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Uma introdução ao barroquismo de Glauber Rocha:

o espaço ambíguo de Terra em transe


Introdución au barroquismo de Glauber Rocha:
I'espace ambigu de Terra em transe
Rubens Machado Jr.
Professor do Departamento de Cinema, Televisão e Rádio da Escola de Comunicações e Artes da USP
E-mail: noar@usp.br

Resumo
Procuramos interpretar o filme Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, indicando nas soluções formais de
algumas de suas seqüências o encontro de tradições estéticas brasileiras com elementos de uma certa
imaginação dialética de inspiração sartreana e marxista. Mediante análise imanente interessada nas leis de
unidade da obra, testamos determinados conceitos, como o de barroquismo (proveniente da teoria da arte,
história da arquitetura e das artes plásticas) e o de ambigüidade (advindo da fenomenologia e da filosofia
existencialista engajada).
Palavras-chave: análisefílmica,estética brasileiras, dialética.

Em estudos sobre a obra do cineasta Glauber não só que ele tenha admirado
Jean-Luc Godard, o ensaísta francês Sartre, mas também que via com bons
Marc Cerisuelo faz uma aproximáção olhos a arte barroca presente nas
entre certos aspectos da poética tradições latino-americanas. Tentaremos
godardiána e o quiasmo, figura de conceituar algumas soluções estilísticas
retórica cara a uma linhagem de filósofos, do cineasta, analisando-as como
incluindo Karl Marx. Vinda do grego dialética de imagens, em conformidade
chiasmós, "ação de dispor em cruz", tal à vocação barroca, tal como apontada
figura de estilo repete os termos, por Theodor W. Adorno, seguindo uma
invertendo-os: — "Devemos comer para sugestão de Alois Riegl 1 . Trata-se, de
viver e não viver para comer". um certo modo muito particular, de
Entretanto não passa despercebido a refletir sobre a condição de Glauber
Cerisuelo o predomínio da matriz Rocha como um pensador de esquerda.
verbal sobre aquela plástica ou mais Creio que é possível igualmente falar de
decididamente visual nos chiasmes de um Glauber pensador de direita, mas
Godard. Já na obra de Glauber Rocha não com a mesma consistência.
podemos pensar numa inversão desse Sobretudo se analisamos os seus filmes
acento. Sobretudo nos anos 1960, que e não alguns de seus textos ou
viram um efetivo diálogo entre os dois declarações, ou seja, se tomarmos o
cineastas, do mesmo modo que viram cineasta, e não momentos do articulista
as conversões em película, mais ou e ideólogo; o legado do artista, e não o
menos aceitáveis, de uma tonitruante do líder discursador e organizador em
"Estética da Fome" (1965). Concebido gestos isolados.
pouco após a redação desse manifesto, Glauber Rocha morreu cedo, aos 42
o filme Terra em transe (1967) seria o anos, em 1981. Mas com os seus filmes
momento privilegiado para que aquelas e a sua personalidade marcou época no
idéias sofressem uma determinada país, ganhando projeção internacional.
conversão estilística. Tornou-se referência constante até os
Procuraremos indicar nas soluções dias de hoje na cultura brasileira.
formais de algumas seqüências do filme Entretanto continua sendo cada vez
o encontro de tradições estéticas menos visto, sobretudo pelas novas
'Adorno, TheodorW."Abuso dei Barocco" brasileiras com elementos de uma certa gerações. Como compreender a posição
(1966), Parvaffsthetica.Milão: Feitrineili, imaginação dialética de inspiração ocupada por Glauber no quadro atual
1979, p. 136. sartreana e marxista. Sabemos de do cinema brasileiro? Uns torcem o

