigotsky esse tipo de explicação para o problema da defectologia influencia também
o trabalho educacional de crianças com deficiências, pois como a percepção acerca destes alunos
é a de que eles são “menos capazes”, a prática tenderá a oferecer menos contribuindo para
reforçar esse imaginário, imaginário construído historicamente em uma formação social dada,
que norteia e sustenta a prática pedagógica. Ganha importância, então, uma compreensão do
discurso pedagógico, pelo lugar estratégico ocupado pela Escola.
Silva (2000 b), em sua tese de mestrado “Um lugar de visibilidade do sujeito
deficiente mental”, já mencionada nesta dissertação, ocupa-se do funcionamento enunciativo do

104
sujeito-instituição. Ela verifica como se constrói uma posição-sujeito através da denominação
"Secretaria de Educação Especial" do Ministério da Educação e do Desporto (SEESP), que se
apresenta como enunciadores originários do funcionamento das Escolas de Educação Especial.
Tais instituições se caracterizam, segundo Silva, por uma radical impessoalidade, cujos
enunciados, sustentados por um enunciador universal, dão ao acontecimento lingüístico o caráter
de verdade incontestável e de fixidez do dito. Quanto ao papel da escola em relação às crianças
deficientes, Barbosa (2000), também, trata em seu artigo, da questão da denominação, mostrando
a "deficiência" como um termo usado para pessoas que têm um modo de vida social, cultural,
drasticamente diferente daquele que é valorizado pela escola.
Silva, citando Orlandi (1996), neste mesmo trabalho, classifica o discurso pedagógico,
assim como o discurso jurídico, como autoritários. O discurso pedagógico, ao apresentar-se como
transmissor de informações, dá a estas um caráter de cientificidade, e funciona efetuando
designações e fixando definições, através da metalinguagem, em detrimento do conhecimento do
fato e do referente. O discurso pedagógico garante o dizer institucionalizado, o saber é assim
valorizado, legitimado; dizer é o mesmo que saber.
E a escola no caso da criança com SA, ou melhor, qual é o papel da escola na
formação do diagnóstico da criança com SA? Isso nos leva a pensar, novamente, que os critérios
apontados, atualmente, para o diagnóstico da Síndrome de Asperger, sejam, na verdade, reações
ao ambiente que a discrimina e/ou a desqualifica, uma vez que a escola apresenta um discurso
autoritário, um discurso onde há contenção da polissemia, do diferente. A polissemia faz parte do
jogo contraditório entre o mesmo e o diferente que estrutura o funcionamento da linguagem; a
polissemia é a possibilidade dos deslocamentos de sentidos, da produção de efeitos metafóricos,
da transferência de sentidos e da re-significação. Num discurso autoritário, como o pedagógico,
há um controle da polissemia, da ruptura, onde o sentido não pode ser outro, gerando, então, um
estranhamento, por exemplo, da fala, do comportamento dos SA: uma fala não-institucionalizada,
não-convencional, e que precisa ser diagnosticado pois foge e compromete a ordem social.
Lembro-me do texto de Foucault (1997), em que ele relata como a era Clássica começou a
organizar a loucura numa consciência médica, pois a loucura era apreendida, nessa época, como
desorganização familiar, desordem social, perigo para o Estado.
Por outro lado, vemos, sob o crivo teórico da AD, uma outra interpretação possível
para se compreender esse desvio da ordem social dominante. Pêcheux (1990), ao falar que todo

105
indivíduo só se faz sujeito quando interpelado pela ideologia, acrescenta que a interpelação
ideológica é como um ritual e como ritual está sujeita a falhas, a rupturas, daí a possibilidade do
discurso revolucionário. As resistências, segundo Pêcheux (1990), podem ser: não entender ou
entender errado, não “escutar” as ordens, falar sua língua como uma língua estrangeira que não se
domina, mudar, desviar ou alterar o sentido das palavras, tomar os enunciados ao pé-da-letra. E
fala ainda que através dessas quebras de fronteiras, dessas transgressões, uma série heterogênea
de efeitos individuais entra em ressonância e produz um acontecimento histórico, rompendo o
círculo da repetição mecânica e/ou formal.
Retomando Vygotsky, em seu tratado de Defectologia (1989), observo que ele faz
referências, também, porém em menor proporção, ao que ele chamou de "deficiência moral"
(moral insana), considerado um tipo especial de defeito orgânico ou enfermidade. Aquilo que se
tomou por um defeito orgânico ou uma enfermidade é um complexo sintomatológico da
disposição psicológica, peculiar de crianças socialmente desorientadas, é um fenômeno de ordem
psicológico, social, sociológico, e não biológico. Vygotsky definiu essas crianças como aquelas
que manifestam amoralidades e violam as normas morais gerais, como as menores prostitutas, as
crianças difíceis de educar, e acrescenta, ainda que esse nome, a insanidade moral, expressa a
loucura moral ou a demência. Aqui, mais uma vez, vemos as questões morais, os problemas de
conduta vinculados à loucura, assim como escreveu Foucault (1997). A sensibilidade antes
religiosa, na Idade Média, passa, na era Clássica, à sensibilidade moral, e/ou a ela se articula,
prevalecendo até hoje de forma marcante, principalmente na sociedade brasileira. O louco não era
mais aquele que vinha de outro mundo e precisava ser acolhido, mas um problema de polícia,
vindo daqui mesmo e por isso precisava ser excluído.
Em sua dissertação de mestrado, Silva (2000 b) faz referência ao discurso da moral,
que se legitima, cuidando para que os bons costumes sejam mantidos na/pela sociedade e,
portanto, revelando um funcionamento circular, repetitivo, com objetivo de manter o controle dos
sentidos para que esses não deslizem. Segundo a autora, no discurso médico não se tem sujeito,
se tem a deficiência. Já no discurso moral, tem-se o indivíduo com falta, mas funcionando como
se ela não existisse, porque a sociedade dela tomará conta ou o esforço individual a superará. O
não-sentido da deficiência é preenchido por esses dois discursos: o médico lhe dá o caráter
científico, dá-lhe um nome, uma explicação, enquanto o moral social diz como administrar esse
não-sentido para fazer sentido numa sociedade. “Ao preencher a falta com o sentido da moral, não se

106
faz trabalhar o não-sentido que a falta coloca para o sujeito afetado por ela e para os outros”. A sociedade
preenche o não-sentido por sentidos que lhe pareçam "confortáveis", administrando-os através da
moral ou da ciência.
Dentre as patologias citadas por Vygotsky em seu Tratado de Defectologia (1989),
poderíamos relacionar a Síndrome de Asperger com a insanidade moral, uma vez que os critérios
definidores de tal patologia, seriam os comportamentos que violam as regras morais, sociais, ou
seja, entendidos por nós como comportamentos não-convencionais, não-institucionais. É assim
que poderíamos classificar os déficits de interação, de linguagem, considerados pelo DSM IV
como determinantes da SA.
Vygotsky (1989) menciona, ainda, os trabalhos de Blonski, Zalkind e col. para
demonstrar que se deve buscar a causa da deficiência moral no meio, nas condições
socioeconômicas e cultural-pedagógicas nas quais o indivíduo foi criado e, não, no indivíduo,
fortalecendo as nossas hipóteses e conclusões. A criança deficiente moral é uma criança
“desorientada” no aspecto social e, não uma criança com uma deficiência orgânica inata.
Diríamos também que essa desorientação é produzida histórica e culturalmente. O Congresso
Alemão de Pedagogia Terapêutica, em 1922, foi para Vygotsky um marco na perspectiva de
recusar a concepção de insanidade moral como uma enfermidade. A insanidade moral não deve
ser entendida, pois, como deformação dos sentidos, defeito congênito da vontade ou deformidade
de algumas funções, mas deve ser encarada como uma deficiência da educação moral do
indivíduo.
No entanto, as considerações mais atuais acerca do diagnóstico da SA tentam buscar
na deficiência orgânica inata as explicações para o que eles consideram dificuldade das crianças
SA no uso das capacidades sociais. Tais concepções chegam a reconhecer que os indivíduos com
SA possuem o conhecimento de atribuir estados mentais aos outros, porém esses teóricos
acreditam que os SA tenham dificuldade de aplicar esses conhecimentos a vida real. Nesse
sentido, inferem a respeito de uma disfunção na região pré-frontal do cérebro como causa dessa
dificuldade. Com base na relação dialética entre indivíduo e sociedade proposto pela teoria de
Vygotsky e pela AD, consideraríamos que não se trata de disfunções orgânicas para justificar
uma falta, mas de uma a resistência do sujeito – SA em interagir em um meio que sustentado por
uma ideologia o coloca no lugar de sujeito-deficiente, de menos-capaz. Vygotsky diferencia o
desenvolvimento de uma função psicológica e o uso dessa função. Para ele o uso revela a

