Você está na página 1de 59

          Teoria Política 

Resumo do Tópico 1: Utilitarismo

Neste módulo pretende-se que a/o estudante seja capaz de compreender em que
medida pode ser aplicado o princípio da utilidade à conceptualização do Estado e à
definição das políticas públicas.

Objectivos específicos

 Indicar uma noção de utilitarismo.

 Enunciar os três elementos comuns às várias teorias utilitaristas.

 Exemplificar as várias hipóteses de teorização do bem-estar.

 Distinguir o consequencialismo dos actos do consequencialismo das regras.

 Apontar a relevância do utilitarismo para a tomada da decisão política e a


definição das políticas públicas.

 Apresentar as críticas que podem ser dirigidas ao utilitarismo.

Os conteúdos programáticos deste módulo estão situados nas seguintes páginas do


manual adoptado (3.ª edição): pp. 21-39.

   Universidade Aberta                
UTILITARISMO

I) Introdução

Poucas teorias precisam tanto de clarificação e estudo como o Utilitarismo, devido a


superficiais, quando não deliberadas, más interpretações. Não seria descabido dizer
que existe uma dívida histórica para com o utilitarismo de Bentham e Mill, e ainda o
dever académico de fixar de um modo sumário aquilo que é e não é o utilitarismo, de
acordo com os seus autores mais representativos.
Para começar, seria necessário estabelecer uma verdade óbvia:
“utilitarismo” enquanto moral filosófica, não tem nada a ver com o incremento da
utilidade prática, ou com um pragmatismo vulgar, também não filosófico.
O utilitarismo é uma corrente agnóstica, esclarecida e radical, que pretende
denunciar a tirania do poder e do privilégio, especialmente no caso de Bentham ou
das instituições e pressões sociais, como nos casos de Harriet Taylor Mill e John
Stuart Mill, bem como o aperfeiçoamento espiritual e material do género humano.
Curiosamente, a teoria passou por ser uma teoria liberal conservadora, anti-
igualitária e alheia às demandas da justiça (e é assim considerada actualmente por
alguns conhecidos pensadores). Porém, na realidade, a obra de Harriet Taylor Mill e
John Stuart Mill, culminando os anteriores desenvolvimentos, transformou-a numa
doutrina tendente ao socialismo, conservando simultaneamente os elementos mais
importantes do liberalismo.
Quase toda a gente sabe que os mestres de John Stuart Mill foram seu pai,
James Mill, que era curiosamente um homem tremendamente austero e muito pouco
amante do prazer, segundo a confissão de Mill na sua Autobiography, e Jeremy
Bentham, que lhe proporcionou um credo, uma fé, um ideal, um objectivo segundo o
qual viver.
No entanto, sabe-se pouco da influência decisiva proporcionada por Harriet
Taylor Mill, companheira sentimental de Mill e, mais tarde, sua esposa, para a
transformação do utilitarismo. Mas foi ela, sem dúvida, uma das personalidades que
mais influência tiveram na passagem do utilitarismo quantitativo de Bentham para o
utilitarismo qualitativo de Mill, bem como na apreciação positiva do socialismo por
parte de Mill (ainda que já autores como Saint-Simon ou Owen tivessem preparado o
caminho a percorrer). Foi Harriet Taylor Mill a força a pôr em movimento os
sentimentos anteriormente mais reticentes de Mill na defesa das mulheres, dos
indefesos, dos pobres, etc. Harriet Taylor Mill não apenas defendeu verbalmente as
ideias mais progressistas, mas contribuiu ainda para a sua difusão e praticamente

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
ditou a Mill parágrafos de On Liberty e/ou, possivelmente, redigiu o Capítulo
dedicado ao futuro da classes trabalhadoras, que não existia na primeira edição de
Principles of Political Economy.
Embora seja habitual na exposição de uma teoria falar em primeiro lugar das
suas origens, parece mais motivador começar por expor aquilo que ao longo deste
século em que vivemos veio a ser na teoria, bem como as críticas que está a suscitar
ou o seu grau de vitalidade. Para bem ou para mal, quase todos os tratados de
política, direito, teoria social ou Ética se debatem contemporaneamente contra o
Utilitarismo, ou antes contra uma caricatura dele. É esta a sorte que parece ter-lhe
correspondido, sobreviver a troco de perder as suas marcas de identidade.
Tentaremos aqui pôr em relevo as suas ambições de libertação, emancipação e
aperfeiçoamento, em todos os aspectos imagináveis, de todos os seres humanos e
mesmo dos seres sensíveis.
Ainda que as críticas sejam várias e provenientes das mais diversas
correntes, poderiam ser sintetizadas em três núcleos principais que se foram
desenvolvendo ao longo do século XX:

1. G. E. Moore, em Principia Ethica, em 1903, acusou Mill de incorrer na falácia


Naturalista, pela sua passagem, ao que parece indevida, do “desejado” ao
“desejável”.

2. John Rawls, em 1971 (A Theory of Justice), e os inúmeros autores que se lhe


seguiram em todo o mundo, com maior ou menor proximidade, têm acusado o
utilitarismo de esquecer a justiça contentando-se com a máxima produção de bem-
estar sem se importar com o seu modo de distribuição, apresentando assim o
utilitarismo como uma teoria ética muito deficiente.

3. B. William e J. Griffin, por seu lado, pelo contrário, acusaram o utilitarismo de ser
uma teoria excessivamente ambiciosa, por exigir de nós uma preocupação constante
pelo bem-estar de toda a gente, esquecendo as nossas “lealdades, quer dizer, o
interesse exclusivo dos nossos filhos, pessoas chegadas, ou os nossos objectivos
particulares”.

Uma vez que a cultura e a filosofia anglo-saxónica do século foi difundida


praticamente por todo o mundo ao longo do sec. XX e começo do sec. XXI,
encontramo-nos com a paradoxal situação de que a maior parte daqueles que
conhecem o utilitarismo, especialmente na área latino-americana, conhecem-no

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
unicamente através dos críticos, cujo número é copioso. Felizmente, começam a
abundar trabalhos como os de Rosen, Kelly, Robson ou Berger, ou revistas como
Utilitas e Télos, que tentam pôr em destaque as contribuições ainda não conhecidas
do utilitarismo para a ética contemporânea.

II) Quem São Os Utilitaristas?

Num sentido muito vago, praticamente todas as doutrinas éticas são


utilitaristas, pois consideram boa a consecução do bem-estar espiritual, psíquico ou
material, nesta ou noutra vida. Mesmo Kant, um dos autores mais acerrimamente
anti-hedonistas, não pode deixar de considerar que o Sumo Bem apenas é possível se
abranger a virtude e a felicidade dos seres humanos (numa outra vida).
Praticamente todas as teorias defendem que o ser humano procura a sua
felicidade pessoal acima de tudo, sendo portanto hedonistas psicológicos
individualistas (Hobbes, Kant, Rawls, etc.), e outros mais optimistas, como Mill,
consideram que os seres humanos procuram simultaneamente a sua felicidade
pessoal e a dos seus semelhantes (hedonistas psicológicos universalistas).
Certamente, ser-se hedonista psicológico (egoísta ou universalista) não
implica ser-se um hedonista ético egoísta ou universalista. Kant é novamente um
bom exemplo disso, ainda que seja verdade, como afirma Bentham em Principles of
Morals and Legislation, que todas as doutrinas religiosas e éticas têm de situar num
lugar privilegiado a felicidade, nesta ou noutra vida.
Exemplos do hedonismo ético na filosofia clássica são Platão, Aristóteles ou
Epicuro, embora talvez as suas semelhanças sejam mais claras em Epicuro, que
declarou estas belas palavras: “Vã é a palavra do filósofo que não sare nenhum
sofrimento humano”. Platão mantém também uma certa parecença com o
utilitarismo, devido à sua implicação na política e no proselitismo, que o leva a
propor uma forma de educação que, possivelmente cheia de erros aos nossos olhos,
tinha o objectivo de procurar não apenas a felicidade dos reis-filósofos, mas a de
todos os membros da república.
Sem negar a importante influência de Hume e Helvetius, o utilitarismo
verdadeiramente radical, verdadeiramente importante de um ponto de vista moral,
social e político, começa em Bentham, apesar de, enquanto filósofo, Hume ser muito
mais subtil e interessante.
Do ponto de vista aqui adoptado, ser-se utilitarista implica algo mais que
construir uma teoria moral, legal ou política bem raciocinada e cujo objectivo seja a
promoção do prazer e o evitar da dor por parte da maioria. O utilitarismo está ligado

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
em Bentham, seu fundador, a uma espécie de militância que implica o compromisso
com o aperfeiçoamento da humanidade. Por isso, os pouquíssimos utilitaristas que
no mundo o foram merecem o nosso mais cálido reconhecimento.
Bentham concebeu o panópticon – uma prisão modelo, ainda que muito
criticada – e dedicou-se a censurar as leis e o sistema judicial, trocando cartas com
os governantes dos mais variados países, com o fim de contribuir para a elaboração
de códigos e Constituições, entre as quais a Constituição espanhola, elaborada pelas
Cortes de Cádis.
Mill, entre muitas outras actividades políticas, fundou a Utilitarian Society,
colaborando em revistas e debates, e chegando mesmo a ser membro do Parlamento
Britânico, onde reclamou pela primeira vez o voto para as mulheres.
Harriet Taylor Mill participou no círculo unitário, onde eram debatidas as
questões relativas ao progresso da humanidade, e tentou, junto dos seus meios, fazer
ouvir a sua voz em causas como o sufrágio da mulher, os mais indefesos ou a
liberdade.
Seria certamente preciso não esquecer, entre estes utilitaristas
comprometidos, James Mill, pai de John S. Mill. A sua influência na formação do
perfil intelectual e da honestidade moral de Mill justificam-no. A sua contribuição
para a expansão do radicalismo, também. No entanto, por uma questão de espaço,
deve ser elidido para destacar quem, como é o caso de Harriet Taylor Mill, contribuiu
para fazer do utilitarismo uma doutrina mais rica, mais plural e mais progressista.
Dos utilitaristas actuais, como será indicado no fim, apenas Peter Singer
parece ter combinado a teoria e a acção, ao passo que os outros brilhantes
pensadores preferiram ficar recluídos na academia.

III) Jeremy Bentham (1748-1832)

Como actualmente afirma Kelly, enquanto importantes autores


contemporâneos tomaram para si a defesa de Mill contra as acusações dos filósofos
dos direitos, Bentham foi menos feliz, tendo o seu descrédito sem dúvida origem
numa série de críticas realizadas pelo seu melhor discípulo, Mill, na sua obra
Bentham, que no entanto o caracteriza muito favoravelmente como sendo, na sua
época, “o grande inquisidor daquilo que está estabelecido”.
Se é bem verdade que Bentham foi um lutador nato contra os abusos de
poder e a favor da democracia, e revelava uma energia e uma veemência admiráveis,
J. S. Mill, como veremos mais adiante, foi muito mais subtil em relação à psicologia
humana. Para Bentham, por seu lado, e embora seja verdade que admitia a

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
filantropia e a benevolência, o facto básico da natureza humana era constituído pelo
“princípio da auto-preferência”, aspecto no qual J. S. Mill se distanciava dele
totalmente.
Para Bentham, o princípio ético por excelência – e que em muitos sentidos
tem uma origem tão remota como Platão – é o de que “é a maior felicidade do maior
número aquilo que constitui a medida do correcto e do incorrecto”.
O desejável seria, certamente, a felicidade de toda a gente, mas em casos
de conflitos tão frequentes na vida quotidiana seria preciso adoptar medidas para
que quem por eles passasse fosse o menor número de seres humanos (e mesmo seres
sensíveis) possível.
A objecção mais habitual que tem sido feita a Bentham por parte de Rawls e
dos seus seguidores é, como já foi indicado, a sua desconsideração da justiça, quer
dizer, a imputação de que para Bentham o que conta é apenas o montante de
felicidade total, a soma da felicidade, sem importar o modo da sua distribuição. É
preciso dizer, a favor de Rawls, que também se verifica uma certa ambiguidade num
escrito de Bentham, de 1789, que poderia oferecer uma interpretação semelhante,
mas é igualmente claro a partir do panfleto de 1831, intitulado Parlamentary
Candidate’s Proposed Declaration of Principles, que o fim ideal incluía a provisão de
uma quantidade igual a cada qual, de maneira que a maximização deveria estar
ligada à igualdade da sua distribuição.
Em muitos aspectos, porém, as máximas de Bentham são mais prudenciais
que estritamente morais. O deontólogo ou expoente da ética privada teria
unicamente o papel de instruir o indivíduo relativamente à forma de maximizar a sua
própria felicidade, fazendo apenas com que os indivíduos consultassem a felicidade
dos outros se dessa forma pudesse demonstrar-lhes que isso incrementava a sua
própria felicidade.
O hedonismo de Bentham era um hedonismo psicológico individualista e,
portanto, não desejava que as pessoas se sacrificassem demasiado pelos outros,
recomendando a economia do sacrifício.
Competia ao legislador promover a maior felicidade do maior número
possível, utilizando punições, ameaças de punições e ofertas de recompensa, com o
objectivo de que as pessoas não pensassem apenas na sua felicidade, quando a sua
conduta fosse socialmente prejudicial.
Por outro lado, Bentham geralmente conformava-se com o zelo do legislador
pelo maior bem-estar possível da sua comunidade; apenas nos seus textos sobre
Direito Internacional pode o princípio da maior felicidade ser estendido a todos os
seres humanos.

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
Ao contrário de Mill, não admitia a diferente qualidade dos prazeres, embora
também não admitisse todos os prazeres indiscriminadamente. Os seguintes versos
popularizam os requisitos de Bentham:
“Que seja intenso, longo, seguro, rápido, frutífero, puro
deves ter em conta para o prazer ou a dor segura.
Procura prazeres tais quando o fim for privado;
Estende-os, não obstante, quando for público o cuidado.
Evita dores tais, para ti ou para os outros.
Se tiver de existir a dor, que atinja muito pouca gente.”

