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Introdução à Esquizoanálise Gregório Baremblitt

Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p 2.edição

Baremblitt, Gregório [2003]. Introdução à Esquizoanálise 2.ed, Belo Horizonte:


Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p

Apresentação – 2.a Edição

É com gratidão e satisfação que o Instituto Felix Guattari de Belo Horizonte apresenta a
segunda edição do "Introdução à Esquizoanálise" de Gregorio F. Baremblitt.

Os exemplares da primeira edição se esgotaram com uma rapidez que não esperávamos,
e os leitores, especialmente alunos universitários, os de nossos cursos e outros
interessados na obra de Deleuze e Guattari nos solicitaram uma ampliação da mesma.
Essa estimulante demanda fez com que a presente edição seja de um nÚmero limitado
de exemplares e possa ser considerada como preliminar de uma terceira, muito mais
extensa, que está no prelo.

O autor considerou necessário acrescentar a essa segunda edição um apêndice no qual


se trata de temas, preferencialmente incluídos em "Mil Platôs", que foram pouco
desenvolvidos na primeira.

Fazemos presente aqui nosso agradecimento ao staff do Instituto Felix Guattari pela
eficiente e generosa colaboração nas tarefas de tradução, correção e montagem do
presente texto, assim como por valiosas sugestões recebidas para o conteÚdo do
mesmo: Oalva A . Lima, Érika Rianni, Irene Ferreira do A . Oliveira, Luciana Tonelli,
Neuza Beatriz H. G. Pereira e Patrícia Ayer de Noronha.

In Memoriam de Felix Guattari*

Este evento é especialmente emocionante para mim por vános motivos. Ele é
emocionante no sentido das emoções entusiásticas, porque as idéias de Guattari têm
sido fundamentais em minha formação e, como pretendo explicar, também em minha
vida cotidiana, pessoal.

Mas também é um momento duplamente triste porque estarnos reunidos para prestar
homenagem a uma figura que faleceu em uma idade e com uma vitalidade que, fazia-
nos pensar, poderíamos aguardar muito ainda de sua capacidade produtiva. Por outro
lado, uma grande amiga nossa, Sonízia Maria de Castro Máximo, que foi a gestora de
todo esse encontro, também faleceu, de forma ãbsolutamente inesperada, vítima de um
acidente de trânsito: Sendo assim, hoje estou aqui para falar a vocês no marco da perda
de dois grandes amigos, e tentaremos transformar esta situação de luto em, pelo menos,
um encontro produtivo, que nos permita superar essa tristeza.

heroísmo um heroísmo mais amoroso, mais moderado, como Guattari mesmo o

Felix Guattari, em uma vida relativamente breve, conseguiu desenvolver tantas


atividades, produzir tanto, criar tanto, que falar acerca desta vida, em um tempo curto, é
uma tarefa quase impossível. Mas faço questão de falar de todas e de cada uma das
coisas que ele fez, embora apenas mencionando-as, enumerando-as. Eu acho que, entre
todos os méritos que Guattari tem ou teve, o fundamental é o de fazer ver ao mundo,
este mundo um tanto cético, um tanto decepcionado no qual nós vivemos, este mundo
utilitarista, pragmatista (no mal sentido da palavra), este mundo, em muitos sentidos,
medíocre e cínico, que é possível viver de uma maneira produtiva, de uma maneira
brilhante, de uma maneira heróica. Não dentro das modalidades do heroísmo
revolucionário clássico, mas abrindo a perspectiva de um novo tipo de chamou, em
algum livro, "uma nova suavidade". Então, parece-me importante detalhar tudo o que
Guattari fez, porque uma das queixas que eu formulo, e que sei que muitas pessoas
formulam em nosso meio, é de que "não têm tempo" para fazer grandes coisas. É
interessante poder

Conferência proferida por Gregorio F. Barcmblitt na Aliança Francesa em 26/1 0/92,


como homenagem póstuma a Felix Guattari.

exaltar, poder examinar a vida de uma pessoa que tinha tanto ou menos . tempo que nós.
E, sem dúvida, foi capaz de fazer uma quantidade de coisas que deixaram o mundo
diferente depois de ele ter passado por onde passou.

Guattari faleceu aos sessenta e dois anos de idade, na noite de 28 de agosto passado, no
hospital onde ele trabalhava muitos anos, desempenhando tarefas clínicas. Ele nasceu
em trinta de abril de mil novecentos e trinta, em Colombes, França. Sua escolaridade foi
muito irregular e difícil. Estudou farmácia e filosofia, mas não conseguiu formar-se em
nenhum desses dois cursos. Na Segunda Guerra Mundial participou de um movimento
destinado a construir albergues juvenis, moradias para os refugiados de guelTa. Dentro
de suas tarefas políticas, ele teve contato com muitas figuras intelectuais da França, e se
encontrou com duas especialmente importantes. Uma, a do trabalhador em saúde mental
de orientação anarquista e libertária, François Tosquelles, que tinha imigrado da
Catalunha, no tempo da guerra civil. E com Jean Oury, um grande psiquiatra francês.
Por outro lado, Guattari tinha descoberto as idéias de outro grande psiquiatra, Franz
Fannon, um psiquiatra argelino, que posteriormente chegou a ser Ministro da Saúde
Pública da Argélia, autor daquele grande livro "Os Condenados da Terra".

Jean Oury, Guattari e outros acharam um castelo em ruínas e, fazendo uma reforma do
mesmo, construíram uma célebre clínica psicoterapêutica e psiquiátrica denominada "La
Borde", que se transformou em um verdadeiro campo experimental para uma série de
propostas psiquiátricas modernas, alternativas e até revolucionárias, que continua
existindo e sendo uma fonte de inspiração para todos os movimentos alternativos
psiquiátricos do mundo.

Guattari militou na Juventude Comunista, mas foi expulso por sua oposição aos
acontecimentos de Budapeste e à política do Partido Comunista na Argélia. Participou
na organização de ajuda à "Frente de Libertação Nacional Argelina". Escreveu para um
periódico comunista relacionado com a Liga Comunista e com as organizações
marxistas e anarquistas. Interessou-se p-ela Psicanálise e se analisou com o professor
Jacques Lacan durante sete anos. Pertenceu à Escola Freudiana de Paris, que, como
veremos mais para a frente, teve vários dissidentes, mas nenhum destes chegou a
questionar a razão da existência dessa escola, ou seja, a Psicanálise em si mesma.
Guattari fundou a Federação de Grupos de Estudo e Pesquisa Institucional, ou seja, uma
enorme corrente que reunia experts de diferentes disciplinas, antropólogos, sociólogos,
economistas, etc., que se ocupavam em estudar as instituições. Guattari fundou também
a revista "Recherche", que teve um papel importantíssimo na, divulgação das idéias
institucionalistas. Em 1966, organizou um jornal e um grande agrupamento que se
denominou "Oposição de Esquerda". Participou também da redação das novas teses da
"Oposição de Esquerda", propondo uma ética militante que reunia os descontentes de
todos os partidos políticos de esquerda, particularmente da Liga Trotskista e do Partido
Comunista Francês. Participou na operação de ajuda ao povo do Vietnã na guerra contra
os Estados Unidos. Em 1967 foi um dos fundadores da Organização de Solidariedade
com a Revolução Latino-americana, organização esta do intelectual Régis Debray, que
estava preso na Bolívia. Em maio de 1968, Guattari associou-se a vários setores
protagonistas desse impQrtantíssimo fato histórico e participou, pessoalmente, de uma
das manobras táticas que foi a ocupação do teatro Odeon. Fundou o CEPFI – Centro de
Estudos e Pesquisas de Formação Institucional, centro esse que publicou obras tais
como "Genealogia dos Equipamentos Coletivos", "O ideal militante", etc. Dentre suas
publicações na Revista "Recherche", uma em particular se referia aos movimentos
homossexuais, o que motivou sua prisão, tendo sido anistiado por Giscard d'Estaign. A
partir de 1970, militou ativamente pela implantação da rede de rádios livres, a primeira
das quais se chamou "Alice". Fundou o CINEL – Comitê de Iniciativa pelos Novos
Espaços da Liberdade, organização que defendeu os extremistas autônomos italianos e
que lutou pela libertação do intelectual italiano Tony Neri, preso ná Itália, por sua.
vinculação com as Brigade Rose. Em 1981 foi um dos artífices da candidatura do
célebre cômico francês Coluche. Foi membro ativíssimo de uma grande organização
ecológica chamada "Geração Ecológica" e, finalmente, fundador da Rede de Alternativa
Psiquiátrica, um Movimento com propostas psiquiátricas críticas que se estendeu pelo
mundo inteiro.

Bem, tudo isto fala acerca da militância ativa de Guattari no campo, não apenas da
cultura, mas dos fatos políticos concretos, os principais que agitaram a História durante
o período de sua juventude e de sua maturidade. Por outro lado, Guattari escreveu os
seguintes livros:

"Psicanálise e Transversalidade", que pertence ao período em que ainda era psicanalista;


"A Revolução Molecular", um belo livro que resume suas propostas de militância
política; "O Inconsciente Maquínico", onde expõe a reformulação que fez da idéia do
inconsciente freudiano; posteriormente escreveu com Gilles Deleuze, o grande filósofo
e seu amigo pessoal, "O Anti-Édipo", um livro que foi expressivo do movimento
político e cultural de maio de 68. Fez um estudo com Deleuze sobre o escritor Kafka, a
quem eles consideram uma das maiores expressões de um gênero que seria "uma
literatura menor"; depois, escreveu, também com Deleuze, "Mil Platôs", que é algo
assim como o segundo tomo de "O Anti-Édipo". MaIs recentemente ele publicou um
livro chamado "Caosmose", e imediatamente antes deste, um belo livro sobre Ecologia,
chamado "As Três Ecologias", e depois, com Gilles Deleuze, "Que é Filosofia?". Isso
sem mencionar inúmeros artigos publicados em todos estes órgãos que acabamos de
expor. Por outra parte, publicou, em português, em colaboração com S. Rolnick,o livro
"Cartografias do Desejo", e, na mesma língua, foi editado um pequeno volume de suas
conversas com Lula.

Então, encontramo-nos aqui evocando a figura de um intelectual, praticamente


autodidata, que não chegou a cumprir a burocracia de nenhum título universitário, que
produziu uma quantidade assombrosa de textos, que conseguiu relacionar-se de forma
produtiva com as figuras mais importantes das últimas duas ou três décadas, que militou
política e ativamente, tanto nas organizações tradicionais, como na maioria das
alternativas importantes deste período, e, além do mais, foi criador de uma série de
movimentos, fundador de uma série de dispositivos políticos que tiveram um papel
importantíssimo nas tentativas de transformação do que é o mundo moderno e pós-
moderno. Eu acho que uma figura deste tipo, desta magnitude, desta transcendência,
estamos acostumados a descrever e a encontrar antes de 1920, de 1930. Estas são
figuras do porte de um Trotsky, de um Marx, de uma Rosa de Luxemburgo, ou um
Gramsci, que, desde a Segunda Guerra Mundial, pareciam ter-se extinguido. Como
também parece ter-se extinguido, de nossas vidas cotidianas, todo o impulso – firme,
ambicioso, entusiasta para a construção de uma existência decididamente mais digna.
Por isso, creio que ao se falar neste homem, Guattari, não se trata de destacar um ideal,
porque a obra de Guattari está toda encaminhada a demonstrar que os ideais não
existem, que os ideais são "idéias puras", que ninguém tem por que reproduzir ou
copiar. Por este motivo, não diríamos que Guattari é um ideal, não diríamos que
Guattari é um modelo, mas sim, diríamos que Guattari é um exemplo de como se pode
viver de forma que a vida seja a realização de um bem, de uma forma de criação e de
inspiração, que a vida pós-moderna parece ter proscrito completamente de nosso
cotidiano.