107
interiorização da função psicológica superior, é uma função auto-reguladora e está relacionada à
vontade. Portanto, vemos, pois, ainda, nos dias de hoje, a tendência da ciência, como já
afirmamos diversas vezes nesse trabalho, de buscar no indivíduo a explicação de padrões de
comportamentos diferenciados, que esses teóricos consideram “diminuídos”, apagando o fator
histórico-social, e porque não dizer político.
As teorias da Psicologia, segundo Vygotsky (1989), que procuravam entender o
indivíduo como um todo e não a partir de suas partes, sentiram a necessidade de entender a
criança na relação com o meio. Para nós é preciso atenção em uma leitura ao pé-da-letra de
Vygotsky, que ignorando as bases epistemológicas de sua teoria, pensa nessa relação indivíduo-
meio como mera oposição e não como contradição. Molozshavi, citado por Vygotsky (1989)
considera que se analisarmos de forma isolada as crianças com deficiência moral, encontraremos
características, como grosseria, negligência, egoísmo, observaremos que seus interesses tendem à
satisfação de necessidades elementares, que não são inteligentes, que têm pouca vivência e uma
sensibilidade reduzida diante de situações dolorosas. Essas propriedades formariam o caráter.
Mas num experimento em que o meio, as condições de produção fossem alteradas, essas
propriedades adquiriram outro aspecto: mais terno, amáveis, vivos e sociais. Molozshavi conclui
dizendo que a diminuição de sensibilidade da criança seria uma reação de auto-defesa contra as
influências patológicas do meio.
É importante observar que as palavras "grosseria", "negligência", "egoísmo", por
exemplo, produzem efeitos de sentidos pela relação entre o dito, o não-dito e o já-dito histórico,
bem como dizem respeito ao conflito e confrontos sociais e culturais. Trata-se de um imaginário
já construído em que as palavras "se apresentam" como tendo um único referente - evidência -
para um sujeito que ocupa determinada posição - evidência subjetiva. Trata-se de um efeito de
literalidade, apagando o político presente nas relações sociais de toda sociedade, evidenciando a
filiação aos discursos da moral, da religião.
Vygotsky se referiu, ainda, ao que ele denominou de Psicopatia ilusória ou aparente,
que não pode explicar a profunda inadaptabilidade social do indivíduo, mas produz um
imaginário que a faz constitutiva de uma formação social e que funciona ideológica e
politicamente. Os fatores sociológicos e psicológicos são tão importantes no desenvolvimento de
uma criança que muitas vezes podem produzir a ilusão de um defeito ou de uma enfermidade,

108
evidenciando que não estamos tratando de coisas empíricas, o que vem de encontro com o que
propomos para a re-siginificação do diagnóstico da SA.
A proposta de defectologia de Vygotsky (1989) tem, pois, como pressuposto que a
deficiência não é um sistema de defeitos. O desenvolvimento da criança deficiente é visto, pois,
como diferente e, não, como deficiente. Haveria uma variação qualitativa e não quantitativa. O
importante é conhecer a estrutura e o funcionamento internos do defeito. O seu trabalho, nessa
área, mereceu destaque, pois se ocupou de conhecer a gênese dos defeitos primários e identificou
no processo de desenvolvimento de crianças deficientes, sintomas secundários e terciários,
revelando com isso a compreensão acerca das particularidades da estrutura e funcionamento da
personalidade da criança anormal. Essa forma diferenciada de se entender o problema do
patológico se deve a uma concepção de desenvolvimento histórico-cultural, onde o histórico-
social, quer dizer, político, desempenha papel preponderante na formação das funções psíquicas
superiores.
Silva (2000 b) trabalha em sua dissertação o efeito ideológico do diferente,
analisando um funcionamento em que as formações discursivas, em que o sujeito se inscreve,
determinam o seu dizer, o que produz certos efeitos de sentido. Dizer que o deficiente é diferente
pode ser uma forma de mascarar o termo socialmente, porque como não é o sujeito que controla
os sentidos, o diferente, que não é igual ao normal, vai significar deficiente.
A concepção quantitativa do defeito está baseada, nunca é demais repetir, numa visão
de desenvolvimento como algo "natural", que o define como um crescimento quantitativo e como
um aumento das funções psicológicas e orgânicas que já estão pré-determinadas pelo biológico.
De acordo com esta perspectiva, a patologia seria uma limitação quantitativa desse
desenvolvimento.
A defectologia atual deve se basear numa concepção de desenvolvimento qualitativa,
onde desenvolvimento, segundo W. Stern, citado por Vygotsky (1989) seria “uma cadeia de
metamorfose”. A partir deste ponto de vista, o fator da singularidade do indivíduo passa a ter um
papel preponderante, pois a peculiaridade representaria um desenvolvimento qualitativamente
diferente e não de menos capaz. O desenvolvimento de crianças com problemas assumiria
características próprias, a criança deficiente atingiria o desenvolvimento de funções elementares
em funções superiores, porém por caminhos diferentes da criança normal. Trata-se, então, de um
trabalho complexo o de reconhecer a peculiaridade da criança com defeito, ou seja, o de

109
reconhecer a diferença e criar condições para que a criança possa atingir e desenvolver suas
funções superiores.

110
6. UMA OUTRA “ESCUTA” DAS FALAS DOS SUJEITOS COM
SÍNDROME DE ASPERGER

111
Percorremos todo este caminho para nos prepararmos para uma outra "escuta", ou
melhor, para criar condições para produzir uma outra "escuta" da fala de crianças que enunciam
da posição de sujeito-deficiente, e para produzir deslocamentos na própria posição-psicóloga que
possibilitassem essa "escuta".
Neste processo a Análise de Discurso deu a sua contribuição que, segundo Orlandi
(1999b), é a de:
"Problematizar as maneiras de ler, levar o sujeito falante ou leitor a se colocarem
questões sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da
linguagem. Perceber que não podemos não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos,
sua opacidade. Saber que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente
cotidiano dos signos. A entrada no simbólico é irremediável e permanente: estamos
comprometidos com os sentidos e o político. Não temos como não interpretar." (pág. 9)

Não temos como não interpretar. Isso significa que os enunciados da fala do sujeito
com SA já estão interpretados, sendo o nosso desafio compreender as interpretações ali
existentes, uma vez que diferentes formas de linguagem, com suas diferentes materialidades,
significam de modos distintos. Como dissemos ao longo de todo este trabalho, os sentidos não
são evidentes, fechados e prontos para serem utilizados, embora pareçam ser. A incompletude é
constitutiva da linguagem; e o sentido sempre pode ser outro, mas não qualquer um, porque há a
determinação. E é no lugar deste movimento que se dá o processo de estabilização e de
transformação. "O gesto de interpretação se dá porque o espaço simbólico é marcado pela incompletude,
pela relação com o silêncio. A interpretação é o vestígio do possível. É o lugar próprio da ideologia e é
'materializada' pela história." (Orlandi: 1996, pág.18)
Neste capítulo, traremos como objeto de reflexão e de análise, a prática clínica em que
são atendidas crianças com SA, em sessões de psicoterapia em grupo, tendo sido previamente
diagnosticadas por psiquiatras infantis, segundo os critérios preconizados pelo DSM IV
(APA,1995), amplamente questionados e analisados nesta dissertação. Observaremos
funcionando, pois, uma prática em que se articulam diferentes discursos - científico, moral,
religioso, jurídico, pedagógico -, produzindo efeitos de sentido e efeitos-sujeito.
A interpretação é sempre regida por condições de produção específicas que se
mostram como universais. Não se trata, pois, de contextualização da situação de atendimento,
mas de determinação histórica - e inconsciente - dos sentidos, que se naturaliza pela ideologia,
função da relação necessária entre a linguagem e o mundo. E o signo é uma unidade cultural ou

112
histórica, opaca, que pelo trabalho da ideologia torna-se transparente e ajuda a produzir a ilusão
de que podemos atravessá-lo e atingir o seu conteúdo.
As sessões foram realizadas no Centro de Formação de Psicólogos do Centro
Universitário de Brasília – CENFOR-UniCEUB, semanalmente, durante os meses de fevereiro a
novembro no ano de 2000 e nos meses de fevereiro a junho de 2001, sempre no período
vespertino, com duração de uma hora e meia cada sessão. Os atendimentos eram realizados em
sessões de grupo para observarmos os efeitos de sentido produzidos nos deslocamentos da
posição terapeuta-paciente para paciente-paciente.
O Programa de Atendimento Terapêutico é indicado pelos psiquiatras ou pela própria
escola, com objetivo de trabalhar os comportamentos considerados "inadequados" do sujeito com
SA e possibilitar, da melhor maneira possível, sua "adaptação" às situações sociais. Vemos, pois,
nos objetivos deste Programa manifestadas as relações existentes entre prática terapêutica e
prática social e política analisadas em diferentes momentos deste trabalho.
Com o decorrer de minha prática clínica, pude ir observando que as características, até
então, apresentadas como definidoras da síndrome, não caracterizavam as crianças com as quais
trabalhava, pois mudando as condições de produção as crianças com SA apresentavam outra
produção textual, deixando de apresentar as tais característica definidoras. Observava, também,
que os padrões de interação social e verbal das crianças com SA revelavam uma resistência em se
ajustarem às regras do jogo social e uma recusa de se responsabilizar pelo o que é dito,
produzindo assim efeitos de sentidos diferentes daqueles esperados numa concepção de
linguagem transparente, porém não significando sem sentido ou sentido errôneo.
Contudo, é importante destacar que em várias situações de atendimento, a terapeuta
reproduzia situações escolares, simulando um diálogo de perguntas e respostas, como que não
sujeito a falhas, para analisar as falas das crianças com SA nessas situações e contrapor com as
idéias que até então, eram hipóteses, de que a dificuldade de interação não estava no sujeito com
SA, mas entre sujeitos mediados por filiações discursivas em que se produziam sentidos-
representações sobre esse sujeito, reproduzindo discriminações e preconceitos, a menos-valia.
Passamos por diferentes momentos nesse percurso no que diz respeito ao lugar que
caberia ao discurso "do" sujeito com SA e ao modo de lê-lo, de analisá-lo, de compreender o
gesto de interpretação ali contido, tendo em vista o tempo que cada vez se tornava mais
implacável para a finalização do trabalho. Víamos, com ansiedade mesmo, a possibilidade de não

