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Sobre as rádios livres e comunitárias dialogam um psicanalista


e uma jornalista: conversações entre Félix Guattari e Cicilia
Peruzzo

Un psicoanalista y una periodista dialogan sobre la radio libre y


comunitaria: conversaciones entre Félix Guattari y Cicilia
Peruzzo

Rafael Augusto de Assis1

Resumo

O texto aborda a problematização em torno do tema rádios livres e comunitárias


a partir da proposição dialogal entre o psicanalista Félix Guattari e a jornalista
Cicilia Peruzzo. Nesse sentido, foram explorados os principais conceitos
desenvolvidos pelos referenciais teóricos em questão sobre o assunto, de
maneira a serem trabalhados artigos, livros e entrevistas voltadas à descrição
sobre a importância de tais iniciativas no que toca à expressão das minorias, à
democratização da comunicação e ao enfrentamento em relação às forças
socioeconômicas dominantes.

Resumen

El texto aborda la problematización en torno al tema de las radios libres y


comunitarias a partir de un diálogo entre el psicoanalista Félix Guattari y la
periodista Cicilia Peruzzo. En este sentido, se exploraron los principales
conceptos desarrollados por las referencias teóricas en cuestión sobre el tema,
con el fin de trabajar artículos, libros y entrevistas destinadas a describir la
importancia de tales iniciativas en relación con la expresión de las minorías, la
democratización de la comunicación y la confrontación con las fuerzas
socioeconómicas dominantes.

1Doutorando pelo PPGE (Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista


de São Paulo – UMESP). E-mail: rafael.assis2_ims@a.metodista.br.
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Introdução

Escrita no ano de 1979 pelo filósofo François Lyotard (1924-1998), a obra


A condição pós-moderna – fonte de importantes contribuições à problematização
da contemporaneidade – tornou-se conhecida nos mais distintos âmbitos
acadêmicos, especialmente, por narrar a derrocada das assim chamadas
metanarrativas, a saber, os grandes discursos que procuravam estabelecer
alguma espécie de explicação ou finalidade ao Universo, à Humanidade e à
História2. Nesse sentido, a segunda metade do século vinte, devastada pelas
cinzas de dois conflitos de dimensões mundiais, colocou em questão conceitos
fundantes das sociedades ocidentais, a exemplo das noções de Homem3,
Educação4, Religião5 e Política6, para mencionarmos os principais deles.

Estaríamos, pois, vivenciando o fim da História, conforme decretara


Fukuyama (1952-)7? Se buscarmos respostas a este questionamento a partir de
perspectivas macrofísicas, possivelmente, a resposta seja afirmativa. Entretanto
– e aqui adentramos o mote central do presente trabalho – se o fizermos em viés
molecular, múltiplas mostram-se as possibilidades de concatenação
intersubjetiva (políticas de grupelhos) e, nesta mesma esteira, de construção de
novas subjetividades, furtivas aos axiomas neoliberais.

O psicanalista Félix Guattari (1930-1992) e a jornalista Cicilia Peruzzo


(1950-) foram contemporâneos, tendo testemunhado parte significativa do
processo que nos conduziu ao estado atual das coisas. Em vista da falta de
registros que o comprovem, nossa hipótese é a de que um encontro factual entre
os dois jamais tenha ocorrido, embora Guattari tenha visitado o Brasil por
diversas vezes, como no ano de 1982, oportunidade em que entrevistara o então

2 Ver: LYOTARD, François-Jean. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Correa


Barbosa. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2021. 176 p.
3 Ver: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.

Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 541 p.
4 Ver: ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Tradução de Lucia Mathilde Endlich Orth.

Petrópolis: Vozes, 1988. 184 p.


5 Ver: BULTMANN, Rudolf. Demitologização: coletânea de ensaios. Tradução de Walter Altmann

e Luís Marcos Sander. São Leopoldo: Sinodal, 1999. 119 p.


6 Ver: ARENDT, Hannah. Crises da república. Tradução de José Volkmann. São Paulo:

Perspectiva, 2013. 201 p.


7 Ver: Fukuyama, Francis. O fim da História e o último homem. Tradução de Aulyde Soares

Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 489 p.


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metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva (1945-)8. E por quais razões mencionamos
Guattari e Peruzzo? Pois nossa proposta é justamente a de criar um cenário
onde seja possível interseccioná-los em torno de uma preocupação –
ousaríamos dizer, uma paixão – comum: as rádios livres e comunitárias,
manifestações menores que passam ao largo da mídia tradicional, posta,
comumente, à serviço das grandes corporações, uma genuína usina de
produção de inconscientes à serviço do Capital.

