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UFPI – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

CCHL – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS LITERATURA

DENISE DE PAULA VERAS AQUINO

ENTRE CARTAS E RIVERÃO:


elementos da estética glauberiana

TERESINA
2015
DENISE DE PAULA VERAS AQUINO

ENTRE CARTAS E RIVERÃO:


elementos da estética glauberiana

Dissertação submetida ao Programa


de Pós-Graduação em Letras
(PPGEL) da Universidade Federal
do Piauí (UFPI) como requisito para
a obtenção do grau de Mestre em
Estudos Literários.
Área de Concentração: Literatura,
Cultura e Sociedade.
Orientador: Profª. Drª. Ana Maria
Koch.

TERESINA
2015
A função do artista é violentar.
Glauber Rocha, 1962.
Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmo sangrento e a alma pura
-----------------------------------------------------
-----------------------------------------------------
Gladiador defunto, mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura)
Mário Faustino
[Epígrafe de Terra em Transe]
RESUMO

O presente trabalho tem como objeto de estudo o romance Riverão


Sussuarana (1978) de Glauber Rocha. O objetivo geral desta dissertação é
analisar o romance Riverão Sussuarana e as cartas escritas por Glauber
Rocha no período de 1953 a 1971 a fim de investigar em que medida
estabelecem-se diálogos acerca de seu conceito estético. A dissertação faz
uso de pesquisa bibliográfica qualitativa aplicada à análise do romance
estudado. Os pressupostos teóricos relacionados à estética, cinema novo e
cinema brasileiro tomam como base pensamentos de Maria E. Reicher (2009),
Glauber Rocha (1981) e Ismail Xavier (2007). Os pressupostos relacionados à
correspondência, fontes de informação e Glauber Rocha apoiam-se em Maria
Rosa R. Martins Camargo (2011), Le Coadic (2004) e Ivana Bentes (1997). A
conclusão deste estudo aponta que, em Riverão Sussuarana (1978),
ressaltam-se elementos estéticos em comum identificados nos dois textos
manifesto escritos pelo autor e por ele descrito em suas cartas. Enfatiza-se,
ainda, que Glauber Rocha emprestou técnicas de cinema ao seu romance e
aplica elementos estéticos comuns à sua época, o que contribuiu sobremaneira
para a riqueza da obra.

PALAVRAS-CHAVES: Literatura brasileira. Cartas. Glauber Rocha. Riverão


Sussuarana. Estética.
ANEXO – Relação de Imagens

p.
Fotografia 1 Pescadores em cena de Barravento................................................... 93

Fotografia 2 Zumbi discursando.............................................................................. 93

Fotografia 3 Antônio das Mortes e Coirana em luta alegórica................................ 94

Fotografia 4 de Riverão Sussuarana (ROCHA, 1978, p. 164) e de Os morcegos


estão comendo os mamãos maduros (MATOS, 1973, p.74 – 75)...... 94

Fotografia 5 Epígrafe de Terra em Transe.............................................................. 95


SUMÁRIO
1 “UMA IDEIA NA CABEÇA E UMA CÂMERA NA MÃO”: INTRODUÇÃO ....... 7
2 “EU VIVO SEMPRE EM ESTADO DE TENSÃO”: DO MACROTEXTO ........ 12
2.1 “É que glauber acha feio o que não é espelho”: Estilística ............................ 17
2.2 “Realmente o cinema está uma merda”: A Fome Estética .......................... 19
2.3 “O irracionalismo libertador é a mais forte arma do revolucionário”: O
Sonho Estético .......................................................................................................... 29
2.3 “Luto para ser um homem ao contrário, nossa época é de crítica e não de
moral”: Fome e Sonho: a busca de um ideal ........................................................... 38
3 “JÁ TIREI OS DEMÔNIOS DO CORPO DURANTE A CARTA”:
CORRESPONDÊNCIA .............................................................................................. 44
4 “NÃO ESTOU A FIM DE ESCREVER TESES SOBRE ESCRITOS, MAS
FICÇÃO”: RIVERÃO SUSSUARANA ....................................................................... 52
4.1 Riverão Sussuarana: coisa gritante............................................................... 56
4.2 “Eu provo, no livro, que ela foi culturalmente assassinada”: o
questionamento do caso necy ................................................................................... 64
4.3 “O livro é como o sertão e o sertão é cheio de galhos”: roteiro de viagem70
4.4 “Meu livro é para ser digerido como capim e quem não digerir terá dor-
de-barriga”: Revolução Ortográfica ......................................................................... 75
5 “EU OFENDO AS PESSOAS NO EXCESSO DE MEU INTERESSE POR
ELAS”: CONCLUSÃO .............................................................................................. 81
APÊNDICE ................................................................................................................ 83
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 86
FILMOGRAFIA ......................................................................................................... 91
ANEXO – RELAÇÃO DE IMAGENS ........................................................................ 93
7

1 “UMA IDEIA NA CABEÇA E UMA CÂMERA NA MÃO”: INTRODUÇÃO

A problemática desta Dissertação1 é identificar os elementos estéticos pre-


sentes no romance de Glauber Rocha, Riverão Sussuarana (1978). Ainda que o mo-
te deste trabalho seja o livro acima mencionado, julgou-se necessário antes conside-
rar as questões levantadas pelo autor em seus dois Manifestos: Estética da Fome e
Estética do Sonho buscando compreender o desenvolvimento de seu pensamento
sobre os projetos culturais bem como suas propostas de inovação no campo literá-
rio.
Tivemos como objetivos específicos: identificar as características estéticas
defendidas por Glauber Rocha à época de seus manifestos Estética da Fome e Es-
tética do Sonho; analisar a correspondência do autor entre os anos de 1953 e 1971
a fim de identificar nessas cartas elementos presentes nos dois manifestos supra
mencionados e analisar o romance Riverão Sussuarana para localizar as caracterís-
ticas que marcaram os dois textos-manifestos e a correspondência do autor.
Apresentou-se essa proposta tendo em vista que o romance de Glauber Ro-
cha não foi bem recebido pela crítica da época. Publicado em 1978, Riverão Sussu-
arana passou mais de 30 anos ignorado pela crítica que, para rejeitá-lo, sustentava-
se em argumentos como os apontados por Grecco (2007, p. 146): “ele foi considera-
do pela imprensa brasileira e pela crítica como um mero passatempo ou divertimento
do cineasta. O romance não foi bem lido, sequer lido de fato”. A autora fez uma aná-
lise desse romance e do longa-metragem A Idade da Terra num estudo sócio históri-
co que considerou o romance de Glauber Rocha uma reescritura de Guimarães Ro-
sa.
Para o desenvolvimento desta Dissertação utilizou-se o método de pesquisa
bibliográfica qualitativa aplicada à análise da obra em questão para possibilitar a
conexão dos referenciais teóricos. O primeiro momento foi dedicado à leitura da
documentação e livros levantados para a pesquisa. Realizou-se um estudo geral
sobre a obra Riverão Sussuarana e seus Manifestos: Estética da Fome e Estética do
Sonho, foi considerado também que em 1965 Glauber Rocha lançou o texto
manifesto Eztetyka da Fome e somente em 1971 o Eztetyka do Sonho. Entre os dois
manifestos situa-se a mudança no posicionamento intelecto-cultural do autor, tópico
esse que foi debatido e analisado no capítulo 2.

1Os títulos dos tópicos e sub-tópicos são, em sua maioria, citações de trechos da correspondência de
Glauber Rocha.
8

Na comparação entre esses manifestos do Cinema Novo concluiu-se que


houve ruptura na maneira de pensar e fazer arte do autor e pode-se elucidá-la
considerando o macrotexto formado pelos 9 longas-metragens produzidos pelo
autor, bem como os escritos Riverão Sussuarana, Eztetyka da Fome, Eztetyka do
Sonho e correspondência2.
Realizou-se ainda uma pesquisa acerca do momento histórico em que esta
obra estava inserida, com o objetivo de situar o espaço histórico-social a que o autor
pertencia. De posse dessas informações, foi realizada a análise e interpretação das
cartas compreendidas entre os anos de 1953 e 1981, a fim de investigar as concep-
ções estéticas e projetos culturais defendidos pelo cineasta.
Tendo sido precursor do Cinema Novo no Brasil, o nome de Glauber Rocha
é mais associado ao cinema. Esta Dissertação, no entanto, visa um novo aporte ao
fazer artístico deste cineasta. “Glauber não foi apenas um correspondente
compulsivo, foi um escritor obsessivo, que passou mais tempo sobre a máquina de
escrever que atrás de uma câmera” (BENTES, 1997, p. 9).
O cineasta em questão se fez conhecer mundo afora pela sétima arte, mas
sua produção incluía outras formas de expressão. Ele escrevia para seus amigos
contando suas novas ideias, planos e projetos. De acordo com Bentes (1997), é
possível localizar em sua correspondência menção a projetos de filmes, livros e
produções, quer realizados ou apenas projetados.
Considerando a polêmica que o autor provocou no meio político e cultural de
sua época intenta-se buscar compreender o papel de Riverão Sussuarana para ele
enquanto produtor de arte e formador de opiniões, bem como identificar as
características estéticas3 da forma de linguagem utilizada por ele no texto.
A obra do escritor pesquisado é marcada pela relação literatura-cinema e
seu livro é permeado de metáforas e críticas. Seu romance surgiu como mais uma
de suas experiências artísticas. Sempre procurando inovar, o cineasta empresta
técnicas do cinema nas linhas de seu romance, da mesma forma que faz uso de
estratégias literárias em seus filmes. Este trabalho buscou localizar, através das
cartas escritas pelo cineasta, a compreensão da abordagem estética presente no
romance.

2 Nem todas as cartas do autor foram publicadas. Neste estudo trabalhou-se com a correspondência
publicada no livro Cartas ao mundo, de autoria da pesquisadora Ivana Bentes.
3 A caracterização estética utilizada neste texto está discutida no tópico 2.1 “É que Glauber acha

feio o que não é espelho”: estilística.


9

Os fundamentos informativos desta Dissertação rastreiam em autores que


privilegiam as cartas como instrumentos detentores de ideias ou dados, tais como
Ivana Ferrante Rebello (2014) em seu artigo Arquivo secreto: dedicatória e cartas de
amor na escrita de Grande sertão: veredas, assim como autores que abordam a vida
e obra do cineasta em questão, em especial os autores que destacam a
correspondência escrita por ele ao longo da vida como a pesquisadora Ivana Bentes
(1997) em seu livro “Glauber Rocha: cartas ao mundo”.
Os conceitos de informação e documentos, também objetos desta
investigação, tem sua abordagem em autores como Le Coadic (2004) e Cunha
(2001) que, em seus estudos, apresentam a informação e sua relação com a
ciência: “O conceito de fonte de informação ou documento é muito amplo, pois pode
abranger manuscritos e publicações impressas, além de objetos, como amostras
minerais, obras de arte ou peças museológicas [...]” (CUNHA, 2001, p. 8).
O levantamento dos estudos realizados sobre o objeto deste trabalho aponta
para pesquisadores como Marília Rothier Cardoso (2005), que buscou identificar as
marcas impressas da inspiração em Guimarães Rosa que podem ser identificadas
no trabalho de Glauber Rocha, pois que entre esses escritores houve encontros, re-
ais ou fictícios, conforme a autora afirma. Riverão Sussuarana é apontado como um
pastiche-homenagem a Guimarães Rosa.

Essa suposição da importância do encontro (biográfico e epistemoló-


gico) entre os artistas – envolvidos com as violências das forças his-
tóricas, que nomeiam, conforme a tradição popular de 'deus' e 'diabo'
- confirma-se no livro Riverão Sussuarana, publicado em 1977. Aí,
Glauber encaminha a agressividade de seu discurso para o tom pa-
ródico, deslocando, num movimento interessante mas de efeito duvi-
doso, a estatura épica de Deus e o diabo para o registro de uma au-
to(alter)biografia paroxística. Pode-se dizer que o texto de Riverão,
com sua variedade caótica de referências, põe certa consistência no
delírio (CARDOSO, 2005, p. 116-117).

Na mesma esteira Jair Tadeu da Fonseca (2008) localiza – no mesmo ro-


mance aqui pesquisado – a presença marcante de Guimarães Rosa, a começar pelo
título do livro, continuando na presença de um personagem com o nome do autor
mineiro e ainda no tema abordado pelos romances de ambos os escritores, no caso
de Rosa seu Grande Sertão: veredas. Faz ainda menção a James Joyce e seu Fin-
negans Wake, visto que o título do romance de Glauber Rocha seria uma alusão ao
riverrun que inicia o romance de Joyce. O autor identifica traços roseanos e joycia-
10

nos no romance glauberiano. O pesquisador também identificou no livro a mesma


marca registrada de descontinuidade que consagrou Rocha no cinema.
O próprio cineasta define seu livro como um manifesto literário e estético, al-
go que rompe as barreiras estabelecidas e convencionalizadas. Acredita, pois, que
sua arte de experimentação poderia propor um novo modelo estético.

O livro é ao mesmo tempo um manifesto literário e estético. A teoria


e a prática daquele livro são transferidas para a musica, para o cine-
ma, qualquer tipo de arte. [...] incorpora uma espécie de renovela, de
desnovela, de recordel. É a história contada de um outro jeito, um jei-
to subjetivo, do inconsciente para a consciência, como um rio que
fosse andando e arrancando coisas boas e más (ROCHA, 1981, p.
351).

Dentre os estudos utilizados nesta Dissertação ainda podemos apontar


Donny Correia (2009), que buscou mostrar a importância do livro Riverão Sussuara-
na através da relação com os procedimentos cinematográficos. Segundo o autor,
Glauber Rocha inovou tanto no cinema quanto na literatura tendo utilizado técnicas
cinematográficas na escrita do romance e construções literárias na escrita de seus
roteiros.
Paulo Ribeiro (2002), ao analisar o romance de Rocha, considera que o au-
tor buscou relacionar personagens que tradicionalmente não possuíam articulação
na literatura brasileira. Ainda conforme Ribeiro (2002 apud CUNHA, 2004, p. 27) o
cineasta, utilizando seu livro como ferramenta, desmistifica alguns personagens da
história do Brasil. Ao tentar recriar o sertanejo original, antes da subversão de sua
língua natural, acabou por tornar a narrativa um “emaranhado gramatical”.
O autor estudado viveu a efervescência de uma época marcada pela rebel-
dia de uns muitos jovens de um lado e das proibições de outro. A construção de sua
vida esteve calcada no enfrentamento do proibido e no desejo de construção de uma
nova realidade político-cultural que poder-se-ia chamar “Novo Cinema Novo”:

É preciso considerar em que medida os fenômenos sócio-culturais,


aparentemente dicotômicos, incidem nas inovações e experimenta-
ções da arte literária da década e como a expressão dessas motiva-
ções e experiências individuais, enquanto categorias estéticas, ad-
quirem participação no universal (CARDOSO, 2007, p. 8).

A conclusão desta pesquisa é a de que Glauber Rocha tinha uma forma de


pensar cinema que o conduziu pelas esferas na produção de seus primeiros
trabalhos. Elementos em comum a essa forma de fazer puderam ser localizados
tanto nos seus primeiros filmes como nas cartas que ele enviava aos amigos e/ou
11

familiares e em seu primeiro manifesto Estética da Fome. A transição da maneira do


cineasta de fazer e pensar sua arte também pôde ser identificada nos filmes e cartas
de Glauber Rocha que marcaram a mudança no processo. Por fim, em sua última
fase, o autor já assumia uma convicção e estratégias em sua produção
consideravelmente diferente daquele que o autor defendia no início de sua carreira.
Esse fato pôde ser confirmado no último filme de sua carreira, bem como em sua
correspondência e no manifesto Estética do Sonho.
O corpo desta Dissertação está formado por quatro capítulos: 1 “Uma ideia
na cabeça e uma câmera na mão”: introdução; 2 “Eu vivo sempre em estado de
tensão: do Macrotexto; 3 “Já tirei os demônios do corpo durante a carta”:
Correspondência; e 4 “Não estou a fim de escrever teses sobre escritos, mas
ficção”: Riverão Sussuarana: uma análise.
No capítulo um fez-se a introdução desta Dissertação, no dois dois tratou-se
de apresentar as obras que constituem o Macrotexto do cineasta Glauber Rocha. O
terceiro capítulo aborda a correspondência do autor do período de 1953 a 1981,
sempre intentando encontrar elementos estéticos em comum com suas obras. Por
fim, no quarto capítulo é feita a análise do romance.
12

2 “EU VIVO SEMPRE EM ESTADO DE TENSÃO”: DO MACROTEXTO

Fase do cinema brasileiro cujas produções ainda provocam discussões, o


Cinema Novo surgiu na segunda metade dos anos 1940, inspirado pelo Neo-
realismo italiano e pela Nouvelle Vague francesa. Até então o cinema brasileiro pro-
duzia filmes cujos modelos eram os padrões norte-americanos, filmes copiados e
sem relação com a realidade nacional ou com os processos identitários do povo bra-
sileiro.
Essa abordagem cinematográfica passou a ser criticada e repudiada pelos
cineastas que seriam os fundadores do movimento. Fazendo uso de novas aborda-
gens e de linguagem revolucionária, o Cinema Novo optou por realizar produções de
baixo custo em oposição ao estilo holliwoodiano4 de fazer cinema, estilo esse que já
havia atingido parte das produções brasileiras. A nova fórmula pretendia um estilo
de produção capaz de denunciar a condição de subdesenvolvimento do povo brasi-
leiro, além de instigar na sociedade a rebeldia contra a realidade social:

Inspirado nos movimentos Nouvelle Vague da França e no Neo- Rea-


lismo italiano, a base dessas obras seria a preocupação com a reali-
dade social, mostrada por meio de uma renovação tanto de lingua-
gem, quanto de abordagem, numa tentativa de descolonizar a cultura
brasileira (LEITE, 1984, p. 34).

No Brasil, o Cinema Novo possibilitou uma renovação no cenário cultural


pois nessa época o cinema se relacionava com o público popular, através das pro-
duções conhecidas como “chanchada”5. Para os cineastas adeptos desse movimen-
to, as chanchadas haviam se tornado uma prática que precisava ser negada.
Com um estilo de espetáculo, quase como apresentações circenses, os fil-
mes desse estilo apresentavam o humor com cenas grotescas e teatrais. A princípio
os filmes eram carnavalescos e musicais, depois passaram a, em muitos casos, pa-
rodiar superproduções de Hollywood.

4 Neologismo apropriado pela autora.


5 As décadas de 1930 e 1960 foram a época em que as chanchadas mais estiveram presentes no
cenário brasileiro; trata-se de “Gênero cinematográfico de ampla aceitação popular que melhor sinte-
tiza e define o cinema brasileiro das décadas de 30, 40 e, principalmente, 50, produzido majoritaria-
mente no Rio de Janeiro. Diante de um mercado cinematográfico completamente dominado pela pro-
dução estrangeira de origem norte-americana, a chanchada tornou-se, para o bem ou para o mal, a
forma mais visível e contínua de presença brasileira nas telas do país. A designação pejorativa ado-
tada por vários críticos de cinema, possui origem etimológica no italiano cianciata, que significa um
discurso sem sentido, uma espécie de arremedo vulgar, argumento falso. [...] No cinema brasileiro, a
chanchada vincula-se diretamente ao advento do cinema sonoro, uma vez que a música, característi-
ca essencial desse gênero, é em grande parte carnavalesca e foi incorporada na maioria dos filmes.”
(RAMOS; MIRANDA, 1997).
13

Com esse cenário a elite não consumia o produto da sétima arte brasileira. A
partir da década de 1960 as coisas começaram a mudar e o Cinema Novo surgiu
como uma oportunidade de dar vazão às inquietudes políticas, estéticas e sociais da
época.
Com propostas de sobrepor o padrão de produção das companhias industri-
ais existentes até então, a primeira temática foco desse novo cinema foi a realidade
rural, servindo como exemplo as seguintes produções: Vidas Secas, de Nelson Pe-
reira dos Santos (adaptado do romance homônimo de Graciliano Ramos), Os Fuzis,
de Ruy Guerra e Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, todas de 1964,
ano do golpe de Estado no Brasil. A respeito dos filmes dessa época, Jean-Claude
Bernadet (2006, p. 103) afirma:

Esses filmes não pretendem tratar em específico do camponês nor-


destino ou da violência dos cangaceiros. Procuram dar uma visão
abrangente dos problemas básicos da sociedade brasileira e, pode-
se acrescentar, do Terceiro Mundo em geral. Esse esforço intencio-
nal para alcançar uma compreensão global do social subdesenvolvi-
do era algo totalmente novo no cinema brasileiro. Intencionalmente,
também, esses filmes deviam levar a um público popular informações
que o conscientizassem de sua situação social. Problemas diversos
(distribuição, questão da temática e da linguagem etc.) dificultam so-
bremaneira o acesso dos filmes ao público.

O excerto acima permite-nos compreender a ideia de desvencilhamento do


cinema como um produto comercial, que vigorava à época. Tal distanciamento era a
bandeira levantada pelo Cinema Novo.
Com o surgimento desse movimento, o cinema deixou de ser apenas entre-
tenimento e passou a ser também instrumento de reflexão. Usado como ferramenta
na abordagem de temas de cunho político-social e com uma linguagem opositora à
espetacularização do cinema de chanchada, o Cinema Novo valorizava o autor da
obra enquanto artista, permitindo-lhe expressar-se livremente através da película:

Sou livre do ponto de vista econômico para fazer aquilo que contribui
para o desenvolvimento do Cinema Novo. (Não Cinema Brasileiro,
mas Cinema Novo). Sou radical nisso, pois, para mim, o Cinema No-
vo significa a arte mais individual, pessoal, onde o diretor expressa a
sua ideia, mesmo que ela seja discutível (ROCHA, 1968, p. 28-29).

Na expressão de Glauber Rocha é perceptível o valor dado à liberdade e in-


dividualidade do autor no ato de fazer filmes. Os adeptos desse movimento valoriza-
vam a independência artística que se convertia em expressividade filmográfica.
14

O movimento do Cinema Novo costuma ser dividido em três fases: a primei-


ra, de 1960 a 1964; a segunda, de 1964 a 1968; e a terceira fase, de 1968 a 1972.
Adotando-se tal divisão, a produção cinematográfica de Glauber Rocha fica-
ria enquadrada da seguinte forma:
Primeira fase: 1960 a 1964
1961 Barravento
1964 Deus e o Diabo na Terra do Sol
Produção da própria autora

Segunda fase: 1964 a 1968


1967 Terra em Transe
Produção da própria autora

Terceira fase: 1968 a 1972


1969 O Dragão da maldade Contra o Santo Guerrei-
ro
1970 O Leão de Sete Cabeças (Der Leone Have
Sept Cabeças)
1970 Cabeças Cortadas (Cabezas Cortadas)
Produção da própria autora

Pós 19726:
1975 Claro
1981 A Idade da Terra
Produção da própria autora

No período que segue ao ano de 1972 parte dos cineastas que haviam inici-
ado suas produções sob a égide do Cinema Novo acabaram por articular uma nova
forma de fazer cinema, passaram a assumir uma postura de não aceitação ao cine-
ma que outrora defendiam, essa nova fase ficou conhecida como “Cinema Margi-
nal”7. O fato de alguns cineastas terem sido exilados e outros integrantes terem in-

6Os filmes produzidos pós 1972 já não estão enquadrados na classificação das fases do Cinema
Novo, todavia a esta dissertação não interessa os conceitos de classificação, e sim os caracteres
estilísticos dos filmes de cada momento.