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nariz para o que seria um gênio datado,
pertencente a uma época afinal muito
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diferente da nossa, distante lá nos ano
1960, com o esquecido fervilhar das suas
utopias. Outros continuam no timbre
próximo daqueles que foram os seus
contemporâneos, reconhecendo sempre
um talento maior do cinema no país e u n i 11111111 ii i ii 111
o grande artista que o Brasil moderno
pôde gerar. Entre estes, os próprios dos que partiam dos sucessos populares
colegas do Cinema Novo, que renovam do rádio, como na comédia musical dos
homenagens com prazer e entusiasmo. tempos da chanchada, ou mesmo como
O recente documentário de Silvio os cinemanovistas, que ao menos
Tendler, Glauber, O Filme — Labirinto conseguem abrir um diálogo com a
do Brasil (2003), cobre muito bem esse parcela mais informada e cultivada do
testemunho dos colaboradores mais público.
próximos; é até lamentável que se Glauber e os seus companheiros do
restrinja tanto a essa proximidade mais Cinema Novo se levantaram exatamente
solidária. Poderíamos dizer algo contra essa importação "colonizada" de
semelhante de Rocha que voa (2002), modelos cinematográficos, propondo
belo tributo de seu filho Érik Rocha, uma revolução na sua linguagem que
que, contudo, em sua linguagem mais aproximasse o filme do modo de ser
experimental, se aproxima da inquietude local, seus gestos, sua fala — um pouco
poética do pai. como o fizeram, já nos anos 1920, os
Num lado contrário, o nossos modernistas, na literatura e nas
questionamento que se ouve por aí do artes. O Cinema Novo, defeto,inventou
cinema glauberiano tem sido em geral no país um cinema moderno. É claro:
levantado, ainda que timidamente, por não por ser contra a importação de
alguns dos novos talentos surgidos a modelos, mas pela radical aclimatação
partir dos anos 1980, interessados num de todo modelo às nossas condições.
cinema de grande público, como seria Esse cinema, mesmo que difícil para os
o caso de Fernando Meirelles (diretor padrões do mercado, era criativo ao
de Cidade de Deus, 2002) ou de Laís aproximar o seu estilo ao modo mais
Bodanzky (Bicho de sete cabeças, 2000). concreto pelo qual os brasileiros (ou uma
A verdade é que a maior "parte dos que parte deles) se viam e se exprimiam ao
se interessam por cinema no país — e, discutir os seus problemas políticos e
claro, conhecem minimamente a sua existenciais. Glauber é considerado, com
história —, costuma reconhecer razão, o que mais se aprofundou nessa
Glauber numa posição máxima, pesquisa cinemanovista e mais longe levou
correspondente à sua fama. Mesmo os a descoberta de uma maneira própria de
que se opõem chegam a conceder sobre investigar as grandes contradições da vida
o seu talento, deixando a reprovação por brasileira. Hoje em dia, boa parte da
conta da relação que seus filmes tinham polêmica da crítica em torno do atual
com o público em geral e, mais sucesso do cinema brasileiro está na
especificamente, o mau exemplo por ele questão do seu esquecimento das maiores
dado na eterna luta travada no cinema conquistas modernas em nosso passado
nacional pela conquista de público. Essa recente, ao adaptar fórmulas do padrão
discussão parece não acabar nunca, pois, industrial mais "eficaz" ou "apelativo".
em geral, os que querem imitar os As novas gerações devem, antes de
modelos consagrados internacional- mais nada, descobrir esse cinema mais
mente acabam fazendo, com raras radical que já fizemos e usá-lo na
exceções durante todo o século, um avaliação do que está surgindo de bom.
cinema sem a originalidade e a eficácia Para que possamos discutir as nossas
da indústria estrangeira. E acaba não melhores tradições cinematográficas e o
ampliando público algum, ao contrário seu atual abandono (ou não...), é preciso