Seria errado, contudo, julgar que Bentham queria seres humanos felizes a
qualquer preço. Pelo contrário, existia uma série de leis e normas que deviam ser
obedecidas com a finalidade de conquistar os objectivos da felicidade geral. O seu
lema “obedecer pontualmente e censurar livremente” faz fincapé em que a
obediência às leis concebidas para a maior felicidade seja prioritária à censura das
mesmas e à sua reforma, ainda que estas sejam indubitavelmente desejáveis.
Como Rosen e Kelly, entre outros, demonstraram, muitos dos atrozes
resultados da aplicação dos princípios do utilitarismo são devidos a uma má
interpretação ou desconhecimento da teoria agnóstica de Bentham. Dir-se-ia que
alguns confundiram o utilitarismo com o “utilitarismo” de Paley, que aceitava o
sacrifício do inocente pela vida do próprio país, e para quem não importava quanta
liberdade existia mas o que ele denominava “a segurança da vida civil”.
Bentham, pelo contrário, estava comprometido com a liberdade individual,
rejeitava a pena de morte e a possibilidade de um inocente ser punido, devido ao
alarmismo que daí pudesse advir.
A legislação, segundo Bentham, embora tendo como objectivo último a
felicidade geral, deve ser configurada de acordo com quatro subprincípios: a
segurança, a sobrevivência, a abundância e a igualdade.
A segurança, segundo a concepção de Bentham, é a segurança das
expectativas que nos permitem traçarmos um plano de vida, o que sem dúvida
equivale a sermos livres, pelo que não têm sentido as críticas contemporâneas em
relação à “despersonalização” do indivíduo ou ao esquecimento da liberdade
individual no utilitarismo.
Relativamente à igualdade, esta é respeitada por Bentham, ainda que
subordinada à segurança, facto que faz com que pareça ainda muito conservadora,
não permitindo Bentham a confiscação da propriedade ou um sistema de impostos, o
que não obsta a que continue a ser um fim do governo e da legislação.

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
De longe, a contribuição mais importante de Bentham foi a sua luta contra o
autoritarismo do clero, o ascetismo em todas as suas formas e a tentativa de eliminar
a dor e de tornar esta existência tão prazenteira e justa quanto possível, permitindo
que as maiorias prevalecessem sobre os privilégios e interesses sinistros das minorias
dominantes.

IV) Harriet Taylor Mill (1807-1858)

Como alguns autores reconheceram (Jo Ellen Jacobs ou Hayek), à parte de


quais pudessem ter sido os talentos reais de Harriet e daquilo que a autora teria
produzido individualmente numa conjuntura diferente, o que é verdade é que ela e
John formaram uma unidade de sentimentos e pensamentos que se traduziram
naquilo que poderíamos denominar utilitarismo liberal-socialista, diferente do
pensamento meramente reformista de Bentham, que apesar de ser crítico e radical
se manteve muito distanciado do socialismo.
O novo utilitarismo de Harriet e John é caracterizado pela sua profundidade
e riqueza de matizes, tentando aprofundar a psicologia humana e traçar uma
sociedade que permitisse a realização de vidas verdadeiramente gratificantes.
Por aquilo que nos indica Mill na sua Autobiography e na dedicatória de On
Liberty, Harriet não era uma simples seguidora ou colaboradora de Mill. Por muito
que Mill pudesse estar a exagerar no seu elogio da fortíssima influência de Harriet na
sua vida e pensamento, parece evidente que Harriet Taylor Mill veio substituir
Bentham como fonte de inspiração, com uma força realmente impressionante,
contagiando o filósofo com a sua energia, a coragem na defesa da causa das classes
trabalhadoras e o seu espírito ao mesmo tempo socialista e liberal, que os levaram a
defender juntos os operários, as mulheres e todos os seres marginalizados ou
escravizados, quer fosse pela força do costume, da tradição ou do privilégio.
É habitual considerar que Harriet contagiou Mill com a sua preocupação pela
sorte das mulheres, levando-o a defender o seu direito ao voto em The Subjection of
Women. Mas não é normal inferir-se que todos os textos de Mill devam ser
considerados uma obra conjunta, como declara Mill na sua Autobiography (c. VII). É
verdade que é muito possível que Mill exagerasse um pouco. Não obstante, a surpresa
é imensa ao observarmos que já em 1831 escrevera Harriet que “todos os seres
humanos têm direito a toda a liberdade pessoal que não interfira na felicidade dos
outros”, frase que é praticamente um decalque da que haveria de constar, mais
tarde, em On Liberty (1859).

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
É também Harriet quem escreve a John encomendando-lhe que deve ser ele
a ensinar o tipo mais elevado de gozo, aspecto em que Harriet e Mill irão diferenciar-
se para sempre do utilitarismo mais rudimentário de Bentham.
Infelizmente, não contamos aqui com o espaço necessário para reproduzir
muitas das agudas observações de Harriet Taylor Mill sobre o gregarismo, o
casamento, o divórcio, a superação da religião, etc., embora talvez valha a pena
guardar como mostra da sua profunda sensibilidade a sua afirmação “who enjoys the
most is most virtuous”.
A escassez da sua produção deve-se ao facto de a sua capacidade para se
exprimir oralmente ser maior do que por escrito. Felizmente para ela, e para John
Stuart Mill, este soube fixar no papel com precisão e clareza as múltiplas ideias que
ela lhe indicava ou que produziam juntos, e assim também o mundo em geral pôde
beneficiar desta singular produção conjunta.

V) John Stuart Mill (1806-1873)

Talvez pareça exagerado (mas muito próximo da verdade) constatar que John Stuart
Mill foi um ser excepcional, não apenas devido à sua capacidade intelectual, à sua
sensibilidade requintadíssima, aos seus amplos e múltiplos conhecimentos logo numa
idade muito precoce (com três anos começou a aprender grego), mas também devido
ao seu empenhamento em melhorar as condições da vida humana, o sentido da sua
própria dignidade e a amplidão dos seus horizontes, que o levou a enriquecer-se com
tudo o que de valioso encontrou na filosofia, nas ciências, na lógica, na economia, na
política e, naturalmente, na própria poesia. Esta capacidade para extraír do que de
melhor existia nas coisas antigas os fios de uma nova teoria foi interpretada por
muitos como eclecticismo, deduzindo que Mill não fizera mais do que nutrir o seu
espírito, a sua mente e os seus sentimentos, para apresentar um exemplar humano
dificilmente repetível e um pensador dificilmente superável.
Em relação à sua ética (e não terá porventura impresso um tom ético em
praticamente tudo o que escreveu?), alimentou-se dos gregos e dos latinos, do
iluminismo francês, do iluminismo escocês, do romantismo alemão e do socialismo de
Owen ou de Saint-Simon, chegando durante um certo tempo a manter relações
epistolares com Comte, em relação a quem ficou desgostoso devido ao carácter
rígido da sua religião da humanidade.
A sua Autobiography é o melhor documento para conhecer o tipo severo de
educação que lhe foi ministrada pelo próprio pai, educação esta que o transformou
numa eminência precoce mas, ao mesmo tempo, numa criança solitária (ainda que

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
ele considerasse posteriormente ter sido feliz), que nunca aprendeu a brincar ou a
emocionar-se. Não obstante, Mill pôde superar a sua crise mental. Ainda muito
jovem, percebeu que a educação que recebera carecia de um elemento primordial: o
desenvolvimento do sentimento. De repente, sentiu-se vazio e sem ligar a todos os
ideais por que tanto lutara. Aliás, perguntou-se mesmo se iria ser feliz no caso de
algum dia serem atingidos todos os objectivos pelos quais havia lutado, e a resposta
foi negativa. Não tinha nenhum sentimento de empatia em relação à humanidade.
Felizmente, lendo Wordsworth por acaso, apercebeu-se de que possuía
sentimentos, que a partir de então lutou para desenvolver cada vez mais, na
tentativa de atingir um equilíbrio entre o crescimento racional e o sentimental.
A autêntica originalidade de Mill reside na sua integração dos sentimentos e
na sua luta para os desenvolver nos seres humanos, com o intuito de, sentindo a
felicidade do outro, sermos nós igualmente felizes.
Este ponto passou praticamente inadvertido para os coetâneos de Mill, bem
como para os pensadores contemporâneos: os maiores gozos são aqueles que
derivam, não apenas do autodesenvolvimento moral e da autonomia, da agência, da
personalidade ou do respeito (como diria Griffin), mas também do trato solidário
entre os seres humanos (que parecem esquecer as éticas contemporâneas, como
notou Iris Murdoch).
Deste modo, em The Principles of Political Economy, Mill pensa que as
relações entre o patrão e o operário são insatisfatórias para ambos, pois impedem o
reforço dos laços de amizade, que são os que produzem um dos grandes gozos
humanos.
Por este motivo, propõe um regime de cooperativas, com o objectivo de que
os proprietários da empresa fossem as mesmas pessoas que nela trabalham.
Face à de Mill, as propostas contemporâneas de justiça empalidecem, uma
vez que se encarregam unicamente de pôr os meios para que seja possível uma
convivência de consenso, sem se preocuparem pelo gozo mútuo que os cidadãos
possam extrair das suas relações sociais.
É preciso dizer enfaticamente que John Stuart Mill de modo algum
desvaloriza a justiça ou a liberdade, que considera especialmente valiosas; tudo o
que deseja afirmar é que estas não possuem um estatuto axiológico próprio e
independente da sua contribuição, em grau muito elevado, para o bem-estar.
Problemas como o do sacrifício “rentável” do inocente para o bem-estar da
colectividade não têm, simplesmente, sentido em Mill, pois, embora não
completamente desenvolvidos, existem sentimentos de empatia em todos nós que
fariam com que nos sentíssemos muito insatisfeitos face a uma medida tão atroz. De

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
resto, o valor de uma vida vivida satisfatoriamente é uma muito maior fonte de
felicidade do que o “bem-estar” de uma colectividade carente de sentimentos
solidários.
Ao contrário de outros autores, que no passado ou no presente conceberam
a tarefa da legislação ou do Estado como a de um mero árbitro para tornar possível a
convivência não agressiva de uns e outros, Mill atribuiu ao Estado a missão de
“seduzir” os cidadãos com a finalidade de estes desenvolverem a sua autonomia e,
ao mesmo tempo, a solidariedade.
O Estado não deveria ser um Estado paternalista, mas o provedor dos meios
que assegurassem a liberdade dos indivíduos para escolherem os seus fins de uma
maneira esclarecida, com espírito crítico e sentimento de causa. Tudo isto era para
Mill, tal como para Harriet, sumamente desejável (segundo é expresso em On
Liberty).

De resto, Mill considera, em Considerations on Representative Government,


que ainda que fosse possível a existência de um ditador sábio, omnipotente e
benevolente, que em princípio pudesse decidir aquilo que se revelasse melhor para
atingir o bem-estar de cada pessoa, uma tarefa assim seria impossível, por carecer
de um elemento particular sem o qual não é possível o bem-estar das pessoas,
nomeadamente, o esforço pessoal de cada indivíduo para procurar os seus fins.

Classificar Mill, como alguns fizeram, de colectivista é, como se pode ver,


uma tremenda injustiça histórica.
On Liberty é, sem qualquer dúvida, a bíblia dos amantes da liberdade na
esfera privada, o que não obsta a que o ser humano não deva limitar as suas
extravagâncias e particularidades para não prejudicar as legítimas aspirações das
outras pessoas. Mas nunca e sob nenhuma perspectiva chegou Mill a limitar a
liberdade privada, excepto atendendo ao princípio do dano.
Em relação à vida pública, também não há nenhuma exortação para que
sacrifiquemos o nosso bem-estar (ou a nossa liberdade) em benefício do bem-estar
alheio ou do bem-estar público. Mill apenas deseja que consideremos o bem-estar de
todos, incluindo o nosso, de acordo com o princípio da imparcialidade.
É tal o desconhecimento de Mill neste sentido que poucos compreenderam
que Mill não desejava o “sacrifício” da felicidade de alguns em benefício da
felicidade do maior número, mas a participação de uns na felicidade de outros, isto
é, o gozo solidário e conjunto.

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
A ética de Mill tem sido classificada como over-ambitious (excessivamente
ambiciosa e exigente) por parte de James Griffin, quando o melhor seria rotulá-la de
“excessivamente optimista”. Praticamente todos os avanços da humanidade,
especialmente nas relações humanas, têm ocorrido graças àqueles que acreditaram
em coisas que eram aparentemente incríveis: a libertação dos escravos, o nivelar das
classes ou o sufrágio feminino pelo qual Mill lutou tão denodadamente, tanto nos
seus textos como no Parlamento.
É, aliás, possível dizer a James Griffin e aos restantes realistas psicológicos
aquilo que Mill afirmou relativamente a Bentham no ensaio intitulado com o seu
nome: “We must aim at too much... to be sure of doing enough”.

Esperamos que ao longo destas páginas tenham sido apresentadas facetas de


Bentham, Harriet Taylor Mill e ainda de Mill, que possam contribuir para uma
reabilitação do utilitarismo no século XXI, bem como para a compreensão dos
autênticos propósitos dos seus promotores, além de uma réplica adequada às severas
e quase sempre desacertadas críticas dirigidas ao utilitarismo no século XX.

Antes de chegarmos à conclusão, será talvez necessário fazer uma paragem


na crítica de Moore, de 1903, que embora tendo perdido vigor ao longo dos anos,
continua a ser pertinente, ainda que não seja irrefutável.

Torna-se forçoso reconhecer, em primeiro lugar, que Mill não foi


especialmente brilhante ao afirmar em O Utilitarismo que a única prova que pode ser
apresentada para assegurar que algo é desejável é que as pessoas de facto e
verdadeiramente o desejem. Evidentemente, faltou-lhe acrescentar que nem tudo o
que alguém deseja é desejável. Nem sequer, certamente, tudo o que uma maioria
deseja será desejável. A expressão de facto deveria ter fornecido uma pista a Moore
relativamente à não identificação daquilo que é (meramente) desejado e aquilo que
é desejável, mas o desejado (de facto, quer dizer de acordo com o parecer dos juizes
competentes) e o desejável. Aliás, não poderia o desejável ser uma outra coisa,
porquanto nada é digno de ser desejado se não contribuir para o bem-estar psíquico,
corporal, material, etc., de todos os seres humanos.