7 Debates acerca das classificações do cinema ao longo do um determinado tempo não são de inte-
resse desta Dissertação. Não objetiva-se classificar o movimento ou estabelecer datas limite de atua-
ção do mesmo; o interesse de fato é compreender como os recursos estilísticos escolhidos pelo autor
aparecem dentro da obra.
15

gressado em novas oportunidades oferecidas pelo mercado cultural do país levou ao


desgaste do movimento do Cinema Novo. O Cinema Marginal surgia como uma no-
va forma de fazer cinema porém com as mesmas inquietações, levantamento de
questões políticas e sociais, além da postura crítica e contestação que antes eram
defendidas pelo Cinema Novo.
Citados acima estão apenas os filmes de longa-metragem produzidos pelo
cineasta pesquisado, porém para a análise do Romance Riverão Sussuarana, de
Glauber Rocha, considerou-se a obra completa do autor. A íntegra do material pro-
duzido pelo artista mencionado pode ser sintetizado da seguinte forma:

Tabela 1: Filmografia de Glauber Rocha


Ano Filme Detalhes
1959 Pátio Curta-metragem, p&b.
1959 Cruz na Praça Curta-metragem, p&b.
1961 Barravento Longa-metragem, p&b.
1964 Deus e o Diabo na Longa-metragem, p&b.
Terra do Sol
1966 Amazonas Amazonas Curta-metragem, cor.
1966 Maranhão 66 Curta-metragem, p&b.
1967 Terra em Transe Longa-metragem, p&b.
1969 O Dragão da maldade Contra o Longa-metragem, cor.
Santo Guerreiro
1970 O Leão de Sete Cabeças (Der Longa-metragem, cor.
Leone Have Sept Cabeças)
1970 Cabeças Cortadas (Cabezas Cor- Longa-metragem, cor.
tadas)
1972 Câncer Média-metragem, p&b.
1974 História do Brasil Longa-metragem, p&b.
1975 As Armas e o Povo Média-metragem, p&b.
1975 Claro Longa-metragem, cor.
1977 DI Curta-metragem, cor.
1977 Jorjamado no Cinema Média-metragem, cor.
1981 A Idade da Terra Longa-metragem, cor.
Fonte: BENTES, Ivana. Glauber Rocha: cartas ao mundo.
Tabela 2: Bibliografia de Glauber Rocha
Ano Livro Editora
1963 Revisão Crítica do Cinema Brasi- Ed. Civilização Brasileira
leiro Rio de Janeiro
1978 Riverão Sussuarana (romance) Ed. Record
Rio de Janeiro
1981 Revolução do Cinema Novo Alhambra/Embrafilme
Rio de Janeiro
1985 O século do Cinema Alhambra
Rio de Janeiro
16

1985 Roteiros do Terceyro Mundo Embrafilme e Alhambra


Org. Orlando Senna Rio de Janeiro
1997 Cartas ao Mundo. Companhia das Letras
Org. Ivana Bentes São Paulo
Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/glauber_rocha.htm

A obra do autor estudado está composta de 17 filmes (9 longas-metragem; 3


médias-metragem; e 5 curtas-metragem); 6 livros (sendo 3 obras póstumas); e 164
cartas8. Dessas cartas, 40 pertencem ao período que abrange a escrita da Estética
da Fome, de 1953 a 1965, 50 cartas do período da Estética do Sonho, de 1966 a
1971 e 74 cartas após a escrita do último manifesto, nos dez últimos anos de vida do
autor, de 1972 a 1981, período também próximo da escrita de Riverão Sussuarana.
Glauber Rocha escreveu dois livros: Riverão Sussuarana, publicado em
1978, e Jango, uma obra literária virtual9. Da obra completa do autor estudado esco-
lheu-se a obra de ficção publicada supracitada, os manifestos Estética da Fome (es-
crito originalmente em italiano) e Estética do Sonho, bem como o universo de 164
cartas escritas por ele aos mais diversos destinatários com os quais ele manteve
intensa correspondência.
A análise dessas cartas se deu através de três recortes: (I) Temporal: de
1953 a 1981; (II) Critério de autoria: levou-se em conta apenas as cartas escritas
pelo próprio Glauber Rocha. As cartas recebidas por ele de outros ami-
gos/artistas/cineastas foram desconsideradas; e (III) Assunto: buscou-se identificar
nas missivas o que o cineasta compreendia por Arte, seus conceitos e entendimen-
tos.
Do material acima descrito, este capítulo da Dissertação debruça-se primei-
ramente sobre os dois manifestos estéticos supra mencionados, o que eles possuem
em comum e as particularidades de cada um; segue-se a análise dos longas-
metragem do cineasta apontando como essas estéticas aparecem nesses filmes; a
seguir a correspondência do autor e abordada, as ideias expressas e as característi-
cas dos manifestos estéticos que podem ser identificadas nas cartas.

8 Para o desenvolvimento da análise considerou-se apenas as cartas escritas por Glauber Rocha.
9 Utiliza-se, aqui, o conceito de obra literária virtual atribuído por Reis (2003), segundo o autor, é co-
mum que poetas, romancistas ou dramaturgos escrevam textos literários que, por uma razão ou ou-
tra, não são publicados. Esse material, enquanto não publicados, são considerados obras virtuais.
17

2.1 “É que Glauber acha feio o que não é espelho”10: Estilística

A palavra estética engendra muitos significados, por isso este tópico objeti-
va abrir a discussão acerca do tipo de definição que Glauber Rocha utilizava quando
fez uso desse termo. Conforme Suassuna (2008), tradicionalmente a Estética era
definida como a “Filosofia do Belo e da Arte”. Inicialmente relacionada com a beleza,
posteriormente às sensações, o conceito de Estética foi sendo moldado de acordo
com a disciplina que estuda o tema.
A expressão alemã Zeitgeist significa espírito da época e está relacionada
com a história da humanidade que é marcada por fases e épocas em que se eviden-
ciam a maneira própria daquele tempo de pensar e ver o mundo. Essa maneira de
ver é internalizada na cultura dos sujeitos e se reflete na arte, já que esta é resultado
de uma produção cultural.
Ao aplicar essas teorias aos trabalhos desenvolvidos por Glauber Rocha,
que é o objeto desta Dissertação, entende-se que ao produzir obras que têm resso-
nância com a obra de outros artistas de seu tempo, Glauber Rocha atende ao espíri-
to de sua época como um elemento culturalizado e partilhado por eles, ainda que
inconscientemente. São elementos culturais que estão imersos naquele tempo fa-
zendo com que os artistas partilhem e respirem tais características, o que acaba por
ser incorporado ao seu fazer artístico que visa à produção de sensações em quem
contempla o objeto de arte. Neste trabalho, vale ressaltar, compreenda-se por Esté-
tica a definição apontada como oriunda do Zeitgeist.
O sentido que o autor aplicou o termo é restrito, sinalizando ao público sua
estilística, seu modo de pensar questões relativas à arte e como assumiu sua pró-
pria poética, seu estilo de fazer arte. O olhar que o cineasta tinha sobre como a arte
deveria ser produzida está presente em seus textos manifestos, a saber: a Estética
da Fome: nesse manifesto Glauber Rocha externou sua não aprovação à maneira
como o cinema era realizado até então, pois considerava que havia uma tendência à
vitimização do povo colonizado, condenando-os à ridicularização frente aos estran-
geiros; e a Estética do Sonho: nessa estética o autor opera com elementos místicos
e oníricos. Essa nova proposta de Glauber Rocha foi taxada de hermética porque
seus filmes produzidos nessa época foram considerados incompreensíveis. O que

10 Título de Tese (2012) do pesquisador Frederico Osanan Amorim Lima.


18

percebe-se nesse manifesto é outra tentativa do cineasta de conscientização através


do inconsciente.
Para compreender a apresentação estética do cineasta estudado e fazer
uma análise apurada de seus manifestos e romance é necessário conhecer o con-
texto em que ele estava inserido.
O Ciclo de Cinema Baiano, como ficou denominado o movimento cinemato-
gráfico que surgia na Bahia no final da década de 1950 e início da década de 1960
buscava por temáticas sociais e nacionais que já vinham sendo representadas na
música, nas artes plásticas e na literatura por figuras como Dorival Caymmi, Pancetti
e Caribé, Jorge Amado.
Glauber Rocha foi beneficiado por ter vivido em Salvador numa época em
que a Universidade Federal da Bahia teve um apogeu intelectual com o Reitor Edgar
Santos11, que chamou grandes artistas e intelectuais de vanguarda do Brasil e do
mundo para lá. Intelectuais de todas as áreas estavam juntos na Bahia exatamente
na geração de Glauber Rocha, tais como Lina Bo Bard (arquiteta modernista italia-
na), Martim Gonçalves (cenógrafo e diretor pernambucano), Yanka Rudzka (bailari-
na polonesa) dentre outros.
Sobre o que era Salvador nesse período e quais as iniciativas culturais to-
madas para criar um ambiente intelectualmente favorável à cultura, Oliveira (1999, p.
17) afirmou:

A Bahia vive desde meados da década de 40 a princípios dos anos


60 um momento de efervescência cultural extremamente denso e
singular. Este período coincide com os anos da chamada experiência
democrática no Brasil, que vai desde a queda de Vargas até o golpe
de 1964. Um momento marcado pela invenção, o experimentalismo e
pelo combate ao convencionalismo que imperava na Bahia desde o
século passado.

Glauber Rocha passou, então, a fazer cinema com seus colegas de geração.
Na Bahia daquela época acontecia um grande estímulo cultural, prosperou o cine-
ma, a música, o teatro e a Academia. Sobre os filmes de Glauber Rocha realizados
durante essa fase estética de seu cinema, foram produzidos 9 filmes, dos quais 4
são longas metragem, quais sejam: Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol,
Terra em transe e O Dragão da maldade contra o santo guerreiro. Dito isso, vejamos

11 Edgar Santos foi Reitor da UFBA de 1946 a 1961.


19

como as teorias definidas nos manifestos de Glauber Rocha se aplicam às suas


obras.

2.2 “Realmente o cinema está uma merda”: A Fome Estética

A síntese do pensamento de Glauber Rocha da época, que se convencionou


chamar de primeira fase do Cinema Novo, está grafada nas linhas de seu manifes-
to Uma Estética da Fome.
Apresentada durante as discussões sobre o Cinema Novo na Resenha do
Cinema Latino-Americano, em Gênova (Itália), em 1965, no manifesto Estética da
Fome Glauber Rocha contestava os padrões utilizados na época para a criação ci-
nematográfica, muitas vezes retirados da literatura nacional. Padrões como o conto
sertanejo que, nas palavras de Antônio Cândido (2000, p. 104-105), em sua análise
sobre o pós-romantismo da literatura brasileira, era como um

Gênero artificial e pretensioso, criando um sentimento subalterno e


fácil de condescendência em relação ao próprio país, a pretexto de
amor da terra, ilustra bem a posição dessa fase que procurava, na
sua vocação cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus
as nossas realidades mais típicas. Forneceu-lhe o ‘conto sertanejo’,
que tratou o homem rural do ângulo pitoresco, sentimental e jocoso,
favorecendo a seu respeito ideias-feitas perigosas tanto do ponto de
vista social, quanto sobretudo, estético.

Tal forma de retratação do sertanejo é um bom exemplo do que Glauber Ro-


cha referia quando enveredou pelo caminho das críticas contra os estereótipos até
então em vigor, os que, na sua concepção, não retratavam a realidade da pobreza e
da miséria do homem na América Latina.
Por esse aspecto, no manifesto da fome, o cineasta aponta o paternalismo
do europeu colonizador como sendo a forma de compreensão da miséria da Améri-
ca Latina, além de criticar a linguagem utilizada pelo cinema da época. Para Glauber
Rocha, enquanto o cinema fizesse uso de um diálogo anti-séptico e palatável, o es-
trangeiro não poderia compreender a real situação em que vivia o povo. Tal como
afirmou: “mais uma vez o paternalismo é o método de compreensão para uma lin-
guagem de lágrimas ou de mudo sofrimento” (ROCHA, 1965, p. 30).
O entendimento do cineasta em relação ao pensamento dos estrangeiros
sobre a miséria na América Latina é a de que estes enxergariam a pobreza como
uma prestação de contas com o próprio passado, como uma feliz constatação da
noção do lugar de onde partiram e onde chegaram. A “nostalgia do primitivismo”
20

(ROCHA, 1981, p. 29) faz com que esses europeus vejam a pobreza da América
Latina como um horrível passado superado e enxerguem seu próprio presente com
a alegria de quem alcançou o merecido sucesso.
Nesse manifesto o autor argumenta pela importância do uso da violência na
luta contra a miséria, mas essa violência não era associada ao ódio, e sim ao de-
sesperado desejo de transformação social. A fome e a miséria empurram os sujeitos
a situações extremas, ao ponto dos indivíduos sentirem-se pressionados a lutar por
mudanças. Sob uma ótica marxista o autor defendia que as condições de opressão
induziriam os povos explorados a se conscientizar de sua situação para, então, lutar
por melhorias. A luta, portanto, devia ser constante.
A estética da Fome expressa o projeto cultural do cineasta brasileiro da dé-
cada de 1960. Glauber Rocha acreditava ser preciso apresentar uma nova forma de
fazer cinema, uma maneira que apresentasse estratégias de escapar à dominação
moderna. Essas estratégias consistiam em apresentar a realidade em toda sua cru-
eza e patogenia:

Da fome. A estética. A preposição 'da', ao contrário da preposição


'sobre', marca a diferença: a fome não se define como tema, objeto
do qual se fala. Ela se instala na própria forma do dizer, na própria
textura das obras. Abordar o cinema novo do início dos anos 60 é
trabalhar essa metáfora que permite nomear um estilo de fazer cine-
ma. Um estilo que procura redefinir a relação do cineasta brasileiro
com a carência de recursos, invertendo posições diante das exigên-
cias materiais e as convenções de linguagem próprias do modelo in-
dustrial dominante. A carência deixa de ser obstáculo e passa a ser
assumida como fator constituinte da obra, elemento que informa a
sua estrutura e do qual se extrai a força da expressão, num estrata-
gema capaz de evitar a simples constatação 'somos subdesenvolvi-
dos' ou o mascaramento promovido pela imitação do modelo imposto
que, ao avesso, diz de novo 'somos subdesenvolvidos'. A estética da
fome faz da fraqueza a sua força, transforma em lance de linguagem
o que até então é dado técnico. Coloca em suspenso a escala de va-
lores dada, interroga, questiona a realidade do subdesenvolvimento a
partir de sua própria prática. (XAVIER, 2007, p. 13)

Um texto virulento que legitima a violência como único meio de alcançar a li-
bertação do colonialismo moderno, a Estética da Fome leva adiante a proposta de
Glauber Rocha de resgatar a identidade do povo brasileiro utilizando para isso a for-
ça da violência a fim de expulsar, em nível cultural, os estrangeiros que ameaçavam
a identidade nacional brasileira.
As obras produzidas por Glauber Rocha sob a inspiração da Estética da
Fome empenham-se em refletir sobre a própria América Latina, assim sua produção
21

artística apropria-se dos cenários e das personagens para a construção da forma de


apresentação dos países subdesenvolvidos e para provocar reflexão. A representa-
ção do real mescla-se à ficcionalidade. Para refletir sobre o Imperialismo euro-
peu/norte-americano e o colonialismo moderno é que Glauber Rocha faz uso da es-
tratégia de entretecer o discurso literário correlacionando ficção e situações reais.
Neste manifesto Glauber Rocha faz uma apologia à discussão do fazer ci-
nema num país subdesenvolvido, criticando a produção artística da América Latina
que, para ele, fora alienada pela cultura europeia e norte-americana ao produzirem
cinema com distorções que visavam tornar a realidade comercializável.
Durante os debates na apresentação de seu manifesto, o cineasta apontou
para o fato histórico do Brasil ter sido uma colônia e que, para ele, essa condição
permanecia mesmo depois da Independência. Tal condição impedia que o país se
libertasse das influências estrangeiras e fazia com que o país permanecesse depen-
dente política e economicamente dos colonizadores. Rocha (1981) acreditava que a
América Latina permanecia colônia e que a diferença do colonialismo do passado
para o atual era unicamente a forma mais aprimorada do colonizador. Assim esse
colonialismo levou os países subdesenvolvidos ao “condicionamento econômico e
político”, numa dualidade nomeada por ele de esterilidade e histeria:

A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas ar-


tes, onde o autor se castra em exercícios formais que, todavia, não
atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado da
universalização: artistas que não despertam do ideal estético adoles-
cente. Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados
e esquecidos; livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes [...] A
histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca
discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca
a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução polí-
tica da arte que faz má política por excesso de sectarismo. O tercei-
ro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte po-
pular. (ROCHA,1981, p. 29)

Ismail Xavier em Sertão Mar (2007) relaciona o Manifesto da Violência12 de


Glauber Rocha com a argumentação de Frantz Fanon (1968) em “Os condenados
da terra”, elucidando o caráter resistente dos textos em questão. Para Xavier (2007,
p. 184), Rocha e Fanon assemelham-se na defesa da legitimidade da violência co-
mo única possibilidade do colonizado reagir frente à dominação que lhe é imposta:
“‘Uma estética da fome’, tal como o livro de Fanon, tem essa dimensão de discurso

12 Tradução italiana do original em português Estética da fome.


22

para o Outro, ou seja, para a consciência do colonizador ou do colonizado que ainda


se vê com olhos do colonizador” (XAVIER, 2007, p. 184). O modelo colonial era
combatido através da afirmação da cultura nacional, a afirmação da identidade dos
sujeitos brasileiros era o instrumento de luta. A não aceitação, a negação do servi-
lismo constituiu uma das bases do Cinema Novo e da criação da identidade do ser
latino-americano. Para a construção dessa identidade a primeira negação foi a da
autoridade do colonizador.
Nas palavras de Silva (2013, p. 74): “A identidade assim concebida parece
ser uma positividade (‘aquilo que sou’), uma característica independente, um ‘fato’
autônomo. Nessa perspectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela
é auto-contida e auto-suficiente.” A identidade só existe através de oposições. Neste
sentido o eu só existe em função da negação do outro, essa diferença entre ambos
passa a se cristalizar no processo de construção da identidade.
O manifesto da fome externou o pensamento do autor em relação ao pro-
cesso de fixação da identidade nacional através da violência pura. O primeiro passo
para o povo latino-americano se libertar dos imperialistas seria identificar elementos
de sua própria cultura, resgatando os hábitos de sua própria gente estabelecendo
assim as diferenças entre os colonizados e os colonizadores, que são o outro. A
ideia era a de que o processo de criar pontos em comum entre esses indivíduos co-
lonizados fizesse com que brotasse o sentimento de unidade, o de pertencimento
nacional.
O cinema defendido pelo manifesto da fome apresenta a realidade de ma-
neira simbólica; não há lugar para o limpo e para o belo; vigora a sujeira e a violên-
cia. Nas obras produzidas dentro dessa corrente estética Glauber Rocha apresentou
corpos cujo aspecto físico – existencial – aparecem dilacerados pela fome: "nossa
originalidade é nossa fome" (ROCHA, 1981, p. 30). Para completar o quadro de ver-
dade suja e visceral o cineasta acrescentou a sexualidade exacerbada. A presença
do sexo em Riverão Sussuarana é um traço característico da Estética da Fome, cuja
potência deslocadora explode em trechos como o seguinte:

‘Tem dezoito anos canta como passarinho. Não é virgem. Fui o pri-
meiro. Já passou toda vaqueirada na cara. Não é puta. Docê de
côco. Se quiser vá e coma. Ela gosta. Não resiste. Não pode ver
pauzim. Viciada. Coxa sovaco ouvido e num tem doença venérea.
Excrachada. Já pariu menino com cabeça de porco. Tem cancer nos
quatro peito. Gostosa como que!’ (ROCHA, 2012, p. 17).
23

Nessa citação Linda (filha de Riobaldo e Diadorim) é descrita pelo Coman-


dante que a criou como filha. Em citações como essa o autor externa a completa
falta de preceitos morais que direcionem comportamentos tal como se conhece nas
sociedades modernas.
Nas sentenças a seguir a penetração, no ato sexual, relaciona-se com vômi-
to e matéria fecal, criando uma cena grotesca e que pode ser sentida como abjeta,
com impacto forte demais para não ser percebido.

Quando chegou as água Riverão Sussuarana amontou largado com


Rã, incostou ela no tronco da Manga Rosa mandou abrir a buceta e
primeiro meteu o dedo depois a pica com tanta força que Rã berrou
vomitando pirão de vaqueiro (ROCHA, 2012, p. 45).

Nega tinha um cu molinho que Adeodato comeu na latrina esfregan-


do merda pra melá milhó. [...]
Depois Nega comeu duro pra cagar no inhanhã na latrina e corria
com o cu ardendo pra cabeça do caralho Deodato (ROCHA, 2012, p.
49).

As citações acima mencionadas aparecem no romance de Glauber Rocha e


surgem como sinais da presença do pensamento que moveu o artista quando da
escrita do manifesto da fome.
Em 1965 Glauber Rocha lançou o texto manifesto Eztetyka da Fome na Re-
senha do Cinema Latino-Americano, em Gênova. Nesse texto Glauber Rocha faz
uma apologia a discussão do fazer cinema num país subdesenvolvido. O manifesto
faz parte de seu projeto de descolonização cultural. Nele o cineasta apresentou uma
proposta de fazer arte cuja relação com a realidade fosse de correspondência plena,
sem fantasias ou maquiagens, opondo-se à forma de fazer cinema e de pensar dos
que ele chamava de colonizadores.
Para Glauber Rocha o cinema, nos moldes que era concebido na época, o
cinema comercial, não era o ideal para externar a realidade do Terceiro Mundo. Es-
se tipo de feitura cinematográfica tematizava o que ele chamou de “paternalismo”
(ROCHA, 1981, p. 30) europeu em relação ao Terceiro Mundo. A linguagem sofisti-
cada, limpa, rica e bem acabada desses filmes era incapaz de atingir a crueldade da
pobreza.
O cineasta advogava em favor do cinema verdade13, em que a fome e a
pobreza seriam expostas em toda sua brutalidade, sem romance nem glamour.

13Neste ponto desconsidera-se as questões epistemológicas que existem em torno do que seja ver-
dade e o caráter de representação imanente ao cinema. Dessa forma, não nos interessa refletir sobre
24

Glauber Rocha (1981, p. 37) tinha seu próprio conceito do que seria o cinema ver-
dade:

É, em regra geral, um tipo de documentário em que se usa o som di-


reto, entrevistando pessoas, personagens, e recolhendo som da rea-
lidade, fotografando de uma forma direta, procurando captar o maior
realismo possível, daí a palavra verdade; ou seja, um tipo de docu-
mentário que procura pelo som e pela imagem refletir uma verdade,
uma realidade.

Com esse pensamento o cineasta acreditava que imprimir em seus filmes


caracteres que expressassem como as pessoas realmente viviam era uma maneira
de utilizar a arte como instrumento de contestação, em favor de uma sociedade mais
justa e igualitária. O manifesto pregava coerência entre o que se dizia e o que era
apresentado nas obras de arte: “somente uma cultura da fome, minando suas pró-
prias estruturas, pode superar-se qualitativamente: a mais nobre manifestação cultu-
ral da fome é a violência” (ROCHA, 1981, p. 31)
No estudo compreende-se que tal estética, apresentada em 1965, enqua-
drava Glauber Rocha na linha do Realismo. Nesse manifesto Glauber Rocha aponta
que o europeu só se interessava pela América Latina para satisfazer instintos primi-
tivos e considera que, para os colonos, a fome nos países do Terceiro Mundo não
passa de “surrealismo tropical” (ROCHA, 1981, p. 31).
Ao atacar o gosto europeu pela miséria da América Latina o autor do mani-
festo apresenta uma alternativa de mudança ao sugerir que a conscientização do
colonizador só acontecerá através da exposição nua da violência. O horror e dureza
ao qual o colonizado é submetido não devem sensibilizar, provocando o humanismo;
devem chocar, provocando indignação e horror, fazendo com que os europeus per-
cebessem, de fato, a miséria latina.
Em sua tese “É que Glauber acha feio o que não é espelho: a invenção do
Cinema Brasileiro Moderno e a configuração do debate sobre o ser cinema nacional”
Frederico Osanan Lima – ao passo que enfatiza a importância do manifesto Uma
Estética da Fome para o entendimento das ideias do Cinema Novo – questiona seu
caráter incontestável:

A Eztetyka da fome pode ser vista como a grande armadilha retórica


de Glauber. Ao mesmo tempo em que procura encontrar culpados,

questões tais como se o cinema de Glauber reflete uma dada realidade ou se faz uma composição
com fragmentos reais, interessa-nos sim analisar como os elementos estéticos defendidos por Glau-
ber em seus manifestos podem ser identificados no romance e nas cartas.
25

aponta as pistas para compreender suas fragilidades [...] acusa a lei-


tura atravessada que os estrangeiros fazem da miséria latino ameri-
cana e não percebe que sua interpretação desta miséria é, e fatal-
mente será depois de 1965, uma leitura também caolha. [...] Ela não
é capaz de se dizer! Ela não é compreensível senão aos olhos e sa-
bores de quem a experiencia. Ela não pode ser compreendida, como
Glauber insistentemente tentou demonstrar em seu texto, a partir de
filmes que levem ao extremo os temas da fome (LIMA, 2012, p. 166).