Bem, se só fazer este detalhamento da militância política, da produção bibliográfica, da


atividade científico-societária de Guattari já toma tanto tempo, e espero ter dado pelo
menos uma imagem panorâmica, como é que nós podemos sintetizar essa fulgurante
produção teórica de Guattari, difícil de dissociar da sua produção unida a Gilles
Deleuze? Essa união produtiva com Gilles Deleuze já configura uma espécie de milagre
intelectual que é absolutamente insólito na História da Cultura. Um comentarista
francês, um jornalista, afirma que essa obra é uma "filosofia a duas cabeças", fórmula
que não me parece afortunada. Para começar, creio que a obra de Deleuze e Guattari
não é uma filosofia. E, por outro lado, justamente o fantástico, o assombroso, é que
essas obras escritas pelos dois já não são de "duas cabeças". Para quem estuda
cuidadosamente "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Que é a Filosofia?" (este, o último livro
que publicaram), é impossível saber de quem são as idéias, se de um ou de outro. Então,
é muito mais que criar uma filosofia a duas cabeças, é criar um conhecimento, um saber,
que faz os dois, não devir um, mas devir muitos. É a transformação de um dueto em um
enorme coral, em que não apenas não se sabe se isto foi escrito por Deleuze e aquilo por
Guattari, mas também que neste coral cantam as vozes mais revoluciomirias, mais
críticas, mais escolhidas de nosso século.

Como se poderia qualificar essa obra? É muito complexo, porque essa obra inclui as
ciências formais, a matemática, a geometria, a lógica; contém as ciências naturais, a
física, a química, a biologia; contém as ciências humanas, a antropologia, a história, a
economia política, a semiótica, a psicanálise, e contém também muitos elementos da
literatura, da pintura, da música; contém as melhores idéias de toda a tradição filosófica
do ocidente, preferencialmente um ramo da filosofia representada fundamentalmente
pelas idéias dos estóicos, de Espinoza, de Nietzsche, de Bergson, de Hume. E até
contém alguns momentos do discurso cotidiano, do saber popular, do senso comum.
Então – para quem pretende expô-lo em meia hora –, o que é isto? Se nós a chamamos
de filosofia, é um pouco injusto e limitativo, a não ser que a comparemos com a ética de
Espinoza, que é uma filosofia declaradamente feita para se aprender a viver de acordo
com ela. É uma disciplina? Não é. Porque serve para ser aplicada em qualquer lugar, por
qualquer pessoa, e com qualquer motivo, sempre que este motivo inclua uma proposta
de produção, de criação, de invenção, de felicidade, de transformação do mundo. Então,
o que diremos? Que é uma proposta política? Claro que é uma proposta política.
Fundamentalmente micropolítica. Mas é uma proposta política que pode ser utilizada
por um indivíduo, ou por um grupo, por um movimento, em um partido, em uma igreja,
em um jogo de futebol, em qualquer lugar. Então, não é um discurso propriamente
político, mas sim, é politicamente utilizável em qualquer de suas dimensões. O que resta
para dizer é que essas idéias são, segundo a velha fórmula, uma concepção do mundo,
uma weltanschauung, como diziam os alemães. Eu não gostaria de dizer isso na
presença de algum guattariano ou deleuziano assumido, porque seguramente não estaria
de acordo. Uma concepção do mundo é uma série de idéias, de crenças, de convicções
acerca de como o mundo é e de como devemos nos comportar nele. E esta obra de
Deleuze e Guattari, embora esteja feita com representações, pois está escrita com
palavras, não é uma ideologia. Não é um pensamento discursivo, mas segundo a própria
definição deles, é uma máquina fundamentalmente energética, destinada a vibrar e a
fazer vibrar aqueles que dela se aproximam e a engajá-los em um movimento produtivo,
que não passa exatamente pelas idéias nem pelas palavras, passa pelos afetos. Por afetar
e ser afetado. Passa pela capacidade de vibrar em consonância, passa pela capacidade de
despertar o entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar. E é curioso que isto que
eu acabei de dizer, costuma-se dizer, por exemplo, sobre os discursos religiosos ou
sobre os discursos ideológicos. E não se pode dizer que a obra de Deleuze e Guattari
não tenha, em certo sentido, uma vocação religiosa. Mas religiosa na melhor definição
de religare, de unir novamente os homens, sobretudo os homens que a merecem, ou as
partes dos homens que são capazes de unir-se para gerar produtos novos e dignos. Esse
discurso, como vocês seguramente poderão apreciar, se são leitores de Deleuze e
Guattari, é um discurso incrivelmente erudito, de um rigor e de uma seriedade, de uma
literalidade nas citações, que chega a ser um tanto desesperador. Porque a gente não
consegue saber como é que dois intelectuais conseguem ler tantas coisas, entendê-las
tão bem e extrair delas estritamente aquela parte que eles podem integrar no discurso
próprio, com essa vocação revolucionária e produtiva. Mas toda essa erudição, toda essa
severa lógica, toda essa ortodoxia no discurso acadêmico não é o mais importante dessa
obra. O mais importante é aquilo que fervilha por baixo, sob o discurso. É essa
capacidade de capturar o leitor e de ir integrando-o a um mundo que, aparentemente
mágico, um mundo aparentemente de ficção, é infinitamente mais real que os discursos
acadêmicos. que os discursos filosóficos especulativos, que as prédicas religiosas, ou
que as promessas políticas. É importante destacar essas características dos textos e dos
discursos de Deleuze e Guattari, porque eles estão sempre integrados a um tipo
particular de militância. Eles sempre têm um "pé" numa ação concreta que se exprime e
se inspira nesses escritos, dentro da famosa idéia de práxis, ultimamente tão esquecida.
A proposta de uma micropolítica é a ação política que acompanha a proposta analítica
desses autores, que se chama "Esquizoanálise". A Esquizoanálise é uma leitura do
mundo, praticamente de "tudo" o que acontece no mundo, como diz Guattari em seu
livro sobre as ecologias, sendo uma espécie de Ecosofia, uma "episteme" que
compreende um saber sobre a natureza, um saber sobre a indústria, um saber sobre a
sociedade e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por objetivo a vida, no
seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a diversificação, a potenciação da
vida. É importante saber que essa micropol ítica não está instrumentada por partidos
políticos, embora não seja proibido exercê-la dentro deles. Não toma, como lugar
privilegiado de atuação, a academia, com suas produções ortodoxas e rígidas. Não
propõe a formação de uma igreja, mais ou menos despótica. Não necessita atuar dentro
dos âmbitos do Estado, apesar de não se negar a fazê-lo. Não precisa dos partidos
políticos tradicionais, nem dos sindicatos, especialmente se eles são corporativos. Não
define um campo de esquerda mais ou menos global, que seria melhor do que o de
direita. A proposta é a de uma polític que se pode fazer em todo e qualquer pequeno,
médio ou grande âmbito em que transcorre a vida humana, a política dos movimentos
singulares, dos movimentos que exprimem idiossincrasias, a política feminista, a
política dos movimentos homossexuais, a política das minorias raciais, a política dos
imigrantes, a política dos sem-terra, a política de todos aqueles que sofrem a exploração,
a dominação, a mistificação do mundo atual, mas que não pertencem necessariamente
aos organismos, às entidades molares respeitadas e consagradas pelo mundo em que vi
vemos, e que são responsáveis pelo mundo estar como está. É uma política baseada em
uma proposta básica que diz que a essência da realidade é a imanência do desejo e da
produção. O desejo, aquele descobrimento de Freud, o desejo inconsciente, dito no
sentido não apenas de um espaço do psiquismo, de uma força do psiquismo, mas dito no
sentido da essência, da substância de tudo aquilo que existe. Ele tem, dizem Deleuze e
Guattari, o mesmo processo de funcionamento que Freud descreve no inconsciente
psíquico, particularmente em seu processo primário. E, por outro lado, esse mesmo
processo é um processo substancialmente produtivo, é a permanente criação do
diferente, a geração constante do novo. Então, quando Deleuze e Guattari dizem que o
processo último da realidade é produtivo e desejante, eles introduzem a idéia de desejo
na materialidade produtiva, e a idéia de produção neste processo criativo que é o desejo,
e que habitualmente se atribui ou apenas ao campo do psíquico ou às esferas mais ou
menos ultraterrenas do metafísico. Esta proposta da substância da realidade como
repetição do diferente, do diferente radical, esta, chamemo-la assim, ontologia de
Deleuze e Guattari, é o pilar de sua proposta ética. Porque é uma afirmação acerca da
realidade, que diz que esta, em si mesma, é uma fonte inesgotável de criação, é uma
potência incoercível de transformação. Não existe, na realidade, nenhuma força
definitória que equivalha a essa famosa "pulsão de morte" freudiana ou a qualquer
processo entrópico como os físicos o descrevem nos sistemas fechados. É uma
ontologia, uma teoria do devir que, desde a base (se isto se pode chamar "base"), propõe
um tipo de vida que confie nisto, que acredite que somos portadores de uma energia
criativa que nos faz formar parte de um mundo que é simultaneamente físico, natural,
humano e maquínico. As separações que se estabelecem neste mundo, e as hierarquias
que se postulam nessas relações são produto de uma concepção autoritária do universo,
que sempre tem que ter algum setor da realidade que seja mais respeitáv.el, mais
temível, mais poderoso que o outro. Deleuze e Guattari dizem que em tudo que existe
há uma imanência que faz com que cada um dos campos seja igualmente importante.

Não descrevem a natureza como aquele campo da realidade que existe para ser
dominado pelo homem, não descrevem as máquinas como criações do homem que
devem servi-lo, descrevem tudo isso em um nível de interpenetração, de igualdade
hierárquica, em que cada segmento desse real deve combinar-se com o outro,
procurando o crescimento harmônico de todos esses setores ao mesmo tempo. Por outro
lado, atribuem a esta conexão de potências uma natureza produtiva, que não precisa
fazer-nos acreditar que somos resultado de uma criação falida de alguma entidade
sobrenatural ou transcendente. E também não precisa fazer-nos acreditar que somos um
produto monstruoso de alguma natureza que funciona exclusivamente guiada por leis
mais ou menos fascistas. Este saber e este afazer que estas duas figuras têm criado e
promovido através de suas vidas militantes e de suas produções teóricas, são feitos por
um procedimento epistemológico, digamos assim, que os autores assumem valente e
quase humoristicamente.

Eles postulam o procedimento do "roubo", eles "roubam", eles pegam de cada teoria, de
cada práxis, aquela parte que lhes parece mais inspirada, aquela engrenagem que eles
poderão colocar no interior de sua máquina teórica e militante, sem interessar-se por
completo pelo rótulo geral que possa ter essa disciplina da qual pinçaram e "roubaram"
um conceito.

Assim como para eles não existe hierarquia entre o mundo natural, o mundo subjetivo e
o mundo maquínico e social, assim também não existem discursos consagrados, textos
adoráveis e discursos insignificantes.

Um dos conceitos essenciais desta teoria, o conceito de "Corpo sem Órgãos", foi
tomado simultaneamente de um poema de um literato louco, Antonin Artaud, de um
mito dos Índios Dógons e de um mito das religiões orientais que se chama "o Ovo
Cósmico". Acontece que esta categoria, "Corpo sem Órgãos", criada tomando
elementos de um discurso "psicótico", de um mito indígena e de um ideologema de uma
religião oriental, é um conceito que acaba dizendo uma coisa muitíssimo parecida com o
que diz a física quântica atual, com o que diz a teoria dos fractais, a teoria das
catástrofes de René Thom, o que tem de mais evoluído na físico-química atual. Estas
coincidem. Por outro lado, o discurso do texto de Deleuze e Guattari é feito da mesma
maneira utilizada pelos artistas primitivos para fazerem seus quadros e obras de arte
cotidianas. Eles se declaram bricoleurs, juntadores de idéias, sobretudo juntadores de
elementos cuja característica em comum é não ter nada em comum.

Isto, à primeira vista, poderia fazer supor que encontraremos uma salada de palavras. E
não é uma salada de palavras o que se encontra nestes textos, mas um discurso
fulgurante, como eu dizia, revelador, crítico e, sobretudo, incrivelmente inventivo.
Então, esses ladrões bricoleurs fazem depender essa criatividade justamente da sua
irreverência. Porque, apesar de fazerem citações com uma precisão assombrosa e com
um cuidado bibliográfico surpreendente, eles conseguem fazer com que aquilo que
roubaram diga alguma coisa nova, de tal forma que, se o autor que foi vítima do roubo
chegasse a lê-lo, não se reconheceria nele. Há uma passagem no livro de Deleuze que se
chama "Diálogos", onde o autor define seu método de criação teórica de uma maneira
metafórica ou alegórica, dizendo que se trata de aproximar-se sigilosamente de um
autor, pelas costas, e fazer-lhe um filho monstruoso, onde ele não se reconheceria. Só
que monstruoso, neste caso, não quer dizer teratológico, não quer dizer ridículo,
absurdo, disforme. Quer dizer maravilhoso, quer dizer absolutamente impensável para o
próprio autor deste conceito.