113
chegarmos a esse discurso e a fazer uma análise concludente do mesmo. Afinal, pensávamos,
tudo começara aí, sem nos darmos conta de que começara antes, em outro lugar,
independentemente. Uma decisão, contudo, foi se consolidando pouco a pouco: as falas dessas
crianças estariam presentes, elas teriam o seu espaço de circulação para produzirem os seus
efeitos de sentido na relação com o leitor virtual deste trabalho. Tratava-se não de dados
coletados, mas de fatos lingüísticos reclamando sentidos, acontecimentos discursivos - históricos
- reclamando interpretação. Valia a pena correr o risco da incompletude da análise.
As sessões aqui analisadas envolvem sete crianças diagnosticadas com Síndrome de
Asperger, uma terapeuta-supervisora e quatro co-terapeutas estagiárias. Trata-se, pois, de
relações entre sujeitos que ocupam lugares historicamente determinados. Vemos aí funcionando
uma rede hierarquizada de posições: do sujeito-deficiente em relação ao sujeito-terapeuta - a de
especialista e paciente - e a de sujeito-terapeuta em relação ao sujeito-estagiária - a de aluno e
professor, entrecruzando explicitamente o discurso terapêutico e o discurso pedagógico. Cada
uma dessas posições convoca todo um conjunto de representações, de formações imaginárias, que
articulam a produção de sentido. E os enunciados do sujeito com SA podem ser considerados
produto dessas condições que, tomamos como representativas da prática clínica dominante.
Gostaríamos de, inicialmente, trazer alguns dados empíricos sobre os sujeitos
envolvidos nessas situações de fala que possam ir configurando melhor essas formações
imaginárias em jogo na disputa de sentido. Não se trata, pois, de caracterizar as crianças como
dados a serem analisados, mas de compreender uma situação mediata de produção de linguagem
em que a interlocução se dá entre sujeitos, enquanto posições enunciativas, mediada por textos.
Esses dados de análise são discursos que são efeitos de sentido entre locutores. Sabemos não ser
possível separar sujeito e objeto, processo e produto - dados em si - em se tratando de linguagem,
de línguas, porque tem a história: do sujeito, do texto em todo processo de leitura. Neste
momento do trabalho, observei dois momentos paradoxais nessa construção de uma outra escuta,
revelando os conflitos e confrontos entre posições de sujeito: a do sujeito-analista e a do sujeito-
psicólogo, mostrados na busca de uma caracterização que não significasse um retorno a uma
visão naturalista dos fatos da língua a um objeto empírico a ser coletado como plantas, por
exemplo.
Mas vamos à descrição e à análise.

114
♦ LF é uma criança do sexo masculino, de 7 anos de idade, que cursava a 1a. série do ensino
fundamental, por ocasião dessas sessões; ele freqüentou o programa de atendimento
terapêutico em 1999 no período de fevereiro a novembro. Filho único, reside com seus
pais. Seu interesse especial é por eletricidade: desmonta aparelhos e brinquedos para
conhecer o funcionamento elétrico desses. Tem facilidade em decorar músicas, inclusive
estrangeiras. Apresenta comportamentos caracterizados como hiperativos e de déficit de
atenção, tais como agitação motora, falta de persistência nas atividades, dificuldades de
organizar tarefas, facilmente se distrai por motivos alheios à tarefa e é impulsivo. Gostaria
de salientar que tais comportamentos de LF. já haviam sido caracterizados antes de sua
entrada no programa. Observou-se, durante as sessões, que esses comportamentos taxados
de hiperativos apareciam em atividades que não eram de seu interesse e o que, muitas
vezes, era denominado de falta de atenção, era um interesse imenso de participar,
chegando mesmo a interromper a fala dos outros, uma necessidade de interagir, o que vai
contra aquilo pelo qual fora diagnosticado como portador de uma síndrome.

♦ T, sexo masculino, 10 anos, classe especial de condutas típicas de alfabetização. Vale a


pena definir o que é classe especial para compreendermos como o sistema institucional
está organizado de forma a reproduzir o sistema de classes de uma sociedade. A classe
especial é uma turma especial da Secretaria da Educação, funcionando em escolas classes,
composta por quatro alunos diagnosticados com Transtornos Invasivos de
Desenvolvimento e duas professoras. Os alunos são colocados em tais turmas por
apresentarem dificuldades ao freqüentarem as turmas do ensino regular, ou melhor, porque
as escolas têm dificuldades de mantê-los em tais turmas “regulares”. Freqüenta o programa
de atendimento terapêutico desde 1999. É o primeiro filho de dois, reside com seus pais e
o irmão. T não está alfabetizado, ou melhor, não lê o que lhe é apresentado em situação de
sala de aula ou de atendimento, porém lê todo e qualquer logotipo, rótulos ou marcas, os
quais representam seu principal interesse. Apresenta comportamentos de isolamento diante
de pessoas estranhas e mostra-se muito acanhado em situações sociais, como as de festas
escolares. É importante salientar aqui, também, que esses comportamentos considerados
como isolamento, ou até mesmo, como falta de interesse ou dificuldade de interação em
situações sociais, demonstram, ao meu ver, particularidades de personalidade de T., pois

115
ele se recusa a participar das atividades, porém assiste a tudo o que acontece, torce por
determinados colegas em situação de competição e demonstra satisfação por específicos
movimentos de balançar de mãos e braços. Gostaria de destacar, também, que T. não
apresenta tais comportamentos, que são chamados de isolamento e eu os denomino de
resistências, em situações de diálogos com seus pares, e em casa, principalmente com seu
irmão. A imitação é uma constante em sua fala e em seus comportamentos. Tal imitação
nos parece se relacionar ao que já mencionamos antes quanto ao plágio, uma forma de não
se responsabilizar pelo que é dito, utilizando a fala do outro para garantir a comunicação
esperada, aceitável.

♦ H, sexo masculino, 7 anos, cursa a 2a. série de ensino regular da Secretaria da Educação
(SE), freqüenta o programa de atendimento terapêutico desde de 1999. Filho único, reside
com os pais. Os profissionais da área consideram que H. apresenta boas habilidades para
um sujeito-SA, por apresentar-se sempre muito participativo. Diria que H. não resiste
muito às regras impostas pelo social e quando não aceita argumenta, questiona dentro dos
padrões esperados pela sociedade, ou seja, dentro de uma forma de comunicação
transparente. Porém, fica muito agitado e nervoso quando chamam sua atenção ou em
situações de conflitos, mesmas aquelas em que ele não está envolvido diretamente, o que
nos leva a pensar mais em um traço de personalidade, a história de situações vividas
anteriormente do que a uma característica da SA.

♦ M, sexo masculino, 10 anos, cursa a 4a. série de ensino regular, freqüenta o programa de
atendimento terapêutico desde de 1999. Apresenta grande interesse por eletrônica, diz que
será eletricista. Não executa as atividades escolares em sala de aula e por isso freqüenta
sala de recurso, que é definida por uma turma do Ensino Especial que presta atendimento a
nível de reforço, duas vezes por semana, para alunos portadores de necessidades especiais
– PNE (denominação da Secretaria de Educação) que estão integrados em turmas regulares
de ensino, porém que estão apresentando dificuldades nessa chamada “integração”, ou
melhor que estão desajustados, e essa sala de recurso tem como objetivo trabalhar sua
adaptação à escola. É interessante notar aqui a questão da desordem social, que segundo
Foucault, como já mencionamos, esteve sempre ligada a loucura, o que significa dizer que

116
ainda hoje o desajustado é aquele que não se enquadra às normas sociais e sem questionar
essas normas, é preciso segregá-lo para que lhe sejam ensinadas formas de conduta, de
convívio numa sociedade.