O autor argumenta que só quem pode sentir o significado da pobreza é


quem vive ou já viveu nela. Por mais que se tentem produzir filmes com característi-
cas reais, com o objetivo de fazer com que o espectador compreenda a dimensão da
miséria em que o povo vive, ainda assim não é possível transferir aos espectadores
os sentimentos e sensações que a fome e a miséria extrema provocam. Todos os
esforços em fazer um cinema real parecem ser insuficientes para externar o estado
de penúria em que a maior parte das pessoas vivem, ainda assim são necessários
esses esforços, na tentativa de aproximar o máximo possível a ficção da realidade.
Com vistas a compreender a aplicação da Estética da Fome defendida pelo
autor apresenta-se aqui uma breve explanação sobre os filmes e suas principais ca-
racterísticas, a fim de facilitar o entendimento do processo de transição do pensa-
mento de Glauber Rocha através da comparação dos manifestos.
Filmado em preto e branco, na praia do Buraquinho, em Itapuã, na Bahia,
Barravento14 é uma narrativa de tempo linear. O filme é uma severa crítica à religio-
sidade exacerbada que, segundo Firmino, impede o povo de perceber a exploração
e miséria em que vivem. As filmagens desse longa foram iniciadas sob a direção de
Luiz Paulino dos Santos; Glauber Rocha ocupava, então, a função de produtor exe-
cutivo. Durante as filmagens problemas ocorridos fizeram com que Glauber Rocha
assumisse a direção do filme. O roteiro inicial era o de um drama, contudo estar fren-
te a frente com a miséria que ele só conhecia em teoria transformou a maneira de
pensar do cineasta e Barravento passou de drama a instrumento de denúncia da
pobreza, da violência e da exploração. O filme deixou de ser apenas uma narrativa
fictícia e assumiu a responsabilidade social de denunciar a paupérie dos pescadores
bahianos. Glauber Rocha inicia Barravento (1962) com a seguinte assertiva:

No litoral da Bahia vivem os negros pescadores de 'xareu', cujos an-


tepassados vieram escravos da Africa. Permanecem até hoje os cul-
tos aos Deuses africanos e todo êste povo é dominado por um misti-

14Esse filme retrata a vida numa aldeia de pescadores. O protagonista – Firmino – saíra da aldeia
para fugir da pobreza e quando para lá retorna tenta livrar seu povo dos domínios da religião.
26

cismo trágico e fatalista. Aceitam a miséria, o analfabetismo e a ex-


ploração com a passividade característica daquêles que esperam o
reino divino.'Yemanjá' é a rainha das águas, 'a velha mão de Irecê',
senhora do mar que ama, guarda e castiga os pescadores. 'Barra-
vento' é o momento de violência, quando as coisas de terra e mar se
transformam, quando no amor, na vida e no meio social ocorrem sú-
bitas mudanças. Todos os personagens apresentados nêste filme
não têm relação com pessoas vivas ou mortas [...] Os fatos contudo
existem (grifo nosso).

Essa introdução já apresenta o caráter realístico do filme, ou seja, retrata o


esforço do cineasta em dar ao filme a maior aproximação possível com a realidade,
apontando para o tipo de leitura que espera seja feita da obra15. Até então Glauber
Rocha trabalhava sob forte inspiração em Eisenstein, como se pode observar nos
curtas-metragens que antecederam Barravento: primeiro O pátio, seguido de Cruz
na praça. Foi a partir de Barravento que Glauber Rocha passou a se aproximar do
neo-realismo italiano.
Em Deus e o Diabo na terra do sol16 existem personagens estratégicos: o
profeta que, diante da fome, miséria e ignorância em que o povo vivia, acabava por
condicioná-los em um fanatismo religioso que culminava em sacrifícios humanos e
funcionava num dualismo entre o bem e o mal. O outro personagem é Corisco, tam-
bém conhecido como o diabo louro, um cangaceiro que foi do bando de Lampião,
com quem o camponês – na sequência de sua fuga – se junta logo depois. Enquan-
to para o profeta a fome, a miséria e a ignorância levavam ao fanatismo religioso,
para o cangaceiro tal condição é desencadeadora de um processo revolucionário.
Esses dois personagens, no enredo, simbolizam os processos de transformação que
a realidade do sertão provoca em seu povo.
Antônio das Mortes, personagem chave, é o matador de cangaceiros contra-
tado para matar Corisco e os beatos. Segundo interpretação do pesquisador de ci-
nema Ataídes Braga (2001, p. 138),

Antônio das Mortes [...] que matou muitos cangaceiros, inclusive Co-
risco – é quem tem a missão libertadora de matar os beatos e o can-
gaceiro, proporcionando a revolução das consciências. Incorporando
o próprio cineasta, ele tem por objetivo destruir a crença em uma
utopia, fazer história.

15 Em vários momentos da obra o cineasta fez uso de imagens do cotidiano da comunidade pesqueira
para a gravação do filme, uma dessas imagens pode ser visualizada na fotografia 1, no anexo desta
Dissertação.
16 Um camponês que, cansado da exploração em que vivia, mata o patrão e foge, em sua fuga junta-

se ao profeta Sebastião e seus beatos.


27

Interpretado como uma personificação do próprio Glauber Rocha, Antônio


das Mortes buscaria alcançar a sonhada libertação das consciências que o cineasta
defendia, um desmascaramento social do sertão. Ainda segundo Braga (2001,
p.138), verifica-se nesse filme a inspiração do autor no trabalho de cineastas como
John Ford, Godard, Eisenstein e Visconti, todos filmes fundidos de forma anárquica
na composição cênica, narrativa e no drama da tragédia.
O terceiro longa-metragem de Glauber Rocha foi Terra em transe17 é de te-
mática política e também urbana. Esse filme figura a contradição política do Brasil e
as personagens são alegóricas: há o homem do povo, a burguesia, o operariado e a
classe trabalhadora. O filme abre uma ampla discussão sobre o populismo, com
Jardel Filho fazendo o papel de Paulo Martins, um jornalista que tinha compreensão
de todo esse contexto.
O enredo de todo o filme acontece em torno da rememoração da vida, como
memórias de Paulo Martins, durante sua morte. Terra em transe representa um re-
trato de uma realidade dominada por questões ilusórias sobre a política. Pertencente
à segunda fase do Cinema Novo, esse filme apresenta características peculiares tais
como movimentos de câmera perturbadores para o espectador, tempo irregular e
descontinuidade.
Em seus quatro primeiros longas-metragem Glauber Rocha fez uso do ideo-
grama18, como definido por Einsenstein e foi severamente inspirado por teorias e
trabalhos dele. Em Terra em transe há transgressões das convenções de continui-
dade:

17 O filme se desenrola num país imaginário chamado Eldorado onde Paulo Martins, um jornalista e
poeta idealista é ligado à Porfírio Diaz, um político conservador em ascensão. Porfírio tem uma aman-
te, Silvia, com quem Paulo Martins também mantém um caso. Após Porfírio ser eleito Senador, Paulo
segue para a cidade de Alecrim, onde conhece a ativista Sara com quem passa a se relacionar e,
juntos, apoiam o também político Felipe Vieira. Este último é um populista que decide se candidatar a
governador; Sara e Paulo resolvem apoiá-lo na esperança de conseguirem lançar um novo líder polí-
tico que seja capaz de tirar a população da situação miserável em que viviam. Quando ganha as elei-
ções Felipe Vieira não tem energia para se opor às forças econômicas que o financiam e nada faz
para mudar a condição do povo. Tais acontecimentos deixam Paulo descrente e faz com que ele
volte à capital, abandonando Sara. Novamente na capital, Paulo se associa, dessa vez, a Júlio Fuen-
tes, o maior empresário do país, que lhe diz que Fernandez, o presidente, conta com o apoio financei-
ro de uma multinacional que pretende assumir o controle do capital no país. Diaz concorre à presi-
dência apoiado por Fernandez e Fuentes abre um canal de televisão para o jornalista Paulo usá-lo,
atacando o candidato Porfírio Díaz. Mais uma vez Paulo se une a Vieira na campanha para presiden-
te mas Fuentes trai ambos e se associa a Diaz. Paulo decide partir para a luta armada, mas Vieira
não o acompanha.
18 Eisenstein (1977, p. 167-168) explicou como o cinema se desenvolve: “o desenho da água e o de-

senho de um olho significam ‘chorar’; o desenho de uma orelha perto do desenho de uma porta =
'ouvir'. [...] é exatamente isso que fazemos no cinema, combinando tomadas que pintam, de significa-
do singelo e conteúdo neutro – para formar contextos e séries intelectuais".
28

Dois planos, por exemplo, mostram Sara entrando pela mesma porta
duas vezes em seguida, cada vez duma maneira ligeiramente dife-
rente, numa repetição que o próprio filme assinala como sendo tem-
poralmente impossível. A violência, sobretudo, constantemente de-
realizada pela montagem. Há armas onipresentes no filme, mas es-
tas nunca são coordenadas com seus ruídos. Vemos pistolas e ou-
vimos metralhadoras; ouvimos metralhadoras mas não vemos nada.
[...] Em geral, a câmera não acompanha diretamente a ação; em vez
disso ela se movimenta duma maneira geométrica, coreografada,
criando uma contradição entre os movimentos dos personagens e os
da câmera. O trabalho da câmera extremamente 'visível' e essa visi-
bilidade é designada como tal pela inclusão, em certos planos, do
próprio equipamento cinematográfico. A uma certa altura, vemos um
cameraman realizando exatamente o mesmo plano – do homem do
povo massacrado – que acabamos de ver no filme. (Stam, 1976, p.
177-178)

O fragmento salienta, portanto, uma característica de transição, vez que sur-


ge a presença mais consistente de elementos próprios da Estética do Sonho, no
qual Glauber Rocha trabalha a montagem do filme transformando-a em novo ele-
mento estético.
Nesse filme Rocha explora a teatralidade da vida do povo brasileiro e expur-
ga o romantismo decisivamente, tal como o próprio Glauber Rocha assumiu: as ilu-
sões de Paulo também foram as suas ilusões. Mesmo pertencendo à segunda fase
do cinema brasileiro, o filme carrega ameaças de antirrealismo, coisa que se obser-
va com mais ênfase na fase em que Glauber Rocha passou a guiar-se mais enfati-
camente pelas diretrizes expostas na Estética do Sonho.
Em estilo inspirado no western,19 O dragão da maldade contra o santo guer-
reiro20 é considerado a continuação de Deus e o Diabo na terra do sol. Pertencente
à segunda fase do Cinema Novo, no exterior esse filme é conhecido como Antônio
das Mortes, o nome do protagonista que também aparece em Deus e o Diabo na
terra do sol. Nesse longa metragem Glauber Rocha aborda questões que já haviam
sido representadas em obras anteriores, tais como a resistência cultural do povo, o
conflito de classes e a opressão sofrida pelo povo. Em uma de suas cartas Rocha
(1997) afirma a avaliação dessa obra:

19Os também conhecidos como filmes de cowboy, faroeste ou bang bang.


20 O protagonista do filme é Antônio das mortes, uma espécie de caçador de recompensas, matador
de cangaceiro e responsável pela morte de Lampião. Antônio atua a mando dos coronéis e até da
Igreja. Acionado pelo velho e cego fazendeiro Coronel Horácio, que representa os latifundiários que
sustentam a desigualdade perpétua, Antônio mata Corisco, um cangaceiro que foi braço direito de
Lampião e ainda lutava pelo povo. Após matar Corisco, Antônio começa a refletir sobre sua vida e
seus atos e passa a repensar suas próprias ações numa crise existencial. Como um tipo de alter-ego
de Glauber Rocha existe ainda o Professor, personagem que vê todos os acontecimentos analitica-
mente.
29

Eu me torno no Dragão um intelectual orgânico21. Eu acho O Dragão


o meu melhor filme. Uma realização perfeita das minhas ideias. Lá
eu tenho um palco, uma limitação espacial. Eu realizo um mis-en-
scène brechtiano com signos da sociedade brasileira onde eles real-
mente tinham que se realizar no Terceiro Mundo.

O próprio cineasta, no trecho citado, apontou as possibilidades que O Dra-


gão da maldade contra o santo guerreiro lhe proporcionou: o perfeito cenário serta-
nejo que seria palco das lutas entre messiânicos e cangaceiros.
Nesse longa-metragem pode-se verificar a presença de algumas estratégias
afirmadas por Glauber Rocha em seu manifesto da fome. Há a presença da questão
social, da cultura popular; o filme é repleto de referências aos cordéis tipicamente
nordestinos22. Observa-se ainda a presença marcante da religiosidade e de perso-
nagens alegóricos cujas características representam não apenas uma pessoa, mas
toda uma classe social.
Tais filmes trazem elementos mais fortes da Estética da Fome pois os suce-
dem a essa fase já podem ser analisados como apontando para uma nova aborda-
gem estilística, qual seja a apresentada pelo autor em seu manifesto A Estética do
Sonho.

2.3 “O irracionalismo libertador é a mais forte arma do revolucionário”: O So-


nho Estético

Em 1971 Glauber Rocha escreveu seu segundo manifesto: a Eztetyka do


Sonho, apresentado nos Estados Unidos aos alunos da Universidade de Columbia.
Também conhecido como Estética do Inconsciente, o segundo manifesto de Glauber
Rocha tem como ideia principal o sonho. Com claras referências ao cinema de Luís
Buñel e ao Movimento Surrealista, a Estética do Sonho alicerçava suas teorias no
plano do inconsciente. Andre Breton escreveu o Manifesto do Surrealismo (1924),
texto em que o artista apresenta a proposta estética do movimento e seus princípios:

O surrealismo, tal como o encaro, declara bastante o nosso


não-conformismo absoluto para que possa ser discutido trazê-lo,
no processo do mundo real, como testemunho de defesa. [...] O sur-

21
“Então, são orgânicos os intelectuais que, além de especialistas na sua profissão, que os vincula
profundamente ao modo de produção de seu tempo, elaboram uma concepção ético-política que os
habilita a exercer funções culturais, educativas e organizativas para assegurar a hegemonia social e o
domínio estatal da classe que representam (GRAMSCI, 1975, p. 1518 apud SEMERARO, 2006, p.)”.
apud SEGATTO, p. 378).
22 Cf. no Anexo (Fig. 3) a imagens de caracteres típicos dos cordéis e em obras sobre a cultura nor-

destina.
30

realismo é o 'raio invisível' que um dia nos fará vencer os nossos ad-
versários.

Para os adeptos dessa manifestação artística o manifesto recomenda que


devem fugir da lógica e da razão, que devem adotar uma realidade superior. Glauber
Rocha se manifestou encantado com o surrealismo espanhol, o de Salvador Dalí e o
de Luís Buñel.
Na Estética do sonho o cineasta aponta para a produção de obras de arte
cujo cerne deveria ser a religiosidade do povo brasileiro, vista como instrumento pa-
ra alcançar a conscientização popular e provocar movimentos revolucionários no
Brasil procurando mudanças e melhorias sociais. Em seu discurso, o baiano afirmou
que a

Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o ho-


mem a tal ponto que ele não mais suporte viver nesta realidade ab-
surda. [...] Esta raça, pobre e aparentemente sem destino, elabora na
mística seu momento de liberdade (ROCHA, 1981, p. 221).

O cinema mundial se modernizava e o movimento do Cinema Novo surgiu,


então, com uma proposta de transformação da linguagem cinematográfica brasileira
em busca da libertação da presença estrangeira no mercado nacional. Glauber Ro-
cha acreditava ser possível desestruturar a dominação colonial dos países do Ter-
ceiro Mundo através de um discurso cinematográfico inovador e, para isso, fazia uso
de uma linguagem bruta, capaz de tornar o cinema um instrumento de subversão:

Para Glauber Rocha, o cinema moderno brasileiro é o rompimento


com a narrativa clássica linear, tradicional, imposta aos cineastas e
ao público pelo cinema estrangeiro e a tomada do cinema pelos inte-
lectuais. E isto significava uma mudança nos modos de cortar e
montar um filme. Na criação de um novo ritmo e um outro tempo.
(GERBER, 1982, p. 128, grifo nosso)

Destacados no excerto acima estão os elementos estéticos que Glauber Ro-


cha julgava importante alterar para alcançar a nova proposta: corte, ritmo e tempo
do filme. Essas transformações seriam uma verdadeira subversão dos moldes clás-
sicos de fazer cinema. A linguagem do cinema deveria afastar-se da narrativa clás-
sica linear e aproximar-se da linguagem do inconsciente. O tempo e o espaço deve-
riam ser percorridos e aproveitados em todas as direções, tanto quanto possível.
Segundo Rocha (1981) o ator é capaz de materializar o inconsciente do coletivo. Ele
passa a utilizar recursos que o cinema tem à sua disposição também em Riverão
Sussuarana, uma vez que ali é permitido alterar o tempo, acelerar ou retroceder e
31

até mesmo reinventá-lo. O tempo pode ser dominado sem necessidade de quais-
quer mecanismos lógicos. A lógica, por esse aspecto, é inexistente.
Na redação do romance o autor, apoiando-se nesse manifesto, brinca com
as palavras e com a ausência de lógica, de exigência racional, fazendo de seu texto
uma novidade barroca23 estética:

[...] Catavento do Cativeiro, liberdade com o resto daquelas massas


aberturas das caudaloseuclidianas nos arquipelagos dvsc-mares
perdidos, infra tensão da menoria, explicação da fomortal em Lagoa
Baixa nos 48 febris de Riverão louco no casebre benzido pelo banho
de folhas de Benjamim Arapuã que o enrola num couro de Jacaré [...]
(ROCHA, 2012, p. 97).

Nesse fragmento de Riverão Sussuarana observa-se a fusão de termos e


palavras, em um processo de criação de neologismos feitos pelo autor, cuja sensa-
ção provocada no leitor é de procura insana pela perturbação do sentido. Some-se a
isso a completa ausência de parágrafos e pontuação do texto. Tudo isso configuram-
se como elementos da Estética do Sonho aplicados ao texto literário.
Considerado hermético e truncado, o último filme produzido por Glauber Ro-
cha foi A Idade da Terra; lançado em 1980, pertencia já à sua nova abordagem ci-
nematográfica. Em carta enviada para o escritor e amigo Jorge Amado, em 1978,
Glauber Rocha (1997, p. 635) comenta: “Esse filme é o mais moderno e revolucioná-
rio dos anos 70 no mundo. É novo em enquadramento, em som, interpretação, mon-
tagem – uma novidade Barroca-épica”. Nesse trecho é possível observar as caracte-
rísticas que identificam a Estética do Sonho, um filme gravado com total liberdade
estética.
Citando Jorge Luis Borges, Glauber Rocha (1981) aponta para a dilatação
de sua sensibilidade em busca da libertação acreditando que romper com os “racio-
nalismos colonizadores” (ROCHA, 1981, p. 219) seria a única maneira de se libertar.
Para o cineasta as vertentes políticas estavam presas à razão colonizadora e o pró-
prio pensamento que o povo tinha de si não condizia com a realidade, mas sim com
o que os colonos achavam que era sua realidade: “A razão do povo se converte na
razão da burguesia sobre o povo.” (ROCHA, 1971, p. 219). A força dessa convicção
impele Glauber Rocha a perambular pelos domínios da mística e da desrazão (RO-
CHA, 1981, p. 220). Bentes (2002, p. 3) aponta uma mudança no posicionamento
estético do artista:

23
Cf. carta de Glauber Rocha (1997, p. 635).
32

O que Glauber parece dizer é que nenhuma explicação histórica, so-


ciológica, marxista ou capitalista, pode dar conta da complexidade e
tragédia da experiência da pobreza, algo, para ele, da ordem do ‘in-
cognoscível’, do ‘impensado’ e do ‘intolerável’.

Convencido de que o povo não poderia ser convertido através da estética da


violência justamente por não ser consciente de sua própria miséria é que Glauber
Rocha optou por expor – através da arte – os limites do místico, do sonho e da fé,
pois esses eram terrenos conhecidos para o povo. Essa articulação de mito versus
revolução buscava construir uma nova mitologia popular com consequência impor-
tante:

A colonização cultural do nosso cinema gera a colonização cultural


de nosso povo. O povo brasileiro é inconscientemente deformado pe-
la visão moral e artística do cinema americano e por isto, inconscien-
temente, venera e respeita os Estados Unidos. O fenômeno é igual
na América Latina. Hollywood, impondo sua civilização através do ci-
nema, debilita psicologicamente o povo e consolida sua penetração
econômica. (ROCHA, 1986, p. 81)

Nessa nova abordagem Glauber Rocha evita cair na armadilha da idealiza-


ção dos colonizados, não apontando explicações para os fatos, mas fazendo uma
fusão de religiosidade, fome e transe, num movimento simbólico.
As obras que Glauber Rocha produziu nesse período são caracterizadas por
narrativas desordenadas, provocadoras de sensações conflituosas, e por movimen-
tos que confundem e instigam o espectador, proporcionando ora entusiasmo intelec-
tual, ora desordem e desconforto. Ivana Bentes (2002, p.4), no artigo Terra de fome
e sonho: o paraíso material de Glauber Rocha, interpreta a proposta do manifesto:

Glauber propõe em Eztetyka do Sonho uma nova relação entre a arte


e revolução. Proposta que se afasta do realismo crítico, do cinema
de inspiração literária, do cinema político latino-americano nos 60 e
se aproxima ainda mais da antropofagia moderna, do surrealismo eu-
ropeu, do realismo mágico latino: Jorge Luis Borges, Gabriel Garcia
Marques, Jorge Amado, Luis Buñuel [...].

Em 1971, numa carta ao amigo e produtor Claude-Antoine, referindo-se ao


seu quinto longa-metragem e primeiro filme realizado no exílio, “O Leão de Sete Ca-
beças” – tradução de “Der Leone Have Sept Cabeças”, filme em que são veiculadas
duras críticas ao colonialismo euro-americano sobre os povos negros e cujo título é
formado por palavras nos idiomas dos principais países que colonizaram o continen-
te negro –, Glauber Rocha afirmou:
33

Devo ser muito franco com você: o filme é muito bom. Eu o vi em


New Yorq depois de um ano e estou seguro que é um verdadeiro fil-
me revolucionário e... popular. Foi o reacionarismo racionalista da
crítica francesa e a mentalidade reacionária do público. O filme con-
testa de uma maneira brutal e honesta a cultura europeia, o cinema,
a política. É um filme humilde e insolente. É um filme sujo, direto, irô-
nico, dialético e não demagógico. [...] É um filme sobre o mito. Um
filme mágico, primitivo, inconsciente e panfletário. É uma profe-
cia sobre o Terceiro Mundo, o cinema etc. É também uma montagem
espacial, o tempo não existe, somente a ação dramática etc. É um
filme vulgar etc. [...]” (ROCHA, 1997, p. 390, grifo nosso).

As afirmações de Glauber Rocha na carta citada testemunham sua defesa


em favor de uma reformulação na forma de fazer cinema, uma maneira que passas-
se a contemplar também o misticismo do povo. Os trechos da carta, grifados indicam
as expressões que se relacionam à exposição de ideias no Manifesto do Sonho.
O Leão de Sete Cabeças e Cabeças cortadas são dois filmes desse período
de transição estética de Glauber Rocha. Nesse percurso o cineasta iniciou de forma
mais evidente a passagem da Estética da Fome para a Estética do Sonho, apostan-
do menos em narrativas lineares e bem definidas e dando mais poder aos símbolos
e alegorias apontados nos filmes. Sobre essa reformulação Ruy Gardnier (2014) re-
flete: “Se a transformação é só uma questão de tomada de consciência, o realismo
resolve. Se, no entanto, há camadas mais profundas, o realismo é inócuo e só uma
iconografia delirante pode dar conta dessa outra ‘realidade’”.
Essa transição é um tempo de redefinição estética de Glauber Rocha e re-
presenta o abandono do consciente como destinatário da mensagem e o ingresso
no universo do inconsciente, como que acreditando que a miséria e exploração a
que o povo estava submetido não eram apenas fatos, mas crenças e modelos cra-
vados em seus subconscientes.
Sobre o filme de transição, O leão de sete cabeças, Glauber Rocha o des-
creve como

[...] o anti-espetáculo didático. É uma articulação dialética (claro,


simples esquemático etc.) dos signos determinados pelas estruturas
significantes das contradições revolucionárias do 3º Mundo, materia-
lização e desmistificação dos mitos alienantes (ROCHA, 1997, p.
468, grifo do autor)l.

