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Neste módulo pretende-se que a/o estudante seja capaz de compreender em que
medida pode ser aplicado o princípio da utilidade à conceptualização do Estado e à
definição das políticas públicas.
Objectivos específicos
Universidade Aberta
UTILITARISMO
I) Introdução
3. B. William e J. Griffin, por seu lado, pelo contrário, acusaram o utilitarismo de ser
uma teoria excessivamente ambiciosa, por exigir de nós uma preocupação constante
pelo bem-estar de toda a gente, esquecendo as nossas “lealdades, quer dizer, o
interesse exclusivo dos nossos filhos, pessoas chegadas, ou os nossos objectivos
particulares”.
Seria errado, contudo, julgar que Bentham queria seres humanos felizes a
qualquer preço. Pelo contrário, existia uma série de leis e normas que deviam ser
obedecidas com a finalidade de conquistar os objectivos da felicidade geral. O seu
lema “obedecer pontualmente e censurar livremente” faz fincapé em que a
obediência às leis concebidas para a maior felicidade seja prioritária à censura das
mesmas e à sua reforma, ainda que estas sejam indubitavelmente desejáveis.
Como Rosen e Kelly, entre outros, demonstraram, muitos dos atrozes
resultados da aplicação dos princípios do utilitarismo são devidos a uma má
interpretação ou desconhecimento da teoria agnóstica de Bentham. Dir-se-ia que
alguns confundiram o utilitarismo com o “utilitarismo” de Paley, que aceitava o
sacrifício do inocente pela vida do próprio país, e para quem não importava quanta
liberdade existia mas o que ele denominava “a segurança da vida civil”.
Bentham, pelo contrário, estava comprometido com a liberdade individual,
rejeitava a pena de morte e a possibilidade de um inocente ser punido, devido ao
alarmismo que daí pudesse advir.
A legislação, segundo Bentham, embora tendo como objectivo último a
felicidade geral, deve ser configurada de acordo com quatro subprincípios: a
segurança, a sobrevivência, a abundância e a igualdade.
A segurança, segundo a concepção de Bentham, é a segurança das
expectativas que nos permitem traçarmos um plano de vida, o que sem dúvida
equivale a sermos livres, pelo que não têm sentido as críticas contemporâneas em
relação à “despersonalização” do indivíduo ou ao esquecimento da liberdade
individual no utilitarismo.
Relativamente à igualdade, esta é respeitada por Bentham, ainda que
subordinada à segurança, facto que faz com que pareça ainda muito conservadora,
não permitindo Bentham a confiscação da propriedade ou um sistema de impostos, o
que não obsta a que continue a ser um fim do governo e da legislação.
Talvez pareça exagerado (mas muito próximo da verdade) constatar que John Stuart
Mill foi um ser excepcional, não apenas devido à sua capacidade intelectual, à sua
sensibilidade requintadíssima, aos seus amplos e múltiplos conhecimentos logo numa
idade muito precoce (com três anos começou a aprender grego), mas também devido
ao seu empenhamento em melhorar as condições da vida humana, o sentido da sua
própria dignidade e a amplidão dos seus horizontes, que o levou a enriquecer-se com
tudo o que de valioso encontrou na filosofia, nas ciências, na lógica, na economia, na
política e, naturalmente, na própria poesia. Esta capacidade para extraír do que de
melhor existia nas coisas antigas os fios de uma nova teoria foi interpretada por
muitos como eclecticismo, deduzindo que Mill não fizera mais do que nutrir o seu
espírito, a sua mente e os seus sentimentos, para apresentar um exemplar humano
dificilmente repetível e um pensador dificilmente superável.
Em relação à sua ética (e não terá porventura impresso um tom ético em
praticamente tudo o que escreveu?), alimentou-se dos gregos e dos latinos, do
iluminismo francês, do iluminismo escocês, do romantismo alemão e do socialismo de
Owen ou de Saint-Simon, chegando durante um certo tempo a manter relações
epistolares com Comte, em relação a quem ficou desgostoso devido ao carácter
rígido da sua religião da humanidade.
A sua Autobiography é o melhor documento para conhecer o tipo severo de
educação que lhe foi ministrada pelo próprio pai, educação esta que o transformou
numa eminência precoce mas, ao mesmo tempo, numa criança solitária (ainda que
V) Depois De Mill
Esperanza Guisán
Pedro Galvão
Bibliografia
- Bentham, J. (1789), An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, Oxford
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- Brandt, R.B. (1979), A Theory of the Good and the Right, Prometheus, Londres.
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- Sidgwick, H. (1907), The Methods of Ethics, 7ª ed., Hackett, Indianapolis/Cambridge (1981).
- Singer, P. (1993), Ética Prática, Gradiva, Lisboa (2000).
lhe conferem especificidade quando considerados ço distintivo do imaginário ocidental estaria conti-
no cenário do pensamento político moderno: de do no mito do Pecado Original e da Queda: do ato
um lado, a preocupação prática, isto é, a elaboração adâmico de insubordinação a Deus – e de seu cas-
teórica centrada no objetivo de encontrar expres- tigo – teria sido derivada a noção de humanidade
são institucional concreta; de outro, o desenvolvi- intrinsecamente falha, corruptível, corporalmente
mento de uma doutrina filosófica que, ao colocar a predisposta ao mal e para sempre amaldiçoada pela
dimensão do cálculo e da instrumentalidade como sensação da falta, pelo desejo nunca satisfeito.
seu ponto referencial, apresenta-se como eminente- Em sua análise, Sahlins identifica a permanên-
mente neutra do ponto de vista valorativo. Nosso cia desse personagem peculiar desde Santo Agos-
esforço dirige-se à desconstrução de tal ilusão de tinho até teóricos contemporâneos, passando por
neutralidade subjacente ao pensamento utilitário, Thomas Hobbes, os pensadores iluministas e os
buscando evidenciar que, de fato, o que se observa utilitaristas ingleses, entre outros. A despeito de
na consagração do útil é a estreita vinculação entre divergências essenciais entre suas formulações, uni-
concepções cognitivas, morais e políticas, de modo ria tais autores a adesão ao pressuposto básico de
que considerações quanto à natureza humana são que uma disposição passional insaciável e corrupta
traduzidas em um conjunto de valores específico é componente intrínseco à natureza humana. No
e sustentam prescrições institucionais, modelos de entanto, é um ponto específico da elaboração de
sociabilidade e ideais de personalidade bastante pe- Sahlins que se revela importante para nossa discus-
culiares. Quando em evidência, a carga normativa são: a observação de que, não obstante sua persis-
subjacente aos componentes – em tese meramente tência ao longo da história do pensamento ociden-
descritivos – do pensamento utilitário permite uma tal, tal conceito de homem tenha sido reavaliado
reflexão mais acurada acerca de elementos que apa- com o advento da sociedade burguesa. A partir da
recem ao pensamento contemporâneo como apro- noção de que aquele material bruto e imperfeito
blemáticos, naturalizados. Desvelada sua aparente poderia ser racionalmente modelado, o sinal negati-
amoralidade, podemos perceber a incidência de vo atribuído a tal natureza humana pôde ser substi-
traços utilitaristas em alguns pontos que norteiam tuído por um valor positivo:
nossas práticas e instituições mais fundamentais:
desde a afirmação da igualdade como um de nossos Na época de Adam Smith, a miséria humana
valores cardeais até a sanção a um modelo confliti- havia-se transformado na ciência positiva de
vo de organização política. como aproveitarmos o máximo possível nos-
sas eternas insuficiências, e tirarmos a máxima
satisfação possível de meios que estão sempre
Individualismo utilitário aquém de nossas necessidades. Tratava-se da
mesma condição humana miserável contem-
A busca pelos componentes normativos da te- plada na cosmologia cristã, só que aburguesa-
oria utilitária depende de um recuo às fontes de seu da – uma elevação do livre arbítrio à escolha
modelo antropológico próprio. Os princípios de racional, que proporcionou uma visão mais
natureza humana tais quais afirmados por Jeremy animadora das oportunidades trazidas pelo so-
Bentham e seus seguidores são componentes essen- frimento humano. A gênese da economia foi a
ciais de suas teses, ainda que não sejam inteiramen- economia do Gênesis (Idem, p. 565).
