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A pedagogia da dor

Antonio Carlos Secchin


A obra de Augusto dos Anjos tem-se constituído num dos mais persistentes desafios
aos estudiosos de nossa literatura. Seu caráter personalíssimo acabou propiciando
abordagens que, muitas vezes, não levaram na devida conta a especificidade da matéria
poética, descambando para abstrusas tentativas de “compreensão” da psicologia (ou
“patologia”) do autor. Em meio a esse precário panorama crítico, as exceções,
felizmente, começaram a avolumar-se. Sem esquecer os estudos pioneiros de Cavalcânti
Proença e de Antônio Houaiss, destacaram-se, recentemente, as reavaliações
empreendidas por Ferreira Gullar (” Augusto dos Anjos ou a vida e morte nordestina”,
prefácio a toda poesia, Paz e Terra, 1976), Lúcia Helena ( A cosmo-agonia de Augusto
dos Anjos, Tempo Brasileiro, 1977) e Sérgio Martagão Gesteira (Na urbe natal do
desconsolo – tese de doutoramento na Faculdade de Letras da UFRJ, 1989, ainda
inédita). A estes trabalhos de primeira linha vem juntar-se o novo livro de Chico Viana,
a quem já devemos Travessia do mosteiro (Edições Tagore, 19920), uma lúcida
interpretação da autobiografia em Antonio Carlos Villaça
O evangelho da podridão revela, de modo cabal, o alto nível que a crítica universitária
pode atingir, quando exercida por profissionais que saibam aliar sutileza e erudição. É o
caso de Chico Viana: seu texto, sem dúvida, se tornará referência obrigatória para os
leitores e exegetas da poesia de Augusto. O livro demonstra com quanto
estilhaçamentos o poeta busca construir sua precária utopia do uno, com seus “eus” se
faz um Eu. Sob a marca da primeira pessoa do singular oculta-se um sujeito plural,
espécie de porta-voz das dúvidas atávicas da humanidade, e oscilante entre a
consciência culposa e um desejo de superação, isto é, entre a perpetuação do
sofrimento e a miragem de uma nova ordem que poria termo à dor e à vivência
dilemática da melancolia que a prolonga.
É vasta e ambiciosa a travessia a que nos convida Chico Viana. A partir de um seguro
mapeamento do conceito de melancolia, de Hipócrates a Freud, o ensaísta assinala com
precisão as oporias de Augusto na busca de uma unidade perdida, fadada a priori ao
fracasso devido à instalação, no falante, de um vazio correlato á perda de um objeto de
desejo, esvaído na origem. A melancolia não dialetizada pelo “crime” de tal perda
transforma-se em culpa. Como o objeto primordial permanece para sempre inatingível,
a culpa jamais se expia: “crime” tão perfeito que o suposto assassino, a rigor, acaba
assumindo o papel de vítima, na impossibilidade de se localizar um “cadáver” ausente.
Só resta ao acusado, então, confessar-se por outros corpos, substitutos, condenando-se
ao remorso pelo que não houve, ou, antes, pelo não que houve.
Com grande acuidade, Chico Viana localiza nas formas dos textos as inscrições dos
impasses do poeta, fugindo às armadilhas de um conteudismo explícito que, muitas
vezes, é desdito pela rede dos significantes. Um mesmo rigor se manifesta, seja nas
criteriosas excursões à teoria freudiana, seja nas incursões aos poemas; aquelas, longe
os mecanismos de produção de sentidos, de reduzirem o objeto estético á condição de
“exemplo”, servem como fundamentação de assédio a algumas zonas mais obscuras do
discurso poético. O leitor irá seguidamente deparar-se com análises atentas e
meticulosas, comprometidas com um eixo de encadeamento lógico frente á aparente
dispersão do cosmo de Augusto, num trabalho interpretativo que tenta (e consegue) dar
a ver os mecanismos de produção de sentidos, ora num único texto, ora na conexão de
pontos afastados na enunciação dos poemas e que se tomam subitamente iluminados
pela inteligência crítica a descobrir- lhes insuspeitas afinidades. Esta poesia, angustiosa
e augusta em seu caráter ético de indagação dos desígnios e desvios humanos, encontra
agora em Chico Viana um de seus mais sensíveis e competentes interpretes.

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