Nesse filme o autor decide aplicar um método didático e simples, para al-
cançar seu público. Com personagens alegóricos que param em frente à câmera e
34

falam para o telespectador24, essas figuras simbólicas narram de forma direta os


pontos de vista e ideologias da classe que representam. É o que podemos perceber
nessa fala de Zumbi (1970):

Há 2 mil anos, leões e leopardos corriam livres pela floresta, os deu-


ses eram livres no céu e mares. Há 500 anos vieram os brancos e
suas armas de fogo massacraram leões e leopardos, e suas armas
de fogo incendiaram o céu e a terra dos deuses. Levaram nossos
reis e nosso povo para a América como escravos. Nossos deuses
partiram com eles. Na América viram os sofrimentos de nossos reis e
nosso povo. Os negros penaram para enriquecer aos amos brancos,
seu suor era de sangue que adubou os tabacais, algodoais, canavi-
ais e todas outras riquezas da América. Um dia, nosso povo pegou
em armas para reconquistar a liberdade. Nós e os deuses lutamos
mais de 300 anos contra os brancos, que nos dizimam barbaramen-
te, mas não matarão a mim Zumbi, que reencarno os chefes assas-
sinados. Esta lancha rachará a terra em duas. De um lado ficarão os
carrascos; do outro, toda a África...livre. Aqui e em todo lugar, todo
negro levará em si um pouco da África. Mas agora não enfrentare-
mos suas armas com lanças e com magia. Contra o ódio o ódio.
Contra o fogo o fogo.

Colocado de forma didática está o posicionamento do negro revolucionário,


o negro que não aceita a cooptação branca. Glauber Rocha apresenta, nesse filme,
uma proposta de reconstrução identitária das comunidades africanas através da re-
volução.
Segundo o próprio Glauber Rocha (2006), em entrevista que concedeu a Mi-
guel Pereira em 1979, as condições em que ele se encontrava entre os anos de
1969 e 1970 permitiram a feitura do discurso que ele chamou de “O leão das sete
cabeças cortadas”, em que o autor propôs investigar a origem dos dois campos cul-
turais apontados nos filmes: o africano e o hispânico. A busca era a de representar
sempre as origens formadoras da nacionalidade latino-americana, as mitologias for-
madoras do nosso continente. Um estudo sistemático do campo antropológico é
chamado de raça latino-americana.
Quando Glauber Rocha apresentou seu segundo manifesto ao público, ele já
colocara em prática aquela teoria. Em Cabeças cortadas, por exemplo, Glauber Ro-
cha faz alusão ao Surrealismo espanhol. Toda a simbologia do longa, bem como seu
figurino remetem àquele movimento:

O sonho e a imaginação são por definição os elementos que fazem o


homem sair de sua inércia e de sua letargia. São os acionadores de
uma postura que aguçará seu ímpeto de transformar a realidade ab-

24 Cf., no Anexo a Fig. 2, que exemplifica o formato.


35

surda que o aprisiona. Portanto, sonho e irracionalidade são ferra-


mentas libertadoras capazes de ultrapassar a razão opressora bur-
guesa. As primeiras vanguardas do pensamento se resultaram infru-
tíferas porque insistiam em responder à razão opressiva com a razão
revolucionária. A única maneira de instaurar a configuração de um
novo signo revolucionário é a junção do verdadeiro artista revolucio-
nário – que obrigatoriamente precisa estar completamente desvenci-
lhado da cultura e da razão burguesas – com as estruturas da cultura
popular. (GARCIA, 2014)

O sugestivo título do filme, Cabeças Cortadas, simboliza a necessidade de


jogar fora toda razão e consciência para dar lugar ao que não é possível apresentar
com atos coerentes. Esse título sugere aspectos apontados pelo cineasta em seu
manifesto do Sonho, sinalizando a des-razão25 como alternativa de resistência às
arbitrariedades dos países imperialistas colonizadores.
Para Glauber Rocha, o cinema tinha mais meios de realizar os truques de al-
teração da temporalidade linear, pois a palavra transformada em imagem oferecia
mais impacto ao que estava sendo representado:

Não querendo negar as possibilidades da literatura, cremos que o ci-


nema é o sistema estético mais armado para realizar essa experiên-
cia plenamente ‘imponderável’ no momento. [...] a busca da intempo-
ralidade é um fato abstrato que Faulkner conseguiu realizar antes do
cinema, mas que poderia ser encontrado em trechos isolados da his-
tória fílmica (ROCHA, 1959, p.103-105).

Depois de Cabeças Cortadas Rocha ainda foram produzidos 7 filmes, porém


os que interessaram como objeto de pesquisa para esta dissertação são os dois úl-
timos – Claro e A Idade da Terra –, de não-ficção. Claro foi gravado em Roma du-
rante a primavera e apresenta indícios dos recursos que o cineasta passaria a utili-
zar em seus próximos filmes. Essa também é uma obra de transição em que o cine-
asta emprega estratégias estilísticas dos filmes anteriores que incluem também in-
tervenções do autor que se mostrarão posteriormente em DI e Jorjamado no Cine-
ma, dois documentários. Claro é o primeiro filme dirigido por Glauber Rocha em que
ele aparece em frente às câmeras. Suas características interventivas também serão
expostas no programa de televisão chamado Abertura.
25 A produção literária de William Faulkner fazia uso do que ficou conhecido como Fluxo de consciên-
cia: "O romance do fluxo da consciência pode ser mais rapidamente identificado por seu conteúdo, que o distin-
gue muito mais do que suas técnicas, suas finalidades ou seus temas". Esses "romances a que se atribui em alto
grau o uso da técnica do fluxo da consciência provam, quando analisados, serem romances cujo assunto princi-
pal é a consciência de um ou mais personagens; isto é, a consciência retratada serve como uma tela sobre a
qual se projeta o material desses romances" (HUMPHREY, 1976, p. 2). Tal apresentação conceitual remete
à compreensão do tipo de ficção que Glauber produzia nessa fase de sua carreira. Fazendo uso de
métodos como o Fluxo de consciência o autor assumia autonomia e liberdade para projetar suas idei-
as.
36

Traços identificados em outras obras são as alegorias em torno das perso-


nagens e as falas claras e diretas, aquelas em que os atores referenciam filmes an-
teriores como O Dragão da maldade contra o santo guerreiro ou O leão de sete ca-
beças.
Logo no início de Claro, Glauber Rocha aparece rolando com o pé e saltan-
do sobre o corpo da atriz Juliet Berto em meio a uma praça romana cheia de turis-
tas. Durante a cena Glauber Rocha discursa sobre culturas e história. Uma cena de
forte impacto visual, todavia é possível questionar se as pessoas compreenderam ou
mesmo lembraram do que ele disse. Esse é mais um indício do caráter de difícil
compreensão de seus filmes porque inseridos numa representação para o inconsci-
ente.
A Idade da Terra é o mais polêmico dos filmes. Com descontinuidades e
completamente onírico, sem enredo, sem história, sem personagem e sem nenhum
sentido do ponto de vista racionalista, o filme é poético; uma verdadeira desordem
narrativa, uma completa quebra da tradição de filme que apresenta personagem,
desenvolve uma história, tem apogeu e fim. Sobre o filme Siqueira (1979) comenta:

A Idade da Terra, diz Glauber Rocha, é um filme que trata do mito


fundamental. Para isto, percorre a trajetória do homem, desde a des-
coberta do fogo até hoje, estabelecendo um painel da vida, do mun-
do, da política. Sua perspectiva viaja da Bíblia à magia e à ciência.
Durante as filmagens, acontecimentos reais somaram-se ao improvi-
so e ao planejado. Sobre 30 horas de película que registraram tudo
isto, Glauber aplicou um estilo de montagem que aprofunda a técni-
ca nuclear por ele próprio desenvolvida no curta-metragem premia-
do Di Cavalcanti.

Ousado, o filme traz de volta o experimentalismo comum à primeira fase do


Cinema Novo, porém de forma mais audaciosa. Nessa obra Glauber Rocha aparece
como um pensador, refletindo politicamente sobre o colonialismo e a condição dos
povos do Terceiro Mundo. Reafirmando a estrutura desordenada e feroz de A Idade
da Terra Pablo Ricardo (2007, p. 93) define a apresentação do longa metragem:

Em A Idade da Terra, como já se disse, não há protagonismo ou an-


tagonismo, mas uma narrativa fragmentada, cujos atores assumem
ora papel de figuração, ora foco da câmera, não comprometendo a
integridade do desenvolvimento do tema utópico. A narrativa se divi-
de e acompanha a multiplicidade dos discursos de seus persona-
gens.

Esse longa é considerado o filme mais autoral de Glauber Rocha e, embora


não tenha sido bem compreendido nem bem aceito pela crítica da época, hoje A
37

Idade da Terra é considerada uma obra-prima do cinema mundial. Sobre a consoli-


dação de seu filme como uma obra-prima, Glauber Rocha considerou:

Repete-se agora a novela de 'Terra em Transe', só que 13 anos de-


pois. Na época, no Brasil, todos os críticos deram bola preta. No Cor-
reio da Manhã, Jornal do Brasil e outros houve uma campanha feroz
contra o filme e depois ele foi considerado uma obra-prima mundial.
'A Idade da Terra' desenvolve os temas de 'Terra em Transe' e des-
dobra muito mais a forma. Esse filme estaria para o cinema talvez
como um quadro de Picasso. Os críticos estão querendo uma pintura
acadêmica, quando já estou dando uma pintura do futuro (ROCHA,
1981, p. 469).

Alvo de muitas críticas e interpretações, o último longa-metragem de Glau-


ber Rocha foi, de fato, reconhecido como uma obra-prima muito tempo depois de
seu lançamento. O cineasta assim definiu sua obra:

Estou acabando A Idade da Terra. [...] É uma vida de Cristo através


das cidades da Bahia, Brasylya e Rio. Mas a vida de Cristo segundo
o Apokalypze: um marginal (Jece Valadão, a Bahia), um profeta ne-
gro (Antônio Pitanga em Brasylya), um bandido nas favelas do Rio
(Geraldo del Rey) e um militar (Tarcísio Meira) no carnaval do Rio...
(ROCHA, 1997, p. 636).

Tal definição possibilita inferir o motivo desse longa ter sido tão mal recebido
na época. A Idade da Terra é uma obra representativa do manifesto do sonho. É um
filme desconexo, que não possui personagens nem enredo. A interpretação do filme
relacionada com a identificação dos quatro Cristos e o Apocalipse foi apresentada
pelo próprio Glauber Rocha, que externou sua sugestão de interpretação em corres-
pondência e entrevistas. Essa explicação se deu em virtude da revolta do cineasta
pelo filme não ter sido entendido pelo público. Por tratar-se de um filme sem enredo
e sem história definida, as pessoas não conseguiram compreender.
Sobre o conteúdo e a descrição do filme Ricardo (2007, p. 12) afirmou:

Seu enredo não pode ser resumido, mas se o pudesse seria a histó-
ria do Cristo no Terceiro Mundo, como diz seu diretor na versão co-
mercia distribuída pela 'Embrafilme'. Esse Cristo, no roteiro, se divide
em quatro: o Cristo Índio; o Cristo Negro; o Cristo Militar; e o Cristo
Guerrilheiro. Todos revezam o espaço de protagonismo e antago-
nismo com Brahms, uma espécie de anticristo glauberiano.

A apresentação fílmica desse longa-metragem pode ser interpretada como


uma porção de imagens soltas numa tela. Considerado hermético, o filme lança ce-
nas avulsas e ideias soltas que parecem não ter nenhum sentido; não há roteiro a
38

ser identificado senão uma vaga expressão de ideia inicial desenvolvida pelo autor.
A forma de tais acontecimentos só parece possível em sonho.

2.3 “Luto para ser um homem ao contrário, nossa época é de crítica e não de
moral”: Fome e Sonho: a busca de um ideal

Na produção artística de Glauber Rocha – seja pela Estética da Fome ou pela


Estética do Sonho – se pode perceber claramente a promoção de uma estética de
resistência em que o autor visa quebrar com a hegemonia daordem cultural vigente.
De acordo com Bosi (1996), o vocábulo resistência evoca, inicialmente, uma
ideia ligada à dimensão ética e não estética; encerra em si a compreensão de um
movimento da vontade que se contrapõe a outra força, externa, que tenta se impor à
primeira, então essa relação se dá como uma oposição de forças, o assumir uma
postura ativa diante de algo que oprime. Contudo, o autor admite a possibilidade de
uma translação de sentido de uma dimensão, de início, essencialmente ética para
uma de ordem estética, ressaltando a proficuidade desse movimento. Isso se dá
“quando o narrador se põe a explorar uma força catalisadora da vida em sociedade:
os seus valores” (BOSI, 1996, p. 13). O escritor, um ser imerso na cultura, não pode
se furtar de interagir com a realidade ao tecer uma elaboração estética, que também
é um elemento da cultura.
Refletindo, ainda, sobre as concepções postas pelo mesmo autor, pode-se
conceber o homem como um ser que se coloca em uma postura ativa na trama so-
cial, emitindo juízos acerca da mesma e, por vezes, discutindo a possibilidade de
alterar um estado de coisas ou agindo diretamente sobre essa trama. A disposição
de elementos chama a atenção para a questão de valores e respectivos antivalores:
“liberdade e despotismo; igualdade e iniqüidade; sinceridade e hipocrisia; coragem e
covardia; fidelidade e traição, etc” (BOSI, 1996, p. 14).
Os artistas, seres culturais, dialogam constantemente com esses valores,
plasmam eles em formas que evocam sentimento e despertam reflexões. A narrativa
pode trazer problematizações estéticas de uma esfera da praxis, dialogando com a
realidade, mas sem esquecer a liberdade na esfera ficcional. Numa imersão subjeti-
va, dotada de grande intensidade, é dada voz a um jogo que mostra a tensão entre
valores e anti-valores:

A partir do momento em que o romancista molda a personagem,


dando-lhe aquele tanto de caráter que lhe confere alguma identidade
39

no interior da trama, todo o esforço da escrita se voltará para con-


quistar a verdade da expressão. A exigência estética assume, no ca-
so, uma genuína face ética. Escrever bem passa a ser um imperativo
moral na medida em que o sentido requer uma rede de signos que o
tragam à luz da comunicação (BOSI, 1996, p. 16).

Da tentativa em promover profundas reflexões sobre a cultura e a forma de


se fazer arte é que surgiu o Cinema Novo, sendo Glauber Rocha o seu precursor.
Criou-se um terreno fértil para experimentações de todo o tipo na procura de uma
identidade cultural. Nesse contexto é preciso esclarecer que, embora esta disserta-
ção pretenda identificar no romance Riverão Sussuarana as características da esté-
tica que Glauber Rocha utilizava em seus trabalhos, o fato é que o Cinema Novo
não foi uma escola, ou seja, não se trata de um movimento bem definido com regras
claras. Cacá Diegues (1962 apud GERBER, 1991, p. 15, grifo nosso) procurou ca-
racterizar esse movimento:

Cinema Novo é um cinema comprometido, um cinema crítico, mesmo


que, pela falta de experiência e maturidade de muitos de seus mili-
tantes, este comprometimento e esta crítica caiam em certa ingenui-
dade, em certo desfoque analítico. Mas isto também é válido porque
o Cinema Novo é antes de tudo liberdade. Liberdade de invenção,
liberdade de expressão. Porque o Cinema Novo não é uma ‘esco-
la’, não tem um ‘estilo’. Pelo contrário, o estilo unânime, o monismo
de um movimento torna-o retrógrado, burguês, lúdico, porque se ma-
nifesta apenas ou com mais intensidade, na área formal-artesanal de
sua expressão. No Cinema Novo as expressões são, e tem que ser
necessariamente, pessoais, porque fruto de experiência e pesquisas
inéditas e inventivas, porque frutos de uma manifestação original.

O que se pode inferir, ainda que com características peculiares, é que a ca-
racterística maior desse movimento era a plena e completa liberdade que os cineas-
tas possuíam para elaborar seus filmes.
A Estética da Fome e a Estética do Sonho – ou Eztetyka da Fome e Ezte-
tyka do Sonho –, como Glauber Rocha preferia escrever de acordo com a ortografia
proposta por ele em 1977, são dois manifestos com conteúdos complementares.
Entre os dois manifestos sobre a Estética de Glauber Rocha é que busca-se, aqui,
situar a mudança no posicionamento intelecto-cultural do autor, pois, tal como afir-
mou em seu segundo manifesto, essa “estética da fome era a medida da minha
compreensão em 1965. Hoje recuso falar qualquer estética” (ROCHA, 1981, p. 221).
Ao fazer tal afirmação Glauber Rocha tentava romper com classificações, is-
so por ter constato que ele mesmo havia se tornado vítima de algo que sempre foi
40

alvo de suas críticas, as amarras classificatórias. O que Glauber Rocha propôs para
a cinematografia brasileira foi um cinema novo, libertário e irreverente; um cinema
experimental; essas, no entanto, passaram a ser as caraterísticas atribuídas ao Ci-
nema Novo enquanto movimento. As consequências desse acontecimento são as de
que Glauber Rocha passou a ser classificado como um cineasta do Cinema Novo.
Essa qualificação acabou se tornando parte de um rótulo do qual fugira sua vida in-
teira. Ao afirmar que recusava qualquer estética o autor demonstrava sua recusa ao
pertencimento a uma categoria fixa, qualquer que fosse ela.
Os filmes produzidos por Glauber Rocha, estilisticamente, estão amparados
na Estética do Sonho e são sensivelmente diferentes dos que eram produzidos
quando da apresentação pública da Estética da Fome. Embora o ideal permaneces-
se o mesmo, ele reformulara sua forma de fazer cinema abrindo mão da linearidade
na abordagem do tempo e também dos métodos tradicionais de filmagem, passando
a produzir filmes que rompiam com o que ele mesmo produzira até então.
No final da década de 1960 Glauber Rocha experimentava as delícias da
fama; com filmes muito bem conceituados em seu repertório e com produtores a sua
procura para a realização de novos filmes. Todo o sucesso, entretanto, o incomodou
ele mesmo passou a considerar que seus filmes haviam se desvirtuado do foco prin-
cipal, uma vez que considerava que o sucesso de seu trabalho se devia menos às
ideias que buscava apresentar ao público do que pelo caráter exótico que a obra
carregava, o que fez com que tais obras se tornassem palatáveis, comercializáveis.
O objetivo de Glauber Rocha no período não mudou; o que se modificou fo-
ram as abordagens cinematográficas que utilizava para alcançar o objetivo definido.
Os manifestos têm pontos comuns, que podem ser sintetizados pelo seguinte es-
quema:
41

CARACTERÍSTICAS DO CINE-
MA NOVO
Contrapõe-se às propostas do
cinema comercial
Cinema alternativo nos aspectos
artísticos e estéticos
Tinha o Nordeste como pólo nor-
Semelhanças entre
teador (1ª fase)
Aglutinou inovações estrangeiras Estética da Fome e
e estilísticas
Estética do Sonho
Experimentalismo
Usavam elementos da cultura
popular nacional
Literatura de Cordel
Conotação Política
Produção da própria autora

Um cinema essencialmente político, o Cinema Novo contrapunha-se ao ci-


nema comercial apresentando alternativas artísticas e estéticas. Até meados da dé-
cada de 1950 o cinema brasileiro produzia filmes cujos modelos eram os padrões
norte-americanos, filmes copiados e sem relação com a realidade nacional ou a
identidade do povo brasileiro, um cinema com visão essencialmente de mercado.
Essa abordagem cinematográfica passou a ser criticada e repudiada pelos cineastas
que seriam os fundadores do movimento do Cinema Novo. A linguagem era predo-
minantemente experimental e se apropriava de inovações estrangeiras e de elemen-
tos da cultura popular, sobretudo o cordel. Além de todas essas características os
filmes desse movimento, em sua primeira fase, tinham como foco o nordeste.
Essas características apresentadas no esquema são comuns aos dois mani-
festos. Embora ambos possuam características principais distintas, os elementos
elencados estão presentes nas produções cinematográficas de toda a produção.
Esses elementos, uma vez identificados, são o tronco comum da proposta de Glau-
ber Rocha. Essas propostas, apesar de buscar o mesmo objetivo geral, possuem
inspirações específicas e, por isso, sensíveis diferenças que podem ser resumidas
conforme os quadros abaixo.

INSPIRAÇÃO
ESTÉTICA DA FOME ESTÉTICA DO SONHO
Nouvelle Vague Luis Buñel
42

Antropofagia Jorge Luis Borges


Realismo Surrealismo
Produção da própria autora

DIFERENÇAS
ESTÉTICA DA FOME ESTÉTICA DO SONHO
Narrativa linear Narrativa desordenada
Tempo regular Tempo irregular
Alegorias Diálogos diretos
Produção da própria autora

A Estética da Fome teve inspiração na Nouvelle Vague como um movimento


artístico inserido no movimento contestatório comum aos anos sessenta. Tal qual os
filmes da Nouvelle Vague os filmes do Cinema Novo eram produzidos com poucos
recursos financeiros, por diretores jovens, em sua maioria os que tinham em comum
a vontade de transgredir os moldes do cinema comercial. Os caracteres antropofá-
gicos do manifesto da fome estão relacionados à ênfase dada à importância de ab-
sorver o que houvesse de melhor nas culturas alheias, a fim de desenvolver uma
cultura genuinamente nacional. O caractere Realista das produções vinculadas à
Estética da Fome refere-se à descrição da realidade tal como ela se apresenta, bem
como da relação do homem com a sociedade.
A Estética do Sonho captura características desenvolvidas pelo cineasta es-
panhol Luis Buñel, que assumiu o surrealismo em seus filmes e enfatizou o papel
do inconsciente na atividade de criação artística. Da literatura de Jorge Luis Borges
o cineasta aproveitou a ênfase na fantasia e a possibilidade de explorar outra cons-
trução de realidade realizada através da utilização de ferramentas como o inconsci-
ente e o fantástico. Do Surrealismo veio a relação estabelecida com um outro pla-
no, que está além da realidade observável. O objetivo era o de resgatar uma arte
que, segundo os seguidores do movimento, vinha sendo gradativamente destruída
pelo racionalismo.
A diferença entre esses dois manifestos está basicamente na apresentação.
Enquanto o manifesto da fome propõe narrativas lineares e tempo regular, o mani-
festo do sonho defende uma narrativa desordenada e a irregularidade possível no
tempo da narrativa. As obras produzidas sob a égide da Estética da Fome são ale-
43

góricas, enquanto que as produzidas em consonância com a Estética do Sonho fa-


zem uso de diálogos mais diretos e objetivos.
O leão de sete cabeças e Cabeças cortadas são dois longa-metragem de
Glauber Rocha gravados no mesmo ano: 1969. Esses filmes representam o momen-
to de ruptura de Glauber Rocha com os aspectos da ênfase na representação do
consciente. A partir desses filmes o consciente dá lugar ao inconsciente e surgem
aspectos de caráter mais onírico, esses que não eram tão fortes nas obras perten-
centes ao período de elaboração da Estética da Fome.
É importante salientar que não há uma definição clara e objetiva das duas
fases estéticos de Glauber Rocha, ambos momentos têm características em comum
e alguns aspectos estão mais presentes numa fase do que na outra.
44

3 “JÁ TIREI OS DEMÔNIOS DO CORPO DURANTE A CARTA”: CORRES-


PONDÊNCIA

A informação, no mundo contemporâneo, onde seu acesso se torna cada


vez mais facilitado, tomou lugar de destaque em qualquer campo de trabalho, en-
contrando sua relevância até mesmo na preservação de boas relações sociais. A
sociedade em si, passou a se organizar em volta de um precioso bem – a informa-
ção – levando à criação do conceito de Sociedade da Informação26.
A maneira como as pessoas conduzem suas vidas hoje está diretamente re-
lacionada ao uso e manipulação dessa ferramenta. Pessoas e instituições seguem
permanentemente conectadas, cada qual em sua busca particular visando atender
às suas necessidades especiais e, nesse sentido, a informação assumiu papel de
destaque com alto valor intelectual, social e de mercado.
Uma vez que no presente contexto histórico a informação permeia todos os
aspetos da vida e quando a quantidade de informação por vezes, supera a própria
capacidade de absorção dos seus destinatários, é necessário entender o que é a
informação para que se possa valorar a sua validade como tal.
Mediante tal afirmação, pois que já estabelecido o conceito que aqui será
abordado de Sociedade da Informação, cumpre estabelecer um conceito para Infor-
mação. Concomitante à definição do termo, esclareça-se que a esta Dissertação
cumpre apenas delinear as discussões pertinentes a esse assunto.
Há uma complexidade na definição de informação, ainda que haja unanimi-
dade quanto à sua relação com a comunicação, sua importância na produção do
conhecimento e quanto ao local de onde ela provém, as fontes.
Apresenta-se aqui, por isso, três conceitos distintos de informação. De acor-
do com Arruda (2002, p. 99) […] fontes de informação designam todos os tipos de
meios (suportes) que contém informações suscetíveis de serem comunicadas. Para
Cunha; Cavalcante (2008 p. 201) e informação é um

registro do conhecimento que pode ser necessário a uma decisão. A


expressão 'registro' inclui não só os documentos tipográficos, mas
também os reprográficos, e quaisquer outros suscetíveis de serem

26Segundo assertiva de Targino (2006), a sociedade da informação é caracterizada pela ênfase dada
à informação e ao acesso à mesma, provocando profundas transformações nos sistemas de produ-
ção e consolidando o setor quaternário da economia. Este setor da economia engloba todos os indi-
víduos, instituições, processos, produtos e atividades integrantes do ciclo de vida da informação des-
de sua geração até o consumo.
45

armazenados visando sua utilização. Informação na sua definição


mais ampla, é uma prova que sustenta ou apoia um fato.