1. Breves considerações acerca das diferenças entre os


conceitos de rádios livres e rádios comunitárias: a experiência
italiana de Alice e os primeiros movimentos no Brasil

Certamente, à Guattari, soaria demasiado estranho (senão, enquanto


uma afronta) encontrar referências a si em uma tese ou artigo acadêmicos.
Militante, sua produção intelectual é fruto de um autodidatismo revolucionário,
direcionado ao desmantelamento de todo o maquinário de sequestro – a
principiar, pela própria psicanálise de matriz freudiana – posto ao aprisionamento
dos fluxos da vida, como as creches, os manicômios, as escolas e o aparato
midiático. Em seus livros, localizam-se desde relatos de experiências pessoais
junto à pacientes esquizofrênicos na clínica La Borde – onde ingressou no ano
de 1955 e permaneceu até ser vitimado por um infarto, em 1992 – à relatos que
envolvem experiências micropolíticas, como acontece no texto Milhões e milhões
de Alices no ar, onde a questão do impacto subversivo das rádios livres no
contexto social europeu da década de 1970 será aborda.

Deste modo, é igualmente certo que Guattari não fora um teórico da


comunicação, como também não o fora em qualquer outra esfera. Seu interesse
pelas rádios livres passa precisamente pelo modus operandi de tais
instrumentos, que funcionavam à sombra dos veículos dominantes, movimento
que despertara-lhe o fascínio. Explicamos: nos escritos guattarianos, não
figuram pormenorizações concernentes às diferenças conceituais – e, por

8Ver: GUATTARI, Félix; INÁCIO Lula da, Luiz. Felix Guattari entrevista Lula. Brasília: Editora
Brasilense, 1982. 37 p.
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conseguinte, operativas – que perpassam, segundo observa Peruzzo, uma rádio


livre de uma rádio comunitária. Nessa direção, pondera a docente:

Rádios comunitárias [...] São rádios lideradas por organizações


comunitárias locais e destinadas a atender pequenas áreas
geográficas urbanas e rurais [...] São regidas pela lei [...] a qual prevê
seu funcionamento somente em nome de associações comunitárias ou
fundações [...] Rádios livres comunitárias [...] São emissoras que se
assemelham as da modalidade anterior, mas com a diferença de que
não possuem autorização para funcionar. São, de fato, rádios livres de
caráter comunitarista, as quais os setores conservadores chamam de
“piratas” ou “clandestina” (PERUZZO, 2010, p.2).

Todavia, no âmbito prático, dados os obstáculos burocráticos que


permeiam o trajeto de reconhecimento de suas atividades, muitas rádios
comunitárias operam como rádios livres, “...sem autorização legal para operar...”
(PERUZZO, 2009, p.50). E este, será o fator que mais interessará ao autor: a
clandestinidade que fará de suas ondas uma máquina de guerra9 invasiva,
preferencialmente imperceptível, capaz de promover pequenas e constantes
desregulagens na engenharia do sistema vigente.

Retomando uma expressão de Henry Thoreau (1817-1862) que intitula


obra homônima10, Peruzzo nota que a desobediência civil advinda das rádios –
neste contexto, pelo exposto, situamos o leitmotiv das comunitárias e livres como
algo consideravelmente próximo, uma vez que a legalidade não torna as
primeiras um veículo comunicativo elitizado, mas condiz com “...o inconformismo
com o sistema de controle dos meios de comunicação no país”, além de “desafiar
o poder público” (PERUZZO, 2010, p.15) – é antes de tudo um ato de resistência.
Guattari, o enxergou em Alice, uma linha de fuga real que atravessou as
sintonias radiofônicas oficiais na década de 1970. Antes de adentrarmos suas
particularidades, vejamos, do ponto de vista conceitual e funcional, o que são
essas linhas costumeiramente mencionadas em suas produções, sobremaneira,
aquelas desenvolvidas em agenciamento com o filósofo Gilles Deleuze11, a quem

9 Ver: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs 5 – capitalismo e esquizofrenia. Tradução
de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 1997. 235 p.
10 Ver: THOREAU, Henry. A desobediência civil. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis: Vozes,

2019. 48p.
11 Tendo em vista a dimensão deste artigo, apresentaremos o conceito de linhas de fuga senão

em caráter notadamente introdutório.


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conheceu logo após os acontecimentos febris de Maio de 1968, durante o ano


de 1969.

