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TERESINA
2015
DENISE DE PAULA VERAS AQUINO
TERESINA
2015
A função do artista é violentar.
Glauber Rocha, 1962.
Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmo sangrento e a alma pura
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Gladiador defunto, mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura)
Mário Faustino
[Epígrafe de Terra em Transe]
RESUMO
p.
Fotografia 1 Pescadores em cena de Barravento................................................... 93
1Os títulos dos tópicos e sub-tópicos são, em sua maioria, citações de trechos da correspondência de
Glauber Rocha.
8
2 Nem todas as cartas do autor foram publicadas. Neste estudo trabalhou-se com a correspondência
publicada no livro Cartas ao mundo, de autoria da pesquisadora Ivana Bentes.
3 A caracterização estética utilizada neste texto está discutida no tópico 2.1 “É que Glauber acha
Com esse cenário a elite não consumia o produto da sétima arte brasileira. A
partir da década de 1960 as coisas começaram a mudar e o Cinema Novo surgiu
como uma oportunidade de dar vazão às inquietudes políticas, estéticas e sociais da
época.
Com propostas de sobrepor o padrão de produção das companhias industri-
ais existentes até então, a primeira temática foco desse novo cinema foi a realidade
rural, servindo como exemplo as seguintes produções: Vidas Secas, de Nelson Pe-
reira dos Santos (adaptado do romance homônimo de Graciliano Ramos), Os Fuzis,
de Ruy Guerra e Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, todas de 1964,
ano do golpe de Estado no Brasil. A respeito dos filmes dessa época, Jean-Claude
Bernadet (2006, p. 103) afirma:
Sou livre do ponto de vista econômico para fazer aquilo que contribui
para o desenvolvimento do Cinema Novo. (Não Cinema Brasileiro,
mas Cinema Novo). Sou radical nisso, pois, para mim, o Cinema No-
vo significa a arte mais individual, pessoal, onde o diretor expressa a
sua ideia, mesmo que ela seja discutível (ROCHA, 1968, p. 28-29).
Pós 19726:
1975 Claro
1981 A Idade da Terra
Produção da própria autora
No período que segue ao ano de 1972 parte dos cineastas que haviam inici-
ado suas produções sob a égide do Cinema Novo acabaram por articular uma nova
forma de fazer cinema, passaram a assumir uma postura de não aceitação ao cine-
ma que outrora defendiam, essa nova fase ficou conhecida como “Cinema Margi-
nal”7. O fato de alguns cineastas terem sido exilados e outros integrantes terem in-
6Os filmes produzidos pós 1972 já não estão enquadrados na classificação das fases do Cinema
Novo, todavia a esta dissertação não interessa os conceitos de classificação, e sim os caracteres
estilísticos dos filmes de cada momento.
7 Debates acerca das classificações do cinema ao longo do um determinado tempo não são de inte-
resse desta Dissertação. Não objetiva-se classificar o movimento ou estabelecer datas limite de atua-
ção do mesmo; o interesse de fato é compreender como os recursos estilísticos escolhidos pelo autor
aparecem dentro da obra.
15
8 Para o desenvolvimento da análise considerou-se apenas as cartas escritas por Glauber Rocha.
9 Utiliza-se, aqui, o conceito de obra literária virtual atribuído por Reis (2003), segundo o autor, é co-
mum que poetas, romancistas ou dramaturgos escrevam textos literários que, por uma razão ou ou-
tra, não são publicados. Esse material, enquanto não publicados, são considerados obras virtuais.
17
A palavra estética engendra muitos significados, por isso este tópico objeti-
va abrir a discussão acerca do tipo de definição que Glauber Rocha utilizava quando
fez uso desse termo. Conforme Suassuna (2008), tradicionalmente a Estética era
definida como a “Filosofia do Belo e da Arte”. Inicialmente relacionada com a beleza,
posteriormente às sensações, o conceito de Estética foi sendo moldado de acordo
com a disciplina que estuda o tema.
A expressão alemã Zeitgeist significa espírito da época e está relacionada
com a história da humanidade que é marcada por fases e épocas em que se eviden-
ciam a maneira própria daquele tempo de pensar e ver o mundo. Essa maneira de
ver é internalizada na cultura dos sujeitos e se reflete na arte, já que esta é resultado
de uma produção cultural.
Ao aplicar essas teorias aos trabalhos desenvolvidos por Glauber Rocha,
que é o objeto desta Dissertação, entende-se que ao produzir obras que têm resso-
nância com a obra de outros artistas de seu tempo, Glauber Rocha atende ao espíri-
to de sua época como um elemento culturalizado e partilhado por eles, ainda que
inconscientemente. São elementos culturais que estão imersos naquele tempo fa-
zendo com que os artistas partilhem e respirem tais características, o que acaba por
ser incorporado ao seu fazer artístico que visa à produção de sensações em quem
contempla o objeto de arte. Neste trabalho, vale ressaltar, compreenda-se por Esté-
tica a definição apontada como oriunda do Zeitgeist.