Para Le Coadic (2004), informação é um conhecimento registrado de forma


escrita (impressa ou digital), oral ou audiovisual, em um dado suporte. Entende-se,
pois, que o objetivo da informação é o conhecimento, a absorção de sentido de seu
significado. Ela comporta um elemento de sentido, um significado transmitido a um
ser consciente por meio de uma mensagem inscrita em um suporte espacial-
temporal: impresso, sinal-elétrico, onda sonora etc. É uma inscrição feita graças a
um sistema de signos (a linguagem). Este signo é um elemento da linguagem que
associa um significante a um significado: signo alfabético, palavra, sinal de pontua-
ção. Ainda em consonância com o mesmo autor, a informação está contida num do-
cumento pois que, terminologicamente, documento designa os portadores de infor-
mação. Todo e qualquer artefato que representa ou expressa um objeto, uma ideia
ou uma informação por meio de signos gráficos e icônicos, sonoros e visuais. Entre
os signos icônicos encontram-se palavras, imagens, diagramas, mapas, figuras,
símbolos. Dependendo do suporte pode ser denominado documento em papel ou
documento eletrônico.
Diante do exposto – as três definições distintas do que vem a ser informação
– pode-se sublinhar a complexidade do termo, do que este abrange e do que englo-
ba. O objetivo desse esclarecimento é tão somente para revelar a complexidade no
que se relaciona ao termo informação e suas vertentes mais diversas haja vista que
esta Dissertação versa em torno não da informação propriamente dita, e sim da fon-
te na qual ela está gravada, no caso: cartas.
De maneira geral, as fontes de informação são classificadas em fontes con-
vencionais e não-convencionais de registro de informação. Segundo Magalhães
(2005, p. 56), as fontes convencionais são “aquelas que, tradicionalmente, compõem
os acervos de bibliotecas públicas, escolares e especializadas. Tratam-se geralmen-
te de fontes impressas, textuais ou não, que diferem das fontes de informação em
suporte eletrônico”. Livros, revistas, cd’s constituem-se bons exemplos de fontes
convencionais de registro da informação. De acordo com Campos (1988) aquelas
fontes que não podem ser adquiridas pelos canais normais de venda, obrigando o
pesquisador a despender tempo considerável na sua localização e aquisição, são
classificadas como fontes não-convencionais de informação. Nesse contexto é que
as cartas manuscritas devem ser consideradas fontes não-convencionais de infor-
46

mação. Mesmo que inicialmente não escritas com propósito literário as cartas ma-
nuscritas, por isso, são consideradas como fontes de informação não convencional e
podem ser estudadas por seu valor literário.
Na linha de pensamento Eagleton (2006, p. 13), para quem o valor de cartas
está inscrito no literário, está explicitado que o “segmento de texto pode começar
sua existência como história ou filosofia, e depois passar a ser classificado como
literatura; ou pode começar como literatura e passar a ser valorizado por seu
significado arqueológico”. Quando passam a ser analisadas do ponto de vista
literário as cartas estabelecem um diálogo também com o leitor e, se reunidas em
livro, elas constituem um material literário particularmente instigante. Os leitores
podem, por meio delas, inteirar-se de aspectos biográficos inusitados dos
signatários. Nas correspondências pessoais os leitores podem encontrar
depoimentos, relatos e também retratos de um dado período histórico e o respectivo
contexto constituído por uma perspectiva específica, eventos registrados e
pontuados nessas missivas27. Elas consistem, do ponto de vista do analista,
sistemas de informação portadores de ideias, emoções, reflexões. A liberdade de
apresentação dessas ideias e de sentimentos, o caráter íntimo e a flexibilidade de
poder passear de um assunto para outro sem a rigidez exigida pelos trabalhos
científicos, fazem das cartas encantadoras formas de expressão.
Essas cartas, que configuravam apenas meios de comunicação assumiram,
a posteriori, um caráter de registro histórico e literário uma vez que “a definição de
literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da
natureza daquilo que é lido” (EAGLETON, 2006, p. 12). A respeito de manifestações
artísticas, as cartas surgem como um dos tipos de manifestação, pois elas têm o
poder de despertar interesse em vertentes diversas:

Quando menos se espera, estamos lado a lado com o outro da carta,


da escrita, de início por curiosidade. Depois porque, pela distância e
porque conhecemos o que vem depois, no tempo, estamos num lu-
gar privilegiado, conseguimos entender, ficamos sabendo antecipa-
damente dos acontecimentos, das angústias e dos prazeres que os
envolvidos na contemporaneidade da carta não sabiam, desconheci-

27 Exemplos de artistas que foram estudados também pela análise das cartas são: Van Gogh, que
frequentemente escrevia ao irmão Théo Van Gogh; Fernando Sabino, com Cartas na Mesa, no qual
registra sua correspondência com os amigos Hélio Pellegrino, Otto Lara Rezende, e Paulo Mendes
Campos; Vinícius de Moraes, com Querido Poeta: correspondência de Vinícius de Moraes, que con-
siste em cartas escritas a amigos e familiares; Franz Kafka e sua Carta ao Pai, na qual descreve suas
mais íntimas angústias e faz comoventes relatos de sua existência. Nesse contexto pode ser incluído
Glauber Rocha, que incluía nas cartas as reflexões sobre a arte.
47

am; intuíam, talvez. A sensação é quase aquela de entrar no vai e


vem da máquina do tempo (CAMARGO, 2011, p. 8).

No registro de Maria Rosa Camargo percebe-se as diversas possibilidades


ofertadas para a investigação pela carta enquanto material de trabalho pois são úteis
em estudos biográficos, genéticos, históricos, políticos, sociais e, principalmente, os
estudos literários. Apropriar-se desse tipo de material pode facilitar sobremaneira o
trabalho do pesquisador que busca elucidar ideias concretizadas em forma de arte.
Neste capítulo, por isso, analisa-se cartas de Glauber Rocha que trazem
conteúdos conceituais, isto é, recortaram-se pontos que apresentam posições do
cineasta sobre os traços estéticos de sua obra bem como ideias e propostas de
inovação no campo cultural. Partindo desse pressuposto é que foram analisadas as
cartas escritas por Glauber Rocha, dos anos de 1953 a 1981, período caracterizado
pelas tensões políticas relativas ao regime ditatorial a que o país estava submetido
naquele período. Quanto às cartas, estas foram estudadas enquanto veículos
especiais de registro da informação apesar de analistas, como Gil (1994, p. 161)
ressalvar:

Alega-se que nos dias de hoje pouco valor podem ter as cartas para
fins de pesquisa, pois em decorrência do telefone e de outros meios
de comunicação as pessoas tendem a restringir o número de cartas.
Além disso, é pouco provável que cartas indicando experiências ínti-
mas cheguem às mãos dos pesquisadores. Por essas razões, o uso
de correspondência pessoal é tido como de pouco valor na pesquisa
social, a não ser no caso de cartas históricas.

Dentro da correspondência de Glauber Rocha é possível identificar


elementos que sinalizam suas posições estéticas e políticas. A marca de seu cinema
revolucionário já era anunciada na correspondência dos primeiros anos de sua
produção cinematográfica. Em carta ao amigo e também cineasta Paulo César
Saraceni localizamos tais sinais: “estamos recriando nosso cinema e você precisa
voltar para ser soldado nessa luta [...] precisa FAZER FILMES aqui no Brasil dentro
de nossa luta” (ROCHA, 1960, apud BENTES, 1997, p. 123-124)
Nesse comentário podemos perceber a empolgação do jovem brasileiro em
alterar os rumos do cinema nacional, em romper barreiras, em subverter tradições.
Em uma carta de 1953 que Glauber Rocha escreveu para o tio, Wilson, ele descreve
e apresenta suas primeiras concepções filosóficas bem como seu repúdio – que viria
a permanecer por toda vida – as influências:
48

(penso que um escritor deve escrever o que pensa e o que sente, en-
fim deve expressar a sua própria filosofia) [...] Tio, quero dizer-te ain-
da que nunca deixei-me influenciar por fitas cinematográficas ou his-
tórias em quadrinhos. [...] Filosofia, sim, estou lendo. Schopenhauer
(Dores do mundo), Nietzsche (Assim falava Zaratustra), além de pe-
quenos comentários a respeito da filosofia de Bacon, Platão, Aristóte-
les, Sócrates, Spinoza, Voltaire e muitos outros. Filosofia faz-nos
pensar melhor acerca do mundo e dos homens. Porém, como dizer-
te que nunca seguirei o ponto de vista deste ou daquele? Nunca se-
rei 'superior' como Nietzsche, pessimista como Schopenhauer ou cí-
nico como Voltaire, isto não! Podes ficar certo que procurarei seguir
minha própria filosofia (ROCHA, 1953, apud BENTES, 1997 p. 78,
grifo nosso)

Nesse excerto da carta Glauber Rocha aponta suas leituras filosóficas,


sinalizando o que viria a ser sua posição estética mais adiante: a constituição de um
pensamento só seu, livre de influências de terceiros, ideias e pensamentos do
próprio cineasta como reverberações dos fatos sobre sua pessoa. Na mesma carta o
autor deixa claro que rejeitava as conquistas fáceis; preferia aquelas que “para
consegui-las, arranquem-nos suor da face” (ROCHA, 1953, apud BENTES, 1997, p.
80).
Aos 18 anos Glauber Rocha dirigia, junto com outros colegas de escola da
época, um tipo de atividade cultural, a Jogralesca, que faziam apresentações no
próprio Colégio Bahia. Em carta para Adalmir Cunha Miranda28, de 1957, Glauber
Rocha faz registro interessante sobre seu objetivo com Jogralesca:

O que realizamos, e não leve aqui uma descabida pretensão, é no


sentido de alcançar uma linguagem onde os elementos materiais e
espirituais do poema possam se completar mútua e intensamente.
Além disso, visamos um objetivo: levar a poesia ao povo de cultura
média, ao estudante e ao operário: é de nosso plano uma excursão
pela Liberdade, Amaralina etc. embora enfrentando as possibilidades
de vaias etc. (ROCHA, apud BENTES 1997, p. 93, grifo nosso).

Nesse trecho podemos observar que o objetivo do cineasta foi o mesmo por
toda sua vida, tendo maturado com sua própria experiência de vida. Nessa mesma
época ele se interessava por teatro; segundo Rocha (apud BENTES, 1997) o
Jogralesca era feito em formato de peça a partir de poemas escolhidos e eles não
eram apenas lidos, declamados mas teatralizados com roupas e cenário apropriado.
O que podemos inferir desses registos em cartas é que a criação do
movimento do Cinema Novo, do qual Glauber Rocha se tornaria arquétipo, teria forte
inspiração do teatro, sobretudo do teatro do dramaturgo alemão Bertold Brecht. Isso

28
Escritor, ensaísta e intelectual baiano, idealizador e diretor da revista Ângulos.
49

pode ser verificado também em 16 cartas escritas a diversos amigos e parceiros no


período de 1953 a 1981. Em algumas ele aponta o estilo de Brecht como modelo:
“Cada filme deve tocar o povo, não demagogicamente, mas no sentido que Brecht
toca. O povo deve raciocinar em torno dos problemas” (ROCHA, 1961, apud
BENTES, 1997, p.158). Em outros trechos Glauber Rocha (apud BENTES, 1997)
assume que imita o estilo do dramaturgo em questão: “Li num escritor italiano, Ferfi,
que Povo é uma noção romântica, liberal, típica do século XIX. Proletário é outra
coisa, é povo organizado. Povo é alienação, servilismo etc. Brecht já pôs o povo em
questão várias vezes. Apenas imitei Brecht”.
Ao longo dessas cartas o que podemos perceber é um Glauber Rocha
envolvido por ideias e ideologias, tendo bebido de várias fontes, trabalhando não só
com adaptações, mas também com a aplicação, na própria produção
cinematográfica, dos mesmos princípios estéticos do dramaturgo.
Na correspondência do cineasta pode-se identificar também o entendimento
do próprio autor sobre sua obra. Em carta de 1973 ao produtor Fabiano Canosa 29,
Glauber Rocha (1997) sugere uma programação de seus filmes para ser exibida em
um canal de televisão, esquematizando-a da seguinte forma:

1 → Revolução Camponesa no Brasil: Deus e Antônio30


2 → Revolução Negra no 3º Mundo: Barravento – Leão31
3 → Revolução na América Latina: Terra em Transe

Por este esquema, nota-se que o cineasta define claramente os objetivos


sociais propostos em cada um daqueles filmes: Deus e o Diabo na Terra do Sol e
Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro tinham como foco o camponês;
Barravento e O Leão de Sete Cabeças, por sua vez, focavam o negro; já Terra em
Transe tinha como objetivo tratar da política na América Latina.
Em mais de um momento Glauber Rocha apontou, nas cartas, seus projetos
de produzir obras que relacionassem a produção de Brecht e a de Eisenstein. Em 30
de janeiro de 1975 Glauber Rocha informava sobre a estrutura do filme que deveria
se chamar O nascimento da Terra e que mais tarde teve o título alterado para A
Idade da Terra:

29 Programador de cinema em Nova York.


30 Referência aos filmes Deus e o Diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guer-
reiro que, no exterior, era conhecido como Antônio das Mortes.
31
Referência ao filme O leão de sete cabeças.
50

Do ponto de vista artístico pretendo utilizar a fonte de interpretação


Épica, inspirada no teatro de Bertold Brecht, e a técnica de monta-
gem dialética inspiradas nas teorias de S. M. Eisenstein. [...] Através
da relação estética entre Brecht e Eisenstein é possível obter a sín-
tese do espetáculo revolucionário que se opõe, pelo conteúdo e pela
forma, ao espetáculo idealista do cinema imperialista (ROCHA, 1975,
apud BENTES1997, p. 512).

Ainda sobre a inspiração dos produtores de arte supra mencionados, em


carta à sua então companheira, Juliet Berto Rocha (1997), escreveu: “Sou um
legítimo ‘herdeiro’ de Eisenstein e Brecht”. Este excerto é um dos indícios
encontrados nas cartas dos elementos estéticos defendidos por Glauber Rocha.
Afirmando ser um herdeiro de Brecht o cineasta admite utilizar formas de fazer
cinema que se apropriava dos recursos inseridos em obras de teatro por Brecht.
Em carta de 1976 a Peter Schumann32 Glauber Rocha afirmava ter
descoberto a fórmula revolucionária do cinema, permitindo, mais uma vez, que
pudéssemos localizar traços de suas propostas defendidas em seus manifestos. O
cineasta jamais negou sua tendência política ao socialismo:

Eisenstein?
𝑀𝐼 H
MD = 𝑀𝐼 = 𝐸
esta fórmula resume o segredo da Teoria da Montagem Nuclear –
criada por Eisenstein e desenvolvida por mim.
Sou contra o cinema sociológico pois a sociologia é parte da frondo-
sa dialética. Marx ainda não foi entendido. Eis minha via, desde Bar-
ravento. (ROCHA, 1976, apud BENTES, 1997, p. 572, grifo nosso)

No período pesquisado – 1953/1981 – Rocha escreveu 14 cartas em que


menciona alguma relação com o trabalho do cineasta russo Eisenstein. Quando da
feitura de suas obras, as inspirações políticas do autor estão expressas de forma
marcante.
Depois, Glauber Rocha tornou-se ele mesmo um tipo de produtor que ele
sempre criticou, e em seus últimos anos de carreira tentava se desvincular das
amarras classificatórias que haviam sido criadas em torno de sua maneira de fazer
cinema; desejava escapar do rótulo do Cinema Novo. Em carta de 1978 ao
programador de cinema Fabiano Canosa, Glauber Rocha (1978, apud BENTES,
1997, p. 639) afirmou: “vivo hoje afastado de grupos – e não quero estar no cinema
brasileiro”. Esse desejo de desvinculação estava atrelado ao fato de o cineasta
desejar atingir as massas e de que isso provocou modificações em sua maneira de

32 Cineasta alemão.
51

desenvolver o trabalho. Passou, então, a fazer outras atividades de comunicação


que visavam atingir o grande público. São desse período a produção do filme A
Idade da Terra e o programa Abertura, na TV Tupi.
Impossível de ser compreendido ou resumido Glauber Rocha, parece buscar
mais a sensibilidade que a compreensão de seus telespectadores. A Estética do So-
nho tem como caraterística mais marcante a presença do onírico, do inconsciente,
ao passo que a Estética da Fome carrega filmes cujo escopo narrativo tende a ser
mais compreensível. Ainda que tais filmes sejam carregados de alegorias e simbolo-
gias, o telespectador consegue compreender o filme e contar a história. Isso é bem
menos provável na proposta da Estética do Sonho.
52

4 “NÃO ESTOU A FIM DE ESCREVER TESES SOBRE ESCRITOS, MAS


FICÇÃO”: RIVERÃO SUSSUARANA

Publicado em maio de 1978, Riverão Sussuarana é o único romance do


cineasta Glauber Rocha. Quando da publicação do livro Glauber Rocha já era figura
conhecida no Brasil, tendo seu trabalho ultrapassado fronteiras e ganho o mundo,
provando o cineasta o bônus e também o ônus da fama. O texto em questão
configura-se em uma obra complexa, plural, cuja amplidão foi estranhada não
somente pelos leitores:

Os críticos estão chocados, eu sei. Somente Sérgio Santeiro,


de O Globo, e Jorge Amado compreenderam e escreveram
certo sobre ele [o romance]. Nossos críticos estão parados no
século XIX. Riverão é também uma crítica literária, entupindo a
boca de críticos. E eles ainda não digeriram. (ROCHA apud
REZENDE, 1986, p. 152, grifo nosso)

Algumas Teses apresentam esse posicionamento negativo da crítica no que


concerne a esse livro. Uma delas versa sobre a unilateralidade atribuída a Glauber
Rocha que, sendo um cineasta, não poderia assumir um posicionamento de crítico
da cultura. Tal posicionamento dos críticos seria como uma espécie de grade de
segurança, como uma tentativa de proteger o público da loucura do autor ou, ainda,
de relacioná-lo aos filmes, já considerados suficientemente insanos.
Outra explicação para esse aspecto negativo da apreciação crítica é a
dificuldade de leitura que o texto apresenta, visto que a narrativa é uma prosa
antigramatical (RIBEIRO, 2002, p. 84) e um inferno ortográfico. Quanto a essa crítica
da escrita, Glauber Rocha (apud REZENDE, 1986, p.144) apontou: “Aceito que
neguem a validade do discurso sob esse ângulo não porque o livro está preso a
Guimarães Rosa, porque é ou não é um romance, porque não está dividido em
capítulos ou porque a linguagem não é racional”.
Glauber Rocha havia cultivado muitos desafetos no meio intelectual
brasileiro, o que contribuiu para o formato do mau posicionamento da crítica e dos
intelectuais a respeito de sua “desnovela” (ROCHA, 1981, p. 351). Mal recebido pela
crítica, o livro se tornou uma obra esquecida, taxada de incompreensível, hermética
e surreal:

Em 1981, ano em que morreu aos 42 anos, Glauber encontrava-se


não só indisposto com a direita política por conta dos filmes e das
declarações que havia dado na década de 1960 e 1970, mas havia
53

despertado a inimizade da esquerda pelas declarações citadas com


respeito aos generais no controle do país. Ainda, sua constante ob-
sessão por um cinema verdadeiramente audiovisual o colocou na
posição de cineasta hermético, difícil, complexo demais para o es-
pectador comum e, no limite, absolutamente louco. (CORREIA, 2009,
p. 3)

À época do lançamento de seu livro, Glauber Rocha (1986, p. 143) viveu


uma espécie de isolamento por falta de diálogo com os “donos oficiais da cultura”
(ROCHA, 1986, p. 143), para usar a expressão do próprio cineasta. Soma-se aos
fatos supracitados o de que Glauber Rocha sofreu repressão até mesmo do merca-
do editorial, no qual não encontrava apoio para a publicação de seu romance.
É sempre difícil enunciar quais razões levaram a crítica literária da época a
não aceitar a obra de Glauber Rocha. O que se pode inferir, no entanto, dos textos
disponíveis é que houve uma série de condições que desfavoreceram a publicação
do livro, tais como a antipatia dos intelectuais de direita e, a partir de determinado
momento de sua carreira, também dos da esquerda brasileira. Além disso, da cons-
tante polêmica que causava no meio intelectual com seus posicionamentos políticos
e culturais externados em entrevistas e/ou em seu programa Abertura.
O cineasta abordou o tema em entrevista concedida a Sheila Dunaevits, em
julho de 1978: "Não sou homem de partido. Só poderia me identificar com o grande
partido do povo brasileiro ou do povo latino-americano, inclusive, por causa disso
rompi minhas relações como os intelectuais. Não gosto mais de intelectuais"
(ROCHA, 1986, p. 113, grifo nosso). O que se pode inferir é que o autor nutria pelos
intelectuais da época a mesma antipatia que esses sentiam por ele. O autor conside-
rava a existência de partidos políticos um obstáculo no caminho que levava a quem
de fato o interessava, o povo.
O romance de Glauber Rocha – assim como os filmes produzidos – está re-
pleto de alegorias. Estão presentes nele os mitos, os personagens históricos, as crí-
ticas à sociedade cultural brasileira, as referências artísticas e literárias, a forte pre-
sença de religiosidade além do teor de temas da sexualidade que permeiam a obra:

Dentro da filmografia de Glauber [Rocha], Riverão [Sussuarana] deve


ser colocado junto a Di e A Idade da Terra, e a certa distância de
seus primeiros filmes, longe de sua linhagem brechtiana e ainda de
sua montagem eisensteiniana – a montagem em Riverão [Sussuara-
na] a produz em relação a Guimarães [Rosa], mas não em direção
ao interior do texto –, e isto deve, em parte, à presença da sexuali-
dade como potência deslocadora. O corpo, e o próprio corpo de
Glauber [Rocha], começa a aparecer tanto em Di como em A Idade
54

da Terra, e também se faz presente em Riverão [Sussuarana]. [...]


Em Riverão [Sussuarana] a gestualidade se libera, precisamente,
através da explosão e da violência sexual. (CÁMARA, 2012, p. 259)

Mario Cámara, refletindo sobre o modo pelo qual a sexualidade aparece no


romance, aborda um viés também analisado nesta Dissertação. Como na maior par-
te da obra de Glauber Rocha, o conteúdo sexual presente no romance se dá de for-
ma alegórica, como construção metafórica sobre sua interpretação de como ocorreu
o processo de colonização sofrido pelo povo: uma violenta penetração.
Como resultado da análise do romance, objeto de estudo desta Dissertação,
Riverão Sussuarana, de Glauber Rocha, localizou-se – além do tópico da alegoria
sexual – uma série de características que podem ser consideradas para identificar
uma espécie de divisor de águas entra as duas formas estéticas adotadas pelo autor
ao longo de sua carreira. Essas duas formas estéticas, a da Fome e a do Sonho
permitem apontar também (Tabela 3) as principais características que foram identifi-
cadas no romance.