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estudar as suas relações históricas com originalmente, não é senão a sua
cada público que conquistou. Mas isso dimensão alegórica que consegue nos
pressupõe o estudo de seu estilo, de sua dizer do seu significado histórico,
linguagem. Senão tudo fica muito relativo ao espírito do aguerrimento
abstrato. É necessário saber, no caso da nobre em face da ascensão burguesa que
chanchada, como funcionavam de fato a época testemunhava.
as suas conhecidas paródias; no Cinema A linguagem do cinema comporta
Novo, o que seria essa novidade do seu diversos níveis e elementos: parâmetros
realismo crítico, e assim por diante. O de som, imagem e ritmo envolvem a
estilo alegórico está entre as consideração de diálogos, personagem,
características mais comentadas na obra trilha sonora, cenário, movimentos de
de Glauber, sobretudo depois da câmera etc. Glauber faz um uso singular
publicação do livro fundamental de desses parâmetros, em termos alegóricos.
Ismail Xavier, Alegorias do As alegorias glauberianas possuem uma
subdesenvolvimento (1993) 2 . Alegoria no força contundente, são singularmente
Brasil sempre nos lembra a linguagem provocativas. Em Deus e o diabo na terra
do Carnaval. Uma "alegoria de mão", do sol, o personagem de Corisco, feito por
por exemplo, é um objeto qualquer que, Othon Bastos, não representa apenas o
empunhado, faz alusão ao universo conhecido cangaceiro. Muito mais que o
representado pela fantasia do personagem histórico, com as suas
carnavalesco. características individuais, biográficas,
Nas artes, porém, tradições que psicológicas, esse cangaceiro faz uma
remontam ao Barroco ou à Idade Média alegoria da rebeldia popular, enfrentando
trouxeram a noção de alegoria como um o seu destino, isto é, as suas limitações
tipo de expressão um tanto diferente do históricas. Pela interpretação do ator, pelos
que se entende normalmente por diálogos e pela encenação, nos sentimos
símbolo. O símbolo tem um código ora diante de Corisco, ora diante do
mais preciso e significa claramente companheiro ausente Lampião, com
alguma coisa estabelecida numa cultura. quem parece às vezes discutir, e em outras
Exemplo: a cruz simboliza Cristo. Já a "incorporar", como se o encarnasse de
alegoria surge para exprimir situações repente, sem avisar-nos. Passa de um
mais complexas, envolvendo registro a outro, mais afoito e
experiências mais singulares de pessoas temperamental no Corisco, mais sereno
ou sociedades. Exemplo: em Terra em e sentencioso no Lampião. De fato,
transe, a história se passa em Eldorado, acabamos nos sentindo diante de uma
país imaginário, que pode significar (e figura que estranhamos, mas
de fato tem tudo a ver com) o Brasil, compreendemos como performance que
mas bem poderia ser qualquer outro país dá voz à condição da rebeldia popular.
latino-americano. Eldorado é uma A alegoria não tem a clareza do
alegoria da situação colonizada, de símbolo. Sua obscuridade vem do seu
terceiro mundo, de países sul- aspecto compósito, da fragmentação de
americanos como o nosso, vivendo o suas soluções formais, e nos lança numa
drama histórico do fracasso do posição de interrogar sobre o sentido do
populismo. que assistimos. O que ela tem de
A cruz, como símbolo, pede um interessante é que praticamente nos obriga
tempo cíclico, que volta igualmente a a pensar. Sua ocorrência maior se dá em
cada momento da história. As alegorias, tempos atravessados por grandes dúvidas,
ao contrário, se prendem apenas a um cismas conjunturais, violentas crises
momento histórico dado, que elas históricas. O conceito de alegpria, que teve
2 próprias definem. Seu tempo é o das presença certa no drama do período
Ver também o seu estudo mais
específico sobre o conceito: mudanças qualitativas da experiência, da barroco, é retomado no Brasil moderno
"Alegoria, Modernidade, história de vida de uma pessoa ou de para a discussão da arte que se produziu
Nacionalismo", Revista Novos uma sociedade. A figura de Dom no período da ditadura militar, e teve lugar
Rumos, ano 5, n°16, São Paulo, Quixote, se quisermos, tem sem dúvida na recepção da música tropicalista.
1990, p. 49-72. uma dimensão simbólica. Porém, Um dos pontos de partida do