Deleuze e Guattari não escreveram à quatro, mas à incontáveis mãos. As


páginas que inauguram os Mil Platôs (1980) deixam explícito que o projeto não
possuía mentores, mas tratava-se da compilação de um arsenal de vozes, e não
apenas humanas (parágrafo após parágrafo, os animais são frequentemente
evocados): “Como cada um de nós era vários, já era muita gente [...] Distribuímos
hábeis pseudônimos para dissimular [...] Não somos mais nós mesmos [...]
Fomos ajudados, aspirados, multiplicados” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.11).
De maneira geral, quando se fala em fuga na linguagem cotidiana, o primeiro
sentido que sê-nos apresenta é o de evasão, associado, muitas vezes, ao de
covardia ou de outros predicativos análogos. Na realidade, tem-se nisto um
equívoco crasso, quando é o pensamento de Deleuze e Guattari que está em
jogo. Apartados das revoluções socialistas históricas – mesmo não tendo
deixado, em nenhum momento, de interagir com Marx (1818-1883) como
ferramenta filosófica – falaremos, tomando-os por referencial, em insurreições
que são pontuais, geográficas. Se assim preferirmos, nomádicas. E quem são
esses nômades, continuamente citados pelos respectivos pensadores? São os
estrangeiros, os desarrazoados, os desertores, não necessariamente de uma
pátria, mas aqueles que prescrutam uma exterioridade, escapando das
identidades binárias, da família edipiana pequeno-burguesa – o velho segredo
triangular de Freud (1856-1939): papai-mamãe-bebê – das funções civis ligadas
às demandas estatais e profissionais que fazem dos corpos forças submetidas
(logo, impotentes), da religião, da moral, do sujeito. Lemos:

Quanto às linhas de fuga, estas não consistem nunca em fugir do


mundo, mas antes em fazê-lo fugir, como se estoura um cano, e não
há sistema social que não fuja/escape por todas as extremidades,
mesmo se seus segmentos não param de se endurecer para vedar as
linhas de fuga. Nada de imaginário nem de simbólico em uma linha de
fuga. Não há nada mais ativo do que uma linha de fuga, no animal e
no homem [...] É nas linhas de fuga que se inventam armas novas [...]
(DELEUZE; GUATTARI, 1996, pp.78-79).

Uma fuga, deste modo, não possui obrigatoriamente uma dimensão


extensiva (um indivíduo que traz o modelo estatal engendrado em si devido à
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colonização12 de sua alma pelas investidas do capitalismo, carrega o tira, o


sacerdote e o dirigente que o habitam até o cume do Himalaia), porém, intensiva.
Em poucas palavras, fugir implica não em evadir-se da existência (as práticas
ascéticas usualmente repetidas pelos antigos monges cristãos, os padres
eremitas do deserto13), contudo, em fazer fugir, em dar vazão aos mecanismos
de captura que já na tenra infância obrigam-nos a cumprir papéis
comportamentais previamente estabelecidos, metas e planilhas de desempenho,
esquivando-nos da sedução que os poderes proporcionam no que diz respeito
ao exercício da governança sobre outrem: “Só uma minoria de marginais
consegue se manter fora do consenso reacionário. Nessas condições, a maior
parte dos grandes movimentos de emancipação se encontram abatidos ou
jogados para escanteio” (GUATTARI, 1987, p.9).

Contrariando uma perspectiva não incomum ao meio intelectual, Guattari


nunca assumiu posições contrárias às tecnologias nascentes. Inversamente,
nelas reconhecia chances alternativas efetivas para a realização de novas
práticas sociais que pudessem não falar em nome dos explorados,
representando-os, mas dar voz aos que historicamente encontram-se
desprovidos dela. Peruzzo, menciona que as emissoras de caráter público
“Desempenham importante papel no processo de conscientização e mobilização
social sobre questões relativas à vida de segmentos da população empobrecidos
e discriminados socialmente” (PERUZZO, 2010, p.1). E quanto mais plurais,
mais ricos se tornam estes encontros. Inclusive, uma das questões trazidas por
Guattari mostra a necessidade de não se incorrer em sectarismos,
transformando as rádios, por exemplo, em núcleos específicos de grupos de
extrema-esquerda: “Novas e mais amplas alianças podem ser criadas para
reinventar novas formas de vida – talvez de sobrevivência – e de luta. Penso [...]
em certos setores da Igreja ligados à teologia da libertação” (GUATTARI, 1987,
pp.10-11)14.

12 Ver: ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo:
N-1, 2018. 208 p.
13 Ver: LACARRIERRE, Jacques. Padres do deserto: homens embriagados de Deus. Tradução

de Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 1996. 268 p.