Tabela 3: Características de forma de Riverão Sussuarana presentes nas Estéticas:

CARACTERÍSTICAS EF ES33
Constante referência a estados brasileiros X
Linguagem de Roteiros de Cinema X
(Narrativa ágil)
Escrita corrida X
Reforma Ortográfica (x,y,k) X
Referências históricas X
Escrita poética X
Sem capítulos e sem pontuação X
Neologismos X
Forte presença da religiosidade X X
Sexualismo exacerbado X
Presença de mitos/lendas e ditados populares X

33
EF: Estética da Fome. ES: Estética do Sonho.
55

Referências literárias (obras e autores) X


Referências a compositores clássicos X
Referências a artistas plásticos X
Divisões aleatórias em alguns momentos do X
texto com alteração da fonte.
Repleto de críticas X X
Mistura de personagem com narrador do livro X
Inspiração de fatos históricos da vida do Autor X
Fusão ou criação de nova personagem com X
característica dual
Inclusão de dois contos de autoria de sua irmã X
Anecy Rocha e relação com a morte das
irmãs.
Produção da própria autora

Os elementos elencados na tabela acima foram localizados em Riverão


Sussuarana e se relacionam diretamente ao estilo de produção de Glauber Rocha
nos filmes; tais características são marcantes nos dois movimentos estéticos que o
autor propôs. Alguns elementos, tais como a temática do sertão, as condições de
vida do povo sertanejo, a precariedade e miséria do povo brasileiro e os elementos
de vinculação religiosa, presentes no manifesto, também podem ser localizados nas
primeiras produções do autor. Existem elementos de distinção e de semelhança en-
tre os momentos estéticos de Glauber Rocha. Em comum aos dois manifestos tem-
se características como a contraposição às propostas do cinema comercial, proposta
de cinema alternativo nos aspectos artísticos e estéticos, nordeste como pólo norte-
ador (durante a 1ª fase), a aglutinação de inovações estrangeiras e estilísticas, o
caráter experimental e a Literatura de Cordel. O que essas características dizem so-
bre o trabalho de Glauber Rocha é que seus projetos eram todos de cunho social;
atuavam sempre visando o âmbito político - de esquerda – e que ele acreditava no
socialismo como objetivo de organização social, além de valorizar a cultura popular.
Para libertar o povo brasileiro da dominação, o cineasta passou a propor
mudanças em seu próprio modo de pensar. Foi quando assumiu a Estética do
Sonho que, apesar de ter muitos pontos em comum com o manifesto anterior,
propôs novas questões que provocam a sensível diferença entre ambas.
56

No esquema abaixo uma síntese do pensamento de Glauber Rocha em sua


obra:

Figura 2

1965 1971
EF Transição
ES

Obra Obra Obra Obra

Produção da própria autora

4.1 Riverão Sussuarana: coisa gritante34

No início do livro é possível identificar uma característica estilística do autor


que é a utilização de personagens homônimos a autores renomados. Um dos perso-
nagens chama-se Guimarães Rosa e outro Glauber Rocha35. Os personagens são
carregados de similaridades com as pessoas reais, tais como o fato de tanto a per-
sonagem quanto o autor Guimarães Rosa serem diplomatas ou como o personagem
Glauber Rocha e o autor serem jornalistas.
Em alguns momentos do romance é possível identificar trechos que se rela-
cionam a fatos da vida de Guimarães Rosa e Glauber Rocha, como no início do ro-
mance em que a abertura se dá com o relato do contato de Glauber Rocha e Guima-
rães Rosa. Na primeira página do romance é reproduzida a dedicatória do ficcionista
mineiro ao jornalista baiano de um exemplar de Primeiras Estórias, de 1962.
Em Riverão Sussuarana também existem personagens homônimos a outras
personagens de outros romances, como Diadorim e Riobaldo de Grande sertão ve-
redas; Antônio das Mortes36; Mata Vaca37; Passarim38; Matyta Perê39; João do Capi-

34 Referência ao título que Clarice Lispector planejava dar ao livro Água Viva.
35 Ao nos referimos aos personagens Guimarães Rosa e Glauber Rocha, em Riverão Sussuarana,
fazemos uso do itálico.
36 Personagem matador de cangaceiros, de Glauber Rocha.
37 Antagonista em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro.
38 Refere-se a Passarinho, cabra do bando de Lampião.
57

tão Rodrigo40; Lampião41; Zé Bebelo42; Joãozim Bem Bem43; Hermógenes44; Joca


Ramiro45.
A quantidade de personagens inserida no romance de Glauber Rocha tam-
bém demonstra a relação do texto com a cinematografia, haja vista que, segundo
Paulo Emílio Salles Gomes (2014), o procedimento cinematográfico é baseado na
disposição do narrador em assumir sucessivos pontos de vista expressos através
dos personagens.
A narrativa, em Riverão Sussuarana, é composta pela diversidade de formas
construídas no texto, o que provoca uma constante flutuação na focalização confun-
dindo o leitor e tornando o romance aparentemente mais truncado. Mario Cámara –
em artigo sobre o romance de Glauber Rocha “Coisa gritante: o sertão de Glauber
entre o corpo e a política” – aponta uma possível solução quanto à caracterização da
estética do romance estudado. Para Cámara (2012, p. 255) o que Glauber Rocha
fez foi uma fusão de seu Riverão com Grande Sertão: veredas, na tentativa de reali-
zar mais do que uma simples homenagem, procurando, sim, apresentar um terceiro
elemento para o enredo: o de transformação.

Figura 1: esquema de fusão entre o romance e Guimarães Rosa

+ Grande Ser- = Novas idei-


Riverão
tão: veredas as

Produção da própria autora

Esse pequeno gráfico apresenta de maneira didática o enunciado de Cáma-


ra. Para argumentar, o crítico remete ao cineasta Eisenstein (2002, p. 14) e a teoria

39 Corruptela de Matinta Pereira, personagem do folclore da região Norte do Brasil, cuja crença popu-
lar afirma ser o Saci Pererê em uma de suas formas. Matita Perê também é título de importante ál-
bum de Tom Jobim, lançado em 1973.
40 Possível referência ao personagem de Um certo capitão Rodrigo que integra O Continente, primei-

ra parte de O tempo e o vento, obra de Érico Veríssimo.


41 Cangaceiro brasileiro.
42 Líder dos jagunços em Grande Sertão: veredas.
43 Personagem de A hora e vez de Augusto Matraga, conto em Sagarana, de Guimarães Rosa.
44 Jagunço antagonista de Grande Sertão: veredas.
45 Personagem que Riobaldo quer vingar em Grande Sertão: veredas.
58

sobre a Montagem de atrações pela qual “[...] dois pedaços de filme de qualquer ti-
po, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade,
que surge da justaposição” [...] o conjunto é superior à soma das partes. A proposta
do cineasta russo é a de que a sobreposição de dois planos cinematográficos possi-
bilita a criação de um terceiro novo plano, carregado de ideias que não estão pre-
sentes nem em um nem em outro fragmento separadamente. O mesmo esquema –
pode-se inferir – foi aplicado ao romance Riverão Sussuarana.
A mistura de elementos de Riverão Sussuarana com elementos da vida de
Guimarães Rosa e também de Grande sertão: veredas atingem o leitor e provocam
reação às novas propostas, novas ideias, nova visão. Nesse ponto é possível susci-
tar mais uma vez o título atribuído ao romance, Riverão Sussuarana, para compre-
ender o leque de possibilidades que o cineasta apresenta em seu romance. Consi-
dere-se ainda a possibilidade de mais uma vertente de interpretação para o termo
Riverão, além da clara referência ao riverrum de James Joyce, no início de Finne-
gans Wake (JOYCE, 2014, p. 4), e do Sussuarana que nos remete ao Liso do Suçu-
arão de Grande sertão: veredas (ROSA, 2014, p. 34). O autor informa a utilização do
título e sua relação com a obra de James Joyce:

O nome nasceu de um saque poético que tive em Los Angeles lendo


um livro de Joyce que começava e terminava com a palavra riverum,
traduzida aqui como ‘rio corrente’. E Riverão se unia bem ao nome
Sussuarana, jagunço do nordeste, rimando com Riobaldo Tatarana,
herói de Grande Sertão. (ROCHA, 1986, p. 148)

Há ainda uma terceira possibilidade46 para a leitura do título do romance.


Para Cámara (2012) a palavra riverão também pode ser relacionada com a terceira
pessoa do plural do verbo rever, no intuito de apresentar um outro significado à ideia
de montagem.
A leitura proposta por Cámara, de que a fusão de Riverão com Guimarães
Rosa propõe a quebra de barreiras modernistas do Brasil, inaugurando uma forma
ainda desconhecida na literatura brasileira, isto é, uma buscando para ela uma coisa
nova, gritante.
Retornando à análise do termo Riverão no sentido de futuro do verbo rever,
Glauber Rocha menciona a presença desse personagem – Guimarães Rosa – em

46Ao externar as leituras possíveis do título do romance analisado nesta Dissertação não se objetiva
assumir uma interpretação única e, sim, apresentar a gama de possibilidades e cartela de facetas
possíveis de interpretação.
59

seu romance para elaborar uma nova perspectiva, um novo modo de enxergar o ser-
tão:

Em Riverão, tentei falar literalmente sobre o sertão brasileiro que faz


parte de minha vida pessoal, mas através de uma nova visão, por
isso é que no livro eu parto do próprio Guimarães Rosa como escritor
para proceder através dele a uma reanálise, uma revisita dessa re-
gião (ROCHA, apud FONSECA, 2012, p. 239).

Como era praxe, na época, a publicação de revisões sobre obras de escrito-


res brasileiros ou sobre outras produções, Glauber Rocha publicou Revisão crítica
do cinema brasileiro em 1963. Entenda-se aí mais uma característica da estética
glauberiana: a utilização de artefatos textuais que já vinham sendo produzidos no
Brasil da época, tais como a relação entre biografia e literatura ou a oposição entre
fantasia e realidade. Uma obra de caráter experimental, nos limites entre prosa e
poesia, na qual a voz do narrador se mistura à dos personagens e as ações do pas-
sado e do presente se mesclam numa temporalidade desalinhada.
No trecho seguinte a alteração de tempos verbais indica a transmutação en-
tre personagem e narrador, numa radicalização de referenciais:

O Coronel foi decente e Angelo beijou sua velha mão, agradecia


quem lhe criou, virei o corpo de lado mas a coxadoeu espremendo o
revólver virou e viu a porta semi-aberta, luz morrendo manda pela te-
lha de vidro em cima duma compoteira com doce de cajú deu vonta-
de, Anjo se levantei, abriu a tampa azulada do vidro-cristal, meteu as
unhas sujas, mastigo, bebeu água e fumo cigarro de palha (RO-
CHA, 1978, p. 32, grifo nosso).

Há uma mudança de referencial no momento em que o narrador se meta-


morfoseia com a personagem fazendo-o criar uma nova perspectiva de visão do ro-
mance, como se narrador e o personagem Angelo fossem a mesma personagem.
Os grifos indicam a mudança de tempo verbal, indicando a conversão narra-
dor/personagem. A movimentação provocada pelo jogo da terceira pessoa para a
primeira – numa sequência narrativa que o autor sugere ser a mesma – criam ambi-
guidade quanto ao objetivo da escrita escolhida pelo autor. Além de permitir a inter-
pretação de que o narrador e o personagem são um sujeito só, essa performance
verbal possibilita outro entendimento.
A segunda possibilidade de interpretação dos termos grifados na citação é a
de que eles representariam, além da transmutação narrador/personagem, a fala do
povo sertanejo, haja vista que não é incomum essa grafia em obras de ficção para
60

indicar a forma da língua falada – se levantei ou ele fumô – sendo essa uma estraté-
gia de recriação do palavreado do sertanejo interiorano no romance.
Nas décadas de 1960 e 1970 outros escritores publicaram obras que apre-
sentam algum grau de similaridade com o romance de Glauber Rocha, tais como A
casa verde (1966), de Mario Vargas Llosa; Pan América (1967), de Agrippino de
Paula; Água Viva (1973) de Clarice Lispector; Catatau (1975), de Paulo Leminski; e
Galáxias (1976), de Haroldo de Campos. Em A casa verde (1966), Mario Vargas
Llosa narra uma história que se passa em duas cidades distintas do Peru. Sua estra-
tégia narrativa é de fazer uso de tempos diferenciados, causando certa confusão e
dificuldade para os leitores da obra. Os locais e o tempo do texto são apresentados
de maneira irregular e isso é uma característica também do romance de Glauber
Rocha.
Em Pan América (1967) estão presentes temas como a guerrilha anti-
imperialista e a denúncia da ditadura tupiniquim, temas esses também comuns à
Riverão Sussuarana. O texto de José Agrippino de Paula privilegia frases diretas do
tipo sujeito-verbo-predicado, de maneira simplificada. O texto é gramaticalmente se-
co e de vocabulário econômico. Embora Riverão Sussuarana se diferencie de Pan
América quanto à simplicidade da escrita, ambos têm em comum a inovação na for-
ma de escrever. Em Riverão Sussuarana os personagens são homônimos a perso-
nalidades históricas e literárias; em Pan América todos os personagens são ícones
midiáticos da época. Tal qual em Riverão Sussuarana, em Pan América o narrador é
personagem e interage com as outras personagens/personalidades do romance.
Em Água Viva (1973) Clarice Lispector se insurge contra a formalidade e a
estruturação da forma romântica; seu texto é fluido, transita por diversos gêneros
literários e é aparentemente inacabado47. Há traços em comum com o romance de
Glauber Rocha, entre eles a oposição ao estruturalismo vigente à época e a irregula-
ridade da narrativa.
Em Catatau (1975), Paulo Leminski brinca com a experimentalidade48 que é
sua principal característica. Tal como em Riverão Sussuarana, Catatau não apresen-

47 O termo inacabado é utilizado para fazer referência ao fato da autora ter utilizado uma estratégia
de escrita em que o texto parece não ter chegado ao fim.
48 Neste contexto compreenda-se o Experimentalismo como vanguarda ideológica surgida na
segunda metade do século XX, em Portugal. A proposta estética dessa vanguarda era constituída
pelo uso da linguagem como mecanismo de ruptura em relação à proposta estética tradicional:
"Partindo do princípio de que nem tudo era mais passível de formulação pela linguagem
convencional, O Experimentalismo recorreu a novos suportes e códigos, na tentativa de expressar
61

ta divisão em capítulos ou parágrafos, o que torna o romance hermético. Sendo um


romance experimental, como o de Leminski, o romance de Glauber Rocha ainda
apresenta semelhança com Catatau na exploração dos limites entre a prosa e a po-
esia, através de uma linguagem que transita pela diversidade desses gêneros literá-
rios. Em Galáxias (1976), tal qual Catatau, Haroldo de Campos também trabalha no
limite entre prosa e poesia: é um texto experimental, apresentando características de
ambas formas. Em Catatau, em Riverão Sussuarana e em Galáxias não há elemen-
tos de pontuação, de separação de parágrafos nem divisão em capítulos. Em Galá-
xias não existe sequer numeração de páginas; na apresentação são utilizados re-
cursos e imagens poéticas.
O trânsito desses artistas fazendo uso de ferramentas e suportes variados
no ato da criação, permitiu a exposição de suas ideologias e convicções de maneira
livre, experimental, tal como em Riverão Sussuarana.
A desconstrução49 identificada nessas obras é também localizada em Rive-
rão Sussuarana, texto que reconta de maneira sui generis momentos da história na-
cional, apropriando-se de personalidades da História do Brasil e transformando-as
em personagens, mesclando-as aos elementos ficcionais para criar um sentido aos
acontecimentos do enredo:

— Você derrota qualquer Exercito! — glorificou Jango Rosa, lecio-


nando o Brazyl:
Aprendam que Washington Luiz foi deposto em 1930 por Getulyo
Vargas. Que Vargas consolidou a Revolução no Estado Novo de
1937 que se converteu em Estado Tupy Facyzta Modernyzta mas lo-
go rompeu com o eixo Italo Teutão Nipônico e foi à Segunda Guerra
Mundial. Que depois da Guerra os generais democratas derrubaram
Vargas. Que Vargas legalizou o Partido Comunyzta. Que Dutra foi
eleito. Que Vargas voltou eleito Presidente e se suicidou em 1954.
Que veio Juscelyno. Que veio Janyo. Que veio Jango. Que veio
Castello. Que veio Costa e Silva. Que veio Medici. Que veio Gei-
sel... os senhores aprendam os nomes dos Presidentes e creiam na
Democracya. [...] (ROCHA, 1978, p. 261-262, grifos nossos)

aquilo de a linguagem tradicional não era mais capaz, numa proposta de redimensionamento do
próprio conceito de linguagem". (CALDAS, 2008, p. 2). Tatiana Caldas discute a transcendência
almejada pelos poetas experimentais através da subversão da escrita e da negação dos padrões
estabelecidos.
49 Conceito de Jacques Derrida: "Desconstruir um texto é fazer com que as suas palavras-charneira

subvertam as próprias suposições desse texto, reconstituindo os movimentos paradoxais dentro da


sua própria linguagem"; também "não é procurar o seu sentido, mas seguir os trilhos em que a escrita
ao mesmo tempo se estabelece e transgride os seus próprios termos, produzindo então
um desvio [dérive] assemântico de différance". Essa "leitura crítica de um texto literário não objectiva
um sentido único mas a descoberta da sua pluralidade de sentidos (CEIA, 2010).
62

Há apropriação tanto de fatos como de personalidades históricas para pro-


por uma revisita aos acontecimentos, levando a uma interpretação a ser feita sob
outra ótica. Ainda pode ser considerado que a organização dos argumentos Glauber
Rocha revolve a brasilidade através da relação entre temas como mi-
to/violência/messianismo/política/alegoria em busca do dar a perceber a pluralidade
de raças, de línguas, de culturas e de crenças do povo brasileiro.
As semelhanças entre as obras de Guimarães Rosa e Glauber Rocha ultra-
passam o limite da temática do sertanejo, do rural e da realidade vivida pelo povo
oriundo dessas regiões; segundo o próprio autor, a relação existente entre seu ro-
mance e Guimarães Rosa está na nova interpretação desses locais:

Em Riverão, tentei falar literariamente sobre o sertão brasileiro que


faz parte de minha vida pessoal, mas através de uma nova visão, por
isso é que no livro eu parto do próprio Guimarães Rosa como escritor
para proceder através dele uma re-análise, uma revisita dessa regi-
ão, procurando sobretudo a integração de individualidade e socieda-
de (ROCHA, 1986, p. 148).

A produção do texto vai além de registros da vida dos sertanejos, ou da rea-


lidade do sertão; ela ultrapassa o estudo e o mapeamento geográfico e cultural do
país. O romance analisado nesta Dissertação apropria-se da geografia do Brasil
também para mostrar alegoricamente o processo de evolução estética do autor.
Em seu romance Glauber Rocha escreveu um texto refletindo que a literatu-
ra não é feita apenas de palavras corretas. Ao refletir a realidade do ser sertanejo
ele mostra que literatura não é algo apenas para grandes nomes reconhecidos no
ambiente acadêmico ou coisa de intelectual mas também pode eleger a linguagem
popular para representar. O romance, por isso,

Não é escrito no português de Machado de Assis ou de Mário de An-


drade. Não é o português culto, o português da burguesia, mas um
português violentado e inspirado permanentemente pelo português
selvagem, que brota do meu inconsciente. Eu escrevo sem nenhum
racionalismo e a novidade está aí. Se eu fosse escrever igual a
Machado de Assis, o livro teria o interesse de mais uma reporta-
gem sobre o sertão. Ora, o sertão sociológico e histórico é muito
conhecido. O que interessa, pelo menos para mim, é que o livro é a
versão literária de Glauber Rocha sobre o sertão. É o meu falar, é
como eu sinto (ROCHA, 1986, p. 145-146, grifo nosso).

O autor faz um diálogo com as invenções e os neologismos da linguagem


popular, descortinando a realidade do sertão e, assim, criando uma nova forma de
63

literatura. A linguagem, em Riverão Sussuarana, é feita de pontes que o mesmo uti-


liza para fazer sua travessia entre os mundos do sertão.
As ferramentas de linguagem utilizadas pelo autor para apresentar a sua
concepção do sujeito sertanejo são as mesmas adotas na literatura glauberiana.
Nesse aspecto, não adiantam as amarras das normas cultas de linguagem, pois o
que Glauber Rocha nos mostra é um jeito próprio de escrever sua arte. Como ele
próprio informa:

A gramática é a ditadura do patriarcalismo. Na gramática, a língua é


forjada segundo todo um sistema de dominação pré-estabelecido.
Então, a obra literária é aquela que forja a consciência da nação. As-
sim, o que é literatura? É a ideologia de uma determinada sociedade,
veiculada literariamente (ROCHA, 1986, p. 145).

A Revolução Ortográfica que Glauber Rocha propôs é o reflexo do seu pen-


samento sobre as opressões da massa. Da mesma forma que incentivou a revolu-
ção na sociedade Glauber Rocha a incentivou na literatura; talvez por isso tenha
buscado um jeito novo de escrever, fora dos padrões dominantes:

O livro é escrito por um autor que nasceu em Vitória da Conquista,


que ouviu aquela fala a vida toda, que atravessou o sertão, que leu
os romanceiros os populares e que quer leu Guimarães Rosa, não
como um linguista francês, mas com um sertanejo [...]. Não é o por-
tuguês da burguesia, mas um português violentado e inspirado per-
manentemente no português selvagem que brota do meu inconscien-
te. Eu escrevo sem nenhuma sem nenhum racionalismo e a novida-
de está aí. Se eu fosse escrever igual a Machado de Assis o livro te-
ria interesse de mais uma reportagem sobre o sertão. Ora, o sertão
sociológico e histórico é muito conhecido. O que interessa, pelo me-
nos para mim, é que o livro é a versão literária de Glauber Rocha so-
bre sertão. É o meu falar, é como eu me sinto. (ROCHA apud RI-
BEIRO, 2002, p. 85, grifo nosso)

Para retratar a crueza do sertão e a pobreza dos miseráveis o autor faz uso
de uma linguagem popular, que rompe com as normas do que é correto, por esse
meio procurando desmascarar o que considera dominante na linguagem. O registro
da fala dos personagens de Riverão Sussuarana representa a fala do povo. Uma
literatura diferente representando a realidade igual.
Tanto Guimarães Rosa como Glauber Rocha observaram a crueza do ser-
tão: o primeiro através da clínica médica; o segundo acompanhou de perto a dureza
da vida desse povo já desde criança em virtude de ser natural de Vitória da Conquis-
ta, interior da Bahia.
64

4.2 “Eu provo, no livro, que ela foi culturalmente assassinada”: o questiona-
mento do caso Necy

Em 1977 Glauber Rocha iniciara a escrita de seu único romance publicado;


15 meses depois, em meio à redação, ocorreu a tragédia que a partir dali estaria
presente, como tema, também em toda a ficção do cineasta: a morte da irmã Anecy
Rocha. Conforme o próprio autor afirmou, essa “morte de minha irmã Anecy Rocha,
no Marçabril carioca de 1977, arrebentou a estrutura de ‘Riverão Sussuarana’” (RO-
CHA, 1978, p. 214).
Em 27 de março de 1977 Anecy caiu no poço do elevador do prédio onde
morava com o marido em Botafogo, Rio de Janeiro. Sua morte jamais foi esclareci-
da, fato esse que incomodava e perturbava o irmão que acreditava ter sido ela as-
sassinada pelo marido, Walter Lima Júnior. Ele foi o diretor de A lira do delírio, o úl-
timo filme do qual a atriz participou. A inserção da referência a interpretação sobre a
morte aparece no romance:

GLAUBER ROCHA LOUKO DECLARA GUIMARÃES ROSA MOR-


REU NO SERTÃO LUTANDO CONTRA TROPAS NORTE AMERI-
CANAS INVADIRAM CYDADES FENYCYAS DO PYAUY E SUA IR-
MÃ ANECY ROCHA FOI CULTURALMENTE ASSASSYNADA PELO
MACHISMO SADICO DOS INTELECTUAYS LYBERAYZ. (ROCHA,
1978, p. 28, grafia do autor)

A expressão culturalmente assassinada, utilizada no romance por Glauber


Rocha, denota um processo de ficcionalização do evento ocorrido com sua irmã e
atriz para relacionar o assunto ao momento cultural e político do país. O fato passa a
ser tematizado no romance como instrumento de ataque aos intelectuais que Glau-
ber Rocha acreditava desmerecerem a cultura brasileira e todo o potencial que esta
carregava. A presença da irmã Anecy como personagem na narrativa, bem como a
menção à irmã Ana Marcelina, que morreu de Leucemia aos 11 anos, realçam –
como um dos matizes da obra – seu caráter realístico50. Em entrevista de julho de
1978 Glauber Rocha mencionou a relação de sua formação com o romance:

Nele [Riverão Sussuarana] eu mostro minhas origens. É por isso que


sou um sujeito diferente dentro da sociedade brasileira. Não fui cria-
do pelos padres nem pelo catecismo. Fui criado pela Bíblia. Sobretu-
do pelo Velho Testamento, que considero mais forte que o Novo. De
forma que Riverão é escrito em linguagem bíblica e em linguagem de
sertão (ROCHA, 1986, p. 112-113).