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movimento tropicalista, aliás sempre Entre as duas, um
lembrado como tal pelos seus expoentes intermezzo no qual
máximos, como Caetano Veloso e José Paulo se afasta por
Celso Martinez Corrêa, foi o impacto não compactuar com
do filme Terra em transe. Nele, as traições dos eleitos
poderíamos falar do uso alegórico dos às suas promessas,
movimentos de câmera e dos cenários, voltando fracassado à
assim como da narrativa em geral ou dos angústia de sua vida
personagens em particular. Mas, como poética na capital.
obra-prima, o filme vai além, sua Sara e os militantes
coerência formal possui uma admirável resgatam o seu engajamento com novas
composição plástica e espacial. Pode-se promessas para a campanha maior.
dizer que já em Deus e o diabo, Glauber Nessa oscilação pendular entre sua esfera
contava a sua história do caçador de de origem, relativa à sua formação, e
cangaceiros buscando uma luz dura para aquela eletiva, correspondente ao seu
compor com aspereza as suas imagens, desígnio, seu projeto, percorremos com
talvez como no contraste rude das Paulo a sua trajetória rememorada. Em
gravuras das histórias de cordel, das cada esfera, ele gravita com uma figura
quais retira o estilo nordestino do fio distinta de amada, orbitando em torno
condutor da trama narrativa, bem como de um "grande líder". Os palcos dessas
os elementos da trilha sonora. De modo comunhões também se polarizam em
análogo, para contar em Terra em transe moradas e espaços palaciais distintos,
a história do fracasso de um intelectual embora muito análogos.
romântico e revolucionário, Glauber Descrever esses espaços, bem como
ironicamente inspira-se nas o modo pelo qual os personagens neles
proliferantes retóricas do beletrismo se apresentam 3 , é em grande medida
pátrio que remontariam ao barroco. perceber como o filme está organizado
O filme é narrado num grande por oposições bipolares. Repetições e
flash-back, em que, atingido desdobramentos articulam-se em
mortalmente, Paulo Martins (Jardel quaisquer percursos de rememoração do
Filho) recorda o que se passou no seu filme. Isso tem a ver com o tônus febril
caminho entre a poesia e a política. da recordação do poeta estertorante que
Poeta promissor à sombra das elites de se arrasta nas dunas, metralhadora nas
Eldorado, seu inconfbrmismo o leva à mãos — antevisão de uma opção
aspiração de colocar a sua pena a favor iminente da luta armada na nossa
da transformação política. Rompe com história concreta. Rememorar Terra em
o seu meio na capital de Eldorado; com transe é também embaraçar-se nçssas
seu padrinho, o senador Don Porfirio semelhanças e diferenças bipolarizadas,
Diaz (Paulo Autran), e com sua noiva, entre Amadas, Líderes, Palácios. Como
a bela Sílvia (Danuza Leão), e vai à no Barroco, a "aparência de confusão"
província de Alecrim "fazer política". Lá, oculta uma rigorosa geometria
aproxima-se de Sara (Glauce Rocha), discursiva, dialogante, que nos enreda
professora e militante de quem se com forte apelo persuasivo.
apaixona e com quem procura, no líder Podemos recordar cenas da
progressista Vieira (José Lewgoy), uma campanha política, comícios de Vieira,
saída a favor dos oprimidos. Instala-se sem nos darmos conta, por um
aí a clássica frente ampla de forças da momento, se trata da primeira, para
esquerda em torno de um carisma governador, ou da segunda, para
populista, que por seu turno não terá presidente. A sensação remota do já
condições nem vocação suficientes para visto que experimentamos com as
cumprir as metas almejadas. repetições é, em parte, construída por
Sucedem-se duas campanhas: a coincidências deliberadas de espaço e 3
Cf. Machado Jr., Rubens. Estudo
primeira para governador e a segunda encenação. Ela contamina a atmosfera sobre a organização do espaço em
para a presidência, ambas malogradas do filme com um mal-estar denso e TERRA EM TRANSE, tese de Doutorado,
em alguns de seus aspectos essenciais. melancólico, pois o que se repete São Paulo, ECA-USR1997.