V) Depois De Mill

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
Quase duzentos anos após o nascimento de Mill, não parece que o panorama
contemporâneo tenha produzido outro escritor utilitarista da sua craveira.
G. E. Moore foi denominado por Smart “utilitarista idealista”, mas contribuiu
muito pouco para a causa do aperfeiçoamento da humanidade.
Hare quis combinar o kantismo com o utilitarismo, e o resultado foi um
utilitarismo preferencial, aparentemente talvez um não desejado regresso a
Bentham, ao considerar a decisão da maioria como a decisão correcta. Na versão de
Hare, por vezes a força do número torna-se brutal, afogando qualquer regresso
possível, uma vez que se, por suposição, a maioria desejar ser tratada de modo
desigualitário, a maioria deverá ser tratada desigualitariamente.
Brandt propôs um prolixo utilitarismo das regras ampliadas (“extended rule-
utilitarism”) em Ethical Theory, onde julgava estar a acrescentar o princípio de
justiça ao utilitarismo, quando na verdade a justiça sempre estivera presente.
Smart aderiu ao utilitarismo dos actos, em vez de o combinar
apropriadamente com o utilitarismo das regras.
Singer debruçou-se sobre a bioética, os direitos dos animais e a pobreza,
demonstrando a secular preocupação utilitarista de se fazer justiça a todos os seres
sensíveis. Sem a craveira intelectual de Harriet ou Mill, tem-lhes sido fiel pelo menos
na delimitação das suas causas.
Rosen e Kelly mostram-nos um Bentham muito mais subtil do que se julgava
que pudesse ser na realidade, e Alan Ryan, Roger Crisp e Berger têm destacado a
improcedência das críticas contemporâneas a Mill, tal como já o fizera o querido e
falecido John Robson.
A International Society for Utilitarian Studies (I.S.U.S.) e a revista que
publica, UTILITAS, bem como os Congressos organizados anualmente, têm difundido
Bentham e Mill (Harriet, porém, ainda não) em todo o mundo. No contexto da
América Latina, existe a revista irmã Τελος, e a Sociedad Iberoamericana de Estudios
Utilitaristas (S.I.E.U.), bem como os nossos congressos latino-americanos. É imensa a
tarefa de esclarecer e desfazer enganos relativos ao utilitarismo. Mas em certo
sentido já está em marcha, e com um certo sucesso. Mais difícil é, ainda que não
impossível, desvendar a riqueza de matizes, especialmente no trabalho de Harriet e
John. Modestamente, estas linhas simplesmente desejam transmitir o espírito de
entusiasmo dos autores de uma doutrina tão atractiva.

Esperanza Guisán

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
Bibliografia
- Bentham, J. (1789), An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, in J.H.
Burns e H.L.A. Hart (eds.), The Collected Works of Jeremy Bentham, The Athlone Press,
London, 1970.
- Berger, F.R. (1984), Happiness, Justice and Freedom – The Moral and Political Philosophy of
J. S. Mill, University of California Press, Berkeley.
- Crimmins, J.E. (1990), Secular Utilitarism, Clarendon Press, Oxford.
- Dinwiddy, J. (1989), Bentham, Oxford University Press, Oxford.
- Donner, W. (1991), The Liberal Self – John Stuart Mill’s Moral and Political Philosophy,
Cornell University Press, Ithaca/New York.
- Hayek, F.A. (1951), John Stuart Mill and Harriet Taylor, Augustus M. Kelly Publishers, New
York.
- Jacobs, J.E. (ed.) (1998), The Complete Works of Harriet Taylor Mill, Indiana University
Press, USA.
- Kelly, P.J. (1990), Utilitarism and Distributive Justice – Jeremy Bentham and the Civil Law,
Oxford University Press, Oxford.
- Mill, J.S. (1838), Bentham, in Collected Works, vol. X, University of Toronto Press, Toronto
(1969).
__________ (1859), On Liberty, in S. Collini (ed.), On Liberty and Other Writings, Cambridge
University Press, Cambridge (1989/1991).
__________ (1861), Utilitarianism, in Collected Works, vol. X, University of Toronto Press,
Toronto (1969).
__________ (1869), The Subjection of Women, in S. Collini (ed.), On Liberty and Other
Writings, Cambridge University Press, Cambridge (1989/1991).
__________ (1873), Autobiography, Penguin Classics, Harmondsworth (1989).
__________ (1874), Three Essais on Religion, in Collected Works, vol. X, University of Toronto
Press, Toronto (1969).
- Ryan, A. (1970), The Philosophy of John Stuart Mill, MacMillan, New York (1998).

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
CONSEQUENCIALISMO

O consequencialismo é a perspectiva normativa segundo a qual as


consequências das nossas opções constituem o único padrão fundamental da ética.
Esta perspectiva corresponde a um conjunto muito abrangente e diversificado de
teorias da obrigação moral, do certo e do errado, e não há um acordo perfeito
quanto às condições que uma teoria tem de satisfazer para ser classificada como
«consequencialista». (O egoísmo ético, por exemplo, nem sempre é considerado uma
versão de consequencialismo.) No entanto, as teorias consequencialistas mais puras
exibem seguramente três características importantes. Em primeiro lugar, aplicam-se
directamente a actos individuais. Em segundo lugar, prescrevem a maximização do
bem, isto é, afirmam que os agentes morais estão sob a obrigação permanente e
ilimitada de dar origem aos melhores estados de coisas ou situações. Em terceiro
lugar, pressupõem uma teoria do valor que resulta numa avaliação dos estados de
coisas em termos estritamente impessoais.
De acordo com a interpretação prevalecente, mas objectável, o utilitarismo
clássico de Jeremy Bentham (1789) e J. S. Mill (1861) (e em certa medida também de
Henry Sidgwick (1907)) exibe estas três características. Pressupondo uma teoria
hedonista do valor, segundo a qual o prazer é o único bem fundamental e a dor o
único mal, os utilitaristas clássicos terão defendido que agir acertadamente é
escolher, entre as opções disponíveis, aquela que resulta no maior total de prazer.
Os utilitaristas distinguem-se dos demais consequencialistas em virtude do
tipo de teoria do valor em que se baseiam. O utilitarismo parte sempre de uma teoria
welfarista do valor, ou seja, sustenta que o bem a promover consiste exclusivamente
no bem-estar dos indivíduos que poderão ser afectados pela nossa conduta.
Obviamente, o utilitarista não tem de advogar uma concepção hedonista do bem-
estar: pode, como R. M. Hare (1981), identificar o bem-estar com a satisfação de
desejos ou preferências, ou, à semelhança de G. E. Moore (1903), conceber o bem-
estar em termos de uma pluralidade irredutível de valores, como a virtude, o
conhecimento, a fruição estética e a amizade. No entanto, o utilitarista supõe
sempre que só as entidades dotadas de estados mentais conscientes possuem bem-
estar no sentido relevante: só essas entidades têm uma vida que pode ser boa ou má
para si próprias. O consequencialista que inclui, por exemplo, a preservação dos
ecossistemas entre os bens fundamentais a promover, rejeita o utilitarismo.
Afirma-se frequentemente que, além de welfarista, a teoria do valor
pressuposta em qualquer versão de utilitarismo tem de ser agregacionista: a
avaliação dos estados de coisas deverá ser indiferente à distribuição do bem,

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
consistindo no simples apuramento do bem total ou médio através da soma dos
custos e benefícios para todos os indivíduos afectados.
De acordo com o consequencialismo objectivo ou actualista, o acto certo ou
obrigatório é sempre aquele que efectivamente maximiza o bem,
independentemente daquilo que o agente previu ou poderia ter previsto. O
consequencialismo subjectivo ou probabilista, pelo contrário, identifica o acto
obrigatório atendendo à perspectiva epistémica do agente: agir correctamente é
seguir o curso de acção que, ponderadas as probabilidades à luz dos dados
disponíveis, se apresenta mais promissor. Imagine-se, por exemplo, que um cirurgião
pode escolher entre (A) uma operação extremamente arriscada mas que, em caso de
sucesso, produzirá uma cura total e (B) uma operação com riscos negligenciáveis que
produzirá seguramente uma cura quase total. Um consequencialista subjectivo dirá
que o acto acertado é realizar a operação B. Mas suponha-se que o cirurgião opta
pela operação A e que, contrariamente ao que seria de esperar, o paciente sobrevive
e fica curado. Um consequencialista objectivo, como Hare, dirá que esse acto foi
acertado.
Este exemplo pode sugerir que na sua versão objectiva o consequencialismo
é demasiado contra-intuitivo para ser levado a sério. Mas importa agora observar que
o consequencialismo costuma ser entendido explicitamente não como uma
perspectiva sobre a forma correcta de tomar decisões morais, mas como um padrão
que visa indicar as propriedades ou factores que tornam uma acção moralmente
certa ou errada. Assim, o consequencialista objectivo pode reconhecer que o
cirurgião realizou o acto acertado, mas acrescentar que esse acto resultou de uma
decisão que não foi razoável ou racional e que, portanto, a sua conduta nada tem de
louvável.
Para afastar a objecção ingénua segundo a qual o consequencialismo implica
um modo de vida insustentavelmente calculista, basta perceber precisamente que
este não consiste num procedimento de decisão, e que, por isso, não implica que os
agentes devam estar sempre embrenhados na ponderação dos custos e benefícios dos
diversos cursos de acção disponíveis em cada momento. No entanto, isto não significa
que o consequencialismo nada nos possa dizer sobre a tomada de decisões — se fosse
esse o caso, o próprio interesse prático desta perspectiva seria muito questionável.
Para tornar isto claro, vale a pena destacar as teorias consequencialistas
que, como a de Hare, distinguem dois níveis diferentes de pensamento moral. Hare
defende que, em virtude das nossas limitações cognitivas, o pensamento moral
humano deve situar-se quase sempre no nível intuitivo: neste nível permanecemos
indiferentes ao padrão consequencialista e limitamo-nos a agir em função das

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
disposições e intuições que se exprimem nas regras morais simples habitualmente
reconhecidas, isto é, limitamo-nos a seguir de perto a «moralidade comum». No
entanto, por vezes as regras morais entram em conflito. Precisamos de resolver
dilemas — e precisamos também de determinar que intuições e disposições devemos
inculcar e cultivar. Para estes efeitos, e só para estes efeitos, devemos ascender ao
nível crítico do pensamento moral. É neste nível que tomamos decisões raciocinando
de forma abertamente consequencialista. Esta distinção entre níveis de pensamento
dá origem à seguinte perspectiva: os agentes morais não devem colocar-se acima da
moralidade comum recorrendo sistematicamente ao padrão consequencialista para
tomar todo o tipo de decisões, mas esse padrão tem uma relevância prática
significativa, pois serve tanto para reformar a moralidade comum através do exame
crítico das práticas que a sustentam como para fornecer orientação onde esta
colapsa em conflitos de deveres.
Existem duas objecções fundamentais ao consequencialismo que apontam o
seu carácter fortemente contra-intuitivo. Segundo a objecção da integridade (veja-se
Scheffler, 1994), o consequencialismo é uma perspectiva demasiado exigente:
implica que devemos dedicar todos os nossos recursos à promoção estritamente
imparcial do bem, de tal maneira que qualquer acto que não maximize o bem terá de
ser considerado errado. Na prática, isto significa que é moralmente errado fazer
coisas como comprar um bilhete de cinema ou praticar desportos náuticos, pois o
dinheiro ou o tempo assim despendidos poderiam ser canalizados para actividades
mais proveitosas de um ponto de vista impessoal. Dada a extrema exigência do
consequencialismo, alegam os críticos, este aliena o agente dos seus projectos e
compromissos pessoais, ameaçando assim a sua integridade enquanto indivíduo
autónomo.
De acordo com a objecção dos direitos, o consequencialismo falha também
pela razão inversa, isto é, por propor um padrão moral demasiado permissivo. O
exemplo mais utilizado para ilustrar este ponto é talvez o do transplante: para salvar
cinco pacientes que estão prestes a morrer devido à falta de órgãos para transplante,
um cirurgião mata outro paciente e usa os seus órgãos para os salvar. Embora este
acto seja intuitivamente abominável, o consequencialismo parece sancioná-lo, pois
não reconhece a existência de quaisquer direitos que imponham limites àquilo que é
permissível fazer em nome do maior bem.
Podemos destacar três estratégias gerais para lidar com estas objecções. A
primeira consiste em mitigar o peso das intuições morais através do recurso à
distinção entre níveis do pensamento moral. Hare desenvolve esta estratégia da
seguinte maneira: se considerarmos apenas situações realistas — as únicas relevantes

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
para o pensamento intuitivo — o consequencialismo não implica, por exemplo, que o
cirurgião deva matar o paciente para aproveitar os seus órgãos; só no nível crítico
encontramos casos hipotéticos suficientemente idealizados para a obtenção de
resultados contra-intuitivos, mas a este nível as intuições não têm a menor força
probatória e, portanto, a ideia de que em certas circunstâncias muito específicas o
cirurgião deveria matar o paciente não milita contra o consequencialismo.
A segunda estratégia consiste em advogar uma versão indirecta de
consequencialismo. Em vez de aplicar directamente o seu padrão normativo a actos,
o consequencialista pode eleger outro tipo de ponto focal — por exemplo, regras,
motivos ou traços de carácter. O consequencialismo das regras, cujo representante
mais influente é talvez R. B. Brandt (1979), é a opção mais frequente. Segundo esta
perspectiva, o estatuto moral de um acto depende da sua conformidade a regras, de
tal maneira que um acto é errado se, e apenas se, estiver em desacordo com as
regras morais correctas. E as regras morais são correctas apenas em virtude de a sua
observância geral promover imparcialmente o bem. O consequencialista das regras
pode condenar o cirurgião e absolver o praticante de desportos náuticos: dirá que o
primeiro transgride uma regra vital para o bem-estar da sociedade, mas que a
conduta do segundo está em conformidade com todas as regras sancionadas pelo
padrão consequencialista.
A terceira estratégia consiste na adopção de uma teoria do bem que evite os
resultados contra-intuitivos. Imagine-se, por exemplo, um «consequencialismo dos
direitos», ou seja, uma perspectiva consequencialista baseada na tese segundo a qual
a melhor situação de um ponto de vista impessoal é aquela em que menos direitos
são violados. Poder-se-ia alegar que o cirurgião — mas não o desportista — procedeu
erradamente: ao matar o paciente violou o direito à vida de uma pessoa, mas não
teria violado qualquer direito à vida caso tivesse deixado morrer os cinco pacientes.
Note-se que qualquer uma destas estratégias para responder às objecções da
integridade e dos direitos requer uma justificação apropriada. Por que razão teremos
de ignorar as intuições quando nos situamos no nível crítico do pensamento moral?
Por que razão deveremos eleger um ponto focal como as regras, em vez de
aplicarmos o padrão consequencialista a actos? Ou por que razão deixar morrer
alguém não deve contar como uma violação de um direito? Mesmo que esteja em
conformidade com as nossas intuições onde isso pareça desejável, uma perspectiva
consequencialista satisfatória não pode ser meramente ad hoc — tem de justificar as
opções teóricas que asseguram tal conformidade.
Hare tentou justificar o consequencialismo a partir da universalizabilidade
dos juízos morais; J. C. Harsanyi (1977) recorreu à teoria bayesiana da decisão para o

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
mesmo efeito; mais recentemente, P. Pettit (1991) argumentou a favor da
perspectiva salientando a sua elevada parcimónia. Apesar de os fundamentos do
consequencialismo serem ainda objecto de grande controvérsia, esta perspectiva
permanece muito influente, até porque as principais perspectivas rivais — o
contratualismo, a ética deontológica e a ética das virtudes — enfrentam problemas
teóricos pouco invejáveis. No domínio da ética prática ou aplicada, as abordagens
consequencialistas, em grande medida devido à influência de Peter Singer,
continuam a florescer.