Sem poder ir mais além nesta introdução e supondo que haverá algum período destinado
ao diálogo entre este amável público e eu gostaria de concluir referindo-me a uma das
tantas relações que estes textos de Deleuze e Guattari estabelecem, e que é interessante:
a relação com a Psicanálise. Eu a escolho quase que por um vício profissional, porque
eu sou psicanalista, e a escolho também por ter uma certa suspeita da presença de vários
especialistas na matéria, aqui, no público. Mas poderia falar também da relação crítica
da Esquizoanálise com o Materialismo Histórico. Ou poderia falar da relação crítica da
Esquizoanálise com a Lingüística estruturalista, com a Antropologia estruturalista, ou
com as concepções capitalistas da Economia. Mas vou escolher provisoriamente a
relação com a Psicanálise.

Os textos de Deleuze e Guattari, a meu modo de ver, pelo menos para a minha leitura,
vêm tendo uma modificação no percurso do tempo, com relação à Psicanálise. Quando,
por exemplo, Guattari escreve "Psicanálise e Transversalidade", é um analisado de
Lacan, e assina embaixo da teoria do significante, da concepção estrutural do
psiquismo, etc. Mas manifesta uma franca preocupação política e social, que, como se
sabe, estava ausente na obra de Lacan e na da maioria de seus continuadores. Já quando
Guattari escreve, junto com Deleuze, "O Anti-Édipo", faz neste livro uma crítica radical
à Psicanálise, que se pode resumir da seguinte maneira: a Psicanálise seria a ciência que
dá conta de um modo de produção do sujeito psíquico. E este modo de produção do
sujeito psíquico é, sem dúvida, o modo de produção edipiano. É no seio da estrutura
edipiana, que todos os psicanalistas consideram única, eterna e universal, que se gera "o
sujeito psíquico". Toda outra forma é considerada incompleta e aberrante. Deleuze e
Guattari, no que dizem acerca do sujeito psíquico, afirmam que não existe um modo de
produção deste que seja universal e eterno. Mas sim, que existe um modo
historicamente dominante de produção do sujeito psíquico que, obviamente, é o
edipiano. E se pode dizer que o modo edipiano de produção do psiquismo – vamos dizê-
lo de uma maneira um tanto vulgar – é a produção de homens narcisistas, egoístas,
ciumentos, invejosos, petulantes, facilmente decepcionáveis, majoritariamente
heterossexuais, enfim, o que constitui o psiquismo habitual do nosso modo de ser, que é
universal. Mas não é universal no sentido de que seja o único. Não é universal no
sentido de que sempre tenha sido assim, e não é universal no sentido de que continuará
sendo assim. Mas é universal no sentido de que é um modo de produção do sujeito
psíquico que teve sucesso em sua capacidade de impor-se aos outros, e até na sua
capacidade de produzir uma teoria que seja própria para descrevê-l o tal como ele é: a
Psicanálise. Mas também é universal no sentido de que ele tem sido capaz de produzir
elementos teóricos que lhe permitem fazer sua autocrítica. E descobrir que não é eterno,
descobrir que não é o único possível, e descobrir que essa dominação que ele impõe
sobre os outros é um imperialismo, como existe o imperialismo político, o imperialismo
ideológico, o imperialismo econômico e até um imperialismo ecológico. Em "O Anti-
Edipo", então, o psicanalista é qualificado de algo assim como um mecânico
especialista na restauração, na reparação de um aparelhinho eletrodoméstico que
cumpre uma função pobre, mas muito difundida.

No percurso das obras posteriores, esta severa crítica inclui, além do mais, uma
reformulação completa do que é o inconsciente (porque Deleuze e Guattari dizem que o
inconsciente da Psicanálise ou é um teatro antigo, com Édipo, Jocasta, Laio e
companhia, ou está estruturado como uma linguagem, e então parece um jogo de
palavras cruzadas, dessas que saem nos suplementos de jornal aos domingos), que
nunca foi pensado como uma fábrica, como um lugar de produção, pura e
exclusivamente de produção, de uma produção desejante, de uma produção que ao
mesmo tempo que cria, goza. E que só é abafada, só sofre, só entra em conflito com
aquelas estruturas sócioeconômicopolíticas e psíquicas que vivem da reprodução e não
toleram a produção do novo.

Nota-se também uma espécie de maior compatibilidade ou tolerância em relação à


Psicanálise em "Caosmose", de Guattari, e no livro "O que é a Filosofia?" Nestas duas
obras está colocado, com toda a clareza, que a teoria, o método, a técnica e o campo
clínico psicanalítico são uma espécie de "valor do nosso mundo", da nossa cultura, e
que o fato de que tenha sido enfatizada nele toda uma ética de resignação, de castração,
de falta, de morte, não impede que, na prática cotidiana, os aspectos vitais, os aspectos
produtivos, os aspectos revolucionários que todo psicanalista tem, apesar de ser
psicanalista, se conectem, se articulem com aquilo que seu paciente tem de vivo, de
produtivo, de revolucionário e gerem curas que, uma vez analisadas com a
metapsicologia freudiana, são entendidas de uma maneira diferente daquela que as fez
acontecer. Mas isso não importa. O que importa é que é um espaço social onde duas
pessoas se encontram mais ou menos abrigadas, mais ou menos a salvo das formas mais
grosseiras de repressão do sistema. E onde, dependendo do poder criativo de seus
desejos, podem dar origem a um bom encontro, que deixe os dois realizados em uma
dimensão que nada tem a ver com os axiomas do procedimento.

Szasz, esteve Goffman, esteve Beker, enfim E também, os colegas desta orientação

Bom, eu não posso estender-me muito mais, porque não quero cansá-los e porque
aguardo sempre, com expectativa, a participação do público. Mas queria concluir
dizendo que Guattari veio ao Brasil pela primeira vez, trazido por uma instituição que
eu fundei, junto com outros, o IBRAPSI – Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e
Instituições que no ano de 1978 fez um congresso no Rio de Janeiro, no qual estiveram
presentes, junto com Guattari, as máximas figuras da psiquiatria alternativa do mundo.
Esteve Basaglia, esteve Castel, esteve Thomas do Brasil e da América Latina.
Posteriormente a essa vinda de Guattari, eu tive ocasião de conviver e conversar com
ele em várias oportunidades, quando o IBRAPSI o trouxe novamente e quando outras
organizações o trouxeram. Guattari tinha uma particular simpatia pelo Brasil e parece
que o Brasil, também, pelas idéias de Guattari. Penso que as idéias de Guattari nunca
encontraram um campo tão fértil como aqui no Brasil. Devo dizer que, nessa
convivência, eu tive umas tantas discordâncias com ele. Tivemos polêmicas públicas,
em alguns congressos, porque tínhamos algumas divergências no que se refere à
estratégia e à tática no processo de transformação do panorama da saúde mental. Mas,
transcorrido o tempo, eu tive a oportunidade de constatar que minhas opiniões a respeito
eram aparentemente mais realistas que as de Guattari. Eu prognostiquei, em várias
ocasiões, para Guattari, que as transformações que ele propunha e que pareciam estar se
realizando aqui no Brasil, particularmente no campo da saúde mental, e que outros
companheiros haviam trazido com igual energia, por exemplo, Basaglia, não se iam
realizar tão rápida e facilmente como eles pensavam. Bom, isso já tem uns doze a treze
anos. E quando examinamos o panorama da saúde mental aqui, o que se vê ainda é uma
dominância da proposta psiquiátrica clássica, da administração excessiva de
psicodrogas, da terapia biológica com choques e insulina, um tratamento carcerário feito
ao doente mental. E vê-se que os movimentos deflagrados por Guattari e por Basaglia,
por Castel, Foucault e por nós mesmos não têm tido o sucesso que se esperava. Aliás, eu
faço questão de insistir em que, pode ser que eu tenha tido razão quando adverti que a
coisa não iria ser tão fácil, porque junto com essa permanência da Psiquiatria clássica,
também vemos a proliferação de um tipo de Psicanálise que, justamente, Deleuze e
Guattari criticaram de maneira irrefutável. Mas devo confessar que não sinto nenhuma
satisfação em ter tido razão. Pelo contrário, devo a Guattari uma força, um entusiasmo,
uma vontade e um desejo, que realmente se despertaram em mim com a leitura de sua
obra e com meu conhecimento pessoal dele, e que todas as dificuldades passadas não
conseguiram apagar por completo. Nesse sentido estou muito grato a meu amigo, e
prometo, publicamente, e peço a quem se interesse por isto que me acompanhe, porque
não abandonaremos a luta. Pode-se fazer a crítica da organização, pode-se fazer a crítica
dos resultados, como disse Guattari, mas não se pode fazer a crítica do desejo. E este
desejo é o que Guattari fez viver em muitos e que continuará vivendo. Muito obrigado.

Debate

Pergunta: Qual é a proposta da Ecosofia? Baremblitt: A relação entre o gênero humano


e esse campo denominado natureza é uma relação que tem sido pensada e tem sido
atuada, executada, quase sempre de forma assimétrica e hierárquica. Quer dizer, supõe-
se que o homem não é, ou pelo menos não é exclusivamente um ser natural. E que ele
deve relacionar-se com a natureza submetendoa, colocando-a a seu serviço, e
utilizando-a, segundo um conhecimento ditado pela razão – por UMA razão, sobretudo
a razão ocidental, que seria sinônimo de verdade, sinônimo de eficiência e sinônimo de
justiça. Acontece que tem havido pensadores, tem havido povos, tem havido modos de
analisar a vida que não aceitam essas premissas. Que consideram que o homem é um ser
natural e que sua relação com a natureza não deve ser uma relação de domínio, deve ser
uma relação de acompanhamento, de harmonia, em que o homem não pode impor sua
forma à natureza com a suposição de que essa forma racional é sinônimo de verdade
indiscutível. Mas ele pode aprender da natureza, porque a natureza contém um saber
que não é racional, mas que é mais propício para a vida que a organização que os
homens se deram em nome da razão. Então, isso se pode dizer para qualquer modo de
produção, para qualquer organização social, mas se pode dizer especialmente para o
capitalismo. Porque o capitalismo é um modo de organização das relações humanas que
está baseado na exploração do homem pelo homem, na dominação do homem pelo
homem, na mistificação do homem pelo homem. E uma concepção assim, se faz isso
com o homem, como não iria fazer o mesmo com a natureza? A conclusão é que esse
sistema, que contém em sua estrutura, em sua essência, a racionalidade, o saber
científico, a consciência, tem conduzido o mundo a uma situação como a atual, em que,
dentro do gênero humano, a riqueza, o peso da miséria, são distribuídos de forma cada
vez pior. No mundo atual temos cada vez mais miseráveis, cada vez mais analfabetos,
cada vez mais enfermos, cada vez mais deserdados. E temos levado a natureza a um
ponto tal, que até essa soberba da cientificidade e do produtivismo capitalista teve que
parar para examinar como as coisas estão, porque corremos o risco de perder o lugar em
que vivemos, sejamos pobres, ricos ou como for. E por outro lado, o mundo da máquina
é um mundo que já tem sido acusado, em diversos graus, de demoníaco, ou tem sido
idealizado como a salvação do universo. Deleuze e Guattari dizem que o mundo das
máquinas é um mundo que tem muito para ensinar-nos também. Mas que é um mundo
que não pode ser isolado dos interesses da humanidade em seu conjunto e não pode ser
utilizado na exploração destrutiva da natureza, que é imanente com a vida humana.

Então, a Ecosofia de Guattari propõe um saber acerca do mundo da sociedade, do


mundo da natureza e do mundo da mente, incluindo no mundo da sociedade a vida
maquínica, o mundo das máquinas. É uma espécie de democracia nosológica: tudo tem
o mesmo nível de valor, tudo é forma de vida, tudo é produtivo e tudo pode ser
encaminhado no sentido de uma harmonia crescente. Mas esse trabalho de conhecer e
de transformar não pode ser feito em nome de nenhuma entidade que seja considerada
superior às outras, de nenhuma tirania, de nenhuma transcendência. Esta é mais ou
menos uma forma de resumir essa questão.
P.: Eu queria saber o que você pensa a respeito da questão do caos. Guattari fala muito
sobre o caos que é inerente como forma de criar novas formas de conhecimento.