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remontaria vagamente a algo já trajeto que metaforiza os seus trajetos
chamuscado pelo equívoco, pelo maiores no filme, ofuscado nas
traumático. A confusão engendrada campanhas ensurdecedoras a que virá
entre lugares, pessoas, situações, vem de entregar-se, após os acordos
repetições mais ou menos diferenciadas, confabulados em recessos internos.
como no caso da figura do quiasmo, Prosseguir nessa descrição seria
com determinadas inversões de aspectos. aprofundar um desdobrar de repetições
Além de terraços residenciais diferentes, que revelam diferenças. Não se trata de
filmados de ângulos semelhantes, em repetição dualista, com mero espelhar
situações dramáticas bem comparáveis de simetrias, ou de caminhos que se
— debates decisivos de dilemas bifurcam. É difícil a redução do que
políticos —, o filme chega a filmar de rememoramos do filme em
um mesmo modo as mais desenvoltas maneirismos, barroquismos mágicos ou
apresentações de cada líder. Exemplo trompe 1'oeil de inclinação borgeana. Isso
impressionante são os dois travellings redundaria na identificação do mesmo,
de ré, deslocamentos da câmera para como se as alternativas políticas se
trás, que enquadram o líder caminhante correspondessem em equivalência
em nossa direção, mantendo a distância acabada. Há, de fato, dubiedades
por vários metros. Em partes diferentes paradoxais que, caso repitam aspectos
do filme, foi o modo mais eloqüente (sugerindo forma de liderança política
pelo qual nos são feitas as apresentações comparável), contrastam e invertem
formais de cada um em suas residências, outros. Nessa dialética, sempre a
Vieira e Diaz. Descrever a luz e as repetição traz junto uma diferença. No
sombras, o significado dos espaços que bicentrismo ambíguo de Terra em transe,
atravessam em seu caminhar, tudo cria-se o risco da repetição que se
parece convergir para a alusão a formulou quando Paulo é xingado pelo
atributos diferenciadores dos amigo Álvaro (Hugo Carvana), que no
personagens que, porém, mantêm algo limite da crise diz em tom convulsivo:
de equivalente. Falar de tais atributos "Você não passa de uma cópia suja de
pessoais significa forçosamente falar Diaz!". Em nome de um projeto de vida
também dos atributos de suas e de sua liberdade, o poeta chega à
perspectivas políticas. política, chega a Alecrim, a um novo
O "sol que brilha mais", auto- amor e a uma ação política que arriscam
invocação que Diaz brada num de seus no fundo serem iguais ao que se rejeitou.
discursos mais delirantes, parece Nesse espectro do fracasso, reside a
iluminar seu travelling inteiro, repondo angústia de Paulo, a indesejadá
o viés continuado das sombras da equivalência existencial entre ponto de
colunáta naquela galeria que percorre. partida e de chegada. O risco de seu
Espaço construído, presença da projeto tornar-se vão. No horizonte
natureza, gesto, tudo se arremata e mais longínquo das esquerdas em
homogeneiza num movimento regular atividade, reverbera a sentença marxista
e contínuo. O que há de harmônico aqui de que, do ângulo do materialismo
parece servir de emblema ao mito do dialético, a história não se repete, senão
homem que se apresenta. No caso de como farsa. Em sua trajetória
Vieira, há mudança de direção em meio revolucionária, Paulo e seus
à caminhada para atravessar diferentes companheiros iriam configurar mais um
aposentos vazios e pouco iluminados de caso particular de malogro, daquilo que
sua casa até a soleira da porta, onde por o filósofo Maurice Merleau-Ponty
fim enfrenta a profusão de luz. Ao discutiu na história do marxismo
contrário de Diaz, em que interior e ocidental e que vinha chamando
exterior se resolvem na regularidade justamente de as aventuras da dialétiafi.
oblíqua do sol que atravessa a galeria, Orbitário, com Sara, da liderança de
4 Merleau-Ponty, Maurice. Les e m Vieira há contingências, um
Vieira em Alecrim, esfera eletiva de seu
aventures de dialectique. Paris: demorar-se do trajeto para um mergulho projeto, o nosso poeta volta a gravitar
Gallimard, 1955. algo desavisado e excessivo na luz, com Sílvia em torno de sua origem,