♦ E, sexo masculino, 9 anos, freqüenta o programa desde 1999, cursa a nível de 2a. série
classe especial de "integração inversa" que é uma turma da Secretaria da Educação
composta por seis alunos, sendo uma das crianças chamada de especial (neste caso,
portadora da Síndrome de Asperger) e as demais, sendo selecionadas em turmas regulares,
geralmente apresentando dificuldades de aprendizagem. O objetivo desta turma, conforma
a SE, é atender as necessidades da criança “especial” num ambiente onde ela possa estar
integrada com as crianças normais. Bom, aqui temos nessa denominação - integração
inversa - um efeito de sentido interessante, ou seja, existe realmente um padrão de
interação que é o correto, o ideal e quando as chamadas “crianças normais” são colocadas
em situação de convívio com aquele que é o “prejudicado”, o “transtornado”, denomina-se
esse processo de inverso. Então, o que temos aí é uma formação imaginária que o SA é o
excluído, a minoria, e por isso ele tem que ir atrás dessa interação, ele tem que se integrar
a essa sociedade. Daí, poderíamos interrogar: valeria a pena correr atrás de uma sociedade
que o destitui do lugar de sujeito? E. também, é uma criança considerada isolada por não
apresentar comportamentos espontâneos ou iniciativas de buscar o outro. Seu interesse
específico é por animais, possui uma gata da qual não se separa, todas suas atividades são
realizadas em companhia da gata, com exceção da escola e do atendimento terapêutico.
Segundo sua mãe, “E. é outra criança quando está com sua gata, parece que nem tem problemas,
conversa, brinca, faz tudo com ela.” Fica evidente nesta fala que os chamados “problemas”
que essa criança apresenta se referem àquele com quem ela está se relacionando e não a
dificuldades ou faltas.

♦ G, sexo masculino, de 11 anos, cursa a 4a. série de ensino regular da SE, freqüentou o
atendimento dos 7 aos 9 anos de idade, recebeu alta em 1998, e em fevereiro de 2001
retornou ao programa de atendimento terapêutico, por solicitação da mãe e indicação da
psiquiatra, por estar apresentando comportamentos hetero e auto-agressivos, agitação
motora, déficit de atenção, justificados pela mudança hormonal ocorrida na pré-

117
adolescência. A indicação de retornar a terapia se deveu ao fato de que na adolescência os
padrões de comportamentos dos sujeitos-SA pioram ou se agravam, como se a
adolescência não representasse um momento crítico para todas as pessoas.
Como podemos observar, na própria forma de caracterizar esses sujeitos há toda uma
remissão a sentidos cristalizados tornados naturais, evidentes, colocando em funcionamento um
imaginário que se produz, e reproduz, na relação entre práticas científicas e práticas sociais,
estando aí compreendidas as pedagógicas, as familiares e as terapêuticas.
Na análise do funcionamento discursivo dessas sessões, considerando o tempo
disponível para a realização desta dissertação, e os outros caminhos que tive de percorrer para
liberar uma outra escuta, optamos por trabalhar algumas categorias, referidas à Análise de
Discurso, e sustentadas pelo referencial da teoria de Vygotsky, que abrissem possibilidades de
pesquisas futuras, quais sejam as de "repetição", de "equívoco", de “autoria”, de “silêncio”.
Essas categorias permitiram estabelecer recortes nos dados coletados. Gostaríamos
de registrar, ainda, como esses dados foram coletados, dizendo desde logo que não
encaminhamos o nosso trabalho da perspectiva naturalista colhendo os dados da língua como os
de plantas e/ou de animais. Como se trata de nossa primeira incursão no mundo da pesquisa
científica, e os resultados de análise aqui apresentados valem mais como hipóteses de trabalhos
futuros, gostaria de ressaltar que não tratamos de certas questões como as da transcrição da fala
que coloca difíceis e complexas questões sobre a relação entre a oralidade e a escrita em uma
sociedade totalmente organizada e gerida pela letra.
Além disso, tivemos também escolhas quanto à forma de agrupamento dos dados
coletados, se por criança, se por sessão. Acabamos, nessa primeira abordagem, por optar por
transcrevê-los e analisá-los por sessão, por podermos, assim, o comportamento dessas crianças
com as terapeutas e com as outras crianças, considerando pois a rede discursiva que ali se
estabelecia, e mostrando os diferentes modos desse sujeito com SA se inscrever no texto: 1. como
locutor em que se representa como "eu"; 2. como enunciador, ou seja, a perspectiva que esse "eu"
constrói e 3. a função que o "eu" assume como autor de sua fala.
É importante relembrar que uma condição de produção, que diz respeito a todas as
sessões, mostrando a estreita relação entre discurso terapêutico e discurso pedagógico, e
religioso, e fazendo retornar já-ditos - históricos - diz respeito à metodologia adotada para o
estabelecimento do processo de interlocução: a de pergunta-resposta, própria da situação de sala

118
de aula e da catequese. É importante observar que há toda uma memória do dizer, em que se
constituem sujeito e sentidos, marcando desde sempre as relações entre sujeitos e reproduzindo
sentidos em que o sujeito-paciente - aluno e catecúmeno - busca adequar-se às imagens que tem
do outro, de si e do referente.
Não obstante, acreditamos - e queríamos - trazer essas falas como elementos
estruturantes dessa trajetória. Em negrito destaco algumas falas como relevantes para as
categorias que estão sendo trabalhadas. A terapeuta-supervisora indico como Tr e as terapeutas-
estagiárias por Tr1, Tr2, Tr3 e Tr4.

Serão meras Repetições?


SITUAÇÃO A:

Tr: pede a LF para se aproximar e sentar-se ao lado de T e próximo a ela, LF acata sem
questionar.
Tr: O que vamos fazer hoje?
LF: Desenhar o Cocolino. Cocolino, o guarda de trânsito.
Tr: Quem é esse? Onde você ouviu isso?
LF: Silêncio.
Tr: Vamos ouvir uma história. Vamos?
LF: Vamos.
Tr: Qual a história que vamos ouvir hoje?
LF: Cocolino.
LF e T permanecem sentados, enquanto a terapeuta escolhe os livros no armário. LF cantarola
uma música e T fica calado.
Tr: Vamos escolher.
T: (repete depois de algum tempo) Escolher.
LF Sai do lugar e vai ate o armário, vendo os livros na mão da terapeuta diz: Eu quero o Milho e o
Pássaro.
Tr Senta-se a frente deles com os livros na mão e diz :Tem três livros de história.
LF Olhando novamente para o que está na mão da Tr diz: Tem Banana, o bom de bola. Eu quero
o milho e o pássaro.
Tr Apresenta os livros para eles mostrando a capa e lendo os títulos: Esse é aqui é o milho e o
pássaro, esse aqui é o cavalo e a raposa, esse aqui é banana, o bom de bola.
LF: Eu quero banana, bom de bola.
Tr Questiona T que não se manifestou: Qual você quer, T?
LF Adianta-se e apontando para o livro Banana, bom de bola diz: Esse.
Tr : E você T?
T : Eu quero o milho.
Tr : Estamos entre esses dois aqui. E mostra os dois livros apontados por eles.
Tr: Qual a gente vai contar ?
LF: Banana.
Tr. Propõe par ou impar para decidir.

119
Tr: Você ganhou T, qual você quer?
T O Pássaro e o milho.(título do livro invertido)
Tr: Inicia a leitura do livro, mostrando as gravuras para eles.
LF: Logo após o término da leitura de O Milho e o Pássaro, diz: Eu quero Banana, bom de bola.
Tr: Depois eu conto, primeiro vamos ver quem sabe contar essa história que eu li?
LF Grita: EU. L.F. retira o livro da mão da terapeuta e começa a ler o que está escrito no
livro.
Tr: Insiste para que ele conte sem ler: Não é para ler é para contar. Mas LF. lê novamente.
Tr: pergunta: Para onde foi o pássaro?
L.F: O pássaro foi embora.(Mudando a entonação da voz, como se fosse o personagem, continua).
_ Suma daqui!
Tr : Essa história acabou, vocês querem ouvir outra?
LF: Banana, bom de bola.
LF Pede a terapeuta para ler a historia: Eu quero ler. A terapeuta concorda.
LF Leu esse trecho “A bola foi parar no meio do mato e ouviu-se um grito de dor.”
LF complementa gritando e rindo: Gooooooollll!
Tr Interrompe dizendo: É um grito de dor Ai . O que será que aconteceu?
T: Ele gritou um grito de gol.
Tr Explica que foi um grito de dor e não gol e questiona LF: Como é um grito de dor LF,quando
você sente dor, como é?
LF: Sente dor? Caiu no meio do mato. (texto do livro). Foi para cima.
Tr Insiste com a mesma pergunta e LF fica calado e T responde: _Ai.
Tr Dá os parabéns para T por ter acertado e continua lendo a historia.
Tr1:Lendo a última página da história enquanto L.F.fica lendo a contra-capa que está virada para
ele e interrompe dizendo:
LF: Depois eu vou querer dar a receita.
Tr: Não escuta e continua lendo. Ao final LF diz:
LF: Pronto. Agora eu vou querer ler dar receita.
Tr: Receita de quê?
LF: Receita bananas assadas.
Tr: Você gosta de banana assada? (Sem perceber que ele teria lido no livro).
L.F. É. E leve ao fogo até derreter.
Tr: Como derreter?
LF: A receita. A banana assada e até derreter.
Tr: Você gosta de bananas assadas? (ainda sem perceber que ele teria lido).
LF Pega o livro na página que está escrito a receita.
Tr questiona: Você leu aqui é? (mostrando o livro para ele).
L.F: Não.
Tr. Pergunta novamente e ele nega de novo.
Tr: Como faz banana assada?
LF: Banana assada? É para fazer.
Tr: Mas como faz banana assada?
L.F: Faz numa frigideira.
Tr: E depois?
L.F: Depois coloca no forno previamente até derreter.
Tr: E depois?
L.F: Tem que deixar ficar bem macio.