te originais na tradição da filosofia política. Mar-
shall Sahlins identifica no pensamento utilitário No pensamento utilitário, a definição da mo-
desdobramentos de dogmas judaico-cristãos acerca ralidade dependerá precisamente da articulação en-
da imperfeição humana, marcados fundamental- tre sensibilidade e racionalidade. A associação mais
mente pela concepção do homem como “escravo de imediata é com o modelo hobbesiano, no qual dor
suas necessidades”. Sahlins (2004) toma como base e prazer são tomados como determinantes da cog-
o argumento de Paul Ricoeur, segundo o qual o tra- nição. A formulação de Bentham estabelece que:
individuais, a produção do bem coletivo. O mode- (descrição do homem tal como é ) e a um comando
lo antropológico utilitarista, mostrou-nos Sahlins, normativo (proposição acerca do que deve ser). Tais
é afim ao homo economicus, sujeito do princípio preceitos não foram, entretanto, poupados de críti-
da providência em sua versão burguesa, que atua ca, já à época de sua apresentação ao público.
mediante o cálculo custos-benefícios (o equivalente São especialmente incisivas as críticas dirigidas
econômico do binômio dores-prazeres). No entan- por Macaulay a James Mill, concentradas em três
to, veremos, um elemento específico ao utilitarismo pontos essenciais. Primeiramente, questiona-se a
ganha proeminência: enquanto na esfera econômi- validade de sua orientação metodológica, baseada
ca a noção de uma fusão ou natural harmonização em deduzir, a priori, a ciência da política dos prin-
de interesses é aceita, no âmbito político o pensa- cípios de natureza humana. O procedimento seria
mento utilitário não prescinde de um agente nor- ilegítimo, na visão de Macaulay, em razão da im-
malizador externo. A Providência é então substituí- possibilidade de se conferir um significado rígido
da pela Razão, e por seu aplicador, o Estado. e uma medida precisa a seus conceitos-base “dor”,
Assim, o traço que podemos apontar como “prazer” e “felicidade”, aos moldes dos conceitos
próprio ao pensamento utilitário não reside, de matemáticos. Em segundo lugar, Macaulay aponta
fato, em suas premissas fundamentais, mas em seu como falsa a petição de que a complexidade da cons-
caráter eminentemente prático, voltado à concep- tituição individual pudesse ser sumarizada na forma
ção de um desenho institucional-legal que garanta do axioma simplista e nada sofisticado do egoísmo
a produção da utilidade pública (Araújo, 2006, p. – defende, por sua vez, a inviabilidade de qualquer
268).3 É pela definição de um arcabouço político- generalização empírica acerca da conduta humana
-institucional peculiar que se poderia inscrever (Lively e Rees, 1978, pp. 9-15).
nos sujeitos as diretrizes capazes de fazer convergir Por fim, a crítica de Macaulay volta-se à expo-
os interesses individuais. Para a questão de como sição do paradoxo inerente ao argumento utilitário
pensar, para além da ética autorreferida sugerida de que se possa esperar que os indivíduos ajam de
por sua visão psicológica, bases para a sustenta- acordo com a própria natureza, perseguindo seus
ção de uma sociabilidade, os utilitaristas oferecem interesses privados, e que, ao mesmo tempo, atuem
uma resposta que não difere fundamentalmente em prol da utilidade geral, ou pública (Idem, p.
da hobbesiana. O utilitarismo prescreve também 43). É precisamente a resposta a como escapar de
um Leviatã, ainda que de características próprias: tal pluralismo ético, à autodeterminação calcada no
o Estado não é tanto um soberano que subme- interesse próprio e em nada mais, que virá a consti-
te os corpos, mas antes um artífice que molda as tuir, de fato, o cerne da ciência utilitária da política.
consciências. A forma como vergar os indivíduos E para a compreensão desse ponto crucial, a prin-
é tanto mais sutil como mais incisiva. cipal chave encontra-se no tema da identificação de
interesses. Supondo a natureza antissocial do ho-
mem, de um lado, mas forçosamente admitindo,
Estado utilitário: interesse e artifício de outro, que ainda assim a espécie humana tem
resistido ao longo do tempo, Halévy afirma que
É bastante aceita a tese de que os utilitaristas há de se admitir que algum nível de harmonização
teriam pretendido elaborar uma “ciência moral” tenha sido obtido. A conclusão é que tal harmo-
equivalente, em sua precisão, à mecânica newtonia- nização possa ter-se dado espontaneamente ou que
na, implicando uma espécie de “naturalismo ético” tenha sido resultado de algum ardil. Uma noção
(Lively e Rees, 1978, p. 26). Tal como sustentado de uma identidade natural de interesses teria sido
por Elie Halévy, em seu abrangente trabalho sobre aquela, propõe o autor, que serviu de inspiração a
a tradição utilitária, “a moralidade do Utilitarismo teorizações como as de Mandeville e Adam Smith.