50 Cf. Apêndice, p. 78.


65

Nesse romance Glauber Rocha introduz também elementos da autobiogra-


fia51, narra eventos que se passaram na própria vida. Para compreender o procedi-
mento, pode-se considerar o estudo de Willemart (2009), citando Ricoeur, para
quem a escrita de si não é possível de ser realizada tal qual os fatos ocorridos, isso
porque

a compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por


sua vez, encontra na narrativa [...] uma mediação privilegiada; esta
última toma elementos tanto da história como da ficção, fazendo da
história de uma vida uma história fictícia, ou, se preferirem, uma fic-
ção histórica, entrecruzando o estilo historiográfico das biografias
com o estilo romanesco das autobiografias imaginárias (Ricoeur
apud Willemart, 2009).

O eu, nesse caso, não é o mesmo que a percepção do eu. O que os teóricos
propõem é que a percepção que cada indivíduo tem de mundo muda de acordo com
o meio e a época, tornando-se, por isso, impossível a reprodução ou narração literal
do fato citado. Para Bourdieu (1998, p. 190) “os acontecimentos biográficos se defi-
nem como colocações e deslocamentos no espaço social”. A realidade é formada de
elementos aleatórios e irracionais, cuja presença descontínua imprime marcas nos
sujeitos; são marcas que alteram a posterior interpretação e narração dos fatos. Se
a biografia é capaz de retratar a vida de uma pessoa, as obras que são vinculadas
ao autobiográfico são apenas uma das infinitas leituras possíveis da vida do biogra-
fado. Nesse sentido o romance pode ser figurado como uma representação linguísti-
ca da realidade; a realidade do texto reflete simbolicamente a realidade além-texto.
Ao fazer uma breve descrição dos diários, cadernetas de viagens e textos
publicados de Guimarães Rosa, Souza (2009, p. 144) monta um painel da experiên-
cia do escritor antes (ou ante) o que escrevera. Tais registros e documentos “produ-
zem o efeito biográfico por meio do registro de fatos reais, embora estejam construí-
dos segundo parâmetros ficcionais”.
A articulação de textos prévios ou paralelos, nesses incluídas as memórias,
as biografias, os artigos, os depoimentos, os diários, é o básico da pesquisa biográ-
fica. Esta vinculação à vida do autor elaborada pelo próprio autor pretende fazer com
que o texto ultrapasse e metaforize os acontecimentos, sem, contudo, recalcar o va-
lor documental e o estatuto da experiência que aí se inscrevem.

51Essa expressão não pode deixar de ser mencionada nesta Dissertação por se tratar do relato de
um fato ocorrido na vida do autor que, por sua vez, tanto pensava registrar suas memórias como ex-
plorava os limites que separam realidade e ficção.
66

Tanto Foucault (2007) como Souza (2009) partilham o posicionamento de


Pierre Bourdieu (2006) que, no ensaio A ilusão biográfica (1986), afirma ser toda
biografia formulada a partir de uma superfície social inerente ao biografado, ao dis-
curso circundante e à natureza de descontinuidade da vida analisada. Para Sousa,
ainda, a abordagem contemporânea do discurso acaba por instaurar uma defasa-
gem teórica da produção do saber.
Iser, em Teoria do Efeito, revela a importância do leitor no processo de cons-
trução da obra, através das interpretações. O leitor implicado (ISER, 1996) trabalha
numa interpretação do que está presente no texto, dessa forma os textos literários
são escritos com espaços cujos vazios possibilitam a intervenção do leitor. Essa in-
tromissão ocorre através das projeções que o leitor insere nesses espaços vagos.
São sentidos que o leitor pode dar ao texto e estão diretamente relacionados às vi-
vências de cada pessoa pois, conforme Barthes (1992), interpretar um texto não é
dar-lhe um sentido livre ou fundamentado, é, sim, aceitar e apreciar o plural de que
esse texto é composto.
O traço autobiográfico misturado à narrativa ficcional é uma das característi-
cas do romance discutido nesta Dissertação e, por isso, classificar o texto como bio-
gráfico ou ficcional acaba por tornar-se uma tarefa complexa cujo desenvolvimento
mudaria o rumo da pesquisa desenvolvida neste trabalho. Entretanto, apesar da
análise nesta Dissertação não se ater a amarras classificatórias considerou-se perti-
nente apresentar Riverão Sussuarana observado a partir do conceito de autoficção.
A modalidade narrativa denominada de autoficcional é um gênero52 literário,
definido por Serge Doubrovsky – em 1977, portanto um ano antes da publicação de
Riverão Sussuarana – caracterizada pela combinação de elementos de dois estilos
opostos, a autobiografia e a ficção. Esse tipo de escrita literária, a autoficção permite
que personagens tenham o nome do autor da obra; permite, ainda, que o escritor
partilhe de suas memórias em momentos do livro, dividindo com o leitor tais lem-
branças. A autoficção permite que a história contada possua pontos de contato com
eventos do passado do autor. As características acima mencionadas podem ser
identificadas em Riverão Sussuarana. Uma das primeiras conceituações de autofic-
ção veio também de Doubrovsky (1977 apud MARTINS, 2014, p. 20):

Fiction d’événements et de faits strictement réels; si l’on veut, autofic-


tion d’avoir confié le langage d’une aventure à l’aventure du langage,

52 Conceito de Serge Doubrovsky (1977).


67

hors sagesse et hors syntaxe du roman traditionnel ou nouveau.


Rencontre, fils de mots, allitérations, assonances, dissonances, écri-
ture d’avant ou d’après littérature, concrète, comme on dit en musi-
que. Ou encore, autofriction patiemment onaniste que espère faire
maintenant partager son plaisir.

Autobiografia? Não, esse é um privilégio reservado aos importantes


desse mundo, ao fim de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de
acontecimentos e fatos estritamente reais; se se quiser, autoficção,
por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da lingua-
gem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou
novo. Encontro, fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonân-
cias, escrita de antes ou de depois da literatura, concreta, como se
diz em música. Ou ainda: autofricção, pacientemente onanista, que
espera agora compartilhar seu prazer. (Tradução livre)

Durante a elaboração da narrativa desse tipo literário o autor pode tender a


alterar detalhes de suas memórias53, tais como nome de pessoas ou locais onde o
acontecimento se passou. Tais práticas ocorrem a serviço do enredo proposto; a
busca pela ficcionalização da auto-referenciação.
O romance de Glauber Rocha, considerando essa questão explicitada, per-
mite uma grande quantidade de interpretações. Com muitos contextos inter-
relacionados, personagens homônimas e personalidades históricas, além de diver-
sas formas de escrita, o autor fez um misto de prosa poética, histórica, poesia e re-
portagem policial, num emaranhado que pode aparecer caótico para o leitor mas
que, ao mesmo tempo, oferece liberdade para que as páginas do livro sejam lidas
tecendo interpretações e explorando possibilidades ao texto.
No romance de Glauber Rocha há diversidade de formatos que foram utili-
zados na apresentação da narrativa, tais como o roteiro de cinema e a poesia. Na
obra é possível identificar elementos característicos de ensaios, de poemas, de tes-
temunhos, de relatos, de roteiro de cinema e de prosa. Todos esses elementos são
inter-relacionados de maneira irregular, fazendo do texto como que um tecido for-
mado de retalhos, numa narrativa que pode ser denominada de caleidoscópica54.
Ainda sobre a pluralidade de formatos presentes na obra de Glauber Rocha,
o fragmento seguinte – extraído do romance – demonstra o ritmo poético existente
no mesmo:

53 Entenda-se aqui a expressão memórias em seu sentido informal, sem vinculação direta com as
teorias literárias da área em questão.
54 Aplicada metaforicamente à literatura, a ideia de caleidoscópio serve para caracterizar certas com-

posições literárias complexas, quer formadas por colagens de múltiplos efeitos quer constituídas por
ações variadas que se sucedem em catadupa (CEIA, 2015).
68

[...] bala nenhuma pega apanha fura bata raspa voa longe entorta
pinta de faca facão sobre punhal canivete tezoura gilete caco de
qualquer mineral e desvenena toxicos totais d abio fisisa a da anti
matéria expulsa os caracanaosos dos xorosrofobos vus sizis svavaia
aoslshos sfetido e bala nenhuma apanha nenhuma bala nenhuma
te apanha nem no tronco ou cabeça menos pés ou mãos e não lhe
arranharia as roupas e ele abraçou a velha nas rezas que foram se
perdendo pra tras das arvores ao passo que o castanho abria campo
eternamente longe da mae nunca mais vista ou sabida (ROCHA,
2012, p. 138-139, grifo nosso).

No romance, paralelamente à viagem do grupo pelo sertão, acontecem as


mais variadas histórias. Esses episódios são descritos de diversas formas e sob dife-
rentes pontos de vista, incluindo, por exemplo, elementos de registro tipicamente
nordestinos – como o cordel de violeiros – passando por técnicas de registro gráfico
das vanguardas – como a literatura concretista - até estratégias do cinema – como
as técnicas de montagem de Eisenstein –.
Considerando que o enredo não apresenta divisões de capítulos, no meio da
segunda metade do romance, noutro exemplo, o autor insere o relato policial que
aborda a morte da irmã de modo a misturar elementos reais com ficção, como se o
autor desejasse construir a explicação do que teria acontecido à atriz. Essa estraté-
gia narrativa funciona como uma conversão da autobiografia para a ficção, inserindo
elementos reais ao romance. Nesses pontos do texto Glauber Rocha aproveitou o
caráter exploratório advindos dos limites da autobiografia; isto é, o autor explorou as
possibilidades advindas da narrativa biográfica. Malcolm Silverman (2000, p. 62)
apresenta a possibilidade dessa propensão a incluir elementos autobiográficos:

O memorialismo ficcionalizado é um híbrido mais literário, mais vari-


ado, e mais prevalecente. Infelizmente, também é mais difícil de ca-
tegorizar exatamente quando, e dentro de que contexto, os fatos
acabaram e começa então a ficção, bem como se eles se misturam,
intencionalmente ou não, por parte do autor.

Esse procedimento do memorialismo ficcionalizado está no romance de


Glauber Rocha. Uma diversidade de fatos e ideias que são reunidas com elementos
de uma realidade vivida pelo autor, com suas ideias irracionais, tudo se mesclando,
formando a ficção. O estilo narrativo adotado por Glauber Rocha representa uma
possibilidade do que poderia ter sido a realidade descrita detalhadamente. Ao narrar
trechos e descrever elementos o autor utiliza-se de fragmentos de sua memória e
mistura-os ao seu próprio imaginário.
69

Ao escrever obra Riverão Sussuarana o autor faz também uma crítica ao sis-
tema político cultural do país. Sua crença de que a irmã Anecy havia sido assassi-
nada faz com que o autor se utilize do romance para acusar a polícia de negligência
e para apontar a culpa ao marido da atriz, Walter Lima Júnior:

— Ontem de noite a senhora me advertiu para não excluir a possibi-


lidade de um assassinato...
— [...] encontrei o marido lá embaixo, e o trouxe para meu aparta-
mento...
[...]
— Monstro que matou minha irmã... Monstro branco! Monstro bran-
co! (ROCHA, 2012, p. 182-183).

Valendo-se de sua experiência como repórter policial, Glauber Rocha apre-


senta-nos uma versão dos acontecimentos e expressa-a de maneira clara, quase
cruel. Foram incluídos no romance dois contos atribuídos a Anecy Rocha “Para meu
marido” e “Assassynato”.
Essa mistura de matizes estilísticas dão ao texto um ar heterogêneo, exigin-
do a leitura paciente, pois na narrativa mesclam-se elementos da memória do autor:

[...] essas narrativas submetem o relato de vida a um jogo alucinado


de mediações e fazem desvariar o gênero, colocando em evidência o
núcleo fictício que se esconde em toda autobiografia e afirmando, em
última instância, que a autobiografia só pode assumir a forma de sua
impossibilidade. (OLMOS, 2011, p. 13)

Nesse ponto da narrativa torna-se perceptível uma desarmonia de estilos:


Riverão Sussuarana parece não se encaixar em nenhuma forma estética tradicional
sendo, dessa forma, pertinente considerá-lo dentro do fenômeno conceituado como
autoficção. Segundo Alexandre Eulálio (1993, p. 299), Riverão Sussuarana “preten-
de ser história de verdade e imaginação, assim como todos os filmes dele”. Nesse
sentido a verdade apresenta-se como lembranças repletas de elementos fictícios.
Cria-se, assim, uma atmosfera fantasmática, com personagens fantasmagóricos,
sobretudo o personagem de Guimarães Rosa que, ao final do romance, desaparece
para depois reaparecer como Guimarães Rocha, construindo uma duplicidade de
personalidades.

Guimarães Rocha sabia que ah guerra ia começar [...]


Rosa cansado remodelava os escritos [...]
Rosa compreendeu que Riverão queria [...]
[...] falava-se que tinha sequestrado o Embaixador Romancista João
Guimarães Rosa e o Cine Reporter Glauber Andrade Rocha [...]
[...] Rosa sabia das verdadeiras fronteiras e desenrolou das coxas
mapa na sua pele [...] Quando o Tenente Campos chegou lá não en-
70

controu Riverão e seus homens, nem eu e Rosa... [...] Guimarães


Rosa não morreu com noticiou a imprensa ynternacional, nada dis-
to... (ROCHA, 2012, p. 214-230, grafia do autor; grifo nosso).

Essa linguagem e o recurso a fusões é comum no romance e nas obras ci-


nematográficas de Glauber Rocha. São recriações que não possuem sentido apa-
rente e, por isso, exigem participação dedicada na interpretação do texto.

4.3 “O livro é como o sertão e o sertão é cheio de galhos”: roteiro de viagem

Podendo ser analisado também como um roteiro de viagem, o romance de


Glauber Rocha apresenta seus personagens em andanças pelo Brasil. A região elei-
ta para a peregrinação é o Nordeste do Brasil, em que os estados do Piauí, Ceará,
Maranhão e Bahia são os cenários da caminhada; o estado de Minas Gerais tam-
bém é parte desse roteiro e é o seu objetivo final.
Para iniciar esse tópico é preciso esclarecer alguns dados geográficos do
Brasil de 1978. Nessa época a República Federativa do Brasil contava com vinte e
duas unidades federativas e um Distrito Federal. Dos vinte e dois estados brasilei-
ros, Glauber Rocha menciona dezenove em seu romance, excluindo do roteiro os
estados do Espírito Santo, Acre e Mato Grosso do Sul. O autor incluiu também Bra-
sília, o Distrito Federal porque

[...] o livro é como o sertão e o sertão é cheio de galhos, cheio de his-


tórias. É como uma galharia literária. Quem gostar do sertão, que en-
tre. Quem não gostar, vá ler um livro que se passa na praia. (RO-
CHA, 1986, p. 144)

A diversidade do território brasileiro é apresentada no texto, indicando a


maior parte dos estados do Brasil e apontando para a decadência econômica do pa-
ís e este como vítima de um imperialismo predatório. O roteiro acentua a descrição
geográfica do percurso realizado, área pouco abordada pela cinematografia da épo-
ca, centrada principalmente no ambiente urbano e no litoral.
A narrativa de Glauber Rocha, através da alegoria, busca refletir sobre a rea-
lidade brasileira; assim sua escrita literária que, em vários momentos refere fatos e
personalidades da História do Brasil apropria-se deles para contribuir para a caracte-
rização de uma identidade nacional a partir daquela considerada por Glauber Rocha
como a genuinamente brasileira: o sertanejo, em oposição ao urbano. A estética fíl-
mica de Glauber Rocha, presente no livro, apresenta traços de sua busca em retra-
tar a realidade do povo brasileiro. A peregrinação que os personagens de Riverão
71

Sussuarana fazem no romance objetiva rememorar os elementos nacionais intoca-


dos pela cultura estrangeira. Seria uma forma de fazer o resgate da cultura genui-
namente nacional.
O cineasta propõe não a criação de uma nova identidade nacional, mas, sim,
o resgate de uma identidade que já existe. Considerada a obra completa de Glauber
Rocha ela é permeada de representações do sertão, do cangaço, do efeito do impe-
rialismo e do populismo e de temáticas afins, construídas com base no sertanejo e
no povo brasileiro. Essa representação tinha como foco abordar a ruptura dos pa-
drões norte-americanos que, acreditava Glauber Rocha, seria alcançada pela revo-
lução social, instigada no povo através da produção artística.
O resgate da identidade nacional brasileira original, na obra do cineasta, se
deu com a inserção de elementos da cultura popular nacional em diversos aspectos.
Nos longas-metragem Barravento (1961) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) o
povo brasileiro é apresentado em sua integralidade cultural; em primeiro plano estão
representados elementos como a música, a dança, o folclore popular, a vestimenta,
os hábitos e costumes dos povos brasileiros que não haviam sido corrompidos pela
cultura estrangeira. Tais elementos também podem ser identificados no romance de
modo a deixar clara a proposta do autor em expor a sua versão para constituir o que
deveria ser cerne da nacionalidade original do povo do Brasil.
Embora a literatura de cordel também possa ser identificada em Riverão
Sussuarana, é no longa-metragem Deus e Diabo na Terra do Sol em que ela se
mostra mais evidente. Num alegorismo da luta de bem versus mal ESSE filme cum-
pre o papel de apresentar o imperialismo predatório norte-americano contra o ideal
popular da sociedade brasileira, que considera o sertanejo seu representante mais
fiel:

há uma tradição de versos populares e de canções que vêm de he-


rança portuguesa e espanhola, é a dos cantadores, que agora tor-
nou-se no Nordeste especialidade dos cegos, que inventam histórias.
Por serem cegos, eles têm uma imaginação maior e inventam len-
das. Todo episódio de Corisco em Deus e o diabo foi tirado de quatro
ou cinco romances populares (ROCHA, 2004, p.113, grifo nosso).

Esses elementos presentes na temática de Glauber Rocha – o sertanejo, o


poder, a autoafirmação do povo, as desigualdades sociais e a miséria – não apenas
negavam o atraso econômico, mas queriam ir além da denúncia desse atraso nos
países do Terceiro Mundo, em especial o Brasil; eles veiculam uma busca por acio-
72

nar, no povo brasileiro, a construção de uma identidade cultural nacional que o cine-
asta e romancista acreditava ter já encontrado.
Glauber Rocha acreditava que o cinema hollywoodiano ameaçava a identi-
dade e a cultura nacional do povo brasileiro. Com esta preocupação o cineasta pro-
pôs, na sua obra, a expulsão dos enredos daqueles símbolos que ameaçavam o de-
senvolvimento cultural do país, sendo essa expulsão uma catarse. O autor funde,
nos textos, o tempo e o espaço entre o território nacional e as mais diversas figuras
históricas.
Em Riverão Sussuarana está presente uma técnica que também foi utilizada
em A Idade da Terra (1981): o autor representa a multiplicidade territorial brasileira
através da inserção dos personagens que são oriundos dos mais diversos estados.
A pluralidade identificada nas personagens de Riverão Sussuarana garante uma es-
pécie de carnavalização55 no texto de Glauber Rocha, expandindo seu sentido an-
tropofágico e remodelando a perspectiva das culturas nas releituras possíveis das
paisagens – incluídos aqui as unidades federativas mencionadas no romance.
Tanto nesse longa-metragem como no romance o cineasta mostra a diversi-
dade da população e a multiplicidade de tradições presentes nos estados brasileiros,
denunciando a decadência da periferia nacional abusada pelo imperialismo norte-
americano. Nos fragmentos seguintes encontramos demonstrações de como as re-
presentações territoriais e culturais aparecem no texto:

O jagunço Riverão Sussuarana cruzava a Fronteyra Bahia Mynaz pra


pedir proteção na fazenda do Coronel Dermeraveldo de Olyveyra.
Fervia escaldado farinha de mandioca com leite por cima da carne de
sol frita na pimenta acebolada e café quente todos dentro das capas
coloniais beira fogão friozim sertanejo baixo Tropyko Cancer.
(ROCHA, 1978, p. 14)

Fui de Jacaracy para Montes Claros no Estado de Minas a pé, eu e o


Lidio. De Montes Claros comprei passagem na Central do Brasil
acompanhado de Lidio, ele sempre comigo, comprei passagem para
São Paulo. (ROCHA, 1978, p. 49)

Queria comecar rodage que fosse reta Amazona Xuy Pyauy Bolyvya.
Jaca, pegou seriema pelo pe nas bandas de Oieras e viu caboclim
com pexera no cinto cumento farinha incostado nas preda. (ROCHA,
1978, p. 46)

55 "A teoria da carnavalização amplia o sentido do temo [paródia]. A paródia carnavalesca seria um
tipo de percepção vasta e popular, caracterizada por uma visão às avessas: uma oposição ao sério,
ao tradicional, ao dogmático, ao oficial, numa atitude de dessacralização, recusando o absoluto da
ordem oficial" (MAIA, 1985, p. 12).
73

Para concretizar no romance a proposta de mostrar o território brasileiro


através da viagem ou peregrinação pelo país, o autor utiliza como ideia de fundo o
acontecimento histórico da marcha política de Miguel Costa e Luís Carlos Prestes
que atravessou o país no sentido sul-norte-sul. Essa marcha foi tomada como espi-
nha dorsal do romance por Glauber Rocha. A Coluna Miguel Costa-Prestes consti-
tuiu uma viagem que iniciou no sul e percorreu cerca de 25 mil quilômetros, atraves-
sando estados brasileiros com o objetivo de incentivar o povo a se rebelar contra o
governo e as elites agrárias. O objetivo do grupo era o de mobilizar a população das
periferias brasileiras com o intuito de conscientizá-las da necessidade de mudança
na política do país para derrocar o modelo político de República Velha. A Coluna
propunha uma revolução em favor dos oprimidos. Sua trajetória terminou em 1927,
quando se dissolveu, na Bolívia.
A metaforização do evento Coluna Miguel-Costa Prestes no romance cum-
pre a proposta de Glauber Rocha de salientar o Brasil político na Literatura (Cf. RO-
CHA, 2012, p. 103). A Coluna tinha como propósito denunciar que a República opri-
mia a população, que a institucionalização da democracia popular era urgente. No
romance, a proposta de Glauber Rocha apresentar seu entendimento estético e polí-
tico-cultural através das histórias do texto; são os personagens que percorrem o país
fazendo parte da literatura glauberiana, esta que estava recheada de elementos dos
dois manifestos estéticos (Estética da Fome e Estética do Sonho), introduzindo no
enredo tanto aspectos culturais, populares como biográficos:

Esse livro [Riverão]


faz parte de uma necessidade que tive de publicar toda minha teo-
ria cinematográfica, num momento em que o cinema brasileiro se
encontra numa grande crise criativa e eu me sinto cada vez mais
frustrado porque toda uma teoria revolucionária de cultura brasileira
está sendo posta por água abaixo pela burocratização estatal, pelo
comercialismo da indústria privada de arte no Brasil e pelo confor-
mismo com que os artistas resolveram aceitar tudo isso. [...] o meu
estilo tem provocado muitas reações, principalmente certos ‘donos
oficiais’ da cultura [...] Essa minha independência tem me custado a
repressão editorial. Por isso, levei um ano para publicar Riverão que
só Alfredo Machado topou editar. (ROCHA, 1986, p. 123, grifo nosso)

A citação reitera a importância, para o autor, da exposição de suas ideias


acerca dos conceitos, diretrizes e rumos da arte brasileira. A analogia proposta pelo
autor faz referência à sua própria literatura ao passo que da mesma forma que a Co-
luna Miguel Costa-Prestes percorreu o Brasil, Glauber Rocha criou um enredo literá-
74

rio que reitera esse percurso pelo país que queria evidenciar. A criação das estéticas
inseridas no percurso fílmico e na correspondência está presente também em sua
literatura. Glauber Rocha foi criando seu movimento estético e artístico que pode ser
percebido como culminando na escrita de Riverão Sussuarana, onde todos os ele-
mentos de seu trabalho podem ser percebidos.
Glauber Rocha relatou a saga do brasileiro que poderia resistir a imposição
de valores estrangeiros valendo-se da miscigenação dos elementos alegóricos, do
mito e da transgressão em seus versos. A produção temática do cineasta em ques-
tão, além da forma como ele optou por escrever seus textos, tem na Coluna o eixo
central do livro, especificando um labirinto que percorre caminhos traçados desde
que ele se fez como artista.
A Coluna Miguel Costa-Prestes, o movimento histórico escolhido pelo cine-
asta para metaforizar sua ideia de estética artística, desenrola-se como um novelo
que contém as principais ideias do autor. Da narrativa desses acontecimentos, nos
quais se mesclam elementos de ficção e realidade, infere-se uma afronta aos pode-
rosos da literatura, do cinema, da cultura em geral, os que ele chamava de donos da
cultura.
Os indivíduos ou entidades que teimam em imperar a forma certa de criar
uma estética artística literária são enfrentados dialeticamente pelo cineasta em seu
romance. O que o escritor propôs de inovador, de crítica política e social foi moldan-
do – em conformidade com as ideias expressas na Estética da fome e na Estética do
sonho –, com os movimentos revolucionários defendidos pelo autor, bem como com
as temáticas de seus filmes. Todas essas questões estão presentes em Riverão
Sussuarana.
75

4.4 “Meu livro é para ser digerido como capim e quem não digerir terá dor-de-
barriga”: Revolução Ortográfica

Ao final da década de 1950 Glauber Rocha já escrevia críticas de arte para


colunas de cinema e literatura em jornais do estado da Bahia. Sendo cineasta ele
também continuava publicando suas ideias, chegando a propor que seus filmes
possuíam caráter de literatura:

Na realidade, sempre escrevi. Todos os roteiros de meus filmes fo-


ram escritos por mim. Mas o artista é assim. Quando explode a febre
da criação, ele sente a necessidade de expressá-la da forma que lhe
parece mais adequada. O artista incorpora símbolos, elementos, per-
sonagens, sons e cores. O gênero depende da necessidade do autor
(ROCHA apud REZENDE, 1986, p. 151).