B.: Bom, nessa observação que fiz anteriormente, mostro que a obra de

Deleuze e Guattari tem um componente muito importante de Ontologia, ou seja, de


Teoria do Ser, de como as coisas são. Essa Ontologia afirma que a essência última é
produção desejante – os processos da mesma são aqueles segundo os quais o mais
substancial do existente funciona ao acaso. Ou seja, a realidade é constitutivamente
desordenada, é constitutivamente imprevisível, é constitutivamente caótica, coisa que já
diziam alguns filósofos, e coisa que hoje a microfísica e a macrofísica certificam. O que
a ciência tinha estudado e aquilo no qual a política se baseia é o estudo da regularidade
de pequenas ilhotas de ordem que se dão tanto no campo da natureza, como no campo
da vida social, e no campo do psiquismo. Pequenas ilhotas em que o que predomina é
uma repetição, uma regularidade, que a ciência estuda e que formaliza em leis. Mas, a
rigor, toda a potência produtiva da realidade em qualquer âmbito de que se trate
depende mais dessa natureza caótica, dos encontros ao acaso, das pequenas partículas
(como diziam os estóicos, ou Demócrito), mais do que desse planejamento racional e
exploratório que se faz daquelas áreas de regularidade sujeitas a leis. O que Guattari
propõe, tanto como tema de investigação, de pesquisa, como forma de atuação ética,
como forma de militância política, é a construção de dispositivos que tenham em conta
essa potência produtiva do caos, do acaso, e elaborem estratégias e técnicas destinadas a
produzir forrmações complexas no seio do acaso. Isto quer dizer formações mais ou
menos ordenadas, mas com uma ordem elástica, com uma ordem fraca, que permita o
efeito produtivo, que permita a emergência do caos criador. Nesse sentido,
politicamente, e este talvez seja o tema da discussão, Deleuze e Guattari têm muito a ver
com a tradição anarquista e com a tradição autogestiva de todos os movimentos
históricos dessa característica. Mas esta afirmação é feita não apenas desde uma leitura
política, mas também de uma leitura das afirmações da física das nebulosas, ou da física
do comportamento das partículas atômicas, ou de certa característica das combinatórias
biológicas, pelas proteínas alostéricas, ou dos sistemas tipo cadeia de Markoff ou da
matemática de Riemann, enfim, de todos aqueles campos do saber em que se tem
descoberto isto mesmo: a natureza caótica do ser e a importância de construir
dispositivos que não sejam rigidamente ordenados, mas sim que dêem possibilidade da
emergência criativa do caos. Deleuze havia produzido o termo Caosmos, que é essa
combinação de cosmos com caos. Isto não quer dizer que seja a hegemonia de uma
ordem constituída e mantida rigidamente. Guattari acrescenta CAOSMOSE. Eu
suponho que não se refere tanto a esse universo caótico e ao mesmo tempo cosmótico,
mas sim ao procedimento pelo qual se pode viver e produzir dentro dele. Existe a
palavra osmose, então, eu imagino que é uma metáfora tomada daí – caos e cosmos
articulados e propostos como procedimento.

P.: Quando ele fala dessa ordem em um movimento de desordem – que é uma ordem
que não quer dizer normativização, o que se faz com a angústia que a gente sente
perante a perda da certeza e da segurança que é dada pelo Instituído?

B.: Nas características que apresentam certas propostas da f'ilosofia socrática, platônica;
ou de certas correntes psicanalíticas atuais, que têm uma enorme influência de
Heidegger, de Kierkegaard, nós vemos que a angústia é atribuída a uma característica
essencial do sujeito psíquico. Quer dizer, das três teorias freudianas da angústia, a que
predomina, nestas leituras, é a de que a angústia é uma espécie de percepção da ação da
pulsão de morte. Entretanto, em Freud, encontramos uma primeira teoria da angústia
que era produto do recalque, do impedimento de que a libido se realizasse em encontros
criativos e prazerosos. Desde logo, nestas duas posturas, existe uma filosofia por detrás.
Então, se nós pensamos que a angústia é a percepção de uma força no nosso interior,
que é a pulsão de morte, e que é constitutiva da realidade no mesmo nível, na mesma
hierarquia que a de vida, logo, naturalmente, a angústia adquire um estatuto, adquire
uma respeitabilidade, a angústia é promovida como necessária, como inevitável e como
"atendível", no sentido de que uma certa dose de angústia é um elemento indicador para
levar-nos a um comportamento adequado, apropriado. Na concepção de Deleuze e
Guattari, a angústia é produto da antiprodução, que o mundo do instituído e do
organizado exerce sobre nossas forças físicas, psíquicas e sociais. Em conseqüência, é
um efeito indesejável e contornável. Agora, não há receita contra a angústia. Mas, se
sabemos que essa angústia exprime um mal-estar perante a possibilidade da perda e da
destruição de coisas que não nos fazem bem, a receita contra a angústia é o entusiasmo,
e, como dizia Espinoza, as "paixões alegres". É a plena certeza de que o que está sendo
libidinalmente feito vai ser melhor, porque é novo. Não é que se desconheça, nessa
teoria, a existência da angústia, mas eu acho que se poderia resumir dizendo que esta
teoria se nega a fazer-lhe propaganda, porque considera que "a propaganda é a alma do
negócio".

P.: O senhor trouxe para nós um Guattari de final de análise, e nesse ponto eu acredito
que a ética que ele traz é de um desejo decidido e não vejo como essa ética de um
desejo decidido de final de análise faça contraposição ou entre em contradição com a
ética da Psicanálise a partir de Lacan. Porque me parece que a partir dé Lacan, esse
termo, ciência do real, que está descrito no L'étourd, em Lacan, essa proposição dele do
real como algo que é impossível, como algo que escapa, que é sempre novo – isso está
em Lacan. Acredito que Guattari traz esse final de análise, esse entusiasmo do final de
análise, de um sujeito que produz e que traz um desejo decidido por algo que é
totalmente novo. Então, por que essa contraposição com relação ao que o senhor estava
dizendo? Que a ética da Psicanálise seria uma ética da resignação, da falta, da morte...
Será que ainda não seria uma leitura de Freud, ainda, talvez, com

de análise e trabalhar e viver e produzir Gostaria que o senhor falasse um

pressupostos anteriores aos que Lacan trouxe para nós depois desse retomo a Freud?
Onde justamente ele resgata, no texto freudiano, essa radical idade do novo na
estrutura? Eu gostaria que o senhor falasse, porque me parece que Guattari é fruto de
uma análise, ele traz esse entusiasmo próprio de alguém que pôde chegar ao seu final
pouquinho sobre isto.

B.: Eu acho uma observação interessante e não muito fácil de responder.

Porque, por exemplo, Reich também é fruto de uma análise e, sem dúvida, ele produziu
uma teoria do psiquismo, uma teoria das pulsões, uma proposta de articulação entre a
técnica psicanalítica e a militância política, que é radicalmente diferente de todo
"retomo a Freud", e particularmente do kleiniano e do lacaniano. Tausk, por exemplo,
também foi analisado, e ficou psicótico e se suicidou. Otto Rank,também. Jung, que
também foi bem analisado, foi qualificado, por Freud, de profeta, ironicamente, porque
teria abandonado a Psicanálise. Toda a Psicanálise anglo-saxônica, e particularmente a
norte-americana, é qualificada por Lacan, depreciativamente, de human engineering,
para significar que é uma análise que só serve para a "adaptação", e que o único retomo
verdadeiro a Freud é o de Lacan. Então, esse problema de atribuir os méritos produtivos
de Guattari ao fim de uma boa análise, pelo menos, é discutível.

P.: Estou me referindo à ética que o senhor traz de Guattari, de um desejo novo. Ela me
faz lembrar os conceitos, inclusive, de algo que se produz em um final de análise – é um
desejo desse tipo, que é fundamentalmente novo. Então, eu não vejo aí nenhuma
contradição.

B.: Eu sei, mas esse é o ponto seguinte. O primeiro ponto é se Guattari foi o que foi
como resultado de uma análise. Eu não afirmo o contrário, mas, pelo menos, eu deixaria
em aberto. Agora vou passar aos pressupostos. Em princípio, digamos, deixemos entre
parênteses o resultado de um procedimento. Porque, por exemplo, Deleuze, que
provavelmente é responsável por cinqüenta por cento desta obra, jamais se analisou.
Isso, deixamos entre parênteses. Mas, com respeito aos pressupostos, isso é mais
complexo de explicar. Fazendo um resumo injusto, eu acho que se pode fazer passar a
questão por isto que você mencionou. Por exemplo, na teoria dos três registros, para
Lacan, o Real é impossível. Esse real impossível é o que exige uma produção
imaginária, que, por sua vez, subordinada ao simbólico, vai ser o pré-requisito de toda a
produção do novo. Justamente, a famosa ética do analista consiste em colocar-se em um
lugar de suporte da transferência e da não resposta à demanda, para que o mecanismo
imaginário dispare, e para poder pontuá-lo impondo o simbólico. Para Deleuze e
Guattari, no real "tudo" é possível, porque o sujeito é parte do real. Não existe essa
diferença entre o mundo da subjetividade, que é o mundo de negatividades, na
linguagem pensada, por exemplo, como "a morte da coisa", não existe o pré-requisito da
castração, não existe a submissão à lei, não existe a identificação com a metáfora
paterna; o que existe é o funcionamento do psíquico que tem a mesma essência do real.
Então, a proposta não é a de uma repetição diferencial, como em Lacan, mas a proposta
é a de uma pura diferença, de uma multiplicação diferencial incoercível. Não se precisa
de um procedimento que nos convença de que o real é impossível, e que, por esse
motivo, nós poderemos "primeiro" imaginá-lo, "depois" simbolizá-lo. Isso implica uma
teoria da linguagem, isso implica uma teoria do Real, em geral, e isso se adere a toda
uma linha filosófica que é a que enfatiza o Ser como falta, ou a falta constitutiva do Ser.
Para Guattari e Deleuze, isso não existe, a não ser no molar. Para estes autores nada é
mais absurdo do que afirmar que houve um retomo "verdadeiro" a Freud. A Freud,
houve milhares de retornos. E o que há é um retomo de moda, ultimamente. Mas,
utilizando Freud como matéria-prima teórica, pode-se fundamentar a proposta de um
desejo como produção e não de um desejo como insistência em reeditar um objeto
perdido e jamais tido. Ou seja, o fundamental aí é o estatuto do nada, da ausência, da
falta, e a ética não é a ética heideggeriana, não é a ética do ser para o nada, mas é a ética
de Nietzsche, é a ética de um ser para a luta, de um ser para a vida, que lhe vai permitir
uma superação da dificuldade, não a de um ser para a resignação.

P.: No final do seminário onze, Lacan fala, quando trata dos quatro conceitos
fundamentais, desse desejo como uma diferença pura. Desse desejo como pura
diferença – no final, ele define desejo nesse sentido. Estou insistindo nisso, porque
Lacan, nesse seminário, lá pelos anos setenta, faz uma retificação nestes conceitos de
Real, Simbólico e Imaginário, e ele dá uma prevalência ao conceito de Real, dizendo
que, quando afirmou que o "inconsciente era estruturado como uma linguagem", ele não
havia dito que o inconsciente era uma linguagem. Ele disse apenas que o inconsciente
era estruturado COMO uma linguagem. E daí ele vai extrair toda uma ciência do Real,
vai estabelecer uma lógica, que vai desestimular os falsos maternas, e vai trazer toda
uma concepção do real. A rigor, a estrutura vai ser Real. Então, ele vai fazer um corte aí
nessa primeira leitura dele, anterior, e vai privilegiar o registro do real.

B.: Mas acontece que esse é um Lacan para o qual o Real é estrutura. Para

Deleuze e Guattari, a estrutura é uma dessas "ilhotas de ordem", de regularidade, das


quais a ciência produz as leis. Mas a essência do Real, o que é verdadeiramente produti
vo, não são as estruturas, são os fluxos, são o reverso da estrutura. Então, falam de dois
reais totalmente diferentes, distintos. O problema é que, quando Lacan formula as
estruturas, em realidade, ele é , digamos assim, mais platônico que nunca. Porque você
se lembra da famosa farmácia de Platão, a famosa tentativa de ordenar o mundo todo em
espécie, gênero, etc., ou seja, o método da divisão. A proposta lacaniana é uma forma
matêmica, de fazer a mesma coisa. Então, o que Deleuze e Guattari dizem é que,
quando um sujeito é produzido, quando é produzida uma subjetivação, ela é produzida
como componente de um acontecimento. E não existe uma forma estrutural que dê
conta desse sujeito. Porque esse sujeito não é uma variação de uma forma, pelo
contrário, é uma forma radicalmente nova. Então, não tem comparação possível. São
dois reais diferentes.