é sua psicologia econômica colocada no imperati- A lógica utilitária, por seu turno, ainda que por ve-
vo” (1972, p. 478), isto é, o princípio da utilidade zes admitisse tal conciliação espontânea em matéria
equivaleria, ao mesmo tempo, a uma lei científica econômica, a renegava em âmbito político. Seria o
princípio de uma identificação artificial de interes- gislação penal. Com Bentham, a arte da política
ses aquele que se aplicaria, portanto, ao pensamen- consiste precisamente em atuar sobre os interesses
to utilitário, orientando seus projetos de reforma individuais, criando mecanismos que os façam
institucional e oferecendo solução ao dilema da convergir para o bem público. A base cognitiva do
irreversibilidade do conflito de interesses (Halévy, homem é seu ponto de partida: cabe ao legislador
1972, pp. 15-17). aplicar um regulado esquema de sanções e recom-
Na obra de J. Mill, tal temática da harmoni- pensas, isto é, uma calculada distribuição de dores
zação de interesses divergentes fica em evidência ou prazeres, de modo a dirigir o comportamento
na defesa da democracia e do sufrágio “universal” individual segundo o fim de promoção da utilidade
(devidamente qualificado, na verdade, de modo pública: “Foi demonstrada que a felicidade do in-
que melhor seria dizermos “sufrágio ampliado”) divíduo [...], que é seu prazer e sua segurança, [...]
realizada em seu Essay on government. Prevalecen- o único critério em conformidade com o qual cada
do a noção de natureza humana presente em suas indivíduo, até onde depende do legislador, [pode]
bases filosóficas, Mill propõe um ajustamento ar- ser obrigado a moldar seu comportamento” (Ben-
tificial entre os interesses de governantes e gover- tham, 1948, p. 24). Assim, Bentham oferece um
nados como a única forma de prevenir a explora- exaustivo e sistemático levantamento e classificação
ção destes por aqueles. Seria somente através de dos diferentes tipos de ofensas criminais e das ade-
um formato institucional preciso – a democracia quadas punições e estabelece a figura do legislador
representativa, com extensão do sufrágio e con- como ente fundamental.
trole estabelecido por revogabilidade dos manda- O Estado que o utilitarismo prescreve é, por-
tos – que o imperativo da utilidade poderia ser tanto, um “Estado artífice” em sentido duplo: em
obtido. Diretamente derivado da constituição matéria político-institucional tanto quanto – e
mental autocentrada que atribui aos indivíduos, essencialmente – em matéria moral. Tal qual o
o argumento de Mill se apoia, para a construção conhecimento científico acerca do mundo natural
de bens coletivos, na interferência de mecanismos permitiu seu domínio, também o indivíduo, en-
externos: é a legislação que atua criando obstáculos quanto material bruto, é passível de manipulação
à ação egoísta e direcionando o comportamento uma vez que se obtenha o conhecimento acerca de
individual de acordo com a utilidade pública. suas propriedades e propensões. É nesse sentido
que moral e legislação são “uma e a mesma coisa”
A grande descoberta dos tempos modernos será na lógica utilitária, partem dos mesmos princípios
talvez o sistema de representação, a solução de e atuam de acordo com os mesmos métodos, en-
todas as dificuldades, tanto especulativas como quanto “ciências objetivas do comportamento”
práticas. Porque não há qualquer indivíduo, (Halévy, 1972, p. 27). A este indivíduo, artificial-
ou combinação de indivíduos, exceto a própria mente conformado, corresponde um modelo de
comunidade, que não teria interesse no mau sociedade que é também essencialmente um ar-
governo se tivesse poder para tal; e porque a ranjo artificial, uma deliberada justaposição – de
comunidade por si mesma é incapaz de exercer forma tão harmônica quanto possível – de partes
tais poderes, e deve confiá-los a um indivíduo independentes, autônomas.
ou combinação de indivíduos, a conclusão é Na definição das relações entre o Estado e os
óbvia: a própria comunidade deve controlar indivíduos oferecida pelos utilitaristas pode-se en-
esses indivíduos, pois do contrário eles segui- tão perceber o modo como elementos descritivos da
rão seus interesses e produzirão mau governo teoria adquirem sua força normativa. A pedagogia
(Mill, 1978, p. 73). utilitária, em sentido amplo, é fundamentalmente
“didática e autoritária” (Lively e Rees, 1978, p. 47),
As mais contundentes afirmações são, entre- e o é como consequência necessária de suas supo-
tanto, aquelas formuladas pelo próprio Bentham, sições quanto à natureza humana. E se tal traço é
especialmente ao debruçar-se sobre o tema da le- nítido em suas considerações acerca da legislação
penal, o mesmo se pode afirmar acerca da legislação de um componente igualitário – cabe questionar,
civil. De forma consistente em distintos aspectos portanto, a relação que o utilitarismo estabelece
do aparato teórico utilitarista, as concepções po- entre segurança e igualdade como atribuições da
líticas ligam-se, pois, àquelas primeiras considera- legislação civil. Halévy esclarece: não é a igualdade
ções acerca da constituição psíquica do indivíduo. política o tema que orienta as reflexões de Ben-
É precisamente o que encontramos nas conclusões tham, mas precisamente a igualdade em termos
de James Mill quanto ao papel do governo na con- de propriedade. O argumento, nesse sentido, é
dição de garantidor da proteção de cada indivíduo conservador em sua essência: o princípio anterior-
contra a usurpação de seus bens: quando Mill afir- mente mencionado da previsibilidade, da expec-
ma literalmente que “é em nome da propriedade tativa da posse, estabelece que a lei deve manter
que o governo existe” (1978, p. 57, nota 3), é a a distribuição da propriedade tal qual está dada,
natureza egoísta e instrumentalizadora pressuposta e não redistribuí-la (Idem, pp.46-48). As funções
em seu modelo antropológico que determina sua de governo são, portanto, hierarquicamente dis-
concepção peculiar da política. postas, de modo que a segurança aparece, se com-
Curiosamente, o tema do direito à proprieda- parada à igualdade, em posição privilegiada. O
de aparece no pensamento utilitário associado à que dizer, por sua vez, da tensão primordial que se
noção de segurança, mas em dois sentidos distin- impõe ao pensamento moderno, aquela que dico-
tos, ainda que interligados. De um lado, trata-se tomiza os termos igualdade e liberdade? Há razão
da propriedade como meio que garante a subsis- em se supor, como consequência lógica do pre-
tência e a integridade individual e coletiva; de ou- viamente discutido, que a resposta utilitária tenha
tro, trata-se da “segurança cognitiva” que a pro- um viés liberal. De fato, a máxima utilitária que
teção da posse confere aos sujeitos. O primeiro estabelece como preferível o cenário de uma maior
aspecto tem como base as noções de insuficiência soma total de felicidade, ainda que desigualmen-
de recursos disponíveis na natureza, o que deter- te distribuída pelo corpo social, a uma situação
mina a necessidade do trabalho, e da disposição de menor felicidade total, mas homogeneamente
egoísta do homem, que levaria os indivíduos à repartida, dá suporte à interpretação que coloca
tentativa de usurpação dos frutos do trabalho a igualdade em posição secundária. Mas é impor-
alheio (Idem, p. 56). O segundo aspecto consis- tante notar que a liberdade de que aqui falam os
te em uma derivação dos pressupostos utilitários utilitaristas não só é, em sentido restrito, um meio
acerca da constituição mental dos indivíduos e para a obtenção e a maximização da felicidade, e
da operação das associações de ideias: o indiví- não um fim em si, como também permanece for-
duo depende da expectativa de que aquilo que temente vinculada ao tema da propriedade.