Pedro Galvão

Deontologia; Utilitarismo; Valor; Virtude.

Bibliografia
- Bentham, J. (1789), An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, Oxford
University Press, Oxford (1996).
- Brandt, R.B. (1979), A Theory of the Good and the Right, Prometheus, Londres.
- Darwall, S. (2003) (org.), Consequentialism, Blackwell, MA.
- Hare, R.M. (1981), Moral Thinking, Clarendon Press, Oxford.
- Harsanyi, J.C. (1977), “Morality and the Theory of Rational Behaviour”, in A. Sen e B.
Williams, Utilitarianism and Beyond, Cambridge University Press, Cambridge, (1982),
pp.39-62.
- Mill. J.S. (1861), Utilitarismo, trad. de Pedro Galvão, Porto Editora, Porto (2004).
- Moore, G.E. (1903), Principia Ethica, Cambridge University Press, Cambridge (1993).
- Parfit, D. (1984), Reasons and Persons, Oxford University Press, Oxford.
- Pettit, P. (1991), “Consequentialism” in P. Singer, A Companion to Ethics, Blackwell,
Oxford, pp.230-240.
- Scheffler, S. (1994), The Rejection of Consequentialism, ed. rev., Oxford University Press,
Oxford.
- Sidgwick, H. (1907), The Methods of Ethics, 7ª ed., Hackett, Indianapolis/Cambridge (1981).
- Singer, P. (1993), Ética Prática, Gradiva, Lisboa (2000).

© DICIONÁRIO DE FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA


Instituto de Filosofia da Linguagem
UTILITARISMO E MORALIDADE
Considerações sobre o indivíduo e o Estado*

Lara Cruz Correa

Entre o moral e o útil consolidado e revela sua persistência histórica, in-


cidindo sobre esquemas avaliativos contemporâne-
É bastante reconhecida a tese de que a catego- os. Especialmente, uma filiação aos pressupostos
ria indivíduo é aquela que confere inteligibilidade à daquilo que se convencionou chamar utilitarismo
experiência ocidental. Seja tomado como núcleo de clássico – tendo em Jeremy Bentham, James Mill e
nosso sistema valorativo desde o Renascimento, seja John Stuart Mill seus principais expoentes – parece
o cristianismo primitivo afirmado como seu ponto condicionar a atual adesão a um particular conjun-
originário, há de se admitir, entretanto, o caráter to de suposições: a concepção de unidades isoladas,
específico que vem a adquirir o individualismo na dotadas de interesses próprios, legitimamente di-
era moderna, quando de fato o indivíduo se cons- vergentes entre si, aparece arraigada em nossa ideia
titui em sujeito da reflexão ética e política. O teor do que venha a compor um corpo social.
peculiar do individualismo moderno, identificável A presente investigação pretende identificar o
sobretudo no pensamento iluminista, parece ter-se que significa o estabelecimento da utilidade como
centro gravitacional da reflexão desenvolvida por
* Agradeço a Cesar Guimarães (Iesp-Uerj), Bernardo aqueles autores, tanto do ponto de vista das ba-
Ferreira (Uerj) e Álvaro de Vita (USP), que contribuí-
ram com comentários e sugestões a versões prelimina- ses filosóficas que lhe dão sustentação, quanto da
res deste trabalho. Agradeço também ao CNPq pelo perspectiva de seus desdobramentos como prin-
apoio financeiro. cípio organizador das relações sociais e políticas.
Artigo recebido em 24/10/2010 Desenvolvemos a tese de que o pensamento utili-
Aprovado em 28/07/2011 tário possui ao menos dois traços distintivos que
RBCS Vol. 27 n° 79 junho/2012

12027_RBCS79_AF3b.indd 173 7/2/12 4:36 PM


174 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79

lhe conferem especificidade quando considerados ço distintivo do imaginário ocidental estaria conti-
no cenário do pensamento político moderno: de do no mito do Pecado Original e da Queda: do ato
um lado, a preocupação prática, isto é, a elaboração adâmico de insubordinação a Deus – e de seu cas-
teórica centrada no objetivo de encontrar expres- tigo – teria sido derivada a noção de humanidade
são institucional concreta; de outro, o desenvolvi- intrinsecamente falha, corruptível, corporalmente
mento de uma doutrina filosófica que, ao colocar a predisposta ao mal e para sempre amaldiçoada pela
dimensão do cálculo e da instrumentalidade como sensação da falta, pelo desejo nunca satisfeito.
seu ponto referencial, apresenta-se como eminente- Em sua análise, Sahlins identifica a permanên-
mente neutra do ponto de vista valorativo. Nosso cia desse personagem peculiar desde Santo Agos-
esforço dirige-se à desconstrução de tal ilusão de tinho até teóricos contemporâneos, passando por
neutralidade subjacente ao pensamento utilitário, Thomas Hobbes, os pensadores iluministas e os
buscando evidenciar que, de fato, o que se observa utilitaristas ingleses, entre outros. A despeito de
na consagração do útil é a estreita vinculação entre divergências essenciais entre suas formulações, uni-
concepções cognitivas, morais e políticas, de modo ria tais autores a adesão ao pressuposto básico de
que considerações quanto à natureza humana são que uma disposição passional insaciável e corrupta
traduzidas em um conjunto de valores específico é componente intrínseco à natureza humana. No
e sustentam prescrições institucionais, modelos de entanto, é um ponto específico da elaboração de
sociabilidade e ideais de personalidade bastante pe- Sahlins que se revela importante para nossa discus-
culiares. Quando em evidência, a carga normativa são: a observação de que, não obstante sua persis-
subjacente aos componentes – em tese meramente tência ao longo da história do pensamento ociden-
descritivos – do pensamento utilitário permite uma tal, tal conceito de homem tenha sido reavaliado
reflexão mais acurada acerca de elementos que apa- com o advento da sociedade burguesa. A partir da
recem ao pensamento contemporâneo como apro- noção de que aquele material bruto e imperfeito
blemáticos, naturalizados. Desvelada sua aparente poderia ser racionalmente modelado, o sinal negati-
amoralidade, podemos perceber a incidência de vo atribuído a tal natureza humana pôde ser substi-
traços utilitaristas em alguns pontos que norteiam tuído por um valor positivo:
nossas práticas e instituições mais fundamentais:
desde a afirmação da igualdade como um de nossos Na época de Adam Smith, a miséria humana
valores cardeais até a sanção a um modelo confliti- havia-se transformado na ciência positiva de
vo de organização política. como aproveitarmos o máximo possível nos-
sas eternas insuficiências, e tirarmos a máxima
satisfação possível de meios que estão sempre
Individualismo utilitário aquém de nossas necessidades. Tratava-se da
mesma condição humana miserável contem-
A busca pelos componentes normativos da te- plada na cosmologia cristã, só que aburguesa-
oria utilitária depende de um recuo às fontes de seu da – uma elevação do livre arbítrio à escolha
modelo antropológico próprio. Os princípios de racional, que proporcionou uma visão mais
natureza humana tais quais afirmados por Jeremy animadora das oportunidades trazidas pelo so-
Bentham e seus seguidores são componentes essen- frimento humano. A gênese da economia foi a
ciais de suas teses, ainda que não sejam inteiramen- economia do Gênesis (Idem, p. 565).
te originais na tradição da filosofia política. Mar-
shall Sahlins identifica no pensamento utilitário No pensamento utilitário, a definição da mo-
desdobramentos de dogmas judaico-cristãos acerca ralidade dependerá precisamente da articulação en-
da imperfeição humana, marcados fundamental- tre sensibilidade e racionalidade. A associação mais
mente pela concepção do homem como “escravo de imediata é com o modelo hobbesiano, no qual dor
suas necessidades”. Sahlins (2004) toma como base e prazer são tomados como determinantes da cog-
o argumento de Paul Ricoeur, segundo o qual o tra- nição. A formulação de Bentham estabelece que:

12027_RBCS79_AF3b.indd 174 7/2/12 4:36 PM


UTILITARISMO E MORALIDADE 175

A natureza colocou a humanidade sob o gover- de iluminista, o utilitarismo trata de desvendar a


no de dois senhores soberanos, dor e prazer. So- unicidade que se esconde por detrás da aparente
mente a eles cabe indicar o que devemos fazer, multiplicidade, isto é, busca revelar a regra geral
assim como determinar o que faremos. Ao seu que se insinua na heterogeneidade das manifes-
trono estão atados, de um lado, o critério do tações psicológicas, e a encontra precisamente
certo e errado e, de outro, a cadeia de causas e no movimento de busca do prazer e afastamento
efeitos (Bentham, 1948, p. 1). da dor, erigido em máxima de natureza humana.
As consequências desses pressupostos nada têm
O pressuposto é reafirmado, em moldes simila- de desprezíveis; de fato, as conclusões acerca do
res, por James Mill: homem como ente psíquico são transportadas
ao homem como ser social. Coloca-se a questão
As posições que já estabelecemos no que tan- fundamental: de que maneira a lógica utilitária
ge à natureza humana, e que assumimos como será capaz de articular o individualismo ético de-
fundamentos, são as seguintes: que as ações rivado de suas concepções ontológicas e epistemo-
dos homens são governadas por suas vontades, lógicas a um modelo de sociabilidade.
e suas vontades por seus desejos; que seus de- No longo percurso indicado por Sahlins, ao
sejos são direcionados ao prazer e ao alívio da qual nos referíamos, as necessidades corpóreas te-
dor como fins, e à riqueza e ao poder como os riam transitado do status de “mal original e fonte
principais meios (Mill, 1978, p. 69). de vasta tristeza” – como em Santo Agostinho –
a simplesmente “naturais” – tal qual em Hobbes
Marcando um diferencial em relação à tradi- – até finalmente chegarem a ser formuladas como
ção filosófica da Antiguidade clássica, que se in- “fonte suprema da vida social”, em um progressi-
terrogava acerca da essência dos objetivos, vemos vo movimento de “sublimação do mal” (Sahlins,
que o utilitarismo, seguindo uma tendência de 2004, p. 567). Insere-se neste contexto de afirma-
pensamento estabelecida na virada cartesiana do ção das necessidades e das imperfeições humanas
século XVII, traz para o primeiro plano o sujei- como liame da sociabilidade o trabalho de Helvé-
to e suas percepções. Inscrito, por sua vez, tam- cio, autor francês que teria sido de decisiva influ-
bém na tradição empirista inglesa, o pensamento ência no pensamento de Bentham. Para Helvécio:
utilitário sustenta que, na medida em que nossas “Por ser o homem sociável, as pessoas concluíram
ideias de bem e mal são originadas tão somente que ele é bom. Mas se iludiram [...], no homem, tal
em sensações subjetivas – corporais –, não podem como em outros animais, a sociabilidade é efeito
ser atribuídos quaisquer valores aos objetos em si, da carência” (apud Sahlins, 2004, p. 567). Tam-
senão ao modo como tais objetos incidem sobre bém nos textos de Helvécio encontra-se a noção,
cada sujeito particular. Assim, o questionamento abraçada pelos empiristas ingleses, de que toda rea-
se volta dos objetos de conhecimento às associa- lidade psíquica não é mais do que uma transforma-
ções mentais realizadas pelo sujeito cognoscente ção da percepção sensível. Transposto para o ter-
(Araújo, 2006, p. 270). A racionalidade deixa de reno ético, esse princípio psicológico implica que
ser tomada como processo objetivo, imanente às não há mais objeto qualquer que seja, em si e por
coisas e à história. Nessa leitura, portanto, a ideia si só, superior ou inferior, e que tampouco se pode
de razão exterior, estruturadora, dá lugar à sua afirmar qualquer orientação eticamente sancionada
concepção como processo subjetivo, encerrando que não seja meramente uma derivação dos impul-
assim a identidade entre razão e indivíduo. sos sensíveis egoístas (Cassirer, 1950).
O que se observa é a aplicação do espírito O acesso à moralidade utilitária e às bases de
analítico característico do século XVIII, cujos êxi- sua noção de sociabilidade exige, portanto, o re-
tos no âmbito das ciências naturais inspiravam sua curso a um elemento específico que permita reali-
ampliação agora ao domínio do homem como ser zar a conciliação entre aquelas dimensões da razão
psíquico (Cassirer, 1950). Afinado à mentalida- e da sensibilidade. No pensamento utilitário, esta