120
T Repete: Macio.
Tr: Explica a atividade seguinte
L.F. Repete: Banana bom de bola.
T Também repete: Banana, bom de bola.
T. Repete três vezes: Banana bom de bola.
L.F. Repete três vezes: Bumerangue (uma palavra que apareceu na história e a terapeuta já tinha
explicado o significado, pois ele disse que não sabia).

Podemos observar no funcionamento discursivo dessa sessão, diferentes modos que o


sujeito com SA participa do processo de inter-ação estabelecido e comandado pelas terapeutas
adotando, conforme já dissemos, o método catequético de pergunta e resposta em que há uma
preocupação em estabelecer uma relação unívoca entre as palavras e as coisas ou entre a palavra
e o referente. Face a essa relação homogeneizante e assimétrica que se põe para o sujeito com
SA, ele responde à mesma pela "repetição", pelo "silêncio", por responder outra coisa, por fingir
ignorar a pergunta, até mesmo pela ironia.
Observa-se, ainda, que essa repetição dá-se em relação ao referente, em relação à
ação, em relação à emoção, revelando o que Authier-Revuz (2000) chama de as não-
coincidências do dizer em que aquela heterogeneidade e dispersão constitutiva de todo dizer se
mostra:
"A heterogeneidade constitutiva do dizer, atravessada de maneira fundamental e
permanente pelo outro a quem ele se dirige (a), e o já dito dos outros discursos nos meios
dos quais ele se produz (b), heterogeneidade não localizável, irrepresentável,
desapropriando o enunciador de toda a solitária autoridade sobre seu dizer, toda forma de
heterogeneidade representada que comporte um como você diz, para falar como ele,
referindo as palavras 'não a mim' em meu dizer, participa de um traço de fronteira, de um
trabalho de constituição de identidade discursiva por diferença com o outro mostrado
como tal." (pág. 336)

SITUAÇÃO B:
Tr: Fala para guardarem os brinquedo.
LF: Resiste, permanecendo sentado brincando com a geladeira, o fogão e panelas. Em alguns
momentos repete falas de comerciais (prosódia diferenciada).
LF: Um programa favorito da televisão. Uma e meia passa Chaves. Tia, uma e meia passa
Chaves.
Tr: Você assiste?
LF: É de tarde.
Tr: De tarde?
LF: Uma hora passa Chapolim Colorado.
Tr: Você assiste isso, L F?
LF: Assisti. (Após algum tempo) “Dia oito, banda Fonte Nova”.
Tr: Onde é isso?

121
LF: “No central, central do forró”.
Tr: Banda Fonte Nova?
LF: É.
Tr: Então guarda os brinquedos.
LF permanece sentado brincando.
LF:Maria trás a vassoura, Maria trás a vassoura, Maria trás a vassoura, Maria trás a vassoura”.
Tr: Mas tá na hora da gente guardar.
LF:Eu vou assistir o programa favorito da televisão. “Chaves, Chaves, Chaves, todos atentos
olhando pra TV. Amigo Chaves, Chaves, Chaves com historinhas intrigantes pra se vê, zig, zig,
zig”.
H: Encontra-se sentado atrás de LF.Televisão.
Tr: Mas tá na hora de guardar, L F.
LF: Eu vou brincar aqui, tia.
Tr: A gente vai brincar de outra coisa.
H permanece sentado atrás de LF mexendo em um chocalho.
H: A gente vai brincar de outra coisa, né Simone?
LF: Eu não sei, tia.
Tr: Não sabe o quê?
LF: Não sabe brincar de outra coisa. Eu sabe brincar de cozinha.
H complementa a fala de LF.
H: Botijão de gás.
LF: “Você leva uma lavadoura Brastemp na faixa. Promoção na faixa, na faixa”.
Tr: Vem cá? O quê que é isso aí que vocês estão falando?
LF: As casas Bahia é uma loja.
Tr: Ah, agora eu entendi.
LF: As lojas do Mourão.
Tr: Lojas Bahia é as lojas do Mourão? Mesma coisa?
H entra na conversa e repete comerciais também.
H: “Olimpíadas 2000, oferecimento Zipnet. A maior cobertura do comitê olímpico brasileiro.
Intelig, de qualquer lugar para qualquer lugar.”
H e LF: “Disque 23”.
H: “Ar condicionado Brastemp: distribui ar por todos os lados”.
LF: “E Zipnet”.
H: Zipnet.
H: Bradesco.
H e LF: “Colocando você sempre a frente. E raider, raider é a cara do seu pé”.

A repetição de propagandas é um comportamento freqüente nos sujeitos com SA e por


isso trago uma reflexão que considero importante. A repetição aqui se dá em relação às
propagandas, à sociedade de consumo no que ela possa ter de homogeneizante, de coisificação do
homem, de apagamento da historicidade. Interessante observar que a repetição - uma outra - é
uma característica das propagandas: ela precisa ser dita reiteradamente. O sujeito com SA serve-
se , pois, de uma característica da propaganda para produzir a sua própria repetição, deslocando-
a, brincando com o lugar mesmo do apagamento do sujeito em uma sociedade de consumo.

122
Através das reflexões que a Análise de Discurso francesa (AD) faz em relação à
linguagem pode-se compreender melhor como os sentidos são produzidos nos discursos. A
linguagem é o efeito de sentidos entre locutores. “Os sentidos não são individuais e não derivam da
consciência dos interlocutores, são efeitos da troca de linguagem.” (Orlandi, 1988). Dessa forma
consideramos que os discursos dos portadores de SA possuem sentidos, porém demonstrariam
algo de diferente, como a repetição por exemplo, como marca de sua diferença e não como falha
de comunicação. Podemos notar através dos dois exemplos que LF. utiliza muito a repetição para
marcar seu desejo, tanto na situação A, para chamar atenção sobre aquilo que ele deseja, como na
situação B, para evitar o término da brincadeira.

SITUAÇÃO C:
Tr3 se dirige a T.
Tr3: E você, T? O que você vai desenhar?
T aponta para o desenho de H.
T: O avião do, do H.
Tr3: O avião do H?
T: É.
H se dirige a T.
H: Tu vai copiar do meu?
T bate o lápis no chão.
T: Vou.
H: Ora. Não pode copiar. Tem que inventar um, uma.
H olha o desenho de MV e volta para o seu próprio.
H: Vou desenhar o meu desenho preferido.
Tr2 se dirige a T, que permanece sem desenhar nada.
Tr2: Vamos, T? Desenha alguma coisa que você goste.
T desenha algo e aponta para seu desenho, olhando para Tr que já está de volta.
T: Esse aqui é, é eu.
Tr: Você?
T: É.
As crianças com SA teriam realmente dificuldades em estabelecer uma linguagem social?
Será que o que eles produzem não é também social? Não no sentido do imaginário
institucionalizado, mas produzindo sentidos outros. A repetição não seria também integração?
Isso fica muito evidente, principalmente para T., uma das crianças que mais apresenta repetição e
tem sempre uma participação muito tímida, sem iniciativa, é mais quieto e calado. No entanto,
parece ficar muito claro que T. utiliza-se da repetição para estabelecer contatos sociais, como na
situação C quando T. diz repetir o desenho do colega para buscar uma interação e quando esse
reclama, T. não só faz outro desenho como faz questão de mostrar para esse colega, o que ele fez

123
várias vezes até o final da sessão, chamando atenção de H. É importante destacar aqui que em
diversas situações de encontro com T., na maioria das vezes que a Tr. o interrogava (mais uma
vez aqui o modelo de pergunta-resposta, numa relação homogeneizante) T. utiliza-se da
repetição. No entanto, sua participação é diferente nos momentos de interação com seus pares,
tem iniciativas e espontaneidade. Temos informações, também, da mãe de T., que em casa suas
manifestações são dirigidas constantemente ao irmão de 7 anos, ao invés dos pais. Vejamos um
momento entre T. e H, onde observamos outra produção textual de T .
T: Tô aqui. Apontando para ele mesmo
H: Mas porque você não colocou?
T: Porque eu não quis.
H: Você está com medo?
T: Não tô com medo não.
H: Ou então você não quer aparecer no desenho?
T: Às vezes não, num quero aparecer no desenho.
H: Mas, mas eu vou aparecer. É claro.