ele julga possuir no presente permaneça sob sua O mesmo é válido para a democracia. Afirmar
posse em um momento futuro, para assim pau- o regime democrático como moralmente superior,
tar racionalmente seu curso de ação. A frustração por suas qualidades intrínsecas, seria estranho à
dessa expectativa redunda em perda de utilidade, lógica utilitária. É apenas como instrumento ade-
seja porque a instabilidade impede que o sujeito quado à produção de maiores saldos de sua uni-
estabeleça um projeto seguro de obtenção da fe- dade de medida que a democracia pode ser eti-
licidade, seja em virtude do próprio sentimento camente sancionada. O sentido preciso no qual a
de desapontamento que acompanha tal frustra- igualdade constitui um elemento fundamental ao
ção (Halévy, 1972, p. 46). A propriedade é útil, pensamento utilitário parece ser, portanto, aque-
portanto, razão pela qual sua proteção se colo- le sentido estrito de igual capacidade de perseguir
ca como atribuição do governo: está delineado o seus interesses particulares. 4 Refere-se, pois, ao
modelo utilitário do Estado-garantia. igual aparato cognitivo dos indivíduos e, prin-
Contudo, a questão não parece esgotar-se no cipalmente, à igual capacidade de se tornarem,
tema da segurança. O teor democratizante das através de um processo adequado de racionaliza-
proposições utilitaristas aponta a presença, ainda, ção de suas propensões naturais, aptos ao julga-
mento e à aplicação dos meios mais efetivos para a sugestão de que a virtude pode – e deve – ser ex-
obtenção de seus fins: isto significa dizer, todos traída do cálculo é ponto fundamental. Subjacente
são iguais enquanto maximizadores em potencial. aos argumentos de seus primeiros sistematizado-
Não é difícil vislumbrar as consequências institu- res Bentham e James Mill, é, no entanto, na obra
cionais de tais pressupostos: de um lado, a própria de seu herdeiro intelectual que tal noção se torna
noção de representação adquire o significado de mais nítida. É também com John Stuart Mill que
igual importância conferida a cada um dos inte- sutis mas fundamentais metamorfoses se operam
resses individuais, independentemente considera- no interior do utilitarismo, dando origem àquele
dos (“uma cabeça, um voto”); de outro, o Estado, que será o formato mais influente dessa tradição
não obstante sua atuação pedagógica, modelado- sobre o pensamento liberal moderno.
ra, apresenta-se como arena valorativamente neu- Em primeiro lugar, a fórmula dor/prazer to-
tra, que tão somente recepciona no espaço público mada por Bentham e Mill como configuradora dos
o embate entre estes centros de vontades competi- interesses é sofisticada por Stuart Mill, passando
tivos, autônomos uns em relação aos outros. a considerar a influência de sentimentos tais como
Assim, o que observamos no pensamento uti- senso de dever, simpatia, desejo de boa reputação
litário é um projeto de engenharia constitucional e mesmo “filantropia” (Lively e Rees, 1978, p. 31).
no qual os princípios parecem passar por um pro- Assim, “sentimentos de sociabilidade, o desejo de
cesso de retroalimentação: uma concepção peculiar estar em união com as demais criaturas” (Stuart
acerca da natureza humana serve de fundamento à Mill, 1971, p. 34) são tomados como princípios
definição das instituições do Estado; estas, por sua de nossa natureza, tão determinantes quanto nos-
vez, reiteram a antropologia de seus pressupostos. sos impulsos antissociais. Essa descontinuidade
No entanto, o Estado é cognitivamente privilegia- em relação ao radicalismo de seus antecessores é
do, sua Razão supera os juízos parciais dos indiví- o que permite a Stuart Mill elaborar a ideia de
duos isolados e a ele cabe, portanto, incutir-lhes que a pluralidade de interesses individuais deixa
parâmetros para seus comportamentos, de modo a de constituir um problema à medida que os sujei-
torná-los socialmente ajustados – melhor diríamos, tos são esclarecidos quanto ao fato de seus interes-
voltados à utilidade pública. ses particulares estarem, na verdade, entrelaçados
e vinculados aos interesses da humanidade como
um todo.
Moral utilitária: ideais de perfeição
[…] se, como eu mesmo acredito, os sentimen-
Racionalismo e individualismo, Halévy (1972, tos morais não são inatos, isso não quer dizer
p. 508) sugere, combinam-se no utilitarismo clás- que não sejam naturais. [...] a faculdade moral,
sico, conferindo-lhe sua feição peculiar. Como se não parte de nossa natureza, é um desenvol-
método analítico-descritivo e doutrina prática, ao vimento natural dela; é capaz, […] em certo
mesmo tempo princípio explicativo da constitui- grau, de brotar espontaneamente, e é suscetível
ção do homem e das relações sociais e ideal norma- de ser cultivada até atingir graus mais elevados
tivo que orienta a atividade legislativa, encontra-se de desenvolvimento. Quando isso ocorre, as
na consagração do indivíduo movido pelo interes- pessoas tornam-se incapazes de conceber como
se o elemento que perpassa as obras de seus autores possível um estado de total alheamento aos
e que se erige em fundamento tanto para sua teoria interesses dos outros [...]. O indivíduo torna-
da moral como para sua teoria da política. Morals -se, como que instintivamente, consciente de
e Legislation não se distinguem entre si mais do si como aquele que certamente se importa com
que analiticamente, já que ambas são distintos des- os outros. O bem alheio passa a ser algo natu-
dobramentos de uma mesma ciência da cognição. ral e essencial a ser atendido, como qualquer
De fato, a compreensão de que o que se insinua outra das condições físicas de nossa existência
por detrás da aparente amoralidade utilitária seja (Stuart Mill, 1971, pp. 34-35).
Assim, Stuart Mill desenvolve seu argumento amplo e agudo, a ditadura da opinião, aquela que
em direção a um determinado “senso de unidade”, lhe parece a tendência crescente da sociedade mo-
que poderia ser cultivado não só como sentimento, derna, à qual importa resistir. Stuart Mill procede,
mas também como parâmetro para a ação indivi- assim, à construção de um argumento de desqua-
dual, e do qual poderiam ser derivados princípios lificação da maioria através de uma perspectiva
de força persuasiva e eficácia equivalentes a uma profundamente relativista e falibilista quanto às
moral religiosa (Idem, p. 35). O ideal sugerido possibilidades de acesso à realidade objetiva por
consiste, portanto, em um indivíduo capaz de agir parte dos sujeitos particulares. Assinala, ainda, que
orientado não por seus interesses rasos, imediatos, a única oportunidade de superação dessa deficiên-
mas por certo “interesse bem compreendido”, ir- cia cognitiva reside, precisamente, na tolerância à
revogavelmente vinculado ao interesse coletivo. Se, pluralidade de pontos de vista: somente através de
nessa nova formulação, as inclinações dissociativas um processo de livre debate, de controvérsia, a ver-
parecem ter sido amortecidas, a razão individual dade poderia ser retoricamente produzida.