12027_RBCS79_AF3b.indd 175 7/2/12 4:36 PM


176 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79

dependerá fundamentalmente da mobilização da mo em outras palavras, a promover ou se opor


categoria do interesse: diferentemente do ímpeto àquela felicidade. Eu digo de toda e qualquer
pré-reflexivo que caracteriza as paixões, este corres- ação, e portanto não somente de toda ação de
ponde a um direcionamento racional imputado ao um indivíduo privado, mas também de toda
que seria o movimento anárquico daquelas.1 Assim, medida de governo (Bentham. 1948, p. 2).2
o interesse adquirirá papel central para os utilitaris-
tas, ao mesmo tempo, entretanto, que denunciará Do modo como posteriormente formulado
as tensões internas a essa corrente de pensamento. por James Mill, o sentido se mantém rigorosamen-
Como visto, o utilitarismo tem como núcleo de sua te o mesmo: “Para entender o que está incluído na
teorização o indivíduo idiossincrático, o que impli- felicidade do maior número, precisamos entender
ca duas consequências fundamentais: de um lado, o que está incluído na felicidade dos indivíduos
a existência de interesses naturalmente divergentes dos quais ele é composto” (Mill, 1978, p. 55).
entre si; de outro, a dissolução do social. Desdobra- Percebe-se, este é o correlato necessário da noção
mentos de seus pressupostos teóricos, tais noções tipicamente utilitária de corpo social desprovido
serão essenciais para a compreensão de suas conclu- de densidade ontológica própria. Referindo-se
sões acerca da constituição da vida social e política. ao significado da ideia de comunidade, a con-
Uma vez tomado o indivíduo como unidade clusão de Bentham não comporta ambiguidades:
de análise, a sociedade perde sua materialidade e “Quando tem um significado, é o seguinte: a co-
é convertida em entidade fictícia: “A comunidade munidade é um corpo fictício, composto pelas
não constitui um corpo com uma alma que pen- pessoas individuais que são consideradas como
sa e sente. Quem pensa e sente são unicamente constituindo seus membros. Qual é, então, o in-
os indivíduos [...]. O indivíduo é ele próprio um teresse da comunidade? A soma dos interesses dos
todo e é a soma desses pequenos todos que vai for- diversos membros que a compõem” (Bentham,
mar a comunidade” (Araújo, 2006, pp. 273-274). 1948, p. 3). A utilidade impõe-se como parâme-
Assim, não há um “corpo social” que possa ser tro, vimos, não somente no que tange à ação in-
apreendido como unidade inteligível, dotada de dividual, mas também à ação governamental. Não
características próprias, senão como mera agrega- é outra a atribuição de primeira ordem do Esta-
ção de suas partes componentes. A isso se associa do, portanto, senão a garantia de se chegar a um
a ideia de indivíduos atomizados, dotados de fins “ponto ótimo” relativo ao somatório das utilidades
independentes, o que coloca o pensamento utili- individuais, das quais a felicidade – saldo da sub-
tário perante um impasse quanto à produção de tração das dores aos prazeres – constitui a métrica.
uma retórica de bem-comum. Diante da plurali- Retornemos, uma vez mais, a Sahlins. Outro
dade de interesses individuais – legítima, uma vez aspecto peculiar à cosmologia ocidental seria o que
que derivada de seres sensíveis idiossincráticos –, chama “antropologia da Providência”. Esta se refere
a instituição de um parâmetro que oriente as con- à prevalência, já a partir do século XVIII, de um
dutas no campo político só pode ser obtida por modo de pensamento que imputa à realidade uma
um critério aritmético. Tal critério – a ser chama- harmonia intrínseca, a realizar-se misteriosa e me-
do utilidade – é, pois, quantitativo, sumarizado na canicamente, para além das intencionalidades indi-
fórmula da “maior felicidade do maior número”. viduais. A noção de um sistema “invisível, benéfico
Afirma Bentham acerca da utilidade como orien- e englobante” estaria subjacente a concepções con-
tação e diretriz de julgamento das ações: sagradas no pensamento econômico clássico, tais
como a tese dos “vícios privados, benefícios públi-
O princípio da utilidade significa aquele prin- cos”, elaborada por Mandeville, e a “mão invisível”
cípio que aprova ou desaprova cada ação de de Adam Smith (Sahlins, 2004, pp. 589-590). Em
acordo com a tendência que apresenta a au- suas diversas formulações, o que prevalece é a ideia
mentar ou a diminuir a felicidade daqueles de uma organização providencial do mal inerente
cujo interesse está em jogo; ou, o que é o mes- aos sujeitos, que permite, a despeito das limitações

12027_RBCS79_AF3b.indd 176 7/2/12 4:36 PM


UTILITARISMO E MORALIDADE 177

individuais, a produção do bem coletivo. O mode- (descrição do homem tal como é ) e a um comando
lo antropológico utilitarista, mostrou-nos Sahlins, normativo (proposição acerca do que deve ser). Tais
é afim ao homo economicus, sujeito do princípio preceitos não foram, entretanto, poupados de críti-
da providência em sua versão burguesa, que atua ca, já à época de sua apresentação ao público.
mediante o cálculo custos-benefícios (o equivalente São especialmente incisivas as críticas dirigidas
econômico do binômio dores-prazeres). No entan- por Macaulay a James Mill, concentradas em três
to, veremos, um elemento específico ao utilitarismo pontos essenciais. Primeiramente, questiona-se a
ganha proeminência: enquanto na esfera econômi- validade de sua orientação metodológica, baseada
ca a noção de uma fusão ou natural harmonização em deduzir, a priori, a ciência da política dos prin-
de interesses é aceita, no âmbito político o pensa- cípios de natureza humana. O procedimento seria
mento utilitário não prescinde de um agente nor- ilegítimo, na visão de Macaulay, em razão da im-
malizador externo. A Providência é então substituí- possibilidade de se conferir um significado rígido
da pela Razão, e por seu aplicador, o Estado. e uma medida precisa a seus conceitos-base “dor”,
Assim, o traço que podemos apontar como “prazer” e “felicidade”, aos moldes dos conceitos
próprio ao pensamento utilitário não reside, de matemáticos. Em segundo lugar, Macaulay aponta
fato, em suas premissas fundamentais, mas em seu como falsa a petição de que a complexidade da cons-
caráter eminentemente prático, voltado à concep- tituição individual pudesse ser sumarizada na forma
ção de um desenho institucional-legal que garanta do axioma simplista e nada sofisticado do egoísmo
a produção da utilidade pública (Araújo, 2006, p. – defende, por sua vez, a inviabilidade de qualquer
268).3 É pela definição de um arcabouço político- generalização empírica acerca da conduta humana
-institucional peculiar que se poderia inscrever (Lively e Rees, 1978, pp. 9-15).
nos sujeitos as diretrizes capazes de fazer convergir Por fim, a crítica de Macaulay volta-se à expo-
os interesses individuais. Para a questão de como sição do paradoxo inerente ao argumento utilitário
pensar, para além da ética autorreferida sugerida de que se possa esperar que os indivíduos ajam de
por sua visão psicológica, bases para a sustenta- acordo com a própria natureza, perseguindo seus
ção de uma sociabilidade, os utilitaristas oferecem interesses privados, e que, ao mesmo tempo, atuem
uma resposta que não difere fundamentalmente em prol da utilidade geral, ou pública (Idem, p.
da hobbesiana. O utilitarismo prescreve também 43). É precisamente a resposta a como escapar de
um Leviatã, ainda que de características próprias: tal pluralismo ético, à autodeterminação calcada no
o Estado não é tanto um soberano que subme- interesse próprio e em nada mais, que virá a consti-
te os corpos, mas antes um artífice que molda as tuir, de fato, o cerne da ciência utilitária da política.
consciências. A forma como vergar os indivíduos E para a compreensão desse ponto crucial, a prin-
é tanto mais sutil como mais incisiva. cipal chave encontra-se no tema da identificação de
interesses. Supondo a natureza antissocial do ho-
mem, de um lado, mas forçosamente admitindo,
Estado utilitário: interesse e artifício de outro, que ainda assim a espécie humana tem
resistido ao longo do tempo, Halévy afirma que
É bastante aceita a tese de que os utilitaristas há de se admitir que algum nível de harmonização
teriam pretendido elaborar uma “ciência moral” tenha sido obtido. A conclusão é que tal harmo-
equivalente, em sua precisão, à mecânica newtonia- nização possa ter-se dado espontaneamente ou que
na, implicando uma espécie de “naturalismo ético” tenha sido resultado de algum ardil. Uma noção
(Lively e Rees, 1978, p. 26). Tal como sustentado de uma identidade natural de interesses teria sido
por Elie Halévy, em seu abrangente trabalho sobre aquela, propõe o autor, que serviu de inspiração a
a tradição utilitária, “a moralidade do Utilitarismo teorizações como as de Mandeville e Adam Smith.
é sua psicologia econômica colocada no imperati- A lógica utilitária, por seu turno, ainda que por ve-
vo” (1972, p. 478), isto é, o princípio da utilidade zes admitisse tal conciliação espontânea em matéria
equivaleria, ao mesmo tempo, a uma lei científica econômica, a renegava em âmbito político. Seria o

12027_RBCS79_AF3b.indd 177 7/2/12 4:36 PM


178 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79

princípio de uma identificação artificial de interes- gislação penal. Com Bentham, a arte da política
ses aquele que se aplicaria, portanto, ao pensamen- consiste precisamente em atuar sobre os interesses
to utilitário, orientando seus projetos de reforma individuais, criando mecanismos que os façam
institucional e oferecendo solução ao dilema da convergir para o bem público. A base cognitiva do
irreversibilidade do conflito de interesses (Halévy, homem é seu ponto de partida: cabe ao legislador
1972, pp. 15-17). aplicar um regulado esquema de sanções e recom-
Na obra de J. Mill, tal temática da harmoni- pensas, isto é, uma calculada distribuição de dores
zação de interesses divergentes fica em evidência ou prazeres, de modo a dirigir o comportamento
na defesa da democracia e do sufrágio “universal” individual segundo o fim de promoção da utilidade
(devidamente qualificado, na verdade, de modo pública: “Foi demonstrada que a felicidade do in-
que melhor seria dizermos “sufrágio ampliado”) divíduo [...], que é seu prazer e sua segurança, [...]
realizada em seu Essay on government. Prevalecen- o único critério em conformidade com o qual cada
do a noção de natureza humana presente em suas indivíduo, até onde depende do legislador, [pode]
bases filosóficas, Mill propõe um ajustamento ar- ser obrigado a moldar seu comportamento” (Ben-
tificial entre os interesses de governantes e gover- tham, 1948, p. 24). Assim, Bentham oferece um
nados como a única forma de prevenir a explora- exaustivo e sistemático levantamento e classificação
ção destes por aqueles. Seria somente através de dos diferentes tipos de ofensas criminais e das ade-
um formato institucional preciso – a democracia quadas punições e estabelece a figura do legislador
representativa, com extensão do sufrágio e con- como ente fundamental.
trole estabelecido por revogabilidade dos manda- O Estado que o utilitarismo prescreve é, por-
tos – que o imperativo da utilidade poderia ser tanto, um “Estado artífice” em sentido duplo: em
obtido. Diretamente derivado da constituição matéria político-institucional tanto quanto – e
mental autocentrada que atribui aos indivíduos, essencialmente – em matéria moral. Tal qual o
o argumento de Mill se apoia, para a construção conhecimento científico acerca do mundo natural
de bens coletivos, na interferência de mecanismos permitiu seu domínio, também o indivíduo, en-
externos: é a legislação que atua criando obstáculos quanto material bruto, é passível de manipulação
à ação egoísta e direcionando o comportamento uma vez que se obtenha o conhecimento acerca de
individual de acordo com a utilidade pública. suas propriedades e propensões. É nesse sentido
que moral e legislação são “uma e a mesma coisa”
A grande descoberta dos tempos modernos será na lógica utilitária, partem dos mesmos princípios
talvez o sistema de representação, a solução de e atuam de acordo com os mesmos métodos, en-
todas as dificuldades, tanto especulativas como quanto “ciências objetivas do comportamento”
práticas. Porque não há qualquer indivíduo, (Halévy, 1972, p. 27). A este indivíduo, artificial-
ou combinação de indivíduos, exceto a própria mente conformado, corresponde um modelo de
comunidade, que não teria interesse no mau sociedade que é também essencialmente um ar-
governo se tivesse poder para tal; e porque a ranjo artificial, uma deliberada justaposição – de
comunidade por si mesma é incapaz de exercer forma tão harmônica quanto possível – de partes
tais poderes, e deve confiá-los a um indivíduo independentes, autônomas.
ou combinação de indivíduos, a conclusão é Na definição das relações entre o Estado e os
óbvia: a própria comunidade deve controlar indivíduos oferecida pelos utilitaristas pode-se en-
esses indivíduos, pois do contrário eles segui- tão perceber o modo como elementos descritivos da
rão seus interesses e produzirão mau governo teoria adquirem sua força normativa. A pedagogia
(Mill, 1978, p. 73). utilitária, em sentido amplo, é fundamentalmente
“didática e autoritária” (Lively e Rees, 1978, p. 47),
As mais contundentes afirmações são, entre- e o é como consequência necessária de suas supo-
tanto, aquelas formuladas pelo próprio Bentham, sições quanto à natureza humana. E se tal traço é
especialmente ao debruçar-se sobre o tema da le- nítido em suas considerações acerca da legislação