O sentido que o autor aplicou o termo é restrito, sinalizando ao público sua
estilística, seu modo de pensar questões relativas à arte e como assumiu sua pró-
pria poética, seu estilo de fazer arte. O olhar que o cineasta tinha sobre como a arte
deveria ser produzida está presente em seus textos manifestos, a saber: a Estética
da Fome: nesse manifesto Glauber Rocha externou sua não aprovação à maneira
como o cinema era realizado até então, pois considerava que havia uma tendência à
vitimização do povo colonizado, condenando-os à ridicularização frente aos estran-
geiros; e a Estética do Sonho: nessa estética o autor opera com elementos místicos
e oníricos. Essa nova proposta de Glauber Rocha foi taxada de hermética porque
seus filmes produzidos nessa época foram considerados incompreensíveis. O que
Glauber Rocha passou, então, a fazer cinema com seus colegas de geração.
Na Bahia daquela época acontecia um grande estímulo cultural, prosperou o cine-
ma, a música, o teatro e a Academia. Sobre os filmes de Glauber Rocha realizados
durante essa fase estética de seu cinema, foram produzidos 9 filmes, dos quais 4
são longas metragem, quais sejam: Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol,
Terra em transe e O Dragão da maldade contra o santo guerreiro. Dito isso, vejamos
(ROCHA, 1981, p. 29) faz com que esses europeus vejam a pobreza da América
Latina como um horrível passado superado e enxerguem seu próprio presente com
a alegria de quem alcançou o merecido sucesso.
Nesse manifesto o autor argumenta pela importância do uso da violência na
luta contra a miséria, mas essa violência não era associada ao ódio, e sim ao de-
sesperado desejo de transformação social. A fome e a miséria empurram os sujeitos
a situações extremas, ao ponto dos indivíduos sentirem-se pressionados a lutar por
mudanças. Sob uma ótica marxista o autor defendia que as condições de opressão
induziriam os povos explorados a se conscientizar de sua situação para, então, lutar
por melhorias. A luta, portanto, devia ser constante.
A estética da Fome expressa o projeto cultural do cineasta brasileiro da dé-
cada de 1960. Glauber Rocha acreditava ser preciso apresentar uma nova forma de
fazer cinema, uma maneira que apresentasse estratégias de escapar à dominação
moderna. Essas estratégias consistiam em apresentar a realidade em toda sua cru-
eza e patogenia:
Um texto virulento que legitima a violência como único meio de alcançar a li-
bertação do colonialismo moderno, a Estética da Fome leva adiante a proposta de
Glauber Rocha de resgatar a identidade do povo brasileiro utilizando para isso a for-
ça da violência a fim de expulsar, em nível cultural, os estrangeiros que ameaçavam
a identidade nacional brasileira.
As obras produzidas por Glauber Rocha sob a inspiração da Estética da
Fome empenham-se em refletir sobre a própria América Latina, assim sua produção
21
‘Tem dezoito anos canta como passarinho. Não é virgem. Fui o pri-
meiro. Já passou toda vaqueirada na cara. Não é puta. Docê de
côco. Se quiser vá e coma. Ela gosta. Não resiste. Não pode ver
pauzim. Viciada. Coxa sovaco ouvido e num tem doença venérea.
Excrachada. Já pariu menino com cabeça de porco. Tem cancer nos
quatro peito. Gostosa como que!’ (ROCHA, 2012, p. 17).
23
13Neste ponto desconsidera-se as questões epistemológicas que existem em torno do que seja ver-
dade e o caráter de representação imanente ao cinema. Dessa forma, não nos interessa refletir sobre
24
Glauber Rocha (1981, p. 37) tinha seu próprio conceito do que seria o cinema ver-
dade:
questões tais como se o cinema de Glauber reflete uma dada realidade ou se faz uma composição
com fragmentos reais, interessa-nos sim analisar como os elementos estéticos defendidos por Glau-
ber em seus manifestos podem ser identificados no romance e nas cartas.
25
14Esse filme retrata a vida numa aldeia de pescadores. O protagonista – Firmino – saíra da aldeia
para fugir da pobreza e quando para lá retorna tenta livrar seu povo dos domínios da religião.
26
Antônio das Mortes [...] que matou muitos cangaceiros, inclusive Co-
risco – é quem tem a missão libertadora de matar os beatos e o can-
gaceiro, proporcionando a revolução das consciências. Incorporando
o próprio cineasta, ele tem por objetivo destruir a crença em uma
utopia, fazer história.
15 Em vários momentos da obra o cineasta fez uso de imagens do cotidiano da comunidade pesqueira
para a gravação do filme, uma dessas imagens pode ser visualizada na fotografia 1, no anexo desta
Dissertação.
16 Um camponês que, cansado da exploração em que vivia, mata o patrão e foge, em sua fuga junta-
17 O filme se desenrola num país imaginário chamado Eldorado onde Paulo Martins, um jornalista e
poeta idealista é ligado à Porfírio Diaz, um político conservador em ascensão. Porfírio tem uma aman-
te, Silvia, com quem Paulo Martins também mantém um caso. Após Porfírio ser eleito Senador, Paulo
segue para a cidade de Alecrim, onde conhece a ativista Sara com quem passa a se relacionar e,
juntos, apoiam o também político Felipe Vieira. Este último é um populista que decide se candidatar a
governador; Sara e Paulo resolvem apoiá-lo na esperança de conseguirem lançar um novo líder polí-
tico que seja capaz de tirar a população da situação miserável em que viviam. Quando ganha as elei-
ções Felipe Vieira não tem energia para se opor às forças econômicas que o financiam e nada faz
para mudar a condição do povo. Tais acontecimentos deixam Paulo descrente e faz com que ele
volte à capital, abandonando Sara. Novamente na capital, Paulo se associa, dessa vez, a Júlio Fuen-
tes, o maior empresário do país, que lhe diz que Fernandez, o presidente, conta com o apoio financei-
ro de uma multinacional que pretende assumir o controle do capital no país. Diaz concorre à presi-
dência apoiado por Fernandez e Fuentes abre um canal de televisão para o jornalista Paulo usá-lo,
atacando o candidato Porfírio Díaz. Mais uma vez Paulo se une a Vieira na campanha para presiden-
te mas Fuentes trai ambos e se associa a Diaz. Paulo decide partir para a luta armada, mas Vieira
não o acompanha.