mantém seu papel fundamental: é a noção de indi-
víduos dotados de capacidade racional que permite […] o mal específico em silenciar a expressão
afirmar que a orientação de tais sujeitos depende de uma opinião é que isso significa roubar o
unicamente da demonstração lógica de uma pro- gênero humano - tanto a posteridade como a
posição – o fato de a felicidade individual coincidir, geração atual, aqueles que dissentem da opi-
ainda que a longo prazo, com a felicidade da comu- nião ainda mais do que os que a afirmam. Se a
nidade (Lively e Rees, 1978, p. 48). opinião é correta, foram privados da oportuni-
No entanto, Daniel Brudney (2008), em dade de trocar o erro pela verdade; se errônea,
trabalho referente ao alcance das formulações de foi perdido um bem de valor quase equivalen-
Stuart Mill sobre a esfera da personalidade, sugere te, a percepção mais clara e a impressão mais
que este ideal de harmonização de interesses in- viva da verdade, produzida pela sua colisão
dividuais (ao qual se refere como strong identifi- com o erro (Stuart Mill, 1956, p. 21).
cation ideal) só poderia ser compreendido como
complementação de outro, chamado pelo autor Se tal processo, por um lado, exige a garan-
de self-development ideal, tais conceitos designan- tia das liberdades de pensamento e expressão, por
do diferentes “ideais de perfeição” presentes em outro, pressupõe indivíduos conscientemente de-
Stuart Mill. Brudney explora a tensão existente dicados a um projeto de tornarem-se artífices de si
entre esses dois imperativos distintos, notando próprios: indivíduos que, apoiados pela razão de que
que tal noção de uma “religião da humanidade”, são dotados, podem se mover em direção a um ideal
desenvolvida em Utilitarism – na medida em que de autoaperfeiçoamento. Tal ideal não é completa-
poderia se tornar uma ameaça ao pleno exercício mente estranho a Bentham e James Mill, mas sua
da autonomia, agindo de maneira coercitiva sobre elaboração por Stuart Mill é original. Em Bentham,
os sujeitos –, estaria em tensão com aquele ideal vimos, o destaque havia recaído no caráter modela-
de auto-aperfeiçoamento, presente em On Liberty. dor da legislação. Em James Mill, posteriormente, a
O estabelecimento do limite da autoridade a ênfase é colocada sobre o papel da educação como
ser legitimamente exercida pela sociedade sobre processo destinado a capacitar os homens à admi-
os indivíduos é considerado por Stuart Mill uma nistração racional de suas inclinações. Seu projeto
questão tão fundamental quanto a proteção con- de reforma educacional, expresso em Essay on edu-
tra um governo despótico. A solução democrático- cation, centrava-se na proposta de desenvolver nos
-majoritária elaborada por James Mill lhe parece indivíduos os atributos da benevolência, da inteligên-
conter uma ameaça tirânica intrínseca, tirania esta cia e da temperança. Por benevolência entendia-se a
exercida coletivamente pela sociedade sobre o in- consciência da relação de mútua dependência entre
divíduo isolado. Não obstante, a opressão política os indivíduos, mesmo na perseguição de fins parti-
seria uma manifestação de um despotismo mais culares; a inteligência, por sua vez, seria o fator que
esses possam ser elaborados, eliminando alguns um ideal democrático mais amplo para um ideal
e fortalecendo outros, até chegar à especifica- estreito de uma “democracia esclarecida” (Lively e
ção desejada (Taylor, 1997, p. 210). Rees, 1978, p. 48). Em James Mill, o middle rank
já seria considerado portador de uma consciência
O componente instrumental dessa raciona- superior, o que servia de justificativa a um modelo
lidade, tal qual enfatizado por Taylor, realiza-se constitucional que garantisse sua preponderância
mediante o que se chama “desprendimento”, a política através da qualificação do sufrágio segun-
objetificação do sujeito para si próprio. Como nas do critérios de sexo, idade e propriedade. Em de-
premissas utilitárias, o self pontual supõe uma racio- corrência de suas qualidades mentais, as quais os
nalidade radical, marcada por um forte voluntaris- fariam mais sábios e virtuosos, os estratos médios
mo do sujeito, por um lado, e pelos imperativos do teriam ascendência sobre as demais classes e, sendo
autocontrole e da autorresponsabilidade, por outro. capazes de identificar seus interesses aos daquelas,
Como no pensamento utilitário, não é suposto, em seriam seus líderes e representantes naturais (Mill,
momento algum, que o componente passional ine- 1978, pp. 93-95). Em Stuart Mill, o ponto é radi-
rente à natureza humana seja plenamente superado, calizado. Sua preocupação é distinguir a falsa de-
mas, antes, que certos elementos sejam racional- mocracia da verdadeira – isto é, a representação da
mente selecionados, transformados e aplicados de maioria da representação de todos:
acordo com um fim específico.
Duas ideias muito diferentes são confundidas
[...] fortes impulsos somente são perigosos sob o nome “democracia”. A ideia pura da
quando não equilibrados de forma apropriada, democracia, de acordo com sua definição, é
isto é, quando algumas inclinações são fortale- o governo de todos por todos, igualmente re-
cidas, enquanto outras, que deveriam com elas presentados. A democracia como geralmente
coexistir, permanecem fracas e inativas. Não é concebida e até hoje colocada em prática é o
porque seus desejos são fortes que os homens governo de todos por uma mera maioria, ex-
agem mal; é porque suas consciências são fracas clusivamente representada. Aquela é sinônimo
(Stuart Mill, 1956, pp. 72-73). de equidade de todos os cidadãos; esta, estra-
nhamente confundida com a primeira, é um
Dessa perspectiva, torna-se inclusive mais com- governo de privilégio, em favor da maioria nu-
preensível o uso que Stuart Mill faz da metáfora da mérica, que é a única que possui voz no Estado
obra de arte. Juntamente com a metáfora orgânica, (Stuart Mill, 1958, pp. 102-103).
a analogia estética é comum aos autores românticos,
ambas enfatizando as relações entre as partes e o É a valorização positiva da multiplicidade de
todo na formação de uma unidade coerente. A me- interesses e o princípio de sua igual dignidade que
táfora estética, entretanto, encerra em si a ideia de suporta a prescrição de um modelo proporcional
uma construção deliberada. Assim, permanece tam- de representação, que salvaguarda as minorias. Por
bém em Stuart Mill a referência à noção de artifício. outro lado, há o fato de ser identificado precisa-
Cara ao utilitarismo, vimos, a ideia demonstra sua mente na minoria o traço de excelência mental
produtividade tanto para explicar a dimensão das que a distingue da mediocridade coletiva das mas-
prescrições político-institucionais como para com- sas. A liberdade, pois, é afirmada como condição
preender a conformação dos sujeitos individuais a para a emergência do gênio, aquele que é mais
um ideal especifico de personalidade. indivíduo do que os outros, isto é, que resiste à
Os desvios de Stuart Mill em relação aos câno- conformidade e que constrói a si mesmo através
nes do utilitarismo são significativos do ponto de do uso calculado de sua razão sobre seus apetites.