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esfera de Diaz, na capital, como no experiência desse choque histórico.
início, retornando ainda no fim à órbita Glauber possuía também afinidades
alternativa. O trajeto pendular de com a noção de Barroco, que associava
Paulo5 descreve uma dialética particular, a uma profunda tradição histórica de
pois ele encarna o conceito de que nossa cultura participava. Com 5
A noção de personagem-pêndulo
ambigüidade tal como pensado pelo efeito, quase todas as teorias do Barroco foi trabalhada por Jean-Claude
existencialismo marxista do filósofo poderiam obter eco em Terra em transe. Bernardet nos filmes do Cinema
Jean-Paul Sartre, que, aliás, Glauber Poderíamos começar pelo filósofo Novo, de um modo geral no seu livro
admirava bastante 6 . O nosso filme catalão Eugênio d'Ors, para quem o Brasil em tempo de cinema (Rio:
interpreta a seu modo a moral da Barroco é também um estilo de Civilização Brasileira, 1967), lançado
ambigüidade sartreana, dando-lhe pensar8. Ele opõe-se ao estilo Clássico, no mesmo ano de Terra em Transe,
contornos glauberianos. Seu amigo Luiz que tem por figura emblemática a ainda sem tê-lo visto.
Carlos Maciel, ator principal de seu perfeição do círculo. A elipse 6
"SartreviuoBrasil melhor que nós.",
segundo filme, Cruz na praça (1959, corresponderia ao Barroco, cuja época diz Glauber em carta de 13/6/1961
desaparecido), publica no mesmo ano descobriu ser esta a forma das órbitas aos cinemanovistas Gustavo Dahl,
de Terra em transe um livro didático celestes. Essa cosmologia do Barroco Paulo César Saraceni e Joaquim Pedra
sobre Sartre, usando a célebre frase do conta sempre com dois centros, a de Andrade: d Cartas ao mundo. São
intelectual como epígrafe: "O exemplo da elipse. A racionalidade Paulo: Companhia das Letras, 1997,
importante não é o que fazem de nós, clássica opõe-se à inteligência barroca, p. 158. Em 8/6/1979, depõe no
mas o que nós próprios fazemos daquilo que tem por dinâmica o espírito de Jornal do Brasil. "Estou convencido
que fazem de nós"7. Nessa dialética, se contradição. Várias teorias do Barroco de que Jean-Paul Sartre é o maior
permanecemos no primeiro pólo, se insistem, como traço distintivo, na pensador do Século XX. Superou Marx
fazemos coincidir o que era para sermos dialética dos elementos internos à e Freud. Esta crise que se vê em toda
parte, no mundo inteiro em torno do
e o que queremos ser, não somos própria configuração da obra. Glauber
marxismo e do freudismo vai levar a
propriamente humanos ou humanistas; conseguiu reunir numa só criação a
Sartre. É o único intelectual deste
submetemo-nos ao desígnio da natureza dinâmica barroca, a ambigüidade século que influenciou poderosamente
ou da sociedade. Essa não-coincidência existencialista, a dialética marxista, o várias gerações. A libertação da
nunca se resolve, não há uma síntese, pensamento "em transe" de toda uma Argélia, a revolução cubana, a
mas graças a isto é próprio do humano geração com dificuldade de pensar-se. conscientização dos direitos
a escolha, e assim o advento da humanos, a liberação da mulher, tudo
liberdade, a necessidade de se conceber Résumé isso recebeu a influência das idéias
um projeto que ligue esse ponto de de Sartre. A Nouvelle \faguese, perdeu
saída a algum de chegada. O projeto na França porque ela ignorou Sartre.
Nous cherchons 1'interprétation du film Terreen transe
permite lidar com o desejo, a vontade Eu tenho sido um bom profeta e vou
(1967), de Glauber Rocha, à travers Pobservation, dizer: só os últimos anos do século
de mudança, a idéia de revolução. dans des solutions formelles en quelques-unes de irão descobrir Sartre. E isto vai
Terra em transe, porém, é um filme ses séquences, de Palliance de certaines traditions acontecer a partir do Brasil e da
sobre determinada experiência de esthétiques brésiliennes avec des éléments d'une América Latina.", apud?'mt, Sylvie.
fracasso, aspirações contrariadas e imaginatíon dialectique spécifiée, d'inspiration Glauber Rocha. Paris: Cahiers du
realidade vivida por uma geração. A sartrienne et marxiste. Par Tanalyse immanente cinéma, 1987, p. 112.
forma convulsa e a narração marcada intéresséeaux lois de Timité de Poeuvre nous essayons
pela agonia compõem o afresco de uma des concepts déterminés comme celui de 7 Sartre: vida e obra [\%1\,çA.,
crise política por que de fato o país barroquisme (provenant de Ia théorie de Part, de Rio: Paz e Terra, 1980, pi 9. Para
passou, um trauma no qual deveria 1'histoire de Parchitecture et des arts plastiques) et uma exposição sintética das noções
empenhar-se em compreender. Entre celui d'ambigu'fté (provenant de Ia phénoménologie sartreanas, pelo próprio, podem ser
civilização e barbárie, esta última estava et de Ia philosophie existentialiste engagée). lidas na coleção Os Pensadores (1a
mais sensível. O estremecer do transe é Mots-dé /analyse filmique, esthétiques brésiliennes, ed., São Paulo: Abril Cultural, 1973),
pensado metaforicamente como dialectique. as traduções de Vergílio Ferreira e
Bento Prado Jr. para,
respectivamente, "0 Existencialismo
é um Humanismo" (1946) e "Questão
de Método" (1960).

8
to Barroco (1908-1934), Madri:
Aguilar, 1964. Teoria delos estilosy
espejo de Ia arquitectura, Madri:
Aguilar, s.d.

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