18 Eisenstein (1977, p. 167-168) explicou como o cinema se desenvolve: “o desenho da água e o de-
senho de um olho significam ‘chorar’; o desenho de uma orelha perto do desenho de uma porta =
'ouvir'. [...] é exatamente isso que fazemos no cinema, combinando tomadas que pintam, de significa-
do singelo e conteúdo neutro – para formar contextos e séries intelectuais".
28
Dois planos, por exemplo, mostram Sara entrando pela mesma porta
duas vezes em seguida, cada vez duma maneira ligeiramente dife-
rente, numa repetição que o próprio filme assinala como sendo tem-
poralmente impossível. A violência, sobretudo, constantemente de-
realizada pela montagem. Há armas onipresentes no filme, mas es-
tas nunca são coordenadas com seus ruídos. Vemos pistolas e ou-
vimos metralhadoras; ouvimos metralhadoras mas não vemos nada.
[...] Em geral, a câmera não acompanha diretamente a ação; em vez
disso ela se movimenta duma maneira geométrica, coreografada,
criando uma contradição entre os movimentos dos personagens e os
da câmera. O trabalho da câmera extremamente 'visível' e essa visi-
bilidade é designada como tal pela inclusão, em certos planos, do
próprio equipamento cinematográfico. A uma certa altura, vemos um
cameraman realizando exatamente o mesmo plano – do homem do
povo massacrado – que acabamos de ver no filme. (Stam, 1976, p.
177-178)
21
“Então, são orgânicos os intelectuais que, além de especialistas na sua profissão, que os vincula
profundamente ao modo de produção de seu tempo, elaboram uma concepção ético-política que os
habilita a exercer funções culturais, educativas e organizativas para assegurar a hegemonia social e o
domínio estatal da classe que representam (GRAMSCI, 1975, p. 1518 apud SEMERARO, 2006, p.)”.
apud SEGATTO, p. 378).
22 Cf. no Anexo (Fig. 3) a imagens de caracteres típicos dos cordéis e em obras sobre a cultura nor-
destina.
30
realismo é o 'raio invisível' que um dia nos fará vencer os nossos ad-
versários.
até mesmo reinventá-lo. O tempo pode ser dominado sem necessidade de quais-
quer mecanismos lógicos. A lógica, por esse aspecto, é inexistente.
Na redação do romance o autor, apoiando-se nesse manifesto, brinca com
as palavras e com a ausência de lógica, de exigência racional, fazendo de seu texto
uma novidade barroca23 estética:
23
Cf. carta de Glauber Rocha (1997, p. 635).
32
Nesse filme o autor decide aplicar um método didático e simples, para al-
cançar seu público. Com personagens alegóricos que param em frente à câmera e
34
Tal definição possibilita inferir o motivo desse longa ter sido tão mal recebido
na época. A Idade da Terra é uma obra representativa do manifesto do sonho. É um
filme desconexo, que não possui personagens nem enredo. A interpretação do filme
relacionada com a identificação dos quatro Cristos e o Apocalipse foi apresentada
pelo próprio Glauber Rocha, que externou sua sugestão de interpretação em corres-
pondência e entrevistas. Essa explicação se deu em virtude da revolta do cineasta
pelo filme não ter sido entendido pelo público. Por tratar-se de um filme sem enredo
e sem história definida, as pessoas não conseguiram compreender.
Sobre o conteúdo e a descrição do filme Ricardo (2007, p. 12) afirmou:
Seu enredo não pode ser resumido, mas se o pudesse seria a histó-
ria do Cristo no Terceiro Mundo, como diz seu diretor na versão co-
mercia distribuída pela 'Embrafilme'. Esse Cristo, no roteiro, se divide
em quatro: o Cristo Índio; o Cristo Negro; o Cristo Militar; e o Cristo
Guerrilheiro. Todos revezam o espaço de protagonismo e antago-
nismo com Brahms, uma espécie de anticristo glauberiano.
ser identificado senão uma vaga expressão de ideia inicial desenvolvida pelo autor.
A forma de tais acontecimentos só parece possível em sonho.
2.3 “Luto para ser um homem ao contrário, nossa época é de crítica e não de
moral”: Fome e Sonho: a busca de um ideal
O que se pode inferir, ainda que com características peculiares, é que a ca-
racterística maior desse movimento era a plena e completa liberdade que os cineas-
tas possuíam para elaborar seus filmes.
A Estética da Fome e a Estética do Sonho – ou Eztetyka da Fome e Ezte-
tyka do Sonho –, como Glauber Rocha preferia escrever de acordo com a ortografia
proposta por ele em 1977, são dois manifestos com conteúdos complementares.