vista do indivíduo tanto quanto serão no campo O utilitarismo, portanto, possui seus aristoi: não
político: o deslocamento de um foco na maioria obstante a condição humana básica sugerida em
para um foco nas minorias indica a passagem de seus pressupostos, e o componente igualitário que
ideia de que o indivíduo, sendo primariamente um de que o utilitarismo deva ser considerado amoral;
ser passional, é também dotado de racionalidade. A de fato, a utilidade constitui sua moralidade mes-
percepção de que os instintos não são, por si só, su- ma, seu critério de reconhecimento, seu princípio
ficientes para a compreensão da conduta humana é organizador dos modos de construção de si e das
o que se expressa no papel central que os utilitários relações entre os indivíduos e entre estes e o Estado.
conferem à categoria do interesse, supondo que ao Dissecada a natureza humana, identificado seu mo-
componente volitivo de nossa constituição soma-se dus operandi, o pensamento utilitário conclui pela
uma dimensão racional que sobre ele atua. É um indistinção entre ser e dever ser, ou, melhor diría-
equívoco pensar, portanto, que a preocupação utili- mos, postula que devemos ser cada vez mais aquilo
tária com a harmonização dos interesses conflitivos que já somos, isto é, unidades isoladas, independen-
pretendesse levar os indivíduos à superação plena tes, competidoras. Às instituições do Estado cabe
de suas inclinações. A aplicação dos mecanismos le- reconhecer tais pressupostos, acolhê-los e garantir
gais punitivos, tal qual proposta por Bentham, não as condições para sua promoção; é este seu papel
tinha como objetivo a eliminação das tendências primordial, e o único para o qual pode pretender
sensíveis; pelo contrário, estas eram seu ponto de reivindicar legitimidade.
partida: o sistema de sansões utilitário sustentava-se
sobre a concepção do sujeito cognitivamente deter-
minado pelas sensações de dor e prazer e dependia, Notas
para sua operacionalidade, da previsibilidade das
reações individuais. A aplicação estratégica de re- 1 A propósito da relação entre paixões, razão e interesse,
compensas e punições tinha como objetivo a remo- ver Hirschman (2002), que, não obstante não se dirija
delação das personalidades não pela supressão de especificamente ao utilitarismo clássico, fornece elemen-
suas pulsões naturais, mas pela introdução artificial tos que auxiliam a compreensão de seus pressupostos.
do controle racional sobre elas. 2 Ao empregar o termo “princípio”, Bentham refere-
Se nos primeiros utilitários é a legislação que -se precisamente àquilo que dá início a uma série de
operações – no caso, as operações em questão são as
se encarrega de criar obstáculos que dirigem o in-
associações mentais realizadas pelo sujeito quando de
teresse individual – e é nitidamente a razão esta- seu contato sensorial com determinado objeto.
tal, portanto, que opera sobre as subjetividades –,
3 Bentham e J. Mill estiveram diretamente envolvidos em
com Stuart Mill, por sua vez, observamos ganhar
questões políticas de seu tempo, associando-se ao radi-
destaque a noção de autodomínio. A ideia de me- calismo inglês. E Stuart Mill, além de funcionário da
canismos externos, voltados a modificar o sujeito Cia. das Índias Orientais, foi membro do Parlamento.
em sua interioridade, perde centralidade na teoria; 4 Ver o prefácio de Plamenatz ao trabalho de Halévy
a razão individual é afirmada de forma mais aguda, (1972).
e é remetida ao próprio sujeito a responsabilidade 5 Stuart Mill cita de forma literal tão somente uma
de atuar como artífice de si, por meio da elaboração breve passagem do trabalho de Humboldt acerca dos
calculada de suas tendências e desejos. Tal é a perso- limites da ação do Estado. No entanto, percebe-se que
nalidade genial enaltecida por Stuart Mill, precisa- sua influência não é meramente pontual ou acidental.
mente aquela capaz de objetificar e instrumentali- Está, na verdade, no cerne do argumento desenvolvi-
zar as próprias inclinações. Prescreve-se o empenho do em On Liberty.
na tarefa de confecção de uma individualidade –
um self – que é um todo coerente, uma combina-
ção harmônica – e, nesse sentido, romântica – a ser BIBLIOGRAFIA
produzida pelo próprio sujeito e por ele somente,
isolado das pressões sociais –, o que quer dizer, fun- ARAÚJO, Cícero (2006). “Bentham, o utilitaris-
damentalmente, em retiro da dimensão pública. mo e a filosofia política moderna”, in A. Bo-
Podemos perceber, desse modo, que não é pelo ron (ed.), Filosofia política moderna: de Hobbes
fato de ser voltado ao cálculo e à instrumentalida- a Marx, Buenos Aires/São Paulo, Clacso/USP.
Palavras-chave: Utilitarismo; Moralida- Keywords: Utilitarianism; Morality; In- Mots-clés: Utilitarisme; Moralité; Indivi-
de; Individualismo; Pensamento político dividualism; Modern political thought. dualisme; Pensée politique moderne.
moderno.
Este artigo pretende identificar, no in- This paper aims to identify in classi- L’article vise à identifier, au sein de l’uti-
terior do utilitarismo clássico, uma de- cal utilitarianism a particular definition litarisme classique, une définition parti-
finição particular das relações entre os of the relations between the individuals culière des relations entre les individus et
indivíduos e o Estado, assim como a and the State, as well as the postulation l’État, ainsi que la postulation d’un idéal
postulação de um ideal específico de per- of a specific ideal of personality. Based spécifique de personnalité. À partir de
sonalidade. Partindo de considerações on considerations about the works of considérations sur les œuvres de Jeremy
acerca de trabalhos de Jeremy Bentham, Jeremy Bentham, James Mill and John Bentham, James Mill et John Stuart
James Mill e John Stuart Mill, busca-se Stuart Mill, it intends to put in evidence Mill, l’on cherche à mettre en lumière
evidenciar a frequentemente negligen- the often overlooked moral dimension of la dimension morale souvent négligée de
ciada dimensão moral do pensamento the utilitarian thought and its corollar- la pensée utilitariste et ses corollaires. En
utilitário e seus corolários. Analisando ies. Through the analysis of the peculiar analysant la définition particulière de la
a definição acerca da natureza humana definition of human nature postulated by nature humaine postulée par les auteurs,
postulada pelos autores, investigam-se those authors, its normative and institu- l’article propose une étude des dévelop-
seus desdobramentos normativos e insti- tional developments in the prescription of pements normatifs et institutionnels
tucionais na prescrição de um modelo es- a specific model of social and political or- dans la prescription d’un modèle spéci-
pecífico de organização social e política. ganization are subjected to investigation. fique d’organisation sociale et politique.
biblioteca@clacso.edu.ar
Cicero Araújo*
Bentham, o Utilitarismo
e a Filosofia Política Moderna
I
Propomo-nos a comentar aqui o pensamento político de Jeremy Bentham
(1748-1832), a figura mais emblemática da corrente utilitarista britâni-
ca clássica. A título de complementação e contraste, breves referências
a dois outros conhecidos utilitaristas, James e John Stuart Mill, tam-
bém serão feitas.