P.: Como Guattari poderia se entusiasmar com a situação ética do Brasil noventa e dois?

B.: Bom, eu não sei como poderia não se entusiasmar, eu apenas sei como foi que me
entusiasmou a mim. Guattari disse, textualmente, uma vez, que considerava o Brasil
como um imenso laboratório social, de onde podiam surgir os mais incríveis inventos. É
claro que a gente sabe que é um laboratório onde alguns ou muitos dos experimentos
acabam em resultados socialmente trágicos. Mas ao mesmo tempo eu acho que talvez se
trate simplesmente de comparar, por exemplo, o Brasil com a Comunidade Européia, ou
com os Estados Unidos na atualidade. Eu acho que (bom, é uma .opinião pessoal) mas
eu acho que, nesse momento, as possibilidades de uma desordem produtiva no Japão, ou
no Mercado Comum Europeu, ou nos Estados Unidos, são, no mínimo, menos
prováveis que na América Latina. Eu viajo

lugar na América Latina eu acho que é um país interessante. Eu não digo que seja

freqüentemente para a Europa e vejo que, neste momento, a luta política convencional
na Europa, na Espanha, suponhamos, que tem Partido Anarquista, Partido Comunista,
Partido Social-Democrata, Partido Democrático Cristão – a luta política convencional –
consiste em que, nessas eleições, os anarquistas perdem um vereador e os democratas
cristãos ganham um. E na próxima vez acontece o contrário, e mais ou menos nisso
consiste o movimento político, digamos, clássico, visível. Bom, até desde este ponto de
vista, um país como o Brasil, que sofreu uma ditadura de mais de vinte anos e que, em
pouquíssimo tempo, consegue, digamos assim, uma eleição direta, tem a desgraça de
perder o presidente que escolheu, inicia um novo processo eleitoral e escolhe errado,
mas escolhe errado por cinco milhões de votos, sobre um parque eleitoral de setenta
milhões; que consegue, de uma forma ou outra, visualizar seu eno e, através de seus
representantes, duvidosos ou não, afastar seu presidente do cargo – além disso, ainda
existe um partido político que não tem similar em nenhum outro para ser otimista, mas
pelo menos entusiasta se pode ser.

P.: Eu gostaria que o senhor colocasse um pouco a questão do paradigma estético.


Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os significados desse paradigma estético.

B.: Acho que esta será nossa última troca. Eu acho que essa questão do paradigma
estético está prefigurada em toda a obra de Deleuze e Guattari, na medida em que eles
consideram que o discurso, por exemplo, musical, e nesse sentido seguem Nietzsche
claramente, que diz que as verdades, ou o novo, o transformador, isso vem de qualquer
tipo de produção. E particularmente da produção artística. Em diversas passagens da
obra eles fazem questão de tomar contribuições literárias, musicais, pictóricas, estéticas,
como lógicas que inteligibilizam o processo do real e propiciam as mudanças com
muito maior antecipação do que outros paradigmas. Então, como críticos que são do
paradigma científico, que é característico da modernidade, essa proposta de adotar um
paradigma estético tem a ver com essa potência que eles atribuem à produção artística.

P.: Como antecipadora? B.: Como antecipadora e como preservadora da criação, da


vida, da harmonia. E também como receptora da desordem criativa, como se

vê, por exemplo, na música moderna, na música abstrata enfim, a arte sempre está

30 além de qualquer descobrimento praticado com outra metodologia em outro campo.


Provavelmente o único campo a que eles atribuem a mesma capacidade de gerar esse
famoso pensamento do fora, como dizia Foucault, é a loucura.

Bom, agradeço muitíssimo a atenção de vocês e espero que, em alguma outra ocasião
menos triste, nos encontremos outra vez. Muito obrigado.

Livros de autoria de Felix Guattari:

Psicanálise e Transversalidade Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo


Inconsciente Maquínico Cartographies Schizoanalitiques As Três Ecologias Caosmose.
Um Novo Paradigma Estético

Em colaboração com Gilles Deleuze:

Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia Poli tique et Psychanalyse Kafka. Por uma


Literatura Menor Mil Platôs O que é a Filosofia?

Em colaboração com Suely Rolnik:

Micropolítica – Cartografias do Desejo

Em colaboração com Antonio Negri:

Novos Espaços de Liberdade

Outros: Felix Guattari entrevista Lula


A Última Viagem do Capitão Guattari*

Nos últimos dias de agosto, faleceu durante o expediente de trabalho no

Hospital La Borde, em Paris, o militante político, psicanalista e intelectual francês,


Felix Guattari.

A notícia deixou terrivelmente penalizados todos aqueles que de uma ou de outra


maneira foram seus amigos, companheiros de percurso e beneficiários de suas
extraordinárias idéias e iniciativas.

A cultura mundial perdeu um dos mais originais e produtivos expoentes nos últimos
quarenta anos.

Ainda é prematuro avaliar a estatura de Guattari, da qual é difícil falar sem associá-la à
de seu inseparável companheiro, o filósofo Gilles Deleuze (co-autor de boa parte de sua
obra), apesar da projeção quase planetária que lhe atribuímos.

Guattari morreu aos 62 anos de idade, de forma súbita e no pleno uso de uma
formidável vitalidade física, bem como de uma inteligência tão vigorosa quanto
esplêndida.

Outro importante pensador recentemente desaparecido, Michel Foucault, disse em certa


ocasião, referindo-se à obra de Gilles Deleuze, uma frase que se tomou célebre: – "O
século será deleuziano". Por extensão, e guardada a devida distância que separa
Foucault deste que escreve estas linhas, permito-me afirmar que todas as práxis
libertárias das próximas décadas serão, assim denominadas ou não, guattarianas.

escolhidos e infinitamente numerosos, de cuja vida e morte nada se saberá

Não é exagerado afirmar que a "singularidade" Guattari é de um tal porte que,


seguramente, o toma membro relevante de uma família (ou melhor dizendo, de uma
filiação intensiva) que inclui entre seus membros, arbitrariamente mencionados, Sartre,
Fanon, Basaglia e outros. Esses "outros" são, ao mesmo tempo, poucos publicamente,
Guattarianos de fato.

É literalmente impossível listar aqui os textos escritos por Guattari, bem como os que
publicou com Gilles Deleuze, Tony Neri e outras relevantes figuras intelectuais
(algumas delas brasileiras), porém,

* Artigo publicado no Jornal do Movimento lnstituinte de Belo Horizonte, 1993.

cabe ressaltar que toda sua obra contém certas características, que é imperioso pontuar.

Em primeiro lugar, todos e cada um desses escritos estão ligados a movimentos e ações
concretas de transformação do mundo, no sentido do combate a qualquer forma de
exploração, dominação e desinformação ou mistificação do homem pelo homem.

las de científicos, literários, ideológicos ainda que contenham elementos do que de


Em segundo lugar, nunca se reduzem a um gênero que possa ser enquadrado em uma
especificidade acadêmica ou profissional consagrada e que permita qualificámelhor há
em cada um destes campos do saber.

Em terceiro plano, nada do que Guattari escreveu ou instituiu e desenvolveu é repetição,


continuação, ampliação ou comentário do discurso ou da escola de algum mandarim
teórico da moda, por mais ilustre e exitoso que este seja considerado. Invariavelmente,
as idéias do extinto amigo são autênticas invenções, em que o essencial é a novidade
radical, surpreendente, isólita, audaz, produto de uma erudição e de um rigor
assombrosos, porém empregados com força, leveza e entusiasmo plenos de inspiração e
refratários a qualquer pretensão de sistematicidade doutrinária destinada a formar
igrejas, partidos, corporações ou sociedades multinacionais de epígonos, adeptos ou
iniciados.

Por último, convém admirar-se de que a profunda modéstia, assim como o humor que
percorrem seus textos (o que o levou a qualificá-los de "proposições descartáveis") não
impedem que os mesmos se postulem espinozianamente como proposições de vida ou
para a vida, e se coloquem, incondicionalmente, a serviço de todo aquele que deles
queira se apropriar, sem qualquer ritual de iniciação para adquiri-las e sem dívida
nenhuma a pagar pela "paternidade" dos conceitos. Seu único motivo é o incremento da
Produção e do Desejo em todos os domínios da realidade e para todos "os homens de
boa vontade", que, como dizia Nietzsche, somente pode ser a Vontade de Potência.

O capitão Guattari empreendeu sua última aventura de exploração de mundos


desconhecidos. Os que viajaram com ele em várias de suas expedições não tiveram a
.sorte de receber as cartas de navegação deste último itinerário.

Mas as fascinantes cartografias que produziu até agora estão à disposição das novas
gerações que anseiam por planejar trajetórias intrépidas para metamorfosear o sinistro
universo que o Capitalismo Planetário Integrado lhes tem destinado.

Os amantes do Poder, do Lucro e do Prestígio, os politiqueiros engomados, os "homens


cinzentos" (segundo o terrível diagnóstico de D.H. Lawrence, um dos favoritos de
Felix) ficam dispensados da leitura das memórias do Capitão Guattari.

Porém nunca dormirão tranqüilos... a Revolução Molecular está em marcha.

In Memoriam de Gilles Deleuze* Filósofo Nômade

Senhoras e Senhores,

Desejo começar essa conversação agradecendo ao Movimento Instituinte de

Belo Horizonte e às entidades que colaboraram na organização desse evento, por


haverem-me dado a honra de dissertar acerca da obra e da figura de Gilles Deleuze.
Igualmente sou grato ao auditório por sua presença.

Essa homenagem deveria ser muito mais ampliada e reiterada no mundo inteiro, e não
sabemos se haverá de sê-lo. Por isso nossa contribuição nesse sentido nos parece tão
discreta quanto necessária e insuficiente.
Como uma aclaração, antes de entrar no tema, creio obrigatório pontuar o seguinte:
supõe-se que, para falar acerca de um autor dessa envergadura, e em circunstâncias tão
solenes como a presente, é preciso conhecê-lo integralmente.

Por razões que, segundo espero, ficarão explícitas no curso dessa conferência, devo
reconhecer que não tenho esse privilégio. Meu domínio desse monumento do saber é
limitado, e questiona meu direito a ocupar hoje este lugar de expositor. Não obstante,
tenho o consolo de crer que, se bem existem muitos que têm estudado Deleuze mais e
melhor que eu, ninguém pode estar seguro de ser capaz de um trânsito exaustivo por
esse pensamento, que, por sua própria natureza, é inesgotável.

Resulta tão pouco original quanto inevitável começar esse breve percurso com a famosa
sentença pronunciada pelo talento de Michel Foucault. É sabido que esse formidável
intelectual disse: "O SÉCULO SERÁ DELEUZIANO".

Os comentários acerca dessa frase, que encantou somente uns poucos e escandalizou
muitos, poderiam ocupar toda essa conferência.

Que pretendia dizer Foucault com tal afirmação?

* Palestra organizada pelo Movimento Instituinte de Belo Horizonte em dezembro de


1995

O mesmo Deleuze, consultado sobre o assunto, e com a modéstia que sempre lhe foi
própria, lhe atribuiu um sentido ao mesmo tempo carinhoso e humorístico.

Sem descartar esses significados, tratarei de reduzi-los a dois, formulados, por minha
vez, como interrogações:

Trata-se de prognosticar que a cultura dos anos que virão chegará a reconhecer a obra
de Deleuze como a máxima expressão do século X? Ou, talvez, trata-se de manifestar a
esperança de que o período que falta para completar este século, ou, quem sabe, todo o
curso do século XXI, será, em sua realidade, expressão concreta das idéias de Deleuze?

Permito-me sustentar que a primeira interpretação é altamente provável, e a isso me


referirei a seguir, dentro das limitações dessa dissertação. Creio sinceramente que a obra
de Deleuze é, senão a única, uma das mais perfeitas do nosso tempo.