Entre os dois manifestos sobre a Estética de Glauber Rocha é que busca-se, aqui,
situar a mudança no posicionamento intelecto-cultural do autor, pois, tal como afir-
mou em seu segundo manifesto, essa “estética da fome era a medida da minha
compreensão em 1965. Hoje recuso falar qualquer estética” (ROCHA, 1981, p. 221).
Ao fazer tal afirmação Glauber Rocha tentava romper com classificações, is-
so por ter constato que ele mesmo havia se tornado vítima de algo que sempre foi
40
alvo de suas críticas, as amarras classificatórias. O que Glauber Rocha propôs para
a cinematografia brasileira foi um cinema novo, libertário e irreverente; um cinema
experimental; essas, no entanto, passaram a ser as caraterísticas atribuídas ao Ci-
nema Novo enquanto movimento. As consequências desse acontecimento são as de
que Glauber Rocha passou a ser classificado como um cineasta do Cinema Novo.
Essa qualificação acabou se tornando parte de um rótulo do qual fugira sua vida in-
teira. Ao afirmar que recusava qualquer estética o autor demonstrava sua recusa ao
pertencimento a uma categoria fixa, qualquer que fosse ela.
Os filmes produzidos por Glauber Rocha, estilisticamente, estão amparados
na Estética do Sonho e são sensivelmente diferentes dos que eram produzidos
quando da apresentação pública da Estética da Fome. Embora o ideal permaneces-
se o mesmo, ele reformulara sua forma de fazer cinema abrindo mão da linearidade
na abordagem do tempo e também dos métodos tradicionais de filmagem, passando
a produzir filmes que rompiam com o que ele mesmo produzira até então.
No final da década de 1960 Glauber Rocha experimentava as delícias da
fama; com filmes muito bem conceituados em seu repertório e com produtores a sua
procura para a realização de novos filmes. Todo o sucesso, entretanto, o incomodou
ele mesmo passou a considerar que seus filmes haviam se desvirtuado do foco prin-
cipal, uma vez que considerava que o sucesso de seu trabalho se devia menos às
ideias que buscava apresentar ao público do que pelo caráter exótico que a obra
carregava, o que fez com que tais obras se tornassem palatáveis, comercializáveis.
O objetivo de Glauber Rocha no período não mudou; o que se modificou fo-
ram as abordagens cinematográficas que utilizava para alcançar o objetivo definido.
Os manifestos têm pontos comuns, que podem ser sintetizados pelo seguinte es-
quema:
41
CARACTERÍSTICAS DO CINE-
MA NOVO
Contrapõe-se às propostas do
cinema comercial
Cinema alternativo nos aspectos
artísticos e estéticos
Tinha o Nordeste como pólo nor-
Semelhanças entre
teador (1ª fase)
Aglutinou inovações estrangeiras Estética da Fome e
e estilísticas
Estética do Sonho
Experimentalismo
Usavam elementos da cultura
popular nacional
Literatura de Cordel
Conotação Política
Produção da própria autora
INSPIRAÇÃO
ESTÉTICA DA FOME ESTÉTICA DO SONHO
Nouvelle Vague Luis Buñel
42
DIFERENÇAS
ESTÉTICA DA FOME ESTÉTICA DO SONHO
Narrativa linear Narrativa desordenada
Tempo regular Tempo irregular
Alegorias Diálogos diretos
Produção da própria autora
26Segundo assertiva de Targino (2006), a sociedade da informação é caracterizada pela ênfase dada
à informação e ao acesso à mesma, provocando profundas transformações nos sistemas de produ-
ção e consolidando o setor quaternário da economia. Este setor da economia engloba todos os indi-
víduos, instituições, processos, produtos e atividades integrantes do ciclo de vida da informação des-
de sua geração até o consumo.
45
mação. Mesmo que inicialmente não escritas com propósito literário as cartas ma-
nuscritas, por isso, são consideradas como fontes de informação não convencional e
podem ser estudadas por seu valor literário.
Na linha de pensamento Eagleton (2006, p. 13), para quem o valor de cartas
está inscrito no literário, está explicitado que o “segmento de texto pode começar
sua existência como história ou filosofia, e depois passar a ser classificado como
literatura; ou pode começar como literatura e passar a ser valorizado por seu
significado arqueológico”. Quando passam a ser analisadas do ponto de vista
literário as cartas estabelecem um diálogo também com o leitor e, se reunidas em
livro, elas constituem um material literário particularmente instigante. Os leitores
podem, por meio delas, inteirar-se de aspectos biográficos inusitados dos
signatários. Nas correspondências pessoais os leitores podem encontrar
depoimentos, relatos e também retratos de um dado período histórico e o respectivo
contexto constituído por uma perspectiva específica, eventos registrados e
pontuados nessas missivas27. Elas consistem, do ponto de vista do analista,
sistemas de informação portadores de ideias, emoções, reflexões. A liberdade de
apresentação dessas ideias e de sentimentos, o caráter íntimo e a flexibilidade de
poder passear de um assunto para outro sem a rigidez exigida pelos trabalhos
científicos, fazem das cartas encantadoras formas de expressão.