12027_RBCS79_AF3b.indd 178 7/2/12 4:36 PM


UTILITARISMO E MORALIDADE 179

penal, o mesmo se pode afirmar acerca da legislação de um componente igualitário – cabe questionar,
civil. De forma consistente em distintos aspectos portanto, a relação que o utilitarismo estabelece
do aparato teórico utilitarista, as concepções po- entre segurança e igualdade como atribuições da
líticas ligam-se, pois, àquelas primeiras considera- legislação civil. Halévy esclarece: não é a igualdade
ções acerca da constituição psíquica do indivíduo. política o tema que orienta as reflexões de Ben-
É precisamente o que encontramos nas conclusões tham, mas precisamente a igualdade em termos
de James Mill quanto ao papel do governo na con- de propriedade. O argumento, nesse sentido, é
dição de garantidor da proteção de cada indivíduo conservador em sua essência: o princípio anterior-
contra a usurpação de seus bens: quando Mill afir- mente mencionado da previsibilidade, da expec-
ma literalmente que “é em nome da propriedade tativa da posse, estabelece que a lei deve manter
que o governo existe” (1978, p. 57, nota 3), é a a distribuição da propriedade tal qual está dada,
natureza egoísta e instrumentalizadora pressuposta e não redistribuí-la (Idem, pp.46-48). As funções
em seu modelo antropológico que determina sua de governo são, portanto, hierarquicamente dis-
concepção peculiar da política. postas, de modo que a segurança aparece, se com-
Curiosamente, o tema do direito à proprieda- parada à igualdade, em posição privilegiada. O
de aparece no pensamento utilitário associado à que dizer, por sua vez, da tensão primordial que se
noção de segurança, mas em dois sentidos distin- impõe ao pensamento moderno, aquela que dico-
tos, ainda que interligados. De um lado, trata-se tomiza os termos igualdade e liberdade? Há razão
da propriedade como meio que garante a subsis- em se supor, como consequência lógica do pre-
tência e a integridade individual e coletiva; de ou- viamente discutido, que a resposta utilitária tenha
tro, trata-se da “segurança cognitiva” que a pro- um viés liberal. De fato, a máxima utilitária que
teção da posse confere aos sujeitos. O primeiro estabelece como preferível o cenário de uma maior
aspecto tem como base as noções de insuficiência soma total de felicidade, ainda que desigualmen-
de recursos disponíveis na natureza, o que deter- te distribuída pelo corpo social, a uma situação
mina a necessidade do trabalho, e da disposição de menor felicidade total, mas homogeneamente
egoísta do homem, que levaria os indivíduos à repartida, dá suporte à interpretação que coloca
tentativa de usurpação dos frutos do trabalho a igualdade em posição secundária. Mas é impor-
alheio (Idem, p. 56). O segundo aspecto consis- tante notar que a liberdade de que aqui falam os
te em uma derivação dos pressupostos utilitários utilitaristas não só é, em sentido restrito, um meio
acerca da constituição mental dos indivíduos e para a obtenção e a maximização da felicidade, e
da operação das associações de ideias: o indiví- não um fim em si, como também permanece for-
duo depende da expectativa de que aquilo que temente vinculada ao tema da propriedade.
ele julga possuir no presente permaneça sob sua O mesmo é válido para a democracia. Afirmar
posse em um momento futuro, para assim pau- o regime democrático como moralmente superior,
tar racionalmente seu curso de ação. A frustração por suas qualidades intrínsecas, seria estranho à
dessa expectativa redunda em perda de utilidade, lógica utilitária. É apenas como instrumento ade-
seja porque a instabilidade impede que o sujeito quado à produção de maiores saldos de sua uni-
estabeleça um projeto seguro de obtenção da fe- dade de medida que a democracia pode ser eti-
licidade, seja em virtude do próprio sentimento camente sancionada. O sentido preciso no qual a
de desapontamento que acompanha tal frustra- igualdade constitui um elemento fundamental ao
ção (Halévy, 1972, p. 46). A propriedade é útil, pensamento utilitário parece ser, portanto, aque-
portanto, razão pela qual sua proteção se colo- le sentido estrito de igual capacidade de perseguir
ca como atribuição do governo: está delineado o seus interesses particulares. 4 Refere-se, pois, ao
modelo utilitário do Estado-garantia. igual aparato cognitivo dos indivíduos e, prin-
Contudo, a questão não parece esgotar-se no cipalmente, à igual capacidade de se tornarem,
tema da segurança. O teor democratizante das através de um processo adequado de racionaliza-
proposições utilitaristas aponta a presença, ainda, ção de suas propensões naturais, aptos ao julga-

12027_RBCS79_AF3b.indd 179 7/2/12 4:36 PM


180 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79

mento e à aplicação dos meios mais efetivos para a sugestão de que a virtude pode – e deve – ser ex-
obtenção de seus fins: isto significa dizer, todos traída do cálculo é ponto fundamental. Subjacente
são iguais enquanto maximizadores em potencial. aos argumentos de seus primeiros sistematizado-
Não é difícil vislumbrar as consequências institu- res Bentham e James Mill, é, no entanto, na obra
cionais de tais pressupostos: de um lado, a própria de seu herdeiro intelectual que tal noção se torna
noção de representação adquire o significado de mais nítida. É também com John Stuart Mill que
igual importância conferida a cada um dos inte- sutis mas fundamentais metamorfoses se operam
resses individuais, independentemente considera- no interior do utilitarismo, dando origem àquele
dos (“uma cabeça, um voto”); de outro, o Estado, que será o formato mais influente dessa tradição
não obstante sua atuação pedagógica, modelado- sobre o pensamento liberal moderno.
ra, apresenta-se como arena valorativamente neu- Em primeiro lugar, a fórmula dor/prazer to-
tra, que tão somente recepciona no espaço público mada por Bentham e Mill como configuradora dos
o embate entre estes centros de vontades competi- interesses é sofisticada por Stuart Mill, passando
tivos, autônomos uns em relação aos outros. a considerar a influência de sentimentos tais como
Assim, o que observamos no pensamento uti- senso de dever, simpatia, desejo de boa reputação
litário é um projeto de engenharia constitucional e mesmo “filantropia” (Lively e Rees, 1978, p. 31).
no qual os princípios parecem passar por um pro- Assim, “sentimentos de sociabilidade, o desejo de
cesso de retroalimentação: uma concepção peculiar estar em união com as demais criaturas” (Stuart
acerca da natureza humana serve de fundamento à Mill, 1971, p. 34) são tomados como princípios
definição das instituições do Estado; estas, por sua de nossa natureza, tão determinantes quanto nos-
vez, reiteram a antropologia de seus pressupostos. sos impulsos antissociais. Essa descontinuidade
No entanto, o Estado é cognitivamente privilegia- em relação ao radicalismo de seus antecessores é
do, sua Razão supera os juízos parciais dos indiví- o que permite a Stuart Mill elaborar a ideia de
duos isolados e a ele cabe, portanto, incutir-lhes que a pluralidade de interesses individuais deixa
parâmetros para seus comportamentos, de modo a de constituir um problema à medida que os sujei-
torná-los socialmente ajustados – melhor diríamos, tos são esclarecidos quanto ao fato de seus interes-
voltados à utilidade pública. ses particulares estarem, na verdade, entrelaçados
e vinculados aos interesses da humanidade como
um todo.
Moral utilitária: ideais de perfeição
[…] se, como eu mesmo acredito, os sentimen-
Racionalismo e individualismo, Halévy (1972, tos morais não são inatos, isso não quer dizer
p. 508) sugere, combinam-se no utilitarismo clás- que não sejam naturais. [...] a faculdade moral,
sico, conferindo-lhe sua feição peculiar. Como se não parte de nossa natureza, é um desenvol-
método analítico-descritivo e doutrina prática, ao vimento natural dela; é capaz, […] em certo
mesmo tempo princípio explicativo da constitui- grau, de brotar espontaneamente, e é suscetível
ção do homem e das relações sociais e ideal norma- de ser cultivada até atingir graus mais elevados
tivo que orienta a atividade legislativa, encontra-se de desenvolvimento. Quando isso ocorre, as
na consagração do indivíduo movido pelo interes- pessoas tornam-se incapazes de conceber como
se o elemento que perpassa as obras de seus autores possível um estado de total alheamento aos
e que se erige em fundamento tanto para sua teoria interesses dos outros [...]. O indivíduo torna-
da moral como para sua teoria da política. Morals -se, como que instintivamente, consciente de
e Legislation não se distinguem entre si mais do si como aquele que certamente se importa com
que analiticamente, já que ambas são distintos des- os outros. O bem alheio passa a ser algo natu-
dobramentos de uma mesma ciência da cognição. ral e essencial a ser atendido, como qualquer
De fato, a compreensão de que o que se insinua outra das condições físicas de nossa existência
por detrás da aparente amoralidade utilitária seja (Stuart Mill, 1971, pp. 34-35).

12027_RBCS79_AF3b.indd 180 7/2/12 4:36 PM


UTILITARISMO E MORALIDADE 181

Assim, Stuart Mill desenvolve seu argumento amplo e agudo, a ditadura da opinião, aquela que
em direção a um determinado “senso de unidade”, lhe parece a tendência crescente da sociedade mo-
que poderia ser cultivado não só como sentimento, derna, à qual importa resistir. Stuart Mill procede,
mas também como parâmetro para a ação indivi- assim, à construção de um argumento de desqua-
dual, e do qual poderiam ser derivados princípios lificação da maioria através de uma perspectiva
de força persuasiva e eficácia equivalentes a uma profundamente relativista e falibilista quanto às
moral religiosa (Idem, p. 35). O ideal sugerido possibilidades de acesso à realidade objetiva por
consiste, portanto, em um indivíduo capaz de agir parte dos sujeitos particulares. Assinala, ainda, que
orientado não por seus interesses rasos, imediatos, a única oportunidade de superação dessa deficiên-
mas por certo “interesse bem compreendido”, ir- cia cognitiva reside, precisamente, na tolerância à
revogavelmente vinculado ao interesse coletivo. Se, pluralidade de pontos de vista: somente através de
nessa nova formulação, as inclinações dissociativas um processo de livre debate, de controvérsia, a ver-
parecem ter sido amortecidas, a razão individual dade poderia ser retoricamente produzida.
mantém seu papel fundamental: é a noção de indi-
víduos dotados de capacidade racional que permite […] o mal específico em silenciar a expressão
afirmar que a orientação de tais sujeitos depende de uma opinião é que isso significa roubar o
unicamente da demonstração lógica de uma pro- gênero humano - tanto a posteridade como a
posição – o fato de a felicidade individual coincidir, geração atual, aqueles que dissentem da opi-
ainda que a longo prazo, com a felicidade da comu- nião ainda mais do que os que a afirmam. Se a
nidade (Lively e Rees, 1978, p. 48). opinião é correta, foram privados da oportuni-
No entanto, Daniel Brudney (2008), em dade de trocar o erro pela verdade; se errônea,
trabalho referente ao alcance das formulações de foi perdido um bem de valor quase equivalen-
Stuart Mill sobre a esfera da personalidade, sugere te, a percepção mais clara e a impressão mais
que este ideal de harmonização de interesses in- viva da verdade, produzida pela sua colisão
dividuais (ao qual se refere como strong identifi- com o erro (Stuart Mill, 1956, p. 21).
cation ideal) só poderia ser compreendido como
complementação de outro, chamado pelo autor Se tal processo, por um lado, exige a garan-
de self-development ideal, tais conceitos designan- tia das liberdades de pensamento e expressão, por
do diferentes “ideais de perfeição” presentes em outro, pressupõe indivíduos conscientemente de-
Stuart Mill. Brudney explora a tensão existente dicados a um projeto de tornarem-se artífices de si
entre esses dois imperativos distintos, notando próprios: indivíduos que, apoiados pela razão de que
que tal noção de uma “religião da humanidade”, são dotados, podem se mover em direção a um ideal
desenvolvida em Utilitarism – na medida em que de autoaperfeiçoamento. Tal ideal não é completa-
poderia se tornar uma ameaça ao pleno exercício mente estranho a Bentham e James Mill, mas sua
da autonomia, agindo de maneira coercitiva sobre elaboração por Stuart Mill é original. Em Bentham,
os sujeitos –, estaria em tensão com aquele ideal vimos, o destaque havia recaído no caráter modela-
de auto-aperfeiçoamento, presente em On Liberty. dor da legislação. Em James Mill, posteriormente, a
O estabelecimento do limite da autoridade a ênfase é colocada sobre o papel da educação como
ser legitimamente exercida pela sociedade sobre processo destinado a capacitar os homens à admi-
os indivíduos é considerado por Stuart Mill uma nistração racional de suas inclinações. Seu projeto
questão tão fundamental quanto a proteção con- de reforma educacional, expresso em Essay on edu-
tra um governo despótico. A solução democrático- cation, centrava-se na proposta de desenvolver nos
-majoritária elaborada por James Mill lhe parece indivíduos os atributos da benevolência, da inteligên-
conter uma ameaça tirânica intrínseca, tirania esta cia e da temperança. Por benevolência entendia-se a
exercida coletivamente pela sociedade sobre o in- consciência da relação de mútua dependência entre
divíduo isolado. Não obstante, a opressão política os indivíduos, mesmo na perseguição de fins parti-
seria uma manifestação de um despotismo mais culares; a inteligência, por sua vez, seria o fator que