E quanto à segunda compreensão, temo que não tenhamos a menor segurança sobre o
assunto. Assim como nosso século vai mal, e como o próximo nos antecipa, não apenas
não podemos dizer que será deleuziano, senão que nem sequer sabemos se será, de
maneira alguma. O certo é que tentar sintetizar, em uma breve exposição, a obra e a
figura desse pensador, que, segundo Foucault, dará seu nome à história de nossa época,
é uma tarefa árdua.

Devemos, inclusive, registrar outra peculiaridade que contribui para essas dificuldades:
é a extraordinária co-autoria de Deleuze e Felix Guattari, seu dileto amigo, também
recentemente falecido.
Se bem a publicação a dois não seja uma novidade absoluta (basta recordar os textos de
Marx e Engels ou de Freud e Bullit), a colaboração entre Deleuze e Guattari
provavelmente é a única em seu gênero, dado que a mesma é a prova coerente de toda
uma teoria assumida não-autoral da escrita.

Ainda que possa resultar um pouco pesado, devido à fabulosa e prolífica obra desse
autor, é nosso dever começar por uma mínima biografia e por uma sucinta enumeração
da bibliografia deleuziana.

Deleuze nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Graduou-se em Filosofia em 1948,


tendo sido aluno de Ferdinand Alquie e Georges Canguilhelm. Ensinou Filosofia em um
liceu e freqüentou as aulas e conferências de Jacques Lacan, Pierre Klossowsky, Michel
Butor e Jean

Paulhan. Em 1957 obteve o título de professor assistente na Sorbonne; em 1960, o de


agregado de pesquisas no CNRS (Conselho Nacional de Pesquisas Sociais).

A partir de 1964 deu aulas por vários anos na Universidade de Lyon, e de 1969 a 1987
foi professor na Universidade de Vincennes em Paris VIII. Em 1987 se aposentou.

Segundo Deleuze, dois encontros foram fundamentais em sua vida intelectual. O


primeiro com Michel Foucault, em 1962, e o segundo com Felix Guattari, em 1969.

Sintetizando humoristicamente suas tiradas, Deleuze disse algo que talvez se possa
traduzir assim: "Viajando por aí, jamais aderi ao Partido Comunista, jamais fui
fenomenólogo ou heideggeriano, nunca renunciei a Marx, nem jamais repudiei Maio de
68". (Le Magazine Littéraire, Setembro de 1988).

Essa oração despretensiosa resume algumas das singularidades do Mestre, às quais,


tomando a liberdade de falar em primeira pessoa, eu poderia, figuradamente,
acrescentar:

a Hegel, nem aos positivistas assim como nunca fui propriamente existencialista,
Lévi-Strauss ou Toynbee ainda que me empenhe a conhecê-los tanto como a

"Nunca me preocupei em estar na moda, nem a dos círculos políticos, nem a dos
acadêmicos. Nunca venerei filosoficamente a Parmênides, nem a Sócrates, nem a
Platão, nem a Aristóteles, nem aos neo-platônicos, nem a Descartes, nem a Kant, nem
nem estruturalista, nem materialista dialético. O mesmo me aconteceu científica e
artisticamente com Euclides, Newton, Freud, Saussure, Weber, Wittgenstein, Lacan,
Sófocles, Leonardo ou Shakespeare.

Kafka, Artaud, Carroll, Beckett, Proust, Miller, Canetti, Bacon, Kleist, Duchamps e

Meus personagens filosóficos favoritos têm sido, sem dúvida, ou bem estranhos, ou
pouco exitosos, ou pouco freqüentados, ou quase francamente marginais. Heráclito,
Demócrito, Arquimedes, os sofistas, os estóicos, os epicuristas, os hedonistas, tanto
quanto Duns Escotto, Espinoza, Leibniz, Hume, Nietzsche e Bergson, assim como
Pierce, Hejmlev, Clastres, Riemann, Chatelet, ou bem Reich, tantos outros".
Essa larga e incompleta enumeração tenta apenas ilustrar, em primeiro termo, a fabulosa
erudição e versatilidade de Deleuze e, em segundo lugar, dois tipos de relação heurística
com as obras e com seus criadores.

Deleuze aprendeu de seu mestre Canguilhem ou seja, como o anômalo, aquilo que

Ao primeiro grupo citado, aplica-se a proposta que Deleuze enunciava como seu projeto
juvenil: "Acercar-me sigilosamente a um autor pelas costas e fazer-lhe um filho
monstruoso, em que não se possa reconhecer". Mas com a ressalva de que "para fazer
isso com o dito por esse autor, teria de estar absolutamente seguro de que o havia
efetivamente dito". Aqui, "monstruoso" deve entender-se de acordo com o que está nos
limites, ou até mais além de sua própria espécie. Por outra parte, esse afã de certeza é o
que explica a insuportável precisão das citações nos escritos deleuzianos.

Ao segundo grupo mencionado, corresponde uma apropriação menos crítica, muito


mais empática, mas tampouco integralmente fiel, nem literal, típica dos comentários e
teses acadêmicas que Deleuze detestava.

Essa capacidade de Deleuze, compartilhada por seu amigo Guattari, de conhecer e


circular pela Filosofia, pelas Ciências, pelas Artes, pela Política e até pelo saber
popular, é plenamente demonstrada pela lista de seus quase trinta livros editados, cuja
extensão prodigiosa pode resultar, nesse contexto, tão esmagadora como indispensável:

A Lógica do Sentido

Instinto e Instituição Empirismo e Subjetividade Nietzsche e a Filosofia A Filosofia de


Kant Proust e os Signos NÜ::tzsche O Bergsonismo Apresentação de Sacher-Masoch
Espinoza e o Problema da Expressão Diferença e Repetição Espinoza, Filosofia Prática
Espinoza e os Signos Francis Bacon: Lógica da Sensação

Cinema I – A Imagem-Movimento CinemaII – A Imagem-Tempo Foucault Péricles e


Verdi. A Filosofia de François Chatelet A Dobra – Leibniz e o Barroco Conversações
Crítica e Clínica

Em colaboração com Felix Guattari escreveu:

O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia Kafka. Por uma Literatura Menor Mil Platôs
O que é a Filosofia? Politique et Psychanalyse

Em colaboração com Carmelo Bene:

Superposições

Em colaboração com Claire Parnet: Diálogos

Obs: esclarecemos que esta lista não está ordenada cronologicamente

A esta lista devem se somar vários artigos, prólogos e epílogos de outros textos. Desde
logo a literatura acerca da obra de Deleuze já soma outras tantas publicações. Segundo
uma classificação leve e algo ingênua, os livros de Deleuze podem ser divididos em três
grupos.

O primeiro consiste em Teses e Monografias Filosóficas, de formato aparentemente


acadêmico, mas que constituem verdadeiros Cavalos de Tróia.

O segundo se compõe de grandes exposições de enorme abrangência. Mais adiante me


referirei a elas, arriscando para as mesmas uma categorização pessoal.
Momentaneamente peço que se aceite para esses escritos o qualificativo de
"Concepções de Mundo", que, por razões que veremos, é incorreta.

O terceiro conjunto de escritos se refere aparente e prevalentemente às Ciências e às


Artes.

Mas há pelo menos duas razões pelas quais essa classificação panorâmica é inadequada
e insuficiente.

Por um lado, porque a obra de Deleuze e Guattari é um Rizoma, ou seja, um sistema


anti-sistema, uma espécie de rede móvel de canais, fluxos, remoinhos e turbulências, de
limites internos e externos difusos, do qual se pode entrar e do qual se pode sair em
qualquer ponto, que se pode percorrer em infinitas direções e que é reinventado a cada
viagem e por cada um que o percorre. Apenas apresenta uma alternância de mesetas de
intensidade homogênea em que se pode transitar passando de uma a outra por saltos, às
vezes perceptíveis, às vezes desapercebidos.

Por outro lado, não se pode considerar cada livro como uma unidade isolada, porque,
segundo a própria teoria do pensamento, da escritura, da leitura e da realidade última a
que um livro se acopla, é impossível dissociar a produção bibliográfica do que a
realidade faz fluir nela, nem do que ela faz fluir na realidade na qual se insere. Para
esses autores, um livro é uma máquina engendrada por máquinas heterogêneas,
heteromorfas e heterólogas a ele mesmo, sendo que seu sentido depende de como
atravessa a outras (literárias ou não), ou seja, de como estão funcionando dentro dele, e
ele dentro daquelas.

Assim sendo, como seria viável separar radicalmente um tema bibliográfico de outro, e
dos Mundos com que se conectam, se todos são imanentes entre si?

Ritmo, etc mas nunca desde uma taxonomia dos textos ou discursos estanques. Inútil

Finalmente, não cabem separações, porque Deleuze e Guattari dizem que todo texto ou
discurso é pura performance, quer dizer, pura pragmática, que importa apenas por como
afeta e como é afetado. Para ilustrar, por exemplo, as relações entre os conceitos
filosóficos, as funções científicas, as variações artísticas, apelam à teoria da Música.
Cada um dos recursos desses saberes e trabalhos ressoam entre si, nos espaços da
Realidade. Essa ressonância pode ser ouvida em dimensões tais como a Harmonia, a
Desarmonia, a Consonância, a Dissonância, a Fuga, o Contraponto, o confundir essa
concepção com alguma que postule deslizamentos de cadeias de significantes, elos
ordenados como anéis, que por sua vez são elos de anéis maiores, etc. A escrita de
Deleuze e Guattari, densa e difícil, é composta de fluxos, pode incluir paradoxos e
aporias, mas não metáforas ou metonímias, e menos ainda adivinhações, hermetismos
ou mistérios.

Talvez este seja o único ponto dessa exposição no qual m aventurarei a dar uma opinião
pessoal, tão arriscada como segurament pouco compartilhada.

Tudo leva a supor que Gilles Deleuze foi um filósofo, professor de Filosofia e escritor
de livros de Filosofia.

O título mesmo dessa conferência qualifica Deleuze de "filósofo nômade", aludindo a


sua forma errante de viajar por todos os saberes, por itinerários absolutamente insólitos
e sem compromisso algum com Escolas ou Doutrinas.

Um de seus últimos livros, escrito junto com Guattari, leva por título "Que é a
Filosofia?" – e, em suas páginas, a Filosofia é definida com uma precisão e beleza
incomparáveis, como a prática de invenção de Conceitos.

Não obstante, em várias passagens de outras obras, Deleuz havia exposto, com toda
clareza, uma crítica às perguntas com as quais se costuma propor as questões que se
deseja resolver. Nesses parágrafos rechaçava que a fórmula – "que é?" – fosse um bom
enunciado para formular um problema.

Não é nada fácil explicar o porquê dessa impugnação, mas, simplificando uma vez mais,
quando se pergunta "que é?" se interroga acerca do Ser de um Ente, ou seja, por sua
Identidade ou sua Mesmidade – e não por seu Devir, por seu funcionamento, por sua
Diferença em Ato.

De um outro ângulo, quando Deleuze se refere ao pensamento, sustenta que pensar


exige a incessante criação, não apenas de novos conteúdos, nem sequer de novas
maneiras do mesmo Pensamento. Deleuze dá a entender que pensar implica, nem mais
nem menos, que criar novos pensares, ou seja, responder àquilo que "dá a pensar", o que
"faz pensar", com uma multiplicidade de Pensares singulares diferentes, originais,
inéditos.

pensar e um novo fazer que ele e Guattari inventaram e que se chamou

É por isso que me atrevo a postular que Deleuze, em seu nomadismo, ou bem acabou
não sendo mais um filósofo, ou bem foi um criador de Pensares que, entre outras coisas,
redefiniu a Filosofia, ou bem foi o Demiurgo e o agente de um novo esquizoanálise ou
pragmática universal. Esses dois termos estão definidos respectivamente, no primeiro e
no segundo tomo de seu livro "Capitalismo e Esquizofrenia". O que estou afirmando é
que Deleuze e

Arte e Política... e Saber Espontâneo... e muito mais que tudo isso preexistente.

Guattari engendraram algo que é Filosofia mas, que também é Ciência e também é

Por que, então, chamá-los por nomes de "partida" e não pelos de "chegada"?
A rigor, não é nenhuma novidade que os cientistas de uma especialidade tenham
incursionado por pensamentos filosóficos, restritos ou não, às áreas de suas disciplinas.
Basta mencionar, rapidamente, os casos de Pitágoras, Euclides, Averroes, Cassirer,
Jaspers, Russel, Poincaré, Monod e outros tantos.