14 Ver: DUSSEL, Enrique. Ética comunitária. Tradução de Jaime Clasen. Petrópolis: Vozes,

1987. 285 p.
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À época desta observação, as CEB’S – Comunidades Eclesiais de Base


– eram organizações populares que reuniam, principalmente, as camadas
menos favorecidas da sociedade, exercendo notória atividade política em favor
da justiça, da esperança e da paz, os valores pertencentes ao reino de Deus que
encontravam-se ameaçados pelas potestades ditatoriais seculares. Os guetos,
as pequenas coletividades, as incursões guerrilheiras – ainda que com isso não
estejamos fazendo menção necessária à luta armada, no entanto, aos grupos
desviantes, inventores de existências outras, que habitavam as alcovas, os
subterrâneos do sistema que reduz tudo “...ao estado de merda, isto é, ao estado
de fluxos indiferentes e decodificados, dos quais cada um deve tirar sua parte,
de um modo privado e culpabilizado” (GUATTARI, 1981, p.76) – eram à Guattari
o verdadeiro locus do devir-revolucionário. O socialismo soviético com seus
Gulags, em definitivo, não serviria às gentes como possibilidade para expressar
suas reinvindicações, bandeiras, religiosidade e sexualidade, pois, em nome do
novo homem, reproduzira segmentaridades tão ou mais duras do que aquelas
às quais pretendia destronar.

Teria Guattari se interessado com igual afinco pelos hackers, pelos vírus
sistêmicos que desestabilizam redes de produção inteiras, pelos setores
abscônditos da internet? São questionamentos que, em razão de sua morte
prematura, nunca poderemos responder. Na obra Revolução Molecular (1977) –
um compilado de sucintos textos que perpassam temas relacionados às gangues
de Nova Iorque, aos malandros, às bichas, às mulheres, à antipsiquiatria, em
suma, às figuras non gratas que não deixam de ser alvos do poder corretivo e
fiscalizador, de ordem médico-pedagógico-policial – Guattari dedicar-se-á a
narrar a trajetória de Alice, de acordo com nossa prévia indicação. E, de fato, em
que consistiu o percurso desta rádio, cujo qual o autor de Caosmose (1992)15
desejava ver multiplicado aos milhares, como vespas incendiárias entrando –
mesmo que à contragosto – pelos ouvidos perplexos das boas famílias
europeias? Alice, além de não possuir fins lucrativos, indispunha de fórmulas a
priori, isto é, era feita de relações, aulas, improvisações, poemas, tendo no

15Ver: GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia de
Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000. 203 p.
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filósofo Franco Berardi (1949-)16, o Bifo, um de seus mais conhecidos


comunicadores. A vida de Alice, não foi duradoura: em pouco, Bifo e seus
companheiros passariam a sofrer perseguições e acabariam encarcerados. A
rádio operou em 100,6 MHZ entre 1976 e 1977, ano em que deixou de existir.

Resta-nos recordar, porém, que Guattari não foi embaixador de


revoluções mundiais perenes, aos moldes marxistas. E, na contramão disso,
Alice, evidentemente, constituiu-se em uma iniciativa frutífera e bem-sucedida,
formando, ao lado de incontáveis outras iniciativas mundiais, uma rede de
polinização que, cada qual à sua maneira, penetrou e penetra as fendas de uma
ordem econômica, política e moral atravessada, de lado a lado, por irreversíveis
comprometimentos estruturais:

Por mais que os patrões, os policiais, os políticos, os burocratas, os


professores, os psicanalistas conjuguem seus esforços para paralisar,
canalizar, recuperar isso. Por mais que eles se sofistiquem,
diversifiquem, miniaturizem suas armas ao infinito, eles não
conseguirão mais recuperar a tremenda virada, o imenso movimento
de fuga que já se desencadeou (GUATTARI, 1987, pp.61-62).

No caso de Alice e das microrevoluções, o destino (fins) que tais


empreitadas irão tomar à médio e longo prazo é o que menos importa. Com
efeito, eles sequer existem. Elas são, assim, zonas de passagens, de rápida
eclosão (canos rompidos), por onde passa, senão outra coisa, do que a Vida
mesma, que insiste em não se deixar menorar pelas tecnologias de produção e
extração de mais-valia, estejam elas posicionadas no campo do trabalho, da
educação, do consumo e da competitividade, que faz dos homens e mulheres
peças de uma engrenagem voltada ao lucro e à produtividade desenfreada.