Essas cartas, que configuravam apenas meios de comunicação assumiram,
a posteriori, um caráter de registro histórico e literário uma vez que “a definição de
literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da
natureza daquilo que é lido” (EAGLETON, 2006, p. 12). A respeito de manifestações
artísticas, as cartas surgem como um dos tipos de manifestação, pois elas têm o
poder de despertar interesse em vertentes diversas:
27 Exemplos de artistas que foram estudados também pela análise das cartas são: Van Gogh, que
frequentemente escrevia ao irmão Théo Van Gogh; Fernando Sabino, com Cartas na Mesa, no qual
registra sua correspondência com os amigos Hélio Pellegrino, Otto Lara Rezende, e Paulo Mendes
Campos; Vinícius de Moraes, com Querido Poeta: correspondência de Vinícius de Moraes, que con-
siste em cartas escritas a amigos e familiares; Franz Kafka e sua Carta ao Pai, na qual descreve suas
mais íntimas angústias e faz comoventes relatos de sua existência. Nesse contexto pode ser incluído
Glauber Rocha, que incluía nas cartas as reflexões sobre a arte.
47
Alega-se que nos dias de hoje pouco valor podem ter as cartas para
fins de pesquisa, pois em decorrência do telefone e de outros meios
de comunicação as pessoas tendem a restringir o número de cartas.
Além disso, é pouco provável que cartas indicando experiências ínti-
mas cheguem às mãos dos pesquisadores. Por essas razões, o uso
de correspondência pessoal é tido como de pouco valor na pesquisa
social, a não ser no caso de cartas históricas.
(penso que um escritor deve escrever o que pensa e o que sente, en-
fim deve expressar a sua própria filosofia) [...] Tio, quero dizer-te ain-
da que nunca deixei-me influenciar por fitas cinematográficas ou his-
tórias em quadrinhos. [...] Filosofia, sim, estou lendo. Schopenhauer
(Dores do mundo), Nietzsche (Assim falava Zaratustra), além de pe-
quenos comentários a respeito da filosofia de Bacon, Platão, Aristóte-
les, Sócrates, Spinoza, Voltaire e muitos outros. Filosofia faz-nos
pensar melhor acerca do mundo e dos homens. Porém, como dizer-
te que nunca seguirei o ponto de vista deste ou daquele? Nunca se-
rei 'superior' como Nietzsche, pessimista como Schopenhauer ou cí-
nico como Voltaire, isto não! Podes ficar certo que procurarei seguir
minha própria filosofia (ROCHA, 1953, apud BENTES, 1997 p. 78,
grifo nosso)
Nesse trecho podemos observar que o objetivo do cineasta foi o mesmo por
toda sua vida, tendo maturado com sua própria experiência de vida. Nessa mesma
época ele se interessava por teatro; segundo Rocha (apud BENTES, 1997) o
Jogralesca era feito em formato de peça a partir de poemas escolhidos e eles não
eram apenas lidos, declamados mas teatralizados com roupas e cenário apropriado.
O que podemos inferir desses registos em cartas é que a criação do
movimento do Cinema Novo, do qual Glauber Rocha se tornaria arquétipo, teria forte
inspiração do teatro, sobretudo do teatro do dramaturgo alemão Bertold Brecht. Isso
28
Escritor, ensaísta e intelectual baiano, idealizador e diretor da revista Ângulos.
49
Eisenstein?
𝑀𝐼 H
MD = 𝑀𝐼 = 𝐸
esta fórmula resume o segredo da Teoria da Montagem Nuclear –
criada por Eisenstein e desenvolvida por mim.
Sou contra o cinema sociológico pois a sociologia é parte da frondo-
sa dialética. Marx ainda não foi entendido. Eis minha via, desde Bar-
ravento. (ROCHA, 1976, apud BENTES, 1997, p. 572, grifo nosso)
32 Cineasta alemão.
51
CARACTERÍSTICAS EF ES33
Constante referência a estados brasileiros X
Linguagem de Roteiros de Cinema X
(Narrativa ágil)
Escrita corrida X
Reforma Ortográfica (x,y,k) X
Referências históricas X
Escrita poética X
Sem capítulos e sem pontuação X
Neologismos X
Forte presença da religiosidade X X
Sexualismo exacerbado X
Presença de mitos/lendas e ditados populares X
33
EF: Estética da Fome. ES: Estética do Sonho.
55
Figura 2
1965 1971
EF Transição
ES
34 Referência ao título que Clarice Lispector planejava dar ao livro Água Viva.
35 Ao nos referimos aos personagens Guimarães Rosa e Glauber Rocha, em Riverão Sussuarana,
fazemos uso do itálico.
36 Personagem matador de cangaceiros, de Glauber Rocha.
37 Antagonista em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro.
38 Refere-se a Passarinho, cabra do bando de Lampião.
57
39 Corruptela de Matinta Pereira, personagem do folclore da região Norte do Brasil, cuja crença popu-
lar afirma ser o Saci Pererê em uma de suas formas. Matita Perê também é título de importante ál-
bum de Tom Jobim, lançado em 1973.
40 Possível referência ao personagem de Um certo capitão Rodrigo que integra O Continente, primei-
sobre a Montagem de atrações pela qual “[...] dois pedaços de filme de qualquer ti-
po, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade,
que surge da justaposição” [...] o conjunto é superior à soma das partes. A proposta
do cineasta russo é a de que a sobreposição de dois planos cinematográficos possi-
bilita a criação de um terceiro novo plano, carregado de ideias que não estão pre-
sentes nem em um nem em outro fragmento separadamente. O mesmo esquema –
pode-se inferir – foi aplicado ao romance Riverão Sussuarana.