12027_RBCS79_AF3b.indd 181 7/2/12 4:36 PM


182 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79

qualificaria os sujeitos a relacionar corretamente as Não é esgotando na uniformidade tudo o que


cadeias causais, de forma a empregar os meios ade- existe de individual em si, mas cultivando-o e
quados à obtenção de sua felicidade; a temperança, estimulando-o dentro dos limites impostos pe-
por fim, estaria relacionada com a capacidade de los direitos e interesses dos outros, que os seres
controle dos apetites e com a habilidade de contê- humanos se tornam um nobre e belo objeto de
-los caso estivessem em conflito com os interesses do contemplação (Stuart Mill, 1956, p. 76).
sujeito a longo prazo (Lively e Rees, 1978, p. 47).
No entanto, em nenhum dos casos, seja em Não deixa de ser surpreendente que a ideia
Bentham ou em Mill, trata-se de efetivo autoa- romântica de Bildung mostre-se atrativa ao pen-
perfeiçoamento, uma vez que o que se observa é a samento utilitário, tão estreitamente vinculado
prescrição de mecanismos que atuarão exterior- ao racionalismo iluminista. A articulação entre
mente sobre o indivíduo, modificando-o em seu seus pressupostos não poderia se dar, portanto,
interior, mas de modo que ele permanece sujeito sem algum nível de tensão entre princípios por
passivo e não ativo no processo de remodelação de vezes incompatíveis. A Bildung, tal qual presen-
sua personalidade. A especificidade de Stuart Mill te na obra de Humboldt, não se mantém restrita
advém da ampliação e sofisticação do conceito de ao indivíduo, mas volta-se, de fato, à humanidade
utilidade, o qual deixa de definir-se por um critério como um todo. É nesse sentido que a noção de
quantitativo e passa a ser definido qualitativamen- autoaperfeiçoamento se aplica ao desenvolvimen-
te: “Considero a utilidade a última instância con- to da espécie humana ao longo da história, em um
cernente a todas as questões éticas; mas deve ser a movimento não exatamente contínuo, mas mais
utilidade considerada em seu sentido mais amplo, especificamente dialético. É evidente que tais con-
fundamentada nos interesses permanentes do ho- cepções são de difícil conciliação com linhas argu-
mem como ser progressivo” (Stuart Mill, 1956, p. mentativas que, a exemplo da tradição utilitária,
14). É o ponto em que se abandona a fórmula da tenham como base uma natureza humana cujos
soma das felicidades individuais tal qual afirmada caracteres são considerados essencialmente fixos,
por seus predecessores, em favor da progressão, imutáveis. Ainda, a noção incorpora elementos
autodirecionada, de cada indivíduo. Não é aci- tais como sensualidade, espontaneidade, sentimen-
dentalmente, portanto, que a figura de Wilhelm talismo, os quais contrastam com o componente
von Humboldt surge em On Liberty:5 a referência tipicamente utilitário do cálculo. Desse modo,
ao autor alemão aponta uma insuspeita “romanti- ainda que Stuart Mill se aproprie de elementos ro-
zação” da utilidade em Stuart Mill, inspirada pela mânticos de uma forma sem precedentes no pen-
noção de Bildung, cujo ideal de autocultivo supõe samento liberal, acreditamos que, pela importân-
o progresso individual como ideal máximo, a ser cia conferida ao elemento da racionalidade, somos
atingido com o desenvolvimento da interioridade. mais precisos se pensarmos seu indivíduo em apro-
Juntamente com a preponderância da subjetividade ximação ao conceito de self pontual tal qual ela-
em relação ao mundo exterior, afirma-se também a borado por Charles Taylor. Taylor refere-se a uma
necessidade de exposição do sujeito a uma plura- determinada noção – já enunciada em Descartes,
lidade de situações e experiências como condição e que será sistematizada e radicalizada no pensa-
para a realização do autoaperfeiçoamento. Assim, mento de Locke – segundo a qual a racionalidade
apoiando-se na assertiva de Humboldt segundo a individual incorpora a dimensão do autodomínio,
qual “o fim do homem [...] é o mais alto e mais
harmonioso desenvolvimento de seus poderes vi- [...] o ideal crescente de um agente humano
sando tornar-se um todo completo e consistente” capaz de remodelar-se por meio da ação me-
(Humboldt, apud Stuart Mill, 1956, p. 69), Stuart tódica e disciplinada, [...], capaz de adotar
Mill conclui, em termos eminentemente românti- uma postura instrumental em relação a suas
cos, equiparando a construção da individualidade à propriedades, desejos, inclinações, tendências,
concepção de uma obra de arte: hábitos de pensamento e sentimento, para que

12027_RBCS79_AF3b.indd 182 7/2/12 4:36 PM


UTILITARISMO E MORALIDADE 183

esses possam ser elaborados, eliminando alguns um ideal democrático mais amplo para um ideal
e fortalecendo outros, até chegar à especifica- estreito de uma “democracia esclarecida” (Lively e
ção desejada (Taylor, 1997, p. 210). Rees, 1978, p. 48). Em James Mill, o middle rank
já seria considerado portador de uma consciência
O componente instrumental dessa raciona- superior, o que servia de justificativa a um modelo
lidade, tal qual enfatizado por Taylor, realiza-se constitucional que garantisse sua preponderância
mediante o que se chama “desprendimento”, a política através da qualificação do sufrágio segun-
objetificação do sujeito para si próprio. Como nas do critérios de sexo, idade e propriedade. Em de-
premissas utilitárias, o self pontual supõe uma racio- corrência de suas qualidades mentais, as quais os
nalidade radical, marcada por um forte voluntaris- fariam mais sábios e virtuosos, os estratos médios
mo do sujeito, por um lado, e pelos imperativos do teriam ascendência sobre as demais classes e, sendo
autocontrole e da autorresponsabilidade, por outro. capazes de identificar seus interesses aos daquelas,
Como no pensamento utilitário, não é suposto, em seriam seus líderes e representantes naturais (Mill,
momento algum, que o componente passional ine- 1978, pp. 93-95). Em Stuart Mill, o ponto é radi-
rente à natureza humana seja plenamente superado, calizado. Sua preocupação é distinguir a falsa de-
mas, antes, que certos elementos sejam racional- mocracia da verdadeira – isto é, a representação da
mente selecionados, transformados e aplicados de maioria da representação de todos:
acordo com um fim específico.
Duas ideias muito diferentes são confundidas
[...] fortes impulsos somente são perigosos sob o nome “democracia”. A ideia pura da
quando não equilibrados de forma apropriada, democracia, de acordo com sua definição, é
isto é, quando algumas inclinações são fortale- o governo de todos por todos, igualmente re-
cidas, enquanto outras, que deveriam com elas presentados. A democracia como geralmente
coexistir, permanecem fracas e inativas. Não é concebida e até hoje colocada em prática é o
porque seus desejos são fortes que os homens governo de todos por uma mera maioria, ex-
agem mal; é porque suas consciências são fracas clusivamente representada. Aquela é sinônimo
(Stuart Mill, 1956, pp. 72-73). de equidade de todos os cidadãos; esta, estra-
nhamente confundida com a primeira, é um
Dessa perspectiva, torna-se inclusive mais com- governo de privilégio, em favor da maioria nu-
preensível o uso que Stuart Mill faz da metáfora da mérica, que é a única que possui voz no Estado
obra de arte. Juntamente com a metáfora orgânica, (Stuart Mill, 1958, pp. 102-103).
a analogia estética é comum aos autores românticos,
ambas enfatizando as relações entre as partes e o É a valorização positiva da multiplicidade de
todo na formação de uma unidade coerente. A me- interesses e o princípio de sua igual dignidade que
táfora estética, entretanto, encerra em si a ideia de suporta a prescrição de um modelo proporcional
uma construção deliberada. Assim, permanece tam- de representação, que salvaguarda as minorias. Por
bém em Stuart Mill a referência à noção de artifício. outro lado, há o fato de ser identificado precisa-
Cara ao utilitarismo, vimos, a ideia demonstra sua mente na minoria o traço de excelência mental
produtividade tanto para explicar a dimensão das que a distingue da mediocridade coletiva das mas-
prescrições político-institucionais como para com- sas. A liberdade, pois, é afirmada como condição
preender a conformação dos sujeitos individuais a para a emergência do gênio, aquele que é mais
um ideal especifico de personalidade. indivíduo do que os outros, isto é, que resiste à
Os desvios de Stuart Mill em relação aos câno- conformidade e que constrói a si mesmo através
nes do utilitarismo são significativos do ponto de do uso calculado de sua razão sobre seus apetites.
vista do indivíduo tanto quanto serão no campo O utilitarismo, portanto, possui seus aristoi: não
político: o deslocamento de um foco na maioria obstante a condição humana básica sugerida em
para um foco nas minorias indica a passagem de seus pressupostos, e o componente igualitário que

12027_RBCS79_AF3b.indd 183 7/2/12 4:36 PM


184 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79

se pode daí derivar, o utilitarismo manifesta um suidores de interesses irreconciliáveis, igualmente


viés elitista latente, que estabelece que mais ra- legítimos. Aqui, nota-se, a figura do Estado neu-
cionalidade equivale a mais esclarecimento, mais tro, própria ao pensamento liberal, surge como
consciência daquilo que é socialmente benéfico – correlato à noção de conflito inescapável.
ao final, mais racionalidade significa mais virtude.
Ainda no âmbito dos desdobramentos insti-
tucionais, é preciso notar que mesmo o imperati- Considerações finais
vo de automodelação de Stuart Mill não prescinde
do papel normalizador do Estado: o próprio ideal O que significa dizer que o individualismo
de autocultivo é, de fato, parte da eticidade que político centrado na utilidade é aritmético, sem
este inscreve nos sujeitos individuais mediante a ser por isso amoral? Em especial no que se refere
precisa delimitação de sua zona de intervenção. às formulações de Bentham e James Mill, foi pos-
A cisão entre público e privado mostra-se percep- sível observar que interessa ao utilitarismo apenas
tível em elementos diversos do edifício teórico o cômputo final da categoria felicidade, derivado
utilitário, começando pelo dualismo entre a con- do somatório dos totais individuais, os quais são,
fiança em uma harmonização espontânea de in- senão matematicamente, indistinguíveis entre si,
teresses no âmbito das relações econômicas entre equivalentes. Não há, pois, qualquer veto à ação
agentes particulares e a afirmação da identificação arbitrária de um sujeito sobre outro, dele se utili-
artificial de interesses, por meio das instituições zando como meio para a obtenção de fins próprios,
do Estado, no que se refere à vida pública (Ha- senão uma preocupação premente em propiciar um
lévy, 1972). Do mesmo modo, as considerações ajuste mútuo que permita a harmonização dos fins
quanto às formas de governo, não obstante as divergentes, de modo à obtenção de um “ponto óti-
divergências pontuais entre autores, manifestam mo”. A afirmação da igual legitimidade dos múlti-
tacitamente sua moralidade específica através dos plos interesses particulares, vimos, traduzir-se-á no
formatos constitucionais propostos, na medida endosso utilitário a um determinado modelo de sis-
em que qualificam aqueles indivíduos dignos ou tema representativo. Mas o corolário fundamental
indignos de reconhecimento político e sancionam de tais pressupostos encontra-se no fato de que a
a forma de participação política adequada. matematização inerente ao utilitarismo só permi-
Ao situar o locus da liberdade na consciência tirá pensar o bem público a partir da fórmula da
individual, Stuart Mill aproxima-se de argumen- soma, e jamais da síntese.
to já presente em Benjamin Constant (1985), no Em consonância com tal preocupação em uma
qual é afirmado o modelo do governo representa- regulação mútua artificialmente estabelecida, nota-
tivo como forma específica de realização da liber- mos a importância conferida ao emprego da legis-
dade moderna, distinta da liberdade dos antigos. lação penal e civil. É precisamente pela apreciação
Da mesma forma que Constant, o utilitarismo desse aspecto teórico que vemos desvelar-se a ilu-
define a cidadania moderna como posse de certos sória amoralidade utilitária. A lei, considerada do
direitos individuais básicos e o Estado como pro- ponto de vista dos limites precisos aos quais pode
tetor da vida íntima. Deriva-se daí uma noção es- pretender ou não interferir, revela o encadeamen-
treita da política, na qual a participação fica restri- to lógico, a vinculação interna presente no pensa-
ta ao instante do pleito, ao momento excepcional mento utilitário entre princípios cognitivos, morais e
do voto. Mesmo o romantismo penetra a obra de políticos. O utilitarismo, vimos, sofre forte influên-
Stuart Mill precisamente em seu elemento apolí- cia da vertente filosófica francesa e opera também
tico, o que leva ao confinamento do componente uma decomposição da natureza humana, isolando
expressivo da individualidade ao espaço circuns- as dimensões da razão e da sensibilidade. É preciso
crito da vida privada, enquanto a organização po- notar, entretanto, a forma como tais esferas são re-
lítica permanece essencialmente como espaço de lacionadas. A noção de irrevogabilidade da dimen-
enfrentamento entre indivíduos atomizados, pos- são apetitiva é sustentada, mas a ela se acrescenta a

12027_RBCS79_AF3b.indd 184 7/2/12 4:36 PM


UTILITARISMO E MORALIDADE 185

ideia de que o indivíduo, sendo primariamente um de que o utilitarismo deva ser considerado amoral;
ser passional, é também dotado de racionalidade. A de fato, a utilidade constitui sua moralidade mes-
percepção de que os instintos não são, por si só, su- ma, seu critério de reconhecimento, seu princípio
ficientes para a compreensão da conduta humana é organizador dos modos de construção de si e das
o que se expressa no papel central que os utilitários relações entre os indivíduos e entre estes e o Estado.
conferem à categoria do interesse, supondo que ao Dissecada a natureza humana, identificado seu mo-
componente volitivo de nossa constituição soma-se dus operandi, o pensamento utilitário conclui pela
uma dimensão racional que sobre ele atua. É um indistinção entre ser e dever ser, ou, melhor diría-
equívoco pensar, portanto, que a preocupação utili- mos, postula que devemos ser cada vez mais aquilo
tária com a harmonização dos interesses conflitivos que já somos, isto é, unidades isoladas, independen-
pretendesse levar os indivíduos à superação plena tes, competidoras. Às instituições do Estado cabe
de suas inclinações. A aplicação dos mecanismos le- reconhecer tais pressupostos, acolhê-los e garantir
gais punitivos, tal qual proposta por Bentham, não as condições para sua promoção; é este seu papel
tinha como objetivo a eliminação das tendências primordial, e o único para o qual pode pretender
sensíveis; pelo contrário, estas eram seu ponto de reivindicar legitimidade.
partida: o sistema de sansões utilitário sustentava-se
sobre a concepção do sujeito cognitivamente deter-
minado pelas sensações de dor e prazer e dependia, Notas
para sua operacionalidade, da previsibilidade das
reações individuais. A aplicação estratégica de re- 1 A propósito da relação entre paixões, razão e interesse,
compensas e punições tinha como objetivo a remo- ver Hirschman (2002), que, não obstante não se dirija
delação das personalidades não pela supressão de especificamente ao utilitarismo clássico, fornece elemen-
suas pulsões naturais, mas pela introdução artificial tos que auxiliam a compreensão de seus pressupostos.
do controle racional sobre elas. 2 Ao empregar o termo “princípio”, Bentham refere-
Se nos primeiros utilitários é a legislação que -se precisamente àquilo que dá início a uma série de
operações – no caso, as operações em questão são as
se encarrega de criar obstáculos que dirigem o in-
associações mentais realizadas pelo sujeito quando de
teresse individual – e é nitidamente a razão esta- seu contato sensorial com determinado objeto.
tal, portanto, que opera sobre as subjetividades –,
3 Bentham e J. Mill estiveram diretamente envolvidos em
com Stuart Mill, por sua vez, observamos ganhar
questões políticas de seu tempo, associando-se ao radi-
destaque a noção de autodomínio. A ideia de me- calismo inglês. E Stuart Mill, além de funcionário da
canismos externos, voltados a modificar o sujeito Cia. das Índias Orientais, foi membro do Parlamento.
em sua interioridade, perde centralidade na teoria; 4 Ver o prefácio de Plamenatz ao trabalho de Halévy
a razão individual é afirmada de forma mais aguda, (1972).
e é remetida ao próprio sujeito a responsabilidade 5 Stuart Mill cita de forma literal tão somente uma
de atuar como artífice de si, por meio da elaboração breve passagem do trabalho de Humboldt acerca dos
calculada de suas tendências e desejos. Tal é a perso- limites da ação do Estado. No entanto, percebe-se que
nalidade genial enaltecida por Stuart Mill, precisa- sua influência não é meramente pontual ou acidental.
mente aquela capaz de objetificar e instrumentali- Está, na verdade, no cerne do argumento desenvolvi-
zar as próprias inclinações. Prescreve-se o empenho do em On Liberty.
na tarefa de confecção de uma individualidade –
um self – que é um todo coerente, uma combina-
ção harmônica – e, nesse sentido, romântica – a ser BIBLIOGRAFIA
produzida pelo próprio sujeito e por ele somente,
isolado das pressões sociais –, o que quer dizer, fun- ARAÚJO, Cícero (2006). “Bentham, o utilitaris-
damentalmente, em retiro da dimensão pública. mo e a filosofia política moderna”, in A. Bo-
Podemos perceber, desse modo, que não é pelo ron (ed.), Filosofia política moderna: de Hobbes
fato de ser voltado ao cálculo e à instrumentalida- a Marx, Buenos Aires/São Paulo, Clacso/USP.