E no que tange ao Brasil, quais fatores podem ser apontados quanto às


trilhas históricas seguidas pelas rádios? Retornemos à Peruzzo para buscarmos
este esclarecimento: “As rádios comunitárias brasileiras trazem desde a origem
um sentido de rebeldia [...] surgem irradiando em FM [...] tendo em vista que vão
ao ar antes mesmo de ser promulgada a lei que regula a radiodifusão
comunitária, o que só ocorre em 1998” (PERUZZO, 2010, p.9). Guattari, por seu

16Ver: BERARDI, Franco. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. Tradução


de Humberto do Amaral. São Paulo: UBU, 2020. 256 p.
9

turno, ao prefaciar a importante obra Rádios livres: a reforma agrária no ar


(1987), de Alindo Machado (1949-), Caio Magri (1954-) e Marcelo Masagão
(1958-), compreende que:

As primeiras rádios livres do Brasil foram acolhidas com uma certa


reserva. Alguns recearam que sua aparição pudesse servir de pretexto
para uma repressão violenta [...] É bom que esteja claro, antes de mais
nada, que o movimento [...] pertence justamente àqueles que o
promovem, isto é, potencialmente, a todos aqueles – e eles são uma
legião – que sabem que não poderão jamais se exprimir de maneira
conveniente nas mídias oficiais (GUATTARI, 1987, p.11).

Coincidindo com o momento em que surge Alice, as rádios livres /


comunitárias brasileiras (valendo-nos da já mencionada diferenciação realizada
por Peruzzo como pressuposto conceitual), mantiveram à ocasião e mantém até
os dias atuais uma função fundamental à inserção social das camadas
oprimidas, criando canais alternativos-colaborativos à obtenção e ao exercício
de sua cidadania, seja fazendo denúncias sobre os problemas estruturais
atinentes à determinado bairro, seja apontando a precariedade de certas
instituições governamentais que não cumprem os requisitos civis básicos (tais
quais o direito à educação, à saúde, à segurança, ao trabalho e à moradia
dignos) legais previstos constitucionalmente:

Enfim, as entidades comunitárias sabem que uma rádio em seu poder


pode contribuir para a educação informal e ampliar o exercício dos
direitos e deveres de cidadania. Estes perpassam as dimensões da
liberdade de expressão, da igualdade de oportunidade de participar
politicamente e de usufruir o patrimônio social, o que inclui o direito à
comunicação” (PERUZZO, 2010, p.10).

Na capital do Estado de São Paulo, uma manifestação desta natureza


ganhou espaço no início dos anos 2000 e, em vista dos avanços na esfera
tecnológica, opera atualmente em formato digital: trata-se da Rádio Livre
Gaviões, um veículo de comunicação popular que fornece voz aos integrantes
da maior coletividade latino-americana em matéria de torcidas organizadas, o
Grêmio Gaviões da Fiel Torcida, organização independente fundada por um
grupo de jovens em 1 de julho de 1969 com o propósito inicial de servir como
órgão fiscalizador do Sport Club Corinthians Paulista. Dando continuidade às
conversações entre Guattari e Peruzzo, vejamos, doravante, em que medida
10

dois outros episódios nos quais mantiveram participação ativa colaboraram para
o fortalecimento e o reconhecimento das rádios livres e comunitárias.

2. Língua menor, transversalidade, democratização: a


Radio Paris 80 e a I CONFECOM

O leque de interesses por experiências micropolíticas levou Félix Guattari


à muitos lugares do mundo e, por conseguinte, abriu-lhe uma série de
problematizações com as quais a psicanálise e o pensamento filosófico
ortodoxos não estavam acostumados a lidar. Daí – possivelmente, contrariando
sua vontade, questionado fosse – o colocarmos entre os outsiders, entre os
desbravadores de territórios não-extensivos, os buscadores de alianças
improváveis (onde se dão as territorialidades existenciais). No Japão, entre 1980
e 1981, o autor concedera três entrevistas ao artista Tetsuo Kogawa (1941-),
narrando detidamente suas relações com as rádios livres francesas, todas elas,
de alguma forma, inspiradas em Alice. Falemos, por ora, sobre a noção de língua
menor, conceito-máquina criado por Guattari em composição com Gilles Deleuze
e exposto, sobretudo, na supramencionada obra Mil Platôs.