A mistura de elementos de Riverão Sussuarana com elementos da vida de
Guimarães Rosa e também de Grande sertão: veredas atingem o leitor e provocam
reação às novas propostas, novas ideias, nova visão. Nesse ponto é possível susci-
tar mais uma vez o título atribuído ao romance, Riverão Sussuarana, para compre-
ender o leque de possibilidades que o cineasta apresenta em seu romance. Consi-
dere-se ainda a possibilidade de mais uma vertente de interpretação para o termo
Riverão, além da clara referência ao riverrum de James Joyce, no início de Finne-
gans Wake (JOYCE, 2014, p. 4), e do Sussuarana que nos remete ao Liso do Suçu-
arão de Grande sertão: veredas (ROSA, 2014, p. 34). O autor informa a utilização do
título e sua relação com a obra de James Joyce:
46Ao externar as leituras possíveis do título do romance analisado nesta Dissertação não se objetiva
assumir uma interpretação única e, sim, apresentar a gama de possibilidades e cartela de facetas
possíveis de interpretação.
59
seu romance para elaborar uma nova perspectiva, um novo modo de enxergar o ser-
tão:
indicar a forma da língua falada – se levantei ou ele fumô – sendo essa uma estraté-
gia de recriação do palavreado do sertanejo interiorano no romance.
Nas décadas de 1960 e 1970 outros escritores publicaram obras que apre-
sentam algum grau de similaridade com o romance de Glauber Rocha, tais como A
casa verde (1966), de Mario Vargas Llosa; Pan América (1967), de Agrippino de
Paula; Água Viva (1973) de Clarice Lispector; Catatau (1975), de Paulo Leminski; e
Galáxias (1976), de Haroldo de Campos. Em A casa verde (1966), Mario Vargas
Llosa narra uma história que se passa em duas cidades distintas do Peru. Sua estra-
tégia narrativa é de fazer uso de tempos diferenciados, causando certa confusão e
dificuldade para os leitores da obra. Os locais e o tempo do texto são apresentados
de maneira irregular e isso é uma característica também do romance de Glauber
Rocha.
Em Pan América (1967) estão presentes temas como a guerrilha anti-
imperialista e a denúncia da ditadura tupiniquim, temas esses também comuns à
Riverão Sussuarana. O texto de José Agrippino de Paula privilegia frases diretas do
tipo sujeito-verbo-predicado, de maneira simplificada. O texto é gramaticalmente se-
co e de vocabulário econômico. Embora Riverão Sussuarana se diferencie de Pan
América quanto à simplicidade da escrita, ambos têm em comum a inovação na for-
ma de escrever. Em Riverão Sussuarana os personagens são homônimos a perso-
nalidades históricas e literárias; em Pan América todos os personagens são ícones
midiáticos da época. Tal qual em Riverão Sussuarana, em Pan América o narrador é
personagem e interage com as outras personagens/personalidades do romance.
Em Água Viva (1973) Clarice Lispector se insurge contra a formalidade e a
estruturação da forma romântica; seu texto é fluido, transita por diversos gêneros
literários e é aparentemente inacabado47. Há traços em comum com o romance de
Glauber Rocha, entre eles a oposição ao estruturalismo vigente à época e a irregula-
ridade da narrativa.
Em Catatau (1975), Paulo Leminski brinca com a experimentalidade48 que é
sua principal característica. Tal como em Riverão Sussuarana, Catatau não apresen-
47 O termo inacabado é utilizado para fazer referência ao fato da autora ter utilizado uma estratégia
de escrita em que o texto parece não ter chegado ao fim.
48 Neste contexto compreenda-se o Experimentalismo como vanguarda ideológica surgida na
segunda metade do século XX, em Portugal. A proposta estética dessa vanguarda era constituída
pelo uso da linguagem como mecanismo de ruptura em relação à proposta estética tradicional:
"Partindo do princípio de que nem tudo era mais passível de formulação pela linguagem
convencional, O Experimentalismo recorreu a novos suportes e códigos, na tentativa de expressar
61
aquilo de a linguagem tradicional não era mais capaz, numa proposta de redimensionamento do
próprio conceito de linguagem". (CALDAS, 2008, p. 2). Tatiana Caldas discute a transcendência
almejada pelos poetas experimentais através da subversão da escrita e da negação dos padrões
estabelecidos.
49 Conceito de Jacques Derrida: "Desconstruir um texto é fazer com que as suas palavras-charneira
Para retratar a crueza do sertão e a pobreza dos miseráveis o autor faz uso
de uma linguagem popular, que rompe com as normas do que é correto, por esse
meio procurando desmascarar o que considera dominante na linguagem. O registro
da fala dos personagens de Riverão Sussuarana representa a fala do povo. Uma
literatura diferente representando a realidade igual.
Tanto Guimarães Rosa como Glauber Rocha observaram a crueza do ser-
tão: o primeiro através da clínica médica; o segundo acompanhou de perto a dureza
da vida desse povo já desde criança em virtude de ser natural de Vitória da Conquis-
ta, interior da Bahia.