Analisando os discursos apresentados dos portadores da Síndrome de Asperger


entendemos que a repetição tem, pois, sua especificidade e pode ser um lugar importante na
constituição desses sujeitos. Os portadores de Síndrome de Asperger parecem servir-se de uma
mera repetição empírica para produzirem seu dizer, eles não produzem seus dizeres a partir de
um outro, mas reproduzem a fala do outro. Eles parecem apropriar-se da palavra do outro para
que seu discurso produza sentido. Por possuírem uma excelente capacidade de memorização
(características da SA), reproduzam exatamente a fala do outro, porém dentro de um contexto que
produza sentido.
No processo de interlocução, pelos mecanismos de antecipação, o interlocutor busca,
deliberada ou involuntariamente, descobrir o que falar para o outro "para fazê-lo entender", "para
agradá-lo", mas que se materializar no dito, acaba por afirmar uma diferença. No caso do sujeito
com SA parece que a repetição produz esse efeito de sentido: toma-se a palavra do outro não para
se igualar, para ocupar o lugar do outro, mas para marcar a diferença pelo efeito de estranheza
que ela provoca. Autheir-Revuz (2000) diz que a "justaposição de duas nomeações na cadeia pode
tomar dois caminhos: (1) a partir de minha palavra eu vou na direção da sua, e seu avesso, (2) da sua
palavra eu volto sobre a minha". (pág. 338)
A repetição seria uma maneira de se fazer entender, de se parecer mais com o outro
para facilitar sua interação ou de marcar sua diferença como o outro?

124
O sujeito com SA parece estar sempre nesse jogo de ir e vir – de marcar sua diferença,
ao mesmo tempo, que resiste em se responsabilizar pelo que é dito. Neste ponto voltamos com
um questionamento, que já fizemos anteriormente, a respeito da considerada dificuldade de
linguagem do portador de SA, não como problemas de linguagem pragmática ou dificuldades de
atribuir estados mentais aos outros, mas na constituição da forma-sujeito autônomo e
responsável. Parece está aí a maior dificuldade do portador de SA, não se reconhecer como autor.
A repetição marcaria sua recusa em se automatizar, utilizando a fala do outro como garantia para
uma comunicação aceitável.
Não só a repetição caracterizaria essa resistência como também a própria negação em
assumir suas intenções ou sentimentos. Vejamos:
SITUAÇÃO D:
Tr: Isso. Então vai lá Biel. Quando é que você fica alegre?
G: Quando eu gosto de minha família, quando eu gosto de brigar.
Tr: Ah, você fica alegre quando briga
G: Não. Quando eu gosto de minha família.

SITUAÇÃO E
Tr: Você não tava falando de matar, por que você mudou de assunto?
M: É por causa que... (fica atirando com arma pra cima)
Tr: M, você tava falando pra mim de filme de matar, não foi?
M: hum, hum (confirma)
Tr: Depois você mudou de assunto pra fita, por que? Você viu o papel de fita ali, foi?
M: diz que não.
Tr: Porque você viu o papel da fita no cesto de lixo, né?
M: Não, eu tô falando de fita de som, e não de fita de filmadora.

SITUAÇÃO F:
H deitado no chão: eu tô nervoso já!
Tr: por que você está nervoso?
H: aa... porque sim!
H bate na caixa do jogo que está debaixo da cadeira.
Tr pergunta o que foi.
H: essa não amassou!
Tr: você quer amassar a caixa?
H: não!
H se levanta, bate na almofada: bolas!

SITUAÇÃO G:
Tr: você tinha medo de que?
T mexendo no tênis: de alguma coisa, assim...
Tr: que coisa?

125
T mexendo no tênis: um... um... uma... de qualquer coisa.

Alguns autores da área de saúde mental, com vimos no primeiro capítulo dessa
dissertação, colocam que os SA têm muita dificuldade na aplicação do conhecimento intuitivo no
cotidiano, com funções pragmáticas e quando fazem são por caminhos lentos e tortuosos. Ora o
que vemos nessas situações são exemplos claros de crianças que quando incomodadas, e portanto
têm percepção emocional de si próprio, apresentam comportamentos para os livrarem da situação
(função pragmática) ou negando ou mudando de assunto, sem que no entanto assumam
socialmente suas intenções. Poderiam ser esses caminhos considerados os tortuosos? Só porque
não “comunicam” ou melhor, não existe a transmissão de um sentido único. Temos aí, mais uma
vez, os SA não se responsabilizando pelo que dizem ou pelo que sentem. Que imaginário
teríamos aí, então?
Daí que entendemos que os SA assumiriam comportamentos de resistência em se
integrarem a uma sociedade, a uma formação ideológica que valoriza a homogeneidade e
discrima a diferença. Os sujeitos com SA teriam muita resistência em ajustar as regras pré-
estabelecidas, a um jogo social imposto por uma sociedade que ele sabe que não o aceita, ou
melhor diz que o aceita, criando alternativas, oferecendo tratamentos a esses indivíduos que se
recusam a obedecer a ordem social imposta e, por isso taxam seus padrões de comportamentos e
de linguagem como estranhos ou sem sentido.

Falta de relevância? Idiossincrasias? Mal-entendidos? Incoerências?

SITUAÇÃO H:
Tr: agora é o seguinte vamos escrever uma carta.
H: carta?
Passa algum tempo, pois a Tr. conversa com as crianças sobre Natal, Papai Noel ,etc...
H faz uma cara feia e diz:
H: que coisa, não vou fazer um desenho bem bonito.
Tr: antes de fazer o desenho vamos fazer uma carta para papai Noel, dizer o que a gente quer de
presente. E quando a gente for lá na outra semana, vai levar a carta e entregar na mão dele, entendeu,
então, vamos escrever.
Terapeuta fica dando instruções de como escrever a carta e as crianças quase não falam. Após o
término da carta.
Tr: agora vocês querem fazer um desenho?
H; vou fazer um desenho bem bonito do que eu vi.

126
H fica parado observando o colega.
Tr: não vai fazer o desenho não? (fala para H)
Tr: capricha no desenho.
M: eu vou fazer um cachorro que quero ganhar de Natal..
H: vou fazer um desenho do que eu vi.
H e M começam a desenhar, H fala enquanto desenha a fábrica da coca cola.
H: as latinhas da coca cola.
Tr1: você foi na fábrica da coca cola?
H: fui.
Tr1: quando você foi?
H: semana passada.
Tr: foi nada, foi na semana da criança.
H: acho que eu fui, em agosto. (estamos em novembro)
Enquanto H desenha narra
H: A toda hora que tiramos a garrafa que estiver fora para levarmos para o laboratório para
analisar se a coca está saindo da fabrica, as outras não param elas continuam rolando na esteira
rolante até serem embaladas em grupinhos então já podem ser embaladas e vendidas.

SITUAÇÃO I:
Tr: M, senta aqui, eu quero conversar um pouco com você sobre sua escola, como é que tá lá as
coisas?
M permanece em pé.
M: bom, tá bom lá.
Tr: Bom, e os deveres, tão sendo feitos?
M: (confirma)
T: Você tá fazendo os deveres M?
M confirma indo pra perto da bola, e fica mexendo com ela com o pé.
Tr: E as provas, tá fazendo?
M: Na divisão tira a prova.
Tr: Han?
M: Na divisão eu tiro prova.
Tr: Na divisão? Há, na divisão você tira a prova, é prova real que chama isso, não é?
M confirma
Tr: Só que não é dessa prova que eu tô falando, eu tô falando se você tá fazendo as provas que a
professora tá dando na sala.
M conversa andando pela sala.
Tr: Você lembra que quando você foi lá pro COMPP você não tava fazendo as tarefas de sala, as
atividades, e agora, como é que tá?
M: Só lá na escola tá bom, mas lá no COMPP não tá não, porque eu não gosto daquelas tias.
Tr: Que tias?
M: das tias que estuda comigo.
Tr: Aonde?
M: No COMPP. (brincando de atirar com a arma)

127
Como vimos no primeiro capítulo dessa dissertação vários teóricos falam a respeito da
falta de coerência da fala dos SA, dos mal-entendidos, das dificuldades de interpretação. Happé
(1994) chega mesmo a falar de uma dificuldade do cálculo de relevância nos sujeitos com SA,
eles não conseguiriam calcular o que era mais relevante, por isso mudam seu foco de atenção.
Seria mesmo uma dificuldade, ou uma tentativa de colocar o que deseja ou um desejo de se
esquivar da situação? Ora a AD teoriza que ao falarmos já promovemos um ato interpretativo,
pois nos filiamos a redes de sentidos que já existem. Essa idéia de mal-entendidos e incoerência
só cabe num esquema informacional, como se a comunicação fosse a transmissão de um sentido
único.
Os exemplos acima deixam, claro, sentidos outros que as crianças com SA queriam dizer.
Muitas vezes fica claro suas recusas em falar ou fazer o que está se pedindo a elas e então, de
uma maneira impositiva até, muda automaticamente de assunto, sem mesmo reclamar ao seu
interlocutor. Talvez por um imaginário que não seria atendida em suas vontades ou até mesmo
por uma ideologia que não se pode manifestar.
Tal discurso pode muitas vezes pode passar por desconexos, pela incapacidade, de como
afirmou Happé, dos SA em relevar as situações. Nesse momento gostaria de ressaltar a
capacidade de atenção global das crianças com SA. Uma hipótese que levantamos nesse trabalho,
e que poderá ser aprofundada posteriormente, que as crianças SA apresentariam uma
configuração psicológica superior diferente, apresentando dificuldades em passar da atenção
difusa para a seletiva. Esse aspecto da atenção pode estar também relacionado ao interesse dos
indivíduos SA, focalizando sua atenção ao que lhe é prazeroso.
Temos no lugar de falta de sentidos ou sentidos incoerentes, sentidos outros. Mais uma
vez, exemplos de situações que as crianças com SA transmitem suas mensagens sem no entanto
utilizarem o esquema informacional: emissor-mensagem-receptor. Por isso a AD foi tão
esclarecedora para compreendermos a linguagem dos SA. Fica evidente nas situações H e I. que
os meninos ali envolvidos estavam se recusando a fazer o que era solicitado ou mudando de
assunto sobre o qual não queria falar e , portanto, não poderíamos considerar falta de sentido.
Vimos até agora a importância das condições de produção, não só o contexto histórico,
ideológico, quando os sentidos são historicamente construídos, bem como o contexto de
produção dos enunciados. Quanto a este último, apesar de não ter havido mudança significativas
nas condições de produção, por ter sido usado um modelo catequético de diálogo com os sujeitos,