Tampouco é insólito que grandes literatos tenham sido filósofos (ou o inverso), como
são os exemplos paradigmáticos de Kierkgaard, Novalis ou Goethe.

Igual coisa ocorreu com grandes estadistas e políticos como Demóstenes, Maquiavel,
Hobbes, etc.

Mas meus conhecimentos de história da Filosofia, das ciências e das práticas sociais em
geral (bastante pobres), não me permitem evocar um caso igual ao de Deleuze e
Guattari.

era filósofo, historiador, sociólogo, arquivista ou genealogista

Talvez o mais parecido a isso, que me ocorre, é a figura e a obra de Foucault, não por
casualidade amigo proeminente de Deleuze, de quem se tomou difícil dizer se

Agora, bem: por razões pedagógicas, o paradoxal é que, se me proponho introduzir o


que alcanço entender como as principais contribuições da Esquizoanálise, não consigo
fazê-lo de outra maneira que abordá-las segundo as clássicas ramificações com as quais
se costuma dividir a Filosofia.

Refiro-me à Ontologia (Teoria do Ser), à Gnoseologia (Teoria do Conhecer) e à


Axiologia (Teoria dos Valores).

Mas como resumir os aportes dos principais trinta livros de Deleuze de uma maneira
suportável para o público em geral?

Apesar de a palavra "impossível" ser uma das mais detestadas por Deleuze e

Guattari, este simples comentarista que lhes fala se sente a ponto de declarar esta tarefa
como irrealizável.

Peço antecipadamente desculpas pelas insuficiências, incorreções e obscuridades do que


se segue. De todo modo, quem não tenta, nada consegue.

Na Ontologia, creio que se pode dizer que o Pensar de Deleuze é a culminação de duas
célebres contraposições que percorrem a história da Filosofia Ocidental.

A primeira é a que opõe o Ser como estático, eterno, invariável, imóvel e idêntico, do
qual só se pode predicar que É (cujo paradigma seria Parmênides), contra o Ser como
dinâmico, variante, móvel e em permanente transformação (cujo paradigma seria
Heráclito, que sustentava que o Ser Devém).

perguntas ou do Fim da Metafísica terá suas diversas formulações na Filosofia


"Que é, e como o Ser Devém?" – que até a declaração da Morte de tais Antiga, na
Patrística, na Escolástica, no Romantismo e na Filosofia Moderna e Contemporânea.

O que do ser passa por todos os avatares do Espiritualismo, do Idealismo

Objetivo e Subjetivo, assim como por todos os Realismos, Substancialismos,


Materialismos, Agnosticismos, etc.

O como transcorre pelos inumeráveis avatares da Linearidade, da Circularidade e da


Dialética.

Mas aí é onde entra a segunda oposição, que antagoniza os que afirmam que o Ser (seja
qual seja sua natureza) é diverso do Pensar (digamos, a Metafísica da Substância e da
Essência) contra os que, principalmente desde Descartes, identificam o Ser com o
Pensar (digamos, a Metafísica do Sujeito), seja qual seja o papel que se atribua à
linguagem nessa identidade ou distinção.

Ante essas duas famosas oposições da Ontologia (que, como se vê, são indissociáveis da
Gnoseologia), Deleuze postula:

1) o ser é devir. 2) o devir devém como repetição incessante, infinita e não totalizável da
diferença. 3) a essência das diferenças consiste em puras intensidades.

4) por sua posição nos mundos, sua composição interna proteiforme e seus limites
externos difusos, o devir devém como multiplicidades.

5) pela condição única e irrepetível das diferenças, intensidades, multiplicidades, estas


se expressam como singularidades, tais "proto-realidades" (por assim chamá-las) são
virtuais, pré-ontológicas e, assim sendo, são pré-físicas, prébiológicas, pré-sociais, pré-
subjetivas, pré-semióticas, pré-reais, pré-possíveis e pré-impossíveis, até serem
atualizadas.

6) o surgimento por atualização das novidades ontólogicas absolutas, assim entendidas,


denomina-se individuações.

7) as individuações resultam do encontro entre complexos de intensidades,


multiplicidades e singularidades sintetizadas como corpos, e a emergência, a partir
desses encontros, de uma dimensão incorporal dos mesmos, denominada incorporais-
sentidos-acontecimentos.

8) as individuações não podem reduzir-se a seres ou entes individuais efetuados por


idéias, substâncias ou essências previamente diferenciáveis em espécies ou gêneros.

9) as ações e paixões que se exercem ao acaso nos encontros entre corpos e incorporais-
sentidos-acontecimentos que deles surgem, assim como as individuações resultantes,
não se relacionam como causas e efeitos e não obedecem a leis.

10) a realidade, assim integralmente entendida, compreende três superfícies imanentes


entre si. A primeira, a da produção, que é a que acabamos de conceitualizar, composta
por funcionamentos protagonizados pelas singularidades intensivas que mencionamos
(máquinas desejantes), dispostas sobre o corpo sem órgãos (que é seu "suporte" e o grau
zero das intensidades). Nela se dá o processo puro de produção de produção. A segunda
é a superfície de registro-controle, em que se distribuem as entidades já identificadas,
ordenadas, determinadas em causas e efeitos, dotadas de funções específicas em que
predominam os processos de reprodução e de antiprodução. A terceira é a superfície de
consumação, em que culminam e/ou consomem a potências das individuações de toda
índole.

Este imenso "fluxograma" transmutante possibilita a Deleuze e Guattari uma


extraordinária reformulação das definições e das relações dos continentes da Natureza,
da Sociedade, da Subjetividade, das Semióticas e do Parque Maquínico da Realidade,
assim como da História Universal, tanto quanto dos pensares que os pensam e das
práxis que os metamorfoseiam e os destroem.

Em absoluta coerência com essa "Ontologia", a Gnoseologia, a Ética e a

Estética de Deleuze têm como valor supremo a invenção tanto de Conceitos Filosóficos,
como de Funções Científicas, como de Variações Artísticas e de Saberes Espontâneos.
Tal inventiva tem como proposta "Metodológica" sui generis a Intuição, o uso disjunto
das Faculdades, o emprego das técnicas do Cut-up e da Colagem, e a plena consideração
do Acaso para o exercício de Pensares sem Fundamento, sem Sistemática, sem Meta-
Categorias transcendentes. Pensares inexatos, mas rigorosos, de realidades
pluripotenciais e imprevisíveis, cartografias sempre "princeps" de transmigrações e
conjuntos difusos.

Para concluir, a Ética proposta por Deleuze é uma política da avaliação, da resolução e
do ato sempre singulares, criados para cada situação, produtos da Vontade de Potência e
da desconstrução do Valores imperantes, a serviço da inovação permanente, jamais
subordinada a algum Imperativo Categórico Universal ou Eterno, nem baseado em
Princípios Transcendentes.

da Antiprodução nisso consiste a esquizoanálise ou pragmática universal.

É nessa produção de pensares, na análise variável de seus "N" componentes de


Produção, Reprodução e Antiprodução, na montagem de dispositivos destinados a
propiciar a Revolução Inventiva dos Processos Produtivos e a neutralizar sua brusca
interrupção, ou sua aceleração ao infinito, dada pelos buracos negros da Reprodução e

Mas se por razões pedagógicas optei por essa introdução geral apoiada num andaime
filosófico clássico, como ousar sintetizar aportes mais circunscritos a temas mais
delimitados, que estão implicitamente incluídos no panorama anteriormente exposto?

Porque a obra de Deleuze e Guattari importa também redefinições críticas e reinvenções


dos Universais mais caros ao saber do

de Literatura, de Cinematografia, Pintura, Escultura, Arquitetura e assim por diante.

Ocidente. Apenas como exemplo, mencionarei as categorias de Tempo e de Espaço, de


Todo e de Partes, de Razão e Desrazão, de Verdade e Falsidade, de Bem e de Mal, de
Potência e de Poder, de Vida e de Morte – e, em um sentido mais específico ainda, de
História, de Sociedade, de Estado, de Economia, de Antropologia, Geologia, Etologia,
de Lingüística-Semiótica, de Ciências Exatas, de Urbanismo, de Tecnologia,

Não pude resistir, ao final desta, por sua vez, pobre e pretensiosa simplificação, a
comentar brevemente a quiçá mais célebre proposta de Deleuze e Guattari,
principalmente exposta em "O Anti-Édipo". Os autores propõem, como a medula desse
livro imortal: "introduzir o desejo na produção e a produção no desejo". Sem pretender
ignorar a larga trajetória desses dois conceitos gigantescos, não se pode negar que, nas
acepções centrais de sua definição, Deleuze e Guattari partiram basicamente de Freud e
Marx. Mas o fizeram para ampliar a idéia de Marx, não a restringindo à geração de bens
materiais indispensáveis para a vida, processo ligado à força de trabalho, que o criador
do Materialismo Histórico atribuía à infraestrutura dos Modos de Produção. Deleuze e
Guattari estenderam essa idéia à Produção de Produção em "todos" os domínios da
Realidade. Igualmente, tomaram a idéia de Freud, de Libido e Desejo, não como sendo
apenas a energia-força que anima exclusivamente a economia, a dinâmica e a estrutura
do Aparato Psíquico freudiano, cujas características são, como é sabido, em última
instância, repetitivas e conservadoras.

Deleuze e Guattari recriaram e ampliaram esses conceitos-funções, assim como do


Inconsciente e do Id psicanalítico, assumindo plenamente as características do chamado
Processo Primário, dando-lhes uma essência produtivo-revolucionária e tornando-os
imanentes ao processo de produção de produção da realidade inteira.

Devo concluir essa modesta apresentação dizendo algumas poucas palavras acerca de
Gilles Deleuze como "homem".

Ao considerar a figura e a biografia de Deleuze como "ser humano", encontramo-nos


comuma rara ilustração da exigência de que um autor deveria ser uma fiel expressão de
suas idéias.

Pessoa de uma imensa erudição, de uma formidável dedicação a seu empreendimento,


de uma incrível versatilidade, de uma enorme criatividade, de uma abertura e de uma
falta de preconceitos invejáveis, gozou em vida de um prestígio e de um
reconhecimento mundial, ainda que, a meu entender, ainda insuficientes, e que levarão
décadas para se consumar.

Aliado incondicional de todo movimento das singularidades produtivorevolucionárias,


particularmente dos das minorias exploradas, dominadas e excluídas, foi um amante da
Liberdade, da Amizade e da Vida.

Há duas sentenças que o encantavam e que caracterizam ilustrativamente seu pensar e


sua existência. A primeira diz: "Os homens têm estado sempre preocupados com as
Idéias Justas, quando, em realidade, precisam procurar justo uma idéia" – a que é capaz
de propor e resolver cada problema.

A segunda diz: "Os grandes homens têm poucas coisas" – quer dizer, não se interessam
por acumular nem por consumir mercadorias.

essas foram as singularidades de Deleuze, mais que um "homem" um devir


Humildade, modéstia, generosidade, tenacidade, humor, alegria, coragem bondoso.

INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE* Apontamento N° 1

A Esquizoanálise é um saber inventado por dois autores: Gilles Deleuze e Felix


Guattari.

Gilles Deleuze é considerado, na atualidade, um dos filósofos mais importantes do


século.

Felix Guattari, recentemente falecido, foi um brilhante psicanalista, analisado e aluno de


Jacques Lacan, um Trabalhador da Saúde Mental, criador da prática denominada
Análise Institucional e um militante político de esquerda, que pertenceu a numerosos
grupos políticos convencionais e os abandonou para fundar ou unir-se a Movimentos
Populares de cunhos os mais diversos.

Gilles Deleuze é autor de numerosos livros, nos quais aborda, de uma maneira sempre
original, a obra de vários filósofos clássicos, mas também escreveu sobre cinema,
política, estética, literatura, pintura, música, história, etc.

Felix Guattari escreveu sobre temas relacionados com a saúde mental, sobre

Psicanálise, sobre cinema, mas, fundamentalmente, sobre a concepção muito peculiar


que tinha sobre a política e a economia, a ecologia e o panorama geral do mundo atual.
Também foi jornalista e músico.

Esses dois autores escreveram juntos vários volumes, em que sua colaboração adquiriu
características muito peculiares, devido às quais é impossível saber, nesses escritos, a
qual dos dois pertence uma ou outra idéia.