Quando o que está em pauta é o acervo cultural de um determinado país,


a língua nacional é tida, ao lado do hino e da bandeira desta nação, como uma
de suas maiores riquezas. Tão logo uma criança começa a dominar as primeiras
palavras, depois a leitura e a escrita, e as mais variadas felicitações são dirigidas
a seus pais e educadores: agora, sua participação na vida social inicia-se
efetivamente. Ela está a cada vez mais apta para cumprir demandas e ocupar o
lugar social que lhes é destinado, pronunciando-se de forma adequada,
seguindo os padrões comportamentais de cada segmento institucional, agindo
conforme a generificação binária atrelada ao seu corpo17, que passa a ser
condição material de possibilidade à inscrição de normas, regras, estímulos e
interdições. Por isso, Guattari jamais conceberá a linguagem enquanto um
campo puro, indiferente, desprovido de interesses políticos e econômicos: antes,
ela é um jogo à serviço dos poderes. Ensina-se o que falar e como falar para se

17Ver: COURTINE, Jean-Jacques. Corpo e discurso: uma história de práticas de linguagem.


Tradução de Carlos Piovezani. Petrópolis: Vozes, 2023. 160 p.
11

construir um modelo muito específico de indivíduo: o do consumidor-competidor,


despolitizado, impotente, reprodutor de um desejo que, paradoxalmente, deseja
a sua própria repressão (“queremos mais policiamento”, “mais horas de
trabalho”, “mais câmeras de vigilância”):

A unidade elementar da linguagem – o enunciado – é a palavra de


ordem [...] A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela,
mas para obedecer e fazer obedecer [...] As palavras não são
ferramentas; mas damos às crianças linguagem, canetas e cadernos,
assim como damos pás e picaretas aos operários. Uma regra de
gramática é um marcador de poder, antes de ser um marcador sintático
(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.12).

Urge, então, encontrar aberturas nessa língua maior, a língua


padronizada que pertence à maioria, mesmo falada por muitos que não a
integram. Entendamos, não obstante, que as expressões maioria e minoria em
Deleuze e Guattari assumem uma conotação radicalmente distinta daquela
utilizada no cotidiano, considerando-se que não parte de indicadores numéricos
e quantitativos: “Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O que
define a maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme: por exemplo, o
europeu médio adulto macho habitante das cidades...” (DELEUZE, 1992, p.214).

Vamos a um exemplo. Estamos diante de uma sala com quinze docentes


mulheres e somente dois homens. Numericamente, não restam dúvidas quanto
ao fato de que as professoras estabelecem um efetivo superior. Olhando para a
situação pelo prisma do pensamento dos autores, diremos que as professoras
são minoria, levando em consideração o predomínio histórico, social e
profissional masculinos exercidos nas sociedades ocidentais. A língua, destarte,
mostra-se como um dos transmissores mais eficazes dos signos dominantes,
imprimindo seus moldes e territorializando tudo aquilo que dele tente escapar.

“Esses não são, portanto, traços secundários, mas um outro tratamento


da língua [...] “Maior” e “menor” não qualificam duas línguas, mas dois usos ou
funções da língua” (DELEUZE;GUATTARI, 1996, p.50), lemos. Nomadizar a
linguagem é trai-la a partir de dentro. Ser bilíngue, trilíngue ou poliglota, não é o
que importa, se o que se continua a fazer é reproduzir o mesmo, as
hierarquizações, os verbos impositivos, as palavras de comando, moralização e
policiamento. Os desajustamentos feitos pelo poeta Roberto Piva (1937-2010)
12

na língua portuguesa serve-nos para ilustrar um caso palpável de menoração


realizado em nosso idioma pátrio, embora o mesmo não figure nas linhas dos
trabalhos de Deleuze e Guattari, que se valem da literatura de Franz Kafka
(1883-1924) para fazê-lo18.

Não pertencendo a quaisquer escolas ou movimentos – embora o


surrealismo o tenha influenciado claramente – Piva promoveu, resgatando o
espírito das festas dionisíacas ocorridas na Antiga Grécia, do xamanismo
(pajelança), do candomblé e dos marginais que habitavam o submundo
paulistano (para citarmos algumas de suas conexões), a implosão da gramática
e da norma culta, fazendo de sua pena um instrumento anárquico que não se
permitia ceder a concessões de nenhuma natureza19:

Cada um deve encontrar a língua menor, dialeto ou antes idioleto, a


partir da qual tornará menor sua própria língua maior. Essa é a força
dos autores que chamamos “menores”, e que são os maiores, os
únicos grandes: ter que conquistar sua própria língua, isto é, chegar a
essa sobriedade no uso da língua maior, para colocá-la em estado de
variação contínua (o contrário de um regionalismo). É em sua própria
língua que se é bilíngue ou multilíngue. Conquistar a língua maior para
nela traçar línguas menores ainda desconhecidas. Servir-se da língua
menor para por em fuga a língua maior (DELEUZE;GUATTARI, 1996,
p.51).