128
mas o próprio lugar de “terapia”, o imaginário que isso representa podemos notar mudanças na
produção dos SA nas sessões de atendimento, como expressões de sentimentos, relatos de
situações incômodas, iniciativas nas relações sociais. Vejamos:
SITUAÇÃO J
Tr: E você, M. Quando é que você fica alegre?
M: Só quando eu sou bem tratado.
Tr: E você, M? Quando é que você fica com raiva?
M: Eu fico bravo quando, quando eu sou maltratado e quando eu faço coisa errada.
M: As mi, eu só fico, eu só fico com raiva quando eu sou maltratado.
Tr se dirigiu a E.
Tr: E você, E? Quando é que você fica com raiva?
E: Quando pega nas minhas coisas, mexe na na minha no, nos outros bichos meu. Por isso me
dá raiva.
Tr: Você, E. O E tem saudade de quem, E?
E: Ah, da minha gatinha ____, ela morreu.
Tr: Ah, da gatinha dele que morreu.
Tr se dirigiu a H.
Tr: E você, H? Tem saudade de quem?
H: Eu, tenho saudades, eu tenho saudades do meu, quando eu ás vezes os alguém da minha
família viaja.
Tr: Ah, o seu pai, sua mãe.
H: O meu, o meu, o meu pai já viajou. Agora estou com saudades dele.
Tr2 se dirigiu a M.
Tr2: M, você sente amor por quem? Uma pessoa que você ama muito.
M: Só meu amigo.
Tr2: Você ama muito seu amigo? Quê amigo?
M: O Peterson.
Tr2: E você, H?
H: Eu amo meus pais.

SITUAÇÃO K:
H está sentado ao lado de LF. H fala se dirigindo a LF.
H: Hoje você está agitado.
Tr se dirige a LF.
Tr: O H disse que você estava agitado.
LF: Eu não tava.
H: Tava.
Tr fala com LF, e H joga um objeto na caixa. Tr se dirige a ele.
Tr: Você tá com raiva, H?
H: Um pouquinho.
Tr: De que você tá com raiva?
H se levanta e caminha pela sala.
H: Ah, eu gostei de tudo, ô. O meu compo, o meu comportamento foi muito ótimo.
H volta a se sentar.

129
H: Eu tô nervoso do comportamento do L F.
Tr: É isso que tá te perturbando?
H: É. Ele, ele ficou muito agitado. Muito e muito.
Tr: E te perturbou isso?
H: Pertuba.

Vimos nessas situações, ao contrário do que se diz sobre a Síndrome de Asperger, o


reconhecimento, por parte das crianças com SA, de seus próprios sentimentos e a facilidade em
expressá-los. Tal fato pode ser decorrente das condições de produção que estavam sendo
oferecidas, estavam entre seus pares e a terapeuta, num grupo terapêutico, onde se costumam
conversar a respeito de seus próprios sentimentos ou situações que geram tais sentimentos.
Condições muito diferentes daquelas encontradas na sociedade, um ambiente sustentado por um
imaginário construído por representações de deficientes determinadas historicamente.

130
7. CONCLUSÃO

131
Estaremos, agora, apresentando, de forma concludente, os resultados teóricos alcançados
por essa dissertação, decorrentes da análise discursiva sobre o diagnóstico da Síndrome de
Asperger e da analisa da linguagem dos sujeitos diagnosticados com a síndrome.
Analisar discursivamente a racionalidade científica dos diagnósticos psicológicos, não
significa negar sua utilidade nem sua história de formação. Contudo, me foi necessário evidenciar
a crise na Psicologia chamada de científica, no momento em que classifica indivíduo com rótulos
de normal e anormal e, pior, evidencia a expectativa e responsabilidade que essa ciência
absorveu, ao longo de todos esses anos (desde o seu surgimento), de uma sociedade que espera a
adaptação e adequação desses indivíduos, classificados como anormais, a uma prática ideológica
dominante. Diante de tal constatação, onde vi questionada a minha própria posição de psicóloga,
foi importante, para mim, voltar na história dessa ciência, promovendo alguns deslocamentos e
des-construções e entendendo criticamente o seu surgimento e suas formulações de conceitos.
Neste percurso, foi de grande relevância o referencial teórico e metodológico adotado por mim, a
Análise de Discurso, que me possibilitou entender o funcionamento da linguagem dos SA de
outra maneira. Uma outra relação que se fez necessário questionar foi a oposição entre normal e
anormal, e para isso tomei, dentre as teorias psicológicas, a noção de defectologia da Teoria de
Vygotsky como outro referencial teórico que pode sustentar o objetivo dessa dissertação em
trabalhar com esses conceitos numa relação de contradição e não de oposição.
A primeira constatação que fica evidente é a imprecisão e ambigüidade no diagnóstico da
Síndrome de Asperger, existem diferentes posicionamentos, diferentes critérios e nomenclaturas
diferenciadas que, no entanto, constituem-se em deslocamentos para a manutenção de
desigualdades. Existe um padrão determinado trazido pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de
Desordens Mentais, 4 ª edição, DSM IV (1995) considerado o oficial, e ao mesmo tempo, várias
pesquisas são realizadas na área questionando, reafirmando e, até negando alguns critérios, ali
adotados, sem que no entanto, sejam efetivas no sentido de reformular os diagnósticos descritos
por esse manual. Por que o caráter inabalável desse que parece ser o “livro sagrado das doenças
mentais”?
O que constatamos é que tanto a ciência médica quanto a psicológica produzem esforços
cada vez maiores no intuito de reunir sintomas e comportamentos da criança com SA para
padronizá-los em uma linguagem que eles pretendem ser universal. Como universalizar uma

132
linguagem? Sabemos, pela AD, que não nos apropriamos do objeto empírico, no caso a
linguagem, mas de sua exterioridade histórica e inconsciente, portanto é impossível sua
universalização. Dentro desta perspectiva empirista e racionalista dos manuais, espera-se que o
sujeito-psicólogo ou o sujeito-avaliador aproprie-se desse instrumento, conseguindo interpretá-lo
sem falhas da forma mais coerente possível, pois o conceito de comunicação aí adotado é um
esquema informacional, refere-se a transmissão de um sentido único, de modo que possa
enquadrar o seu avaliado num padrão reconhecido mundialmente. Ora, o que se tem de dinâmico,
o fato de se poder escolher entre um critério e outro? Isso não o torna mais individual, pois o
modelo categorial permanece.
Neste sentido que esse trabalho sob o referencial teórico da Análise de Discurso traz
contribuições para repensar a prática dos diagnósticos. Não nos apropriamos da linguagem,
objeto empírico, do DSM IV, mas de sua exterioridade, queremos dizer que é importante analisar
a formação discursiva deste manual, isto é, aquilo que está sendo dito a partir de uma posição
dada em uma conjuntura sócio-histórica determinada. Não existe um discurso científico “puro”,
sem ligação com a ideologia. Precisamos reconhecer o que estamos fazendo quando
diagnosticamos doentes mentais, estaríamos contribuindo realmente com o desenvolvimento
desses indivíduos ou com a manutenção de uma ordem social? Durante toda leitura deste trabalho
encontramos várias referências do tratamento do “doente”, do “transtornado” mental ligado à
razão social, o que parece que permanece até hoje. Não quero apagar a função do diagnóstico na
Psicologia, mas redefinir seu papel, não pode ser o começo e o fim de nossa prática, nem a coisa
mais importante que temos a fazer. O que importa é conhecermos como se constitui o nosso
paciente, o lugar social que lhe foi imposto e, a partir daí, trabalharmos na compreensão deste
sujeito por parte da sociedade, fortalecemos aspectos de seu desenvolvimento e não na
eliminação de suas diferenças.
Vimos como a Síndrome de Asperger levou muito tempo para ser reconhecida pela
comunidade científica. Então, porque esses indivíduos que eram, até pouco tempo, vistos como
estranhos ou até mesmo, diferentes, precisam, agora, ser classificados como transtornado mental?
O que isso acrescentou ao desenvolvimento desses indivíduos? Os sujeitos são os mesmos, o que
mudou foi a prática política, da qual a prática técnica está submissa. Classificarmos, ou melhor,
colocarmos rótulos, avalizados pela medicina, nos indivíduos, auxilia a organização da sociedade,
justifica a oposição entre produtivos e improdutivos.