Glauber Rocha chegou a considerar a possibilidade de levar Riverão às te-


las, ainda que essa filmagem fosse realizada por outro cineasta.
A obra de Glauber Rocha é marcada pela relação literatura-cinema. O ro-
mance é permeado de metáforas que remetem à estrutura social brasileira e críticas
a essa mesma estrutura. Sendo ele um agitador cultural, sua ficção literária surgiu
como mais uma de suas experiências artísticas. Buscando inovar, o cineasta em-
prestou técnicas do cinema às linhas de seu romance, da mesma forma que fez uso
de estratégias literárias em seus filmes:

I
travelling corre sobre a terra seca: silêncio
crepúsculo, vozes distantes: é lamp é lamp é lamparina é lampião
fusão
cangaceiro canta baixinho tocando sanfona
panorâmica por cima do acampamento: dormem
Lampião dorme na rede, de óculos: é lamp é lamp etc.
soldado aponta o fuzil
outro soldado
outro soldado

TENETE
Fogo!

fuzis disparam
fuzis disparam
som: gritos e tiros, gritos e tiros
romance cantando a morte de Lampião em Angicos:
Lampião e Maria Bonita
pensavam que não morria
ele morreu na boca da noite
ela morreu no romper do dia (ROCHA, 1985, p. 5).
76

Glauber Rocha utilizava a ótica prosaica, no sentido de prosa, quando elabo-


rava seus roteiros que posteriormente se tornaram filmes. Essa construção se dava
contando com o caráter literário, sendo essa uma das razões pelas quais o autor
descrevia seu trabalho como possuidor do que ele chamou de “base literária” (RO-
CHA, 1980). Segundo ele mesmo, em carta de 2 de dezembro de 1980 endereçada
a Kalyl (Carlos Augusto Calil), “a edição seria bom para preservar a base literária
dos filmes – pois estes roteiros podem ser refilmados + televizados + mostrados em
teatro e ainda funcionam como romances ou novelas etc.” (ROCHA, 1997, p.
670, grifos nossos)
Nas passagens que seguem observa-se o que pode ser considerado como a
invasão do cinema pela literatura e vice versa. Nos excertos abaixo, do roteiro de
Deus e o diabo na terra do sol (1964) – ou A ira de Deus – pode ser identificada a
linguagem poética com a repetição das sentenças como bando avança e rezam ex-
celências como que dando ritmo ao texto/filme:

[...]
corte
região de espinho, mato cerrado
o bando deixa os cavalos e ruma caatinga adentro: terra seca
o bando avança
o bando avança
o bando avança
o bando avança
corte
[...]
noite, o acampamento iluminado por tochas
todos os beatos rezam excelências para os mortos
rezam excelências
rezam excelências
rezam excelências
rezam excelências
rezam excelências
o campo inteiro iluminado de tochas (ROCHA, 1985, p. 17; 22)

Observa-se nesses excertos a presença de caracteres poéticos, tais como a


rima e a musicalidade do cordel; encontram-se ainda elementos da temática serta-
neja, como as expressões bando, região de espinho, mato cerrado. Comparando os
dois trechos destadacos acima é possível atribuir caráter literário aos roteiros de
Glauber Rocha, assim como atribuir o caráter cinematográfico a romance Riverão
Sussuarana.
No seguinte fragmento, extraído do romance, observa-se a linguagem de ro-
teiro de cinema aplicada na literatura:
77

Benedito Falcão invade a cidade


Tiroteio
Campolino e Dió atacam
Néo mata Benedito
Manuel Souza morre
Roberto ferido
Estela ajuda Campolino a matar os Jagunços (ROCHA, 2012, p. 94)

Nesse, tal como no trecho anterior, há elementos da temática sertaneja. A


forma da estrutura visual desse recorte remete tanto à poesia concreta como aos
roteiros de cinema. Em 1977 Glauber Rocha deu início a um processo de questio-
namento político-artístico que ele deu a conhecer por Revolução Ortográfica. Ele
passou a reescrever todos os seus textos substituindo algumas letras por X, Y, Z, K,
fazendo aglutinações de palavras e criando neologismos. O jogo de letras e palavras
que Glauber Rocha passou a utilizar em seus textos era uma das manobras adota-
das pelo cineasta objetivando alcançar uma forma de escrita que desafiasse a gra-
mática normativa propondo – senão uma nova língua – ao menos uma nova alterna-
tiva de pensar a linguagem como instrumento de veiculação das concepções políti-
cas.
A violência que o autor inscreveu na escrita da Estética da Fome está pre-
sente em Riverão Sussuarana, também registrada pela linguagem. Cabe ressaltar
que o estilo utilizado pelo cineasta, inclusive nos textos jornalísticos, não era novida-
de na época, tendo sido adotado por outros escritores contemporâneos do cineasta
em questão. Em Os morcegos estão comendo os mamãos maduros: o besta y a
doida (1973), de Gramiro de Matos, por exemplo, há interferências semânticas e or-
tográficas; são utilizadas imagens que remetem ao movimento surrealista e apresen-
tado o falar cotidiano de forma seca e bruta56.
A seguir, a comparação entre fragmentos do texto de Gramiro de Matos e de
Glauber Rocha permite traçar um paralelo de estilo entre ambos:

Homem travessya
Rio
Vyda
Mar
Vulkão
Romançantropologico Rosincorpora folklore à falada cultura popular
e a rescreve à luz da comparação unyversal num trabalho que liberta
formalismo pessimista dos fylosophos decadentes
Panteyzmo Kolonizador reduzido a estas
Heranças de Portugais

56 Cf. Fig. 5 e Fig. 6 no Anexo.


78

Aboliram touradas ô Brazyl! (ROCHA, 2012, p. 233-234)

Neste’mpo fora do corpo, na cabeceira da cumieira mesa-telha-


planeta, ou s’esmaga ou decepa a cabeça da serpente y da semente,
Finado Bufa livre do’sequazes’orri escorrendo em sangue fantasma-
górico pelo chão di azulejos medievais antiazuis indo juntar seu pen-
samento motor transmissor numa molécula captora-voadora
doutr’semente’semelhantes da consciência cósmica pós-consciente.
(MATOS, 1973, p. 142)

Sendo estilos de escrita diferentes, mesmo assim é perceptível a estratégia


comum a ambos os escritores: chocar o leitor através da corrupção da linguagem
utilizada no texto. Essa estratégia busca, também, reformular a forma de pensar a
escrita literária. O estilo que fugia aos formalismos tradicionais aplicados à literatura
era um recurso muito utilizado nessa época. Esse recurso estilístico, linguisticamen-
te corrompido, funciona como uma representação da resistência à influência coloni-
zadora capitalista estrangeira sobre a elite brasileira. Uma apresentação e denúncia
do processo de colonização também realizado também através do uso da língua
portuguesa.
Glauber Rocha, com sua forma de escrever, utilizou o conhecimento que
possuía das normas cultas da linguagem para expor sua rebeldia e incursões revol-
tosas contra o sistema opressor. Mais uma vez o estilo de escrita do cineasta de-
monstra apropriações antropofágicas do sujeito marginalizado. Glauber Rocha con-
siderava o idioma e a gramática como entraves, obstáculos à liberdade de expres-
são: “Precisamos de novas estruturas linguísticas para nos expressarmos sem a
camisa de força do idioma. O ensino da língua emburrece. Que todos gaturejem no-
vas escritas, para se livrar da massificação linguística” (Rocha apud REZENDE,
1986, p. 141).
A camisa de força pretende ser rasgada quando o autor se apropria da lin-
guagem e expressa nela seu mecanismo de revolta, faz dessa escrita uma arma
contra o imperialismo. Os personagens de Glauber Rocha instauram uma luta alegó-
rica contra a implantação, na cultura brasileira, dos ritos e costumes norte-
americanos através da linguagem, eles são apresentados se expressando incluindo
tanto as formas de falar populares como expressões estrangeiras com a grafia adul-
terada. Se na literatura o artista utiliza a o formato da fala popular para representar
um povo, no cinema ele utilizou a expressão visual, a aparência do povo.
Cacá Diegues (apud PIERRE, 1996) enfatiza a função estratégica da
maneira de escrever de Glauber Rocha num diálogo com ele: “Mas por que você
79

escreve assim?” [...] ‘Há tanta coisa no jornal... escreve-se tanto...que se você não
chama a atenção das pessoas com uma forma diferente de escrever ninguém vai te
ler!’”
Para Ribeiro (2002, p. 83) Riverão Sussuarana foi a tentativa de reproduzir a
expressão falada da gente nordestina. As personagens passaram a ser simbolizadas
na própria fala. A sua rudeza e a brutalidade da fala das personagens representa a
grosseria e a falta de suavidade existencial do povo sertanejo. O romance atacava o
que Glauber Rocha chamava de ditadura da escrita e sobre inserção desse formato
da linguagem no universo da literatura Glauber Rocha (apud REZENDE, 1986, p.
123) é incisivo:

Os literatos não suportam que eu escreva, que eu publique romance,


que eu me meta pelo jornalismo. A minha intervenção no campo lite-
rário é também uma intervenção assincrônica, porque eu não escre-
vo segundo as regras dominantes. Isso não quer dizer que eu tenha
uma linguagem melhor do que a dos outros, mas a minha linguagem
responde também à minha pulsão e os literatos não gostam.

Em Riverão Sussuarana o autor chega a ser intransigente com seu leitor,


pois sua forma de fazer arte é pautada na exposição do que considera a crua
realidade, respondendo violentamente contra a própria violência imposta ao povo, já
que seu romance pretende expor da maneira mais inflamada possível o falar e o
viver do povo sertanejo. Esse recurso à brutalidade se dá pela forma de escrita do
autor que, ao corromper a gramática, recusa a certeza, a lógica e o equilíbrio dos
conceitos pré-estabelecidos. Glauber Rocha também utiliza a narração de situações
chocantes para atacar a opressão das massas populares pelos imperialistas
colonizadores; ele o faz com a força de sua escrita.
Considerado pelos intelectuais de sua época um pensador de esquerda
durante muitos anos, próximo ao final de sua vida Glauber Rocha conseguiu
conquistar a antipatia das duas vertentes da política nacional. Isto se deu, em
grande parte, pela proposta inovadora das ideias do cineasta – as expostas em seus
dois textos manifestos – Estética da Fome e Estética do Sonho – que, não raro,
alfinetou as propostas da esquerda e da direita política brasileira:

'[...] tudo que cheira a povo e que explode como barbárie linguística
ofende profundamente a intelectualidade colonizada da direita e os
comunistas, que são todos gramscianos, lucackisianos, são todos
sovietizados e têm horror à barbárie. [...] minha luta ideológica extra-
polou o plano do cinema' (ROCHA, 2002, p. 164).
80

O escritor pretendia mostrar o Brasil que considerava real ao Brasil e ao


mundo: mostrar a realidade como realmente era, em sua complexidade e
integralidade, abrindo espaço para o aparecimento de novas vertentes artísticas,
políticas e literárias. Essa proposta era, como a exposição das ideias de seu
preceptor, complexa, confusa e difícil de compreender, mas era conectada por fios
de pensamentos lógicos pela qual confrontava a racionalidade cultural e política
dominante através da apresentação dos temas escolhidos e veiculados através de
suas obras.
Levando em conta todos esses aspectos é possível compreender o não
entendimento das propostas artísticas e estéticas de Glauber Rocha na época de
sua publicação, haja vista que ele assumiu um comportamento vanguardista e
revolucionário, à frente de seu tempo.
81

5 “EU OFENDO AS PESSOAS NO EXCESSO DE MEU INTERESSE POR


ELAS”: CONCLUSÃO

Houve uma série de condições que desfavoreceu o reconhecimento de


Glauber Rocha como literato no final da década de 1970, razões que levaram a críti-
ca literária da época a não aceitar Riverão Sussuarana (1978).
A Estética da fome inspirou-se em movimentos como a Nouvelle Vague, a
Antropofagia e o Realismo, enquanto a Estética do Sonho assumiu um estilo como o
de Luís Buñel, Jorge Luís Borges e o Surrealismo. Nesta perspectiva as diferenças
apontadas entre os dois manifestos demonstram a transição na maneira do cineasta
de fazer e pensar seu trabalho. Os elementos elencados acima puderam ser
identificados no macrotexto.
A análise das 164 cartas escritas pelo autor no período de 1953 a 1981
demonstra que há, sim, as características estéticas defendidas pelo missivista nos
manifestos.
Na análise do romance Riverão Sussuarana buscou-se identificar os
elementos estéticos característicos do autor, os traços observados nos dois
manifestos e apontados na correspondência e nos filmes do autor. Da análise feita
nesta Dissertação inferiu-se que a obra do cineasta que permeou a década de 1960
esteve sob a égide das características da Estética da Fome. A partir do final da
década de 1960 e início da década de 1970 o autor transformou o modo de fazer
arte; a partir e então suas obras assumiram um caráter que se pode denominar de
miscigenado, que transitava entre os dois manifestos defendidos pelo autor. A
produção do cineasta posterior à década de 1970 esteve sustentada na Estética do
Sonho.
A Estética da Fome e a Estética do Sonho, dessa forma, conjuntamente com
a linguagem inovadora que o cineasta propôs na arte – nos filmes e no romance –
apresentam sua perspectiva da realidade brasileira: a existência da dominação es-
trangeira, a presença do imperialismo europeu/norte americano que, aceitos no Bra-
sil tentavam introduzir a identidade pautada nos moldes extranacionais e não no que
Glauber Rocha considerava genuinamente brasileiro. O que o autor nos apresentou
no romance foi uma demonstração de que Brasil é mais do que os imperialistas qui-
seram/querem impor. Há uma identidade tipicamente nacional, há o sertão, o lingua-
jar local de cada região, há diversas formas de fazer arte. Todas essas propostas o
82

artista desnudou através da metáfora Coluna Miguel Costa-Prestes; esse foi o cami-
nho escolhido pelo autor para expor sua estética.
O percurso artístico de Glauber Rocha que culminou em Riverão Sussuara-
na é narrado dentro do romance. O escritor envereda pelos labirintos de suas ideias,
como a Coluna enveredou pelos estados brasileiros. A Coluna Miguel Costa-
Prestes, portanto, pode ser considerara também como uma metáfora do próprio pro-
cesso de criação de Glauber Rocha.
83

APÊNDICE

O ingresso desta mestranda no Programa de Pós Graduação (PPGEL) em


Letras da Universidade Federal do Piauí (UFPI), no início de 2013, deu-se com a
apresentação de uma proposta de análise da correspondência escritas pelo cineasta
Glauber Rocha. Essa proposta de análise objetivava compreender as noções de
Cultura Brasileira considerando os conceitos estéticos do autor estudado, todavia
esse projeto sofreu a primeira modificação no primeiro semestre do curso, no decor-
rer da disciplina Narrativas Pós-Colonais. Ao longo da matéria levantou-se o debate
acerca do caráter literário do gênero cartas pessoais, por essa razão a correspon-
dência deixou de ter lugar de destaque neste estudo e assumiu o papel de fontes de
informação sobre Estética. Como objeto de pesquisa escolheu-se o único dos dois
romances escritos por Glauber Rocha que foi publicado: Riverão Sussuarana. O
Projeto apresentado no Seminário de Projetos contemplou a proposta acima descri-
ta.
Como ponto de apoio para o estudo de Riverão Sussuarana, foram conside-
rados também que em 1965 Glauber Rocha lançou o texto manifesto Eztetyka da
Fome na Resenha do Cinema Latino-Americano, em Gênova. Nesse texto Glauber
fez uma apologia à discussão do fazer cinema num país subdesenvolvido. O mani-
festo faz parte de seu projeto de descolonização cultural. Nele o cineasta apresentou
uma proposta de fazer arte cuja relação com a realidade fosse de correspondência
plena, sem fantasias ou maquiagens, opondo-se à forma de fazer cinema e de pen-
sar dos colonizadores.
Para Glauber Rocha o cinema nos moldes que era concebido na época, o
cinema comercial, não era o ideal para externar a realidade do Terceiro Mundo. Es-
se tipo de feitura cinematográfica tematizava o que ele chamou de paternalismo eu-
ropeu em relação ao Terceiro Mundo.
A linguagem sofisticada, limpa, rica e bem-acabada desses filmes era inca-
paz de atingir a crueldade da pobreza. O cineasta advogava em favor de algo que
ele chamou de cinema verdade, em que a fome e a pobreza seriam expostas em
toda sua brutalidade, sem romance nem glamour. O manifesto pregava coerência
entre o que se dizia e o que seria apresentado nas obras de arte: “somente uma cul-
tura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: a
mais nobre manifestação cultural da fome é a violência” (ROCHA, 1965, p. 31).
84

No desenvolvimento da redação desta Dissertação compreendeu-se que tal


estética, apresentada em 1965, enquadrava Glauber Rocha na linha do Realismo.
Nesse manifesto Glauber Rocha apontou que o europeu só se interessa pela Améri-
ca Latina para satisfazer instintos primitivistas e considerava que, para os colonos, a
fome nos países do Terceiro Mundo não passa de “surrealismo tropical”. Ao atacar o
gosto europeu pela miséria da América Latina o autor do manifesto apresentou uma
alternativa de mudança ao sugerir que a conscientização do colonizador só aconte-
ceria através da exposição nua da violência. O horror e dureza ao qual o colonizado
é submetido não devem sensibilizar, provocando o humanismo, deve chocar, provo-
cando indignação e horror, fazendo com que os europeus percebessem, de fato, a
miséria latina.
Em 1971 Glauber Rocha escreveu outro manifesto: a Eztetyka do Sonho,
apresentado aos alunos da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Nessa
nova estética o autor alcançou o onírico, o místico. Essa nova proposta de Glauber
Rocha foi taxada de hermética, seus filmes produzidos nessa época foram conside-
rados incompreensíveis. O que pôde-se perceber nesse manifesto é outra tentativa
do cineasta de conscientização do povo que, para ele, muitas vezes não sabia de
sua própria fome.
Para o desenvolvimento desta Dissertação considerou-se coerente a possi-
bilidade de ligação dos trabalhos pós Estética do Sonho de Glauber com o Movimen-
to Surrealista. Citando Jorge Luis Borges, Glauber apontou para a dilatação de sua
sensibilidade em busca da liberdade de expressão, acreditando que romper com os
racionalismos colonizadores seria a única maneira de se libertar.
Para o cineasta as vertentes políticas estão presas à razão colonizadora e o
próprio pensamento que o povo tem de si não condiz com sua realidade, mas sim
com o que os colonos acham que é sua realidade. “A razão do povo se converte na
razão da burguesia sobre o povo” (ROCHA, 1971, p. 219). A força dessa convicção
impele Glauber a perambular pelos domínios da mística e da desrazão.
Bentes (2002, p.3) aponta uma mudança no posicionamento estético do ar-
tista: "O que Glauber parece dizer é que nenhuma explicação histórica, sociológica,
marxista ou capitalista, pode dar conta da complexidade e tragédia da experiência
da pobreza, algo, para ele, da ordem do ‘incognoscível’, do ‘impensado’ e do ‘intole-
rável’ (BENTES, 2002, p. 3).
85

Convencido de que o povo não poderia ser convertido através da estética da


violência justamente por não ser consciente de sua própria miséria Glauber optou
por adentrar os limites do místico, do sonho e da fé, pois se tratavam de terrenos
conhecidos para eles.
Essa articulação de mito versus revolução buscava construir uma nova mito-
logia popular cuja consequência seria a descolonização cultural. Nessa abordagem
Glauber evita cair na armadilha da idealização dos colonizados não apontando ex-
plicações para os fatos, o que há é uma fusão de religiosidade, fome e transe num
apocalíptico movimento simbólico.
Ivana Bentes (2002, p. 4), em seu artigo Terra de fome e sonho: o paraíso
material de Glauber Rocha, nos apresenta a proposta do manifesto em questão:

Glauber propõe em 'Eztetyka do Sonho' uma nova relação entra arte


e revolução. Proposta que se afasta do realismo crítico, do cinema
de inspiração literária, do cinema político latino-americano dos nos
60 e se aproxima ainda mais da antropofagia moderna, do surrealis-
mo europeu, do realismo mágico latino: Jorge Luis Borges, Gabriel
Garcia Marques, Jorge Amado, Luis Buñuel [...] (grifo nosso).

Entre os dois manifestos sobre Estética propôs-se situar a mudança no posi-


cionamento intelecto-cultural de Glauber Rocha (1981, p. 221) “A estética da fome
era a medida da minha compreensão em 1965. Hoje recuso falar qualquer estética”.
Após o sucesso no evento de Qualificação, a preparação do texto para o
evento da Defesa versou em torno da investigação de Riverão Sussuarana, em que
o romance foi analisado a fim de localizar no texto as características identificadas
nos dois movimentos estéticos publicados por Glauber Rocha nos Manifestos.
86

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FILMOGRAFIA

BARRAVENTO. Direção de Glauber Rocha. Produção de Rex Schindler, Braga Ne-


to. Roteiro: Glauber Rocha, José Telles de Magalhães. Música: Washington Bruno
(canjiquinha), Batatinha. Itapoan: Iglu Filmes, 1962. (80 min.), 35 mm, son., P&B.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sy60bm2Cn04>. Acesso em: 20
maio 2014.

DEUS e o Diabo na terra do sol. Direção de Glauber Rocha. Produção de Luiz Au-
gusto Mendes. Roteiro: Glauber Rocha, Walter Lima Jr.. Música: Heitor Vila-lobos.
Monte Santo: Copacabana Filmes, 1964. (125 min.), 35 mm, son., P&B. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=mS81fFWbJCY>. Acesso em: 25 maio
2014.

O DRAGÃO da maldade contra o santo guerreiro. Direção de Glauber Rocha. Pro-


dução de Glauber Rocha, Zelito Viana, Luís Carlos Barreto, Claude-antoine. Roteiro:
92

Glauber Rocha. Música: Marlos Nobre, Walter Queirós, Sérgio Ricardo, Cego de Fei-
ra. Rio de Janeiro: Mapa Filmes, 1969. (95 min.), 35 mm, son., color. Legendado.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xx_QFips7Ow>. Acesso em: 20
jun. 2014.

TERRA em transe. Direção de Glauber Rocha. Produção de Zelito Viana. Música:


Sérgio Ricardo. Rio de Janeiro: Mapa Filmes, Difilm, 1967. (111 min.), 35 mm, son.
P&B. Disponível em: <http://youtu.be/9oSR06dQGjY>. Acesso em: 27 maio 2014.
93

ANEXO – RELAÇÃO DE IMAGENS

Figura 1 – Pescadores em cena de Barravento

Fonte: Google imagens

Figura 2 – Zumbi discursando

Fonte: Acervo pessoal


94

Figura 3 – Antônio das Mortes e Coirana em luta alegórica

Fonte: Google imagens

Figura 4 – de Riverão Sussuarana (ROCHA, 1978, p. 164)


e de Os morcegos estão comendo os mamãos maduros (MATOS, 1973, p. 74-75)

Fonte: Digitalização
95

Figura 5 – Epígrafe de Terra em Transe

Fonte: Digitalização

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