E por que trouxemos a poesia desterritorializada de Piva para aproximá-


la de Guattari (e, consequentemente, de Deleuze, tendo que o conceito de
línguas maiores e menores fora elaborado pela mistura das vivências, interações
intelectuais e políticas de ambos)? Pois ela retrata, sem qualquer dissemelhança
considerável, o fazer desobediente das rádios. Um narrador não comunica nada
afora as reivindicações de um povo excluído das previsões de sucesso, dos
arquétipos de beleza, das inserções artificiais (a começar pela propaganda e
pelo marketing de uma imprensa elitista, com suas baixezas postas à repetição
do american way of life, o estilo de vida sedentário da classe média norte-
americana) em um regime que preza pela pobreza das experiências intensivas
de seus subordinados, as vidas assujeitadas ao trabalho.

18 “Não há dúvida de que, no império austríaco, o tcheco é língua menor em relação ao alemão;
mas o alemão de Praga já funciona como língua potencialmente menor em relação ao de Viena
ou de Berlim; e Kafka, judeu tcheco escrevendo em alemão, faz o alemão sofrer um tratamento
criador de uma língua menor...” (DELEUZE;GUATTARI, 1996, p.50).
19 Ver: PIVA, Roberto. Antropofagias e outros escritos. São Paulo: Córrego, 2016. 96 p.
13

Como ocorrera com seus aliados em Alice, Guattari, ao envolver-se


ativamente nas programações da Radio Paris 80, ao lado de seu filho, técnico
radiofônico, recebera inúmeras perseguições, que culminaram no
estabelecimento de processos jurídicos e na apreensão de materiais: “Não
podemos manter a polícia longe de nossas costas, evitar prisões, confiscos e
multas” (GUATTARI, KOGAWA; 2020, p.46). Com efeito, Paris 80 mantinha uma
programação diversificada, nos termos guattarianos, transversal. E,
especificamente, ao que este conceito reage? Às ideias de horizontalidade e
verticalidade:

A transversalidade é uma dimensão que pretende superar os dois


impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma simples
horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicação
máxima se efetua entre os diferentes níveis e sobretudo nos diferentes
sentidos (GUATTARI, 1981, p.96).

Comunicar, é fazer conexões. As participações em Paris 80 eram às mais


plurais, onde as pessoas entravam em contato via telefone e expressavam seus
posicionamentos sobre temas diversos. Grupos musicais e conversações
coletivas eram uma constante, acompanhados de reproduções de fitas k7
enviadas aleatoriamente pelos grupos que prestavam suas contribuições à rádio.
Por este motivo, fizemos alguns apontamentos sobre a língua menor (ou as
línguas menores, como é mais adequado dizer): pelas ondas radiofônicas, elas
atravessavam barreiras, rompiam fronteiras espaciais, passavam
transversalmente pelas verticalizações hierárquicas dominantes e pelas
horizontalidades forçosamente igualitárias. O verbo transversalizar, é formado
por atravessamentos que não possuem sentidos ou finalidades prévios. E o que
se espera que surja daí? Não há modelos nem fórmulas, desde que seja algo
que passe à sombra e caminhe na contramão de nosso sistema de coordenadas
sociais:

Na minha perspectiva teórica, a questão das rádios livres vai muito


além de uma simples democratização da informação [...] Os
dicionários, as academias e os meios de comunicação oficiais
funcionam de modo a nos fazer acreditar em uma única língua e na
traduzibilidade geral de todas as línguas [...] Deste modo, as mídias
[...] podem se mover em duas direções: tornando-se auto-unificada,
esmagadora, traduzível em todo o mundo nas mesmas linguagens, os
sentimentos, os mesmos comportamentos; ou, ao contrário, pode
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ajudar a fazer sentir o que é a linguagem, o que é o comportamento, o


que é o desejo de um determinado grupo (GRATTARI; KOGAWA,
2020, pp.48-49)

Percebamos que Guattari não desmerece a democracia, mas


compreende que o papel das rádios deve se estender para muito além de
simplesmente abrir seus microfones a quem desejasse se expressar
(oferecendo, por exemplo, apenas programas voltados ao entretenimento),
fazendo-se um instrumento político – neste caso, micropolítico – na acepção
mais forte do termo, ou seja, no que alude aos interesses coletivos dos grupos
minoritários envolvidos (os negros, as mulheres, os homossexuais, os
trabalhadores, os imigrantes, etc.).