133
Outro fator que nos surpreendeu na revisão bibliográfica dessa dissertação foi a
constatação de que vários trabalhos estão sendo desenvolvidos na área, trabalhos importantes,
com reconhecimento internacional, atuais, porém, em sua grande maioria, voltadas para a questão
do diagnóstico. O principal objetivo dessas pesquisas é definir e tornar o mais preciso possível a
identificação da síndrome. E quando se falam a respeito do trabalho com o sujeito com SA
aparece em forma de tratamento, tratar o quê, a “estranheza”? Identificamos inclusive alguns
autores mais recentes que chegam a se referir à estrutura da mente do SA como diferente e não
patológica, mas falam de manobras compensatórias que esses indivíduos realizam com muito
sofrimento para se adaptarem ao mundo, e não são mecanismos de defesa. Ora, o termo
compensatório já traz a idéia de prejuízo, de perda, para compensar preciso “ser” a menos. Temos
aí, um exemplo, do efeito ideológico da diferença que tem como objetivo mascarar o termo
socialmente. De um lado, fala-se da necessidade de adaptação dos SA e por outro, um mecanismo
que não é de defesa. Temos, então, um indivíduo que precisa se esforçar para parecer o mais
igualitário possível à sociedade e um sujeito diante de um social, que por não oferecer perigos,
não tem do que se defender.
Essa análise do diagnóstico na Psicologia nos faz concluir que essa ciência trabalha com
os conceitos indivíduo x sociedade, normal x anormal numa relação de oposição. Como nos
referimos no decorrer desta dissertação, que na língua não tem positividades, só se é “normal”
porque tem um “anormal”, porém essa é uma relação de contradição, os sentidos existem na
relação, na diferença, enquanto a Psicologia trabalha como oposição, o que traz a idéia de mais e
menos, de melhor e pior. Isso explica também a prática terapêutica com as crianças com SA,
numa relação de oposição que se busca superar a deficiência, os déficits, precisa-se eliminar um
(anormal) para se tornar o outro (normal). Propomos, aqui, uma mudança nessa prática, no
momento, que passamos a trabalhar com a relação de contradição, ou seja, o que se busca é a
compreensão do que faz a diferença, conhecer como se constitui esse sujeito com SA e o papel
social que ele ocupa.
Como a linguagem era o aspecto de desenvolvimento que me causava maior inquietação,
fui buscar na Análise de Discurso, o referencial teórico e metodológico para analisar a fala dos
sujeitos com os quais trabalhei.
As leituras nesse campo teórico me possibilitaram deslocar a noção de erro, déficits e
prejuízos na área da linguagem. A linguagem serve para comunicar e não-comunicar, é uma ação

134
que constitui identidades. Para subjetivar-se o sujeito se submete a uma língua que tem um
funcionamento próprio e que já significa, isso não significa que ele tem que se sujeitar à língua,
tornar-se dependente dela, ao contrário a entrada do indivíduo no simbólico vai se dá de formas
diferentes, pois ele vai se inscrever em determinadas formações discursivas que na verdade se
referem a determinadas filiações ideológicas. Pude, então, perceber que através da análise
discursiva dos SA que esses sujeitos se constituíam de forma diferenciada e produziam sentidos
em determinadas condições. Essas condições se referem não só ao contexto de produção dos
enunciados, como também às ideologias, ao contexto histórico onde os sentidos são construídos.
Ainda nessa tentativa de compreender a constituição do sujeito com SA, fui buscar
respaldo na noção de defectologia de Vygotsky, por ser uma teoria psicológica que trabalha com
a relação dialética entre normal e anormal, entre indivíduo e sociedade numa perspectiva
analítico-histórica.
Essa perspectiva analítico-histórica de Vygotsky nos levou a chegar a algumas conclusões
a respeito do homem-concreto com Síndrome de Asperger. No entanto, como o começo dessa
dissertação sobre os questionamentos do diagnóstico me levou a realizar um exaustivo trabalho
de re-significação da história da Psicologia e do próprio papel de psicólogo, por questão de tempo
e por se tratar de uma tese de mestrado, não me foi possível estender no conhecimento a cerca do
desenvolvimento psicológico-cultural do sujeito com SA, numa análise profunda sobre sua
estrutura interfuncional. Cabendo nos limites dessa dissertação questionar o conceito de
defectologia para o sujeito com SA e levantar algumas hipóteses a cerca dessa dinâmica
interfuncional, deixando para a tese de doutorado a comprovação destas.
Os critérios apontados como definidores do DSM IV não nos permitem enquadrar a
Síndrome de Asperger nas noções de defectologia de Vygotsky, pois as características ali
apontadas já seriam efeitos secundários de algum defeito. Algumas pesquisas da área inferem
acerca de uma disfunção neurológica no SA, pois consideram que essas pessoas teriam
dificuldades na função executiva. Segundo esses autores, os indivíduos SA por apresentarem boa
habilidade cognitiva, conseguiriam contornar sua falta de pensamento intuitivo e se sairiam bem
nos testes de meta-representação requerida nos padrões sociais, ou, na capacidade de atribuir
estados mentais aos outros, porém não conseguiriam fazer uso dessa capacidade, tendo
dificuldades para aplicarem tal conhecimento na vida cotidiana, o que resultaria nos déficits de
interação social e de linguagem.

135
Tal afirmação é por mim questionada, pois tomando como referencial a teoria de
Vygotsky, o uso de uma habilidade está associado ao processo de auto-regulação da pessoa, a sua
vontade, já é uma função interiorizada. Segundo Vygotsky, as funções elementares, através da
mediação sócio-cultural são reestruturadas em funções superiores e passam a ser controladas por
essas. Estabelece-se uma série de relações interfuncionais cerebrais que forma o sistema
psicológico típico do ser humano e está baseado no modo culturalmente construído de ordenar o
real. A mediação social torna possível as ações psicológicas voluntárias, intencionais,
controladas pelo próprio indivíduo.
Tais informações nos levam a pensar a constituição do SA da seguinte forma:

1) O comportamento social dos SA compõe o seu funcionamento psicológico que


é formado pela mediação com a cultura e com o social. Então, o uso dessas
habilidades sociais não estaria relacionado com déficits ou alguma disfunção
neurológica, pois essa função já estaria interiorizada, o seu uso se refere a
vontade. Então, teríamos um comportamento intencional dos SA demonstrando
sim resistência nessa interação e não transtorno. Podemos considerar que essa
resistência seja decorrente de uma interação que já é marcada por uma
sociedade que não sabe lidar com a diversidade.

2) A resistência no comportamento dos SA é facilmente percebida na mudança das


condições de produção. Pudemos demonstrar nessa dissertação que em
situações de vínculo e confiança a criança com SA pode apresentar
comportamentos muito diferentes daqueles descritos pelos manuais
diagnósticos. Em ambientes onde esses indivíduos estabelecem vínculos
afetivos e de confiança essa resistência de interação aparece diminuída, o que
nos leva a concluir que a resistência do comportamento social das crianças com
SA revela suas formações imaginárias. Isto é, o indivíduo com SA reage a uma
sociedade que o discrima e lhe impõe um rótulo de transtornado mental, então,
ele age de acordo como o sistema ideológico dominante (sociedade) espera.

3) O que marcaria a diferença no funcionamento psicológico do SA? Não


concordamos com a afirmação de que o déficit de interação e de habilidades
sociais marcaria a Síndrome de Asperger que como vimos seria uma
conseqüência e reação a uma sociedade que o classifica. Por que essa sociedade

136
rotula o SA, não teria aí uma diferença demonstrada pelo sujeito com SA?
Podemos pensar, a título de hipóteses, pois este não compôs o objetivo deste
trabalho, que a diferença do indivíduo com SA estaria nas funções
neuropsicológicas. Talvez uma dificuldade na função psicológica da atenção.
Os indivíduos com SA teriam uma dificuldade na atenção dirigida, o que
acarretaria, talvez, um hiper-desenvolvimento da memória. Tais colocações
necessitam de um estudo mais aprofundado, numa tese de doutorado, por
exemplo.
Diante de tais constatações, um estudo acerca das práticas terapêuticas e das educacionais
em relação ao sujeito com SA se faz necessário. Como vimos o comportamento do SA é
decorrente do vinculo estabelecido com ele e com o ambiente social, portanto, a mudança de
paradigma profissional das pessoas que trabalham com sujeitos com SA se torna de extrema
importância no desenvolvimento desses indivíduos. Não podemos querer promover o
desenvolvimento desses se continuarmos nos preocupando em aperfeiçoar cada vez mais o
diagnóstico da SA, procurar utilizar uma linguagem universal para caracterizar cada vez mais os
indivíduos “estranhos”. O que precisamos é conhecer como esse individuo se constitui e que
sentidos outros ele está produzindo, a que formações ideológicas estão se referindo em suas
formações discursivas.

137
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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