64
4.2 “Eu provo, no livro, que ela foi culturalmente assassinada”: o questiona-
mento do caso Necy
O eu, nesse caso, não é o mesmo que a percepção do eu. O que os teóricos
propõem é que a percepção que cada indivíduo tem de mundo muda de acordo com
o meio e a época, tornando-se, por isso, impossível a reprodução ou narração literal
do fato citado. Para Bourdieu (1998, p. 190) “os acontecimentos biográficos se defi-
nem como colocações e deslocamentos no espaço social”. A realidade é formada de
elementos aleatórios e irracionais, cuja presença descontínua imprime marcas nos
sujeitos; são marcas que alteram a posterior interpretação e narração dos fatos. Se
a biografia é capaz de retratar a vida de uma pessoa, as obras que são vinculadas
ao autobiográfico são apenas uma das infinitas leituras possíveis da vida do biogra-
fado. Nesse sentido o romance pode ser figurado como uma representação linguísti-
ca da realidade; a realidade do texto reflete simbolicamente a realidade além-texto.
Ao fazer uma breve descrição dos diários, cadernetas de viagens e textos
publicados de Guimarães Rosa, Souza (2009, p. 144) monta um painel da experiên-
cia do escritor antes (ou ante) o que escrevera. Tais registros e documentos “produ-
zem o efeito biográfico por meio do registro de fatos reais, embora estejam construí-
dos segundo parâmetros ficcionais”.
A articulação de textos prévios ou paralelos, nesses incluídas as memórias,
as biografias, os artigos, os depoimentos, os diários, é o básico da pesquisa biográ-
fica. Esta vinculação à vida do autor elaborada pelo próprio autor pretende fazer com
que o texto ultrapasse e metaforize os acontecimentos, sem, contudo, recalcar o va-
lor documental e o estatuto da experiência que aí se inscrevem.
51Essa expressão não pode deixar de ser mencionada nesta Dissertação por se tratar do relato de
um fato ocorrido na vida do autor que, por sua vez, tanto pensava registrar suas memórias como ex-
plorava os limites que separam realidade e ficção.
66
53 Entenda-se aqui a expressão memórias em seu sentido informal, sem vinculação direta com as
teorias literárias da área em questão.
54 Aplicada metaforicamente à literatura, a ideia de caleidoscópio serve para caracterizar certas com-
posições literárias complexas, quer formadas por colagens de múltiplos efeitos quer constituídas por
ações variadas que se sucedem em catadupa (CEIA, 2015).
68
[...] bala nenhuma pega apanha fura bata raspa voa longe entorta
pinta de faca facão sobre punhal canivete tezoura gilete caco de
qualquer mineral e desvenena toxicos totais d abio fisisa a da anti
matéria expulsa os caracanaosos dos xorosrofobos vus sizis svavaia
aoslshos sfetido e bala nenhuma apanha nenhuma bala nenhuma
te apanha nem no tronco ou cabeça menos pés ou mãos e não lhe
arranharia as roupas e ele abraçou a velha nas rezas que foram se
perdendo pra tras das arvores ao passo que o castanho abria campo
eternamente longe da mae nunca mais vista ou sabida (ROCHA,
2012, p. 138-139, grifo nosso).
Ao escrever obra Riverão Sussuarana o autor faz também uma crítica ao sis-
tema político cultural do país. Sua crença de que a irmã Anecy havia sido assassi-
nada faz com que o autor se utilize do romance para acusar a polícia de negligência
e para apontar a culpa ao marido da atriz, Walter Lima Júnior:
nar, no povo brasileiro, a construção de uma identidade cultural nacional que o cine-
asta e romancista acreditava ter já encontrado.
Glauber Rocha acreditava que o cinema hollywoodiano ameaçava a identi-
dade e a cultura nacional do povo brasileiro. Com esta preocupação o cineasta pro-
pôs, na sua obra, a expulsão dos enredos daqueles símbolos que ameaçavam o de-
senvolvimento cultural do país, sendo essa expulsão uma catarse. O autor funde,
nos textos, o tempo e o espaço entre o território nacional e as mais diversas figuras
históricas.
Em Riverão Sussuarana está presente uma técnica que também foi utilizada
em A Idade da Terra (1981): o autor representa a multiplicidade territorial brasileira
através da inserção dos personagens que são oriundos dos mais diversos estados.
A pluralidade identificada nas personagens de Riverão Sussuarana garante uma es-
pécie de carnavalização55 no texto de Glauber Rocha, expandindo seu sentido an-
tropofágico e remodelando a perspectiva das culturas nas releituras possíveis das
paisagens – incluídos aqui as unidades federativas mencionadas no romance.
Tanto nesse longa-metragem como no romance o cineasta mostra a diversi-
dade da população e a multiplicidade de tradições presentes nos estados brasileiros,
denunciando a decadência da periferia nacional abusada pelo imperialismo norte-
americano. Nos fragmentos seguintes encontramos demonstrações de como as re-
presentações territoriais e culturais aparecem no texto:
Queria comecar rodage que fosse reta Amazona Xuy Pyauy Bolyvya.