À nível nacional, a I CONFECOM (Primeira Conferência Nacional de


Comunicação, ocorrida em Brasília entre os dias 14 e 17 de Dezembro de 2009),
foi um acontecimento de capital importância no que alude, em especial, à
descriminalização das rádios, trazendo diversas proposições relativas à
temática, entre as quais “Anistia para os comunicadores populares processados
por operarem emissoras sem autorização” (PERUZZO, 2010, p.13). Outra
reinvindicação capital aprovada na conferência deu-se no seguinte aspecto:

Mudança na legislação para permitir o aumento de potência de rádios


comunitárias levando em consideração as áreas e localidades isoladas
e características da comunidade, das condições técnicas do local
(PERUZZO, 2010, p.13).

Atualmente, na era das inteligências artificiais, as rádios livres e


comunitárias podem parecer, à opinião pública, veículos de comunicação
arcaicos, que tendem a desaparecer por completo com o passar dos próximos
anos. Mas a opinião pública é, de fato, o que não interessa aos grupelhos, os
grupos sujeitos (em contraposição aos grupos assujeitados) tanto comentados
por Guattari. Mesmo que estas tecnologias cheguem às margens do mundo
(referimo-nos à sua utilização comunitária pelos considerados periféricos dentro
da métrica produtivista e de apresentação de resultados mantidas no núcleo
operativo do status quo), elas nunca serão capazes de narrar o que lhes ocorre
em suas reais (sobre) vivências de mundo, que enfrentam cotidianamente os
aparelhos de padronização e vigilância, peritos na arte de fazer da exclusão
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social sua prioridade para justificar a opressão dos Estados e de todas as


máquinas binárias, pedagógicas e ortopédico-sociais – os poderes
estabelecidos, então arbitrários e repletos de decidibilidades, logo, contestáveis,
e plausíveis de resistências, como mostrara-nos enfaticamente o pensador
francês Michel Foucault (1926-1984)20 – que justificam sua existência.

Considerações Finais

No transcorrer deste artigo, propusemos a realização de um diálogo que,


em ato, não existiu. Nossas pressuposições, sendo assim, se deram em caráter
virtual, aproximando as experiências pessoais e conceituais dos dois principais
referenciais teóricos aqui citados, quais sejam, Félix Guattari e Cicilia Peruzzo.
O primeiro, já não vive entre nós. O segundo, continua produzindo e
problematizando as relações entre a comunicação, a existência e os múltiplos
desafios por nós enfrentados no século vinte e um.

A temática escolhida, teve enquanto objeto primeiro de reflexão as rádios


livres e comunitárias, incorrendo-se, inevitavelmente, em seus desdobramentos,
que passam por questões jurídicas, burocráticas e, como não poderia deixar de
ser, políticas. Ainda neste abreviado percurso, pudemos apurar que nenhuma
revolução de cunho universalista é plausível de ser esperada através das
transmissões, deficitárias aos olhos da grande mídia, de tais rádios. Mas esta
dita precariedade, é exatamente a linha de fuga comunicacional da qual os
artistas das ruas, músicos, poetas e minorias dispõem para prosseguirem em
suas lutas.

Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo:


Editora 34, 1992. 226 p.

20Ver: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel


Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2014. 291 p.
16

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs 1 – capitalismo e esquizofrenia.


Tradução de Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34,
1995. 93 p.

___________________________. Mil Platôs 2 – capitalismo e esquizofrenia.


Tradução de Ana Lúcia Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34,
1996, 109 p.

GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo.


Tradução de Suely Belinha Rolnik. São Paulo: Brasiliense, 1981. 229 p.

GUATTARI, Félix; KOGAWA, Tetsuo. Rádio Livre: autonomia: Japão. Tradução


de Anderson Santo. São Paulo: Sobinfluencia, 2020. 155 p.

GUATTARI; MACHADO, A.; MAGRI, C.; MASAGÃO, M. Rádios livres: a reforma


agrária no ar. São Paulo: Brasiliense, 1987. 181 p.

PERUZZO, Cicília. Conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária


revisitados. Reelaborações no setor. In Palavra clave. V. 11, n. 2, dez. 2009.
Disponível em http://redalyc.uaemex.mx/pdf/649/64911214.pdf. Acesso em
23/01/2024.

___________________________. Rádios Comunitárias no Brasil: da


desobediência civil e particularidades às propostas aprovadas na CONFECOM.
Anais do XIX Encontro Anual da Compós, Rio de Janeiro. 2010.

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