Até seu envolvimento com o radicalismo inglês, durante a cam-
panha pela extensão do sufrágio, nas primeiras décadas do século XIX,
Bentham era conhecido como um “filantropista”, um “inventor” de pro-
jetos (por conta, entre outros, de minuciosos planos de reforma dos sis-
temas penal e educacional de seu país, o que, aliás, levou muitos de seus
leitores do século XX a considerá-lo uma espécie de professor Pardal
das Ciências Sociais) e um “legislador”. Bentham já tinha, então, graças
à óbvia afinidade com a jurisprudência, um pensamento político mais
ou menos desenvolvido. Mas sua defesa do sufrágio universal masculi-
no, e do que denominou “democracia representativa pura”, trouxe uma
inflexão importante nesse desenvolvimento, para a qual daremos aten-
ção na parte final deste artigo.
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Filosofia Política Moderna
II
A novidade do benthamismo, portanto, é eminentemente prática: o ar-
gumento moral e político que os “utilitaristas” (como os seus seguido-
res passaram a ser chamados) elaboram a partir de uma filosofia e uma
psicologia que, se não eram amplamente aceitas, pelo menos eram le-
vadas muito a sério naquele tempo, e que eles próprios –a contribuição
de Bentham, neste caso, é pequena se comparada com a dos Mill– pro-
curaram apenas refinar.
Gostaríamos, seguindo essa linha de raciocínio, de abordar três
proposições que aparecem logo no início da Introduction, não só para
mostrar em que medida são desdobramentos do que vamos chamar
aqui de “metafísica cartesiana”; mas principalmente para mostrar
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Filosofia Política Moderna
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É certo dizer, como faz Aristóteles, que “bem” é aquilo que é dese-
jável, e “mal” aquilo que é indesejável. Mas o que é desejável/indesejável
não pode mais ser um conjunto de objetos classificados como dignos ou
indignos em si mesmos, e cuja apreensão leva à fruição de um prazer
digno ou indigno. Pois a única coisa a que realmente temos acesso dire-
to são as idéias, e entre elas as agradáveis ou desagradáveis. São essas
últimas que apontam os fins de nossas ações. Quanto aos objetos que
supomos provocarem tais sensações, esses são apenas instrumentais
para aqueles fins. Não só não podem ser dignos ou indignos em si mes-
mos, como um mesmo objeto pode ser “bom” ou “mal”, dependendo
das circunstâncias que os levem a produzir sensações prazerosas ou
desagradáveis.
É também neste sentido que nossa inteligência, nossa capacidade
de raciocinar, está subordinada àqueles fins. Pois se a razão fosse capaz
de apontar qualquer outro fim independente, ao qual todos os outros
estivessem subordinados, então teríamos de ser capazes de perceber
idéias totalmente separadas das sensações, inclusive as de prazer e dor.
Mas o empirista nega a possibilidade de qualquer idéia não derivada
das idéias sensíveis. A razão não é “prática” porque nos faz querer tais
fins independentes, mas simplesmente porque, a partir da experiência
e da observação, nos permite conhecer quais objetos e circunstâncias
mais provavelmente nos mantêm longe da dor e próximos do prazer.
III
Sobrevivências desse “republicanismo clássico”, de inspiração aristoté-
lica, como um ideal de vida coletiva, são largamente reconhecidas no
pensamento britânico, especialmente o inglês, durante o século XVIII,
e servem como arma ideológica contra o regime parlamentar, “Whig”,
instaurado no país após a Revolução de 16883. Essa é uma das duas ver-
tentes do pensamento político com a qual Bentham vai acertar contas
ao elaborar sua própria visão. A outra é o contratualismo de inspiração
lockeana, de que falaremos mais adiante.
Uma das imagens de vida coletiva mais características da tradi-
ção republicana clássica é pensar a comunidade política como um todo
real, a partir da qual as partes ganham sentido. A família e os indiví-
duos são “membros” desse todo mais ou menos como a mão, segundo
a famosa analogia de Aristóteles na Política, é um membro do corpo:
a função da mão só ganha sentido, só é inteligível, a partir da visão de
um todo, o corpo. A comunidade política também constitui um corpo,
o “corpo político”, do qual os cidadãos, individualmente considerados,
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Filosofia Política Moderna
5 Mais à frente na Introduction, Bentham listará algumas variáveis que vão definir como
uma soma de prazeres e dores pode ser feita: a soma é maior ou menor se os prazeres en-
volvidos são mais ou menos intensos, mais ou menos duradouros no tempo, mais ou me-
nos férteis (isto é, se sua fruição agora dá ou não nascimento a novas fruições no futuro),
mais ou menos extensos (envolvendo maior ou menor número de indíviduos). Assim, um
prazer mais intenso agora pode não ser o mais duradouro, ou o mais fértil. De modo que
um prazer sentido mais longamente no tempo pode substituir com vantagem, no cálculo
da felicidade, um prazer mais intenso no presente, porém mais curto. Assim como um pra-
zer que se extende a mais indíviduos pode substituir com vantagem um prazer mais inten-
so, mas que envolve um número menor de pessoas. Bentham, contudo, nunca conseguiu
sugerir alguma maneira de medir a intensidade do prazer a fim de fazer a comparação.
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6 É baseado nesta idéia, na idéia que a pena é uma dor que só se justifica se produzir um
benefício subseqüente que a compense, que Bentham projetou o seu tão execrado (depois
de Foucault, pelo menos) Panopticon, o sistema presidiário que propôs, insistentemente e
sempre sem sucesso, ao governo inglês para reeducar criminosos.
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7 A influência dos Essays de Hume na formulação da crítica que segue já foi destacada por
diversos comentadores de Bentham, e nada temos a acrescentar a respeito.
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IV
Tal como desenvolvido até aqui, o pensamento político de Bentham
apresenta uma certa feição tory, especialmente no ponto de sua críti-
ca ao vínculo entre consentimento e legitimidade do governo. Se não
real, pelo menos a aparência de um Bentham tory paira de fato sobre
sua biografia intelectual até o início dos anos 1800. Por volta de 1808,
porém, Bentham inicia sua colaboração com James Mill, que acaba por
convertê-lo para a causa do radicalismo, então em plena campanha
pela extensão do sufrágio. A inflexão é profunda, e apresenta-se como
uma oportunidade para aplicar o princípio da utilidade num terreno
até então inexplorado pelo autor.