Entre esses livros destacam-se: "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Kafka: Uma Literatura
Menor" e "Que é a Filosofia?".

A obra desses autores é muito difícil de situar em um gênero dos já conhecidos.

Como se pode apreciar por sua trajetória intelectual, e pelos títulos de seus escritos,
trataram de quase todas as "especialidades" importantes, mas sempre de maneira
original, buscando interpenetrações dos campos e dos conhecimentos, mas sem
abandonar nunca um matiz

*Introdução à Esquizoanálise, apontamentos 1, 2 e 3 foram escritos especialmente para


um seminário realizado em Barcelona (1993).

político, que perpassa toda sua produção. A rigor, de acordo com uma terminologia,
para elesjá obsoleta, sua obra poderia ser classiticada como uma "Concepção de
Mundo", mas várias conccitualizações que eles mesmos apartaram, de crítica aos
fundamentos desse tipo de denominação, fazem-na incorreta e insuficiente para dar
conta desse monumental trabalho. Desde logo, dentro da lista de textos, podem-se
encontrar alguns que pertencem predominantemente a um tema mais que a outros, mas
sempre haverá uma característica na abordagem que os torna insólitos e não
enquadráveis.

O encontro desses dois autores data, prevalentemente, do famoso maio de 1968, na


França. Em certo sentido se pode dizer que suas preocupações e interesses têm muito a
ver com essa revolta, que aspirava a levar, como os lemas da época sustentavam, "A
Imaginação ao Poder", ou que postulavam "Sejamos realistas, peçamos o impossível".
Essa orientação política, de diversas maneiras, segundo seus entusiastas, rechaçava
tanto os vícios da Democracia Burguesa Capitalista como os da Ditadura do
Proletariado vigentes, estes últimos, nos ensaios de transição ao Socialismo.

Em realidade, pode-se afirmar que a orientação política que mais influenciou esses
autores, apesar de não ser uma referência demasiado explícita em seus escritos, é o
Anarquismo, como aconteceu com uma série de investigadores que integram o que se
denominou Movimento Instituinte Internacional.

Entre os autores mais afins a Deleuze e Guattari, devemos mencionar, em primeiro


lugar, Espinoza, Nietzsche, Bergson e Marx, assim como, entre os contemporâneos,
Foucault. Mas a lista de seus favoritos é interminável, e inclui, em lugares privilegiados,
uma série de artistas que reúnem em si a condição de loucos e de gênios. O exemplo
mais característico é Artaud. Também é notável sua preferência por certos novelistas
anglo-saxônicos, entre eles D.H.Lawrence, Lewis Carrol e Henry Miller.

O texto mais conhecido e impactante de Deleuze e Guattari é, sem dúvida,

Trata-se de um texto de difícil leitura, não porque o estilo seja particularmente


retorcido, senão devido à soma de conhecimentos que é preciso dominar para entendê-
la, posto que o conteúdo que se refere a todos eles é estonteante. Em um sentido um
tanto melodramático, pode se afirmar que "trata de tudo" . Verdadeiramente, é uma
grande reformulação das relações existentes entre a natureza, a cultura, a sociedade, a
economia, a política, a linguagem, as relações de parentesco, os ritos, os mitos, o
psiquismo, a religião, a família, o estado, a história, a tecnologia maquínica, o saber, a
verdade, os valores em geral, a sexualidade, etc.

O título parece centrar-se em uma crítica da concepção psicanalítica edipiana do


Inconsciente, e por certo é um questionamento profundíssimo dos acertos e dos
desacertos da Psicanálise, mas, concretamente, essa reflexão está incluída entre muilas
outras que abarcam todos os campos a que acabo de me referir.

Impossível sintetizar o que os autores pretendem dizer nessa "Ópera Magna", mas,
arriscando-me a ser elementar e esquemático, talvez possa adiantar que postulam:

- Que todos esses domínios do saber e da realidade, modernamente separados pela


modalidade científica do conhecimen,to, são imanentes (quer dizer, intrínsecos,
consubstanciais entre si).

- Que a Realidade, tal como a conhecemos, configurando esse conjunto heterogêneo,


está composta por três superfícies, que, a rigor, são uma inerente à outra. A saber, a
Superfície de Produção, a Superfície de Registro-Controle e a Superfície de
Consumação. A Superfície de Produção é aquela responsável pela geração de tudo
quanto existe, está formada por elementos constituídos por matérias ainda não formadas
e por energias ainda não orientadas como forças. Esses elementos ainda não apresentam
qualidade nem quantidade, mas se caracterizam por serem intensidades puras. Cada uma
dessas intensidades (nas quais é difícil pensar porque não estamos acostumados a
conceber algo que ainda não tem nem tempo nem espaço convencionais, nem qualidade
nem quantidades diferenciais)

substantivos, não como adjetivos). habitualmente se fala de "o um e o múltiplo"

consiste em uma singularidade absolutamente diferente de todas as outras, e o dizer


"todas" é metafórico, porque esse "todo" é infinito, não pode totalizar-se. Outra
abordagem desses elementos os denomina multiplicidades (mas como fórmula essa na
qual o múltiplo não é senão a multiplicação do que é um, ou seja, muitos do mesmo.
Multiplicidade se refere a unidades, cada uma das quais é absolutamente diferente das
outras: não há nenhum um que sirva de base para multiplicar-se nos múltiplos que são
suas réplicas.

A rigor, deve-se dizer que esses elementos constitutivos da Superfície de

Produção não são, quer dizer, não têm uma essência, mas consistem em um puro devir,
estão mudando permanentemente. Se se pode falar de uma "natureza" desses elementos,
caberia dizer que se compõem de Desejo e de Produção. Desejo, está tomado no sentido
dado por Freud ao Processo Primário no Inconsciente, em que a energia "flui livremente
pelas representações", onde não há tempo, não há espaços clássicos e, sobretudo, onde
só há positividades, não há noção de ausência, de falta, de morte, de castração, etc.

dispõem ao acaso as intensidades e as intensidades podem ser pensadas como

Produção, está dito no sentido de Marx, ou seja, um processo pelo qual uma matéria
prima, trabalhada por meios específicos animados por uma força de trabalho, gera um
produto que não preexistia na matéria prima da qual se originou. Deleuze e Guattari
acrescentam a essa definição a afirmação de que a Produção "se produz a si mesma",
seus elementos se produzem ao mesmo tempo em que funcionam, e que, no caso da
Superfície de Produção, fazem-no pelo encontro casual das intensidades, que são
caóticas e imprevisíveis. As duas entidades que integram a Superfície de Produção são o
corpo sem órgãos e as máquinas desejantes. Para não complicar as coisas, direi a
respeito que o Corpo sem Órgãos é uma espécie de rede sobre a qual se máquinas
inespecíficas e indeterminadas que se conectam de maneira binária em todas as
direções. As máquinas desejantes se dividem em máquinas fonte e máquinas órgão.
Uma máquina fonte gera um fluxo energético, e uma máquina órgão o corta e o modula.
Elas se conectam assim em todas as direções, e esse processo incoercível é o que gera a
produção de tudo quanto existe. Outra característica das máquinas desejantes é serem
infinitamente pequenas, por isso se denominam moleculares, e elas permanecem como
tais no seio das entidades macro, que se chamam molares, e que são as que estamos
acostumados a reconhecer, seja qual seja a materialidade de que se trate, por exemplo:
um homem, uma planta, uma montanha, um país, uma máquina mecânica, uma
instituição, etc.

A Superfície de Registro é a organização que adquire a Superfície de


Produção quando entra na escala das entidades molares. A função da Superfície de
Registro-Controle é, como seu nome antecipa, a de selecionar, aceitar e capturar, ou
bem reprimir e destruir a incoercível geração de novidades da Superfície de Produção
Desejante. A Superfície de Registro está constituída por todas as entidades destinadas a
diferenciar, em um sentido convencional, e a utilizar, tudo o que se produz, para colocá-
lo a serviço da reprodução, da natureza e da sociedade, tal como estão estruturadas, ou
seja, o que tende à reprodução do mesmo e à manutenção do status quo. A Superfície de
Registro e de Controle só aceita aquilo que pode incorporar sem se transformar
radicalmente. Um dos aspectos mais importantes da Superfície de Controle é o
denominado socius, ou seja, a forma que tem adquirido a Sociedade ordenada em cada
civilização, e que é tanto ameaçada quanto nutrida, naquilo que precisa para evoluir,
pelas novidades da superfície de produção.

Deleuze e Guattari sustentam que a Superfície de Produção tem um funcionamento que


pode ser ilustrado pelo pensamento Esquizofrênico, mas não o dizem referindo-se à
Esquizofrenia entendida como enfermidade mental, senão à Esquizofrenia como a
característica essencial desse processo de produção caótico que caracteriza a Superfície
de Produção, e que tem algo a ver com a "loucura".

Entretanto, a Superfície de Registro tem as peculiaridades que costumamos ver nas


Neuroses, nas Perversões e também na Psicose Paranóica. Desde logo essas
denominações não se referem às entidades clínicas, mas à lógica de funcionamento que
as caracteriza, que aqui se pode aplicar, por exemplo, ao Estado, que é a Instituição
paranóica por excelência, por suas peculiaridades prevalentemente centralizadoras.
repressivas e antiprodutivas.

A Superfície de Consumação é aquela em que o produzido, tanto o admitido pela


Superfície de Registro-Controle, como aquilo da Superfície de Produção que escapa ao
controle e se manifesta como

novidade radical, invenção e revolução são realizados e/ou consumidos, quer dizer,

usados e gozados pelos agentes históricos.

Toda essa introdução, pelo menos no momento, nos servirá apenas para apresentar as
tarefas da Esquizoanálise.

A Esquizoanálise será um processo de investigação, de produção de conhecimentos e de


aplicação dos mesmos, para transformar o Mundo (entendido no sentido tanto da
organização social, como política, econômica, da subjetividade dos homens e ainda das
máquinas que modificam por completo a relação homemnatureza). A Esquizoanálise,
que não tem por que ser feita por especialistas e que, além disso, cada um faz à sua
maneira, a partir da inserção social que tenha e da Causa em que esteja envolvido nas
lutas do mundo (sexual, artística, política alternativa, industrial, militar, etc.) se compõe
de duas tarefas fundamentais.

A primeira consiste em uma raspagem, quer dizer, em um trabalho destrutivo das


entidades da Superfície de Registro-Controle que afetem (e da maneira especial em que
afetam) o território em que se movem os interessados. Por exemplo, digamos, na luta
pelo direito à existência de uma singularidade sexual: "os homossexuais". Aí se tratará
de entender e denunciar a lógica de dois valores com a qual o Socius define o que é
normal e o que não é normal em matéria de sexo. Mas isso também inclui um trabalho
de destruição das leis que justificam o império da sexualidade pautada em dois valores,
os preconceitos que afetam as singularidades sexuais no trabalho e na política, etc. As
tarefas negativas se superpõem e intrincam as positivas, por exemplo, a invenção de
modos de viver, de critérios de valor, de obras artísticas, técnicas ou políticas, que são
peculiares da singularidade cujo direito à existência se está procurando reivindicar.

Toda e qualquer montagem que se invente para realizar a esquizoanálise de toda e


qualquer singularidade desejante produtiva, que se denomina agenciamento ou
dispositivo, é aceitável. Todo dispositivo desse tipo terá de ter um componente pelo
qual se constitui em uma "máquina de guerra", ou seja, em um agenciamento que tem
por objetivo defender-se dos ataques da superfície de registro e/ou destruir os
equipamentos com os quais a maquinaria repressiva tende a reprimir, eliminar ou
capturar as singularidades produtivodesejantes.

A Esquizoanálise tem ilustrações interessantíssimas de dispositivos montados, tanto por


singularidades sexuais, raciais, nacionais, etárias, lingüísticas, como classistas,
profissionais, artísticas, ecológicas, etc.

É de se esperar que essa introdução abra caminho para poder explicar em que consiste o
esquizodrama, que também temos denominado proliferação dramática inventiva. Cabe
apenas adiantar que se trata da montagem de dispositivos técnicos que têm por objetivo
uma Esquizoanálise praticada com recursos tomados da Arte, do Teatro, da Pedagogia e
da Psicoterapia, tal como eu tenho podido e entendido.

INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE* Apontamento N° 2

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