Jaca, pegou seriema pelo pe nas bandas de Oieras e viu caboclim
com pexera no cinto cumento farinha incostado nas preda. (ROCHA,
1978, p. 46)
55 "A teoria da carnavalização amplia o sentido do temo [paródia]. A paródia carnavalesca seria um
tipo de percepção vasta e popular, caracterizada por uma visão às avessas: uma oposição ao sério,
ao tradicional, ao dogmático, ao oficial, numa atitude de dessacralização, recusando o absoluto da
ordem oficial" (MAIA, 1985, p. 12).
73
rio que reitera esse percurso pelo país que queria evidenciar. A criação das estéticas
inseridas no percurso fílmico e na correspondência está presente também em sua
literatura. Glauber Rocha foi criando seu movimento estético e artístico que pode ser
percebido como culminando na escrita de Riverão Sussuarana, onde todos os ele-
mentos de seu trabalho podem ser percebidos.
Glauber Rocha relatou a saga do brasileiro que poderia resistir a imposição
de valores estrangeiros valendo-se da miscigenação dos elementos alegóricos, do
mito e da transgressão em seus versos. A produção temática do cineasta em ques-
tão, além da forma como ele optou por escrever seus textos, tem na Coluna o eixo
central do livro, especificando um labirinto que percorre caminhos traçados desde
que ele se fez como artista.
A Coluna Miguel Costa-Prestes, o movimento histórico escolhido pelo cine-
asta para metaforizar sua ideia de estética artística, desenrola-se como um novelo
que contém as principais ideias do autor. Da narrativa desses acontecimentos, nos
quais se mesclam elementos de ficção e realidade, infere-se uma afronta aos pode-
rosos da literatura, do cinema, da cultura em geral, os que ele chamava de donos da
cultura.
Os indivíduos ou entidades que teimam em imperar a forma certa de criar
uma estética artística literária são enfrentados dialeticamente pelo cineasta em seu
romance. O que o escritor propôs de inovador, de crítica política e social foi moldan-
do – em conformidade com as ideias expressas na Estética da fome e na Estética do
sonho –, com os movimentos revolucionários defendidos pelo autor, bem como com
as temáticas de seus filmes. Todas essas questões estão presentes em Riverão
Sussuarana.
75
4.4 “Meu livro é para ser digerido como capim e quem não digerir terá dor-de-
barriga”: Revolução Ortográfica
I
travelling corre sobre a terra seca: silêncio
crepúsculo, vozes distantes: é lamp é lamp é lamparina é lampião
fusão
cangaceiro canta baixinho tocando sanfona
panorâmica por cima do acampamento: dormem
Lampião dorme na rede, de óculos: é lamp é lamp etc.
soldado aponta o fuzil
outro soldado
outro soldado
TENETE
Fogo!
fuzis disparam
fuzis disparam
som: gritos e tiros, gritos e tiros
romance cantando a morte de Lampião em Angicos:
Lampião e Maria Bonita
pensavam que não morria
ele morreu na boca da noite
ela morreu no romper do dia (ROCHA, 1985, p. 5).
76
[...]
corte
região de espinho, mato cerrado
o bando deixa os cavalos e ruma caatinga adentro: terra seca
o bando avança
o bando avança
o bando avança
o bando avança
corte
[...]
noite, o acampamento iluminado por tochas
todos os beatos rezam excelências para os mortos
rezam excelências
rezam excelências
rezam excelências
rezam excelências
rezam excelências
o campo inteiro iluminado de tochas (ROCHA, 1985, p. 17; 22)
Homem travessya
Rio
Vyda
Mar
Vulkão
Romançantropologico Rosincorpora folklore à falada cultura popular
e a rescreve à luz da comparação unyversal num trabalho que liberta
formalismo pessimista dos fylosophos decadentes
Panteyzmo Kolonizador reduzido a estas
Heranças de Portugais
escreve assim?” [...] ‘Há tanta coisa no jornal... escreve-se tanto...que se você não
chama a atenção das pessoas com uma forma diferente de escrever ninguém vai te
ler!’”
Para Ribeiro (2002, p. 83) Riverão Sussuarana foi a tentativa de reproduzir a
expressão falada da gente nordestina. As personagens passaram a ser simbolizadas
na própria fala. A sua rudeza e a brutalidade da fala das personagens representa a
grosseria e a falta de suavidade existencial do povo sertanejo. O romance atacava o
que Glauber Rocha chamava de ditadura da escrita e sobre inserção desse formato
da linguagem no universo da literatura Glauber Rocha (apud REZENDE, 1986, p.
123) é incisivo:
'[...] tudo que cheira a povo e que explode como barbárie linguística
ofende profundamente a intelectualidade colonizada da direita e os
comunistas, que são todos gramscianos, lucackisianos, são todos
sovietizados e têm horror à barbárie. [...] minha luta ideológica extra-
polou o plano do cinema' (ROCHA, 2002, p. 164).
80
artista desnudou através da metáfora Coluna Miguel Costa-Prestes; esse foi o cami-
nho escolhido pelo autor para expor sua estética.
O percurso artístico de Glauber Rocha que culminou em Riverão Sussuara-
na é narrado dentro do romance. O escritor envereda pelos labirintos de suas ideias,
como a Coluna enveredou pelos estados brasileiros. A Coluna Miguel Costa-
Prestes, portanto, pode ser considerara também como uma metáfora do próprio pro-
cesso de criação de Glauber Rocha.
83
APÊNDICE
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Fonte: Digitalização
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Fonte: Digitalização