Estudiosos do benthamismo apontam a sua profunda decepção
com o regime político então vigente na Inglaterra –cujos governantes,
apesar das demonstrações de simpatia por parte de alguns ministros,
simplesmente ignoram suas insistentes ofertas para reformar os siste-
mas judiciário e penal do país– como um dos grandes motivos dessa
inflexão. Verdade ou não, é bem possível que os insucessos de Bentham
tenham despertado sua atenção para a importância de se refletir não
só sobre o conteúdo das ações governamentais (conteúdo da legislação,
por exemplo), o que tinha sido sua maior preocupação até essa época,
mas também sobre as formas de governo e, especialmente, sobre quem
sustenta o governo.
Bentham concluiu que não basta convencer os governantes, atra-
vés de uma batalha de idéias, a respeito de boas iniciativas ou bons pro-
jetos de administração pública. Ainda que convencidos de que tais ini-
ciativas são capazes de promover a felicidade geral, um governo pode ter
interesse em não promover a felicidade geral. Nosso autor começa a falar,
com freqüência, de “interesses sinistros” dos governantes de seu país.
Mas não se trata de uma demonização da aristocracia inglesa.
Segundo Bentham, ocorre que a distinção entre governantes e gover-
nados, embora inevitável e útil em princípio, cria uma virtual distinção
de interesses. Quando governantes e governados se vêem como dois
grupos separados, como o são efetivamente, é bem provável que eles
constituam interesses não só separados, mas divergentes. Assim, pro-
mover o interesse comum do grupo dos que governam pode significar
uma coisa, e promover o interesse comum dos governados, outra. A
partir dessa descoberta, passa a ser axiomático para Bentham que um
governo sempre agirá no sentido de promover os interesses do grupo
governante. Acontece que este sempre constituirá um grupo numerica-
mente muito menor que os governados. Isto significa que um governo
pode promover uma felicidade muito menos extensa que a felicidade
geral. Em outras palavras, a mera existência de um governo pode impli-
car uma subversão do princípio da utilidade.
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9 Para um comentário mais extenso sobre essa questão, ver Rosenblum, 1978.
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BIBLIOGRAFIA
Bentham, Jeremy 1984 Uma introdução aos princípios da moral e da
legislação, coleção “Os Pensadores” (São Paulo: Abril Cultural).
Bentham Jeremy 1962 “Constitutional Code” em The Works of Jeremy
Bentham, ed. J. Bowring (New York: Russell & Russell).
Bentham, Jeremy (1789) 1982 An Introduction to the Principles of Morals
and Legislation (Londres: Methuen Univerity Paperback).
Bentham, Jeremy (1776) 1982 “A Fragment on Government” em The Works
of Jeremy Bentham, ed. J. Bowring (New York: Russell & Russell).
Halévy, E. 1955 The Growth of Philosophic Radicalism (Boston: Beacon Press).
Hume, David 1985 Essays, Moral, Political and Literary (Indianapolis:
Liberty Fund).
Locke John 1894 An Essay Concerning Human Understanding (Oxford:
Clarendon Press).
Mill, James 1955 An Essay on Government (Indianapolis: Bobbs-Merril).
Mill, John Stuart (1863) 1993 Utilitarianism (Londres: Everyman).
Pocock, J. G. A. 1975 The Machiavellian Moment (Princeton: Princeton
University Press).
Rosenblum, N. L. 1978 Bentham’s Theory of the Modern State (Cambridge,
Mass.: Harvard University Press).
286
Teoria Política
Em seguida, são indicadas as ideias base que deveria ter abordado e desenvolvido na
resposta às questões colocadas na actividade formativa.
Grupo I
No capítulo do manual sobre o utilitarismo, são apresentadas várias concepções de
«bem-estar», estando cada uma delas sujeita a vários tipos de objecções. Sendo assim,
não seria melhor abandonar o princípio do bem-estar?
A ideia de utilidade remete para algo de que se possa retirar proveito, interesse ou
vantagem. Deste modo, as acções correctas serão aquelas que podem promover a
retirada de vantagens (a felicidade, o prazer, etc.), enquanto as acções incorrectas
serão todas aquelas que não promovem qualquer tipo de vantagem.
A organização do Estado e a definição das políticas públicas têm como finalidade
assegurar a satisfação das necessidades colectivas. E, se o indivíduo age no sentido de
obter o seu bem-estar, parece natural que a comunidade política procure também
alcançar o bem-estar dos seus membros.
Neste sentido, a maximização do bem-estar dos membros da comunidade política
parece ser um bom critério orientador da acção do Estado. Como tal, e à luz do
utilitarismo, a acção política não deve estar sujeita a princípios de tipo moral ou ético
(como aqueles associados, por exemplo, a critérios de justiça), pois, se eles não
maximizarem o bem-estar de todos, não assegurarão a melhor decisão.
Universidade Aberta
Teoria Política
Grupo II
Suponha uma situação em que uma pessoa com conhecimento efectivo de um ataque
terrorista iminente, o qual matará centenas de pessoas, é detida pelas autoridades e
recusa divulgar informações necessárias para impedir o ataque, mas que essas
informações podem ser obtidas se ela for torturada.
Na sua opinião, e tomando como base os princípios fundamentais da teoria utilitarista,
esta pessoa poderia/deveria ser torturada?
Universidade Aberta
Iniciado em Quinta, 4 Abril 2024, 21:24
Estado Terminada
Completado Quinta, 4 Abril 2024, 21:27
em
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Pergunta 1
Correta
Verdadeiro
Falso
Pergunta 2
Correta
Para um utilitarista, uma decisão justa será aquela que produza o maior bem-estar para o maior número de pessoas.
Verdadeiro
Falso
Certo. Neste caso, estão reunidos os três elementos que caracterizam o utilitarismo.
Verdadeiro
Falso
Certo. Como as preferências externas dizem respeito à atribuição ou não de bens a outros, a alternativa pelas preferências
internas, ou seja, por aquilo que cada pessoa deseja para si própria, permite proteger as minorias.
Pergunta 4
Correta
O consequencialismo das regras prevê que o melhor acto será sempre aquele que resultará no máximo valor impessoal.
Verdadeiro
Falso
Certo. O consequencialismo das regras estabelece que o melhor acto será aquele que está de acordo com as regras ou
códigos morais que obtém a aceitação do maior número de pessoas e não com a maximização do valor impessoal.
Pergunta 5
Correta
a. Sim. Certo. Essa é uma das principais críticas que é dirigida ao utilitarismo, uma vez que a obtenção do
maior bem-estar total ou médio pode não ser suficiente para proteger a situação dos mais
desfavorecidos ou das minorias, uma vez que o seu sacrifício seria aceitável se isso contribuísse para
o maior bem-estar.
b. Não.