12027_RBCS79_AF3b.indd 185 7/2/12 4:36 PM


186 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79

BENTHAM, Jeremy. (1948), “An introduction


to the principles of morals and legislation”, in
. The principles of morals and legisla-
tion, Nova York, Hafner Press.
BRUDNEY, Daniel. (2008), “Grand ideals: Mill’s
two perfectionisms”. History of Political Thou-
ght, 29 (3): 485-515.
CASSIRER, Ernst. (1950), Filosofía de la Ilustraci-
ón. México, Fondo de Cultura Económica.
CONSTANT, Benjamin. (1985), “Da liberdade
dos antigos comparada à dos modernos”, in
Denis Rosenfield (org.), Filosofia política, São
Paulo, L&PM.
HALÉVY, Elie. (1972). The growth of philosophic
radicalism. Londres, Faber and Faber.
HIRSCHMAN, Albert O. (2002), As paixões e os
interesses: argumentos políticos a favor do capi-
talismo antes de seu triunfo. Rio de Janeiro, Re-
cord.
LIVELY, Jack & REES, John. (1978), Utilitarian
logic and politics. Oxford, Clarendon Press.
MILL, James. (1978), “Essay on government”, in
R. Lively e J. Rees (eds.), Utilitarian logic and
politics, Oxford, Clarendon Press.
SAHLINS, Marshal. (2004), “A tristeza da doçura,
ou a antropologia nativa da cosmologia oci-
dental”, in . Cultura na prática, Rio
de Janeiro, Editora da UFRJ.
STUART MILL, John. (1956), On Liberty, in C.
V. Shields (ed.), Nova York, Liberal Arts Press/
Bobbs-Merrill.
. (1958), Considerations on representati-
ve government. Ed. C. V. Shields. Indianapolis/
Nova York, Bobbs-Merrill.
. (1971), Utilitarism. Ed. S. Gorovitz.
Indianapolis, Bobbs-Merrill.
TAYLOR, Charles. (1997), As fontes do self: a
construção da identidade moderna. São Paulo,
Loyola.

12027_RBCS79_AF3b.indd 186 7/2/12 4:36 PM


234 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 79

UTILITARISMO E MORALIDADE: UTILITARIANISM AND UTILITARISME ET MORALITÉ:


CONSIDERAÇÕES SOBRE O MORALITY: CONSIDERATIONS CONSIDÉRATIONS SUR
INDIVÍDUO E O ESTADO ON THE INDIVIDUAL AND THE L’INDIVIDU ET L’ÉTAT
STATE

Lara Cruz Correa Lara Cruz Correa Lara Cruz Correa

Palavras-chave: Utilitarismo; Moralida- Keywords: Utilitarianism; Morality; In- Mots-clés: Utilitarisme; Moralité; Indivi-
de; Individualismo; Pensamento político dividualism; Modern political thought. dualisme; Pensée politique moderne.
moderno.

Este artigo pretende identificar, no in- This paper aims to identify in classi- L’article vise à identifier, au sein de l’uti-
terior do utilitarismo clássico, uma de- cal utilitarianism a particular definition litarisme classique, une définition parti-
finição particular das relações entre os of the relations between the individuals culière des relations entre les individus et
indivíduos e o Estado, assim como a and the State, as well as the postulation l’État, ainsi que la postulation d’un idéal
postulação de um ideal específico de per- of a specific ideal of personality. Based spécifique de personnalité. À partir de
sonalidade. Partindo de considerações on considerations about the works of considérations sur les œuvres de Jeremy
acerca de trabalhos de Jeremy Bentham, Jeremy Bentham, James Mill and John Bentham, James Mill et John Stuart
James Mill e John Stuart Mill, busca-se Stuart Mill, it intends to put in evidence Mill, l’on cherche à mettre en lumière
evidenciar a frequentemente negligen- the often overlooked moral dimension of la dimension morale souvent négligée de
ciada dimensão moral do pensamento the utilitarian thought and its corollar- la pensée utilitariste et ses corollaires. En
utilitário e seus corolários. Analisando ies. Through the analysis of the peculiar analysant la définition particulière de la
a definição acerca da natureza humana definition of human nature postulated by nature humaine postulée par les auteurs,
postulada pelos autores, investigam-se those authors, its normative and institu- l’article propose une étude des dévelop-
seus desdobramentos normativos e insti- tional developments in the prescription of pements normatifs et institutionnels
tucionais na prescrição de um modelo es- a specific model of social and political or- dans la prescription d’un modèle spéci-
pecífico de organização social e política. ganization are subjected to investigation. fique d’organisation sociale et politique.

12027_RBCS79_AF4.indd 234 11/07/12 14:53


Araújo, Cicero. Bentham, o Utilitarismo e a Filosofia Política Moderna. En publicacion: Filosofia política
moderna. De Hobbes a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales;
DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas,
USP, Universidade de Sao Paulo. 2006. ISBN: 978-987-1183-47-0
Disponible en la World Wide Web:
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolmpt/12_araujo.pdf
www.clacso.org RED DE BIBLIOTECAS VIRTUALES DE CIENCIAS SOCIALES DE AMERICA LATINA Y EL CARIBE, DE LA RED
DE CENTROS MIEMBROS DE CLACSO
http://www.clacso.org.ar/biblioteca

biblioteca@clacso.edu.ar
Cicero Araújo*

Bentham, o Utilitarismo
e a Filosofia Política Moderna

I
Propomo-nos a comentar aqui o pensamento político de Jeremy Bentham
(1748-1832), a figura mais emblemática da corrente utilitarista britâni-
ca clássica. A título de complementação e contraste, breves referências
a dois outros conhecidos utilitaristas, James e John Stuart Mill, tam-
bém serão feitas.
Até seu envolvimento com o radicalismo inglês, durante a cam-
panha pela extensão do sufrágio, nas primeiras décadas do século XIX,
Bentham era conhecido como um “filantropista”, um “inventor” de pro-
jetos (por conta, entre outros, de minuciosos planos de reforma dos sis-
temas penal e educacional de seu país, o que, aliás, levou muitos de seus
leitores do século XX a considerá-lo uma espécie de professor Pardal
das Ciências Sociais) e um “legislador”. Bentham já tinha, então, graças
à óbvia afinidade com a jurisprudência, um pensamento político mais
ou menos desenvolvido. Mas sua defesa do sufrágio universal masculi-
no, e do que denominou “democracia representativa pura”, trouxe uma
inflexão importante nesse desenvolvimento, para a qual daremos aten-
ção na parte final deste artigo.

* Professor do Departamento de Ciência Política, Universidade de São Paulo.

267
Filosofia Política Moderna

A Bentham está intimamente associado tanto “utilitarismo” quan-


to, evidentemente, o princípio que justifica esse nome. Embora quase
nenhum pensador político moderno antes de Bentham sói ser etique-
tado como “utilitarista”, o princípio da utilidade que esse controvertido
intelectual inglês famosamente anuncia em seu An Introduction to the
Principles of Morals and Legislation (publicado em 1789) não constitui
propriamente uma novidade na tradição da filosofia moral. Bentham sa-
bia disso, e sabia também da carga polêmica que o princípio carregava,
mas o considerava suficientemente explicado por outros autores, tanto
que nem se preocupou em debruçar-se sobre ele em detalhes. Dá-lhe
por razoavelmente conhecido entre seus leitores e se atira sem mais de-
longas à missão para a qual se considerava especialmente vocacionado:
expor todas as conseqüências desse princípio nas disciplinas jurídicas.
De fato, pelo menos desde o século XVII diversos filósofos britâ-
nicos e franceses vinham deixando atrás de suas reflexões morais tra-
ços bem marcados de um pensamento utilitarista. O próprio Bentham
e seus discípulos evocam a obra do grande expoente da filosofia empi-
rista moderna no século XVII, John Locke, como uma fonte inspirado-
ra, e as dos que, atravessando o século seguinte, e apesar das enormes
divergências entre si, seguiram o caminho aberto por ele: Berkeley,
Hume, Adam Smith, para não mencionar os menos conhecidos hoje,
mas avidamente lidos em seu tempo Hutcheson, Hartley, Paley, Pries-
tley, Condillac e Helvécio (os dois últimos franceses). Mesmo no cam-
po do direito Bentham sabia não estar sendo um inaugurador: antes de
publicar a Introduction, ele já havia lido com entusiasmo um livro que
essencialmente continha o mesmo princípio por ele cortejado –Dos de-
litos e das penas, do jurista italiano Cesare Beccaria. Ele próprio havia
decidido escrever simplesmente por achar que uma abordagem mais
rigorosa e extensa ainda estava por ser feita.

II
A novidade do benthamismo, portanto, é eminentemente prática: o ar-
gumento moral e político que os “utilitaristas” (como os seus seguido-
res passaram a ser chamados) elaboram a partir de uma filosofia e uma
psicologia que, se não eram amplamente aceitas, pelo menos eram le-
vadas muito a sério naquele tempo, e que eles próprios –a contribuição
de Bentham, neste caso, é pequena se comparada com a dos Mill– pro-
curaram apenas refinar.
Gostaríamos, seguindo essa linha de raciocínio, de abordar três
proposições que aparecem logo no início da Introduction, não só para
mostrar em que medida são desdobramentos do que vamos chamar
aqui de “metafísica cartesiana”; mas principalmente para mostrar

268
Cicero Araújo

como tais desdobramentos, inteiramente especulativos e abstratos na


aparência, permitirão a Bentham, James Mill e Stuart Mill abraçarem
um programa muito prático e concreto de amplas reformas políticas
para o seu país. Tal programa terminará por afastá-los do círculo so-
cial a que estavam naturalmente destinados (seja por fortuna, forma-
ção intelectual ou pelos postos que ocupavam), o dos orgulhosos varões
da aristocracia inglesa, e aproximá-los –o que constitui um aconteci-
mento bastante raro na tradição intelectual inglesa até então– de um
movimento de composição e teor eminentemente plebeus na defesa da
“democracia representativa”, emprestando a este movimento uma ar-
madura filosófica1.
As três proposições que vamos destacar, e que aparecem no li-
vro em questão, são na verdade complementares entre si e dedicadas a
enunciar, de modo simples e enxuto, o princípio que guiará o autor no
exame das leis. Assim,
a) “a natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois
senhores soberanos: a dor e o prazer [...] Ao trono desses dois
senhores está vinculada, por uma parte, a norma que distingue
o que é reto do que é errado e, por outra, a cadeia das causas e
dos efeitos”.
b) O princípio da utilidade é simples decorrência da proposição
anterior, como ele vai dizer em nota ao texto. Qual seja: “o princí-
pio que estabelece a maior felicidade de todos aqueles cujo inte-
resse está em jogo, como sendo a justa e adequada finalidade da
ação humana, e até a única finalidade justa, adequada e univer-
salmente desejável; da ação humana, digo, em qualquer situação
ou estado de vida, sobretudo na condição de um funcionário ou
grupo de funcionários que exercem os poderes de governo. A pa-
lavra ‘utilidade’ não ressalta as idéias de prazer e dor com tanta
clareza como o termo ‘felicidade’; tampouco o termo nos leva a
considerar o número dos interesses afetados; número este que
constitui a circunstância que contribui na maior proporção para
formar a norma em questão –a norma do reto e do errado”.
c) “Aqueles cujo interesse está em jogo” compõem, sempre, uma
“comunidade”. O que é uma comunidade? “Se a palavra tiver um
sentido, será o seguinte. A comunidade constitui um corpo fic-
tício, composto de pessoas individuais que se consideram como

1 A aproximação de fato entre esses intelectuais e o radicalismo inglês é fartamente de-


monstrada pelo que é ainda hoje considerado o estudo mais completo do utilitarismo,
o livro de Halévy (1955). No presente artigo, gostaríamos apenas de sugerir um vínculo
interno, conceitual, entre as premissas filosóficas dos utilitaristas e as bandeiras políticas
do radicalismo inglês.

269
Filosofia Política Moderna

constituindo os seus membros. Qual é, neste caso, o interesse da


comunidade? A soma dos interesses dos diversos membros que
integram a referida comunidade”2.
Cada uma dessas três proposições marca um estudado distanciamento
de uma longa tradição do pensamento moral que remonta à antiguida-
de clássica. Mas, como dissemos, Bentham não é o primeiro a fazê-lo.
Aqui ele está apenas extraindo as devidas consequências, para o cam-
po prático, da virada moderna, tipicamente cartesiana, da especulação
metafísica. Isto é, o deslocamento da interrogação sobre a natureza ou
essência dos objetos, e sua catalogação e hierarquização –predominan-
te na antiguidade clássica–, para a interrogação sobre o sujeito que pre-
tende conhecer os objetos. Essa virada leva os cartesianos a distingui-
rem claramente os objetos das “percepções” que supostamente repre-
sentariam esses objetos (as “idéias”). As idéias sendo apenas percepções
mentais, a elas, e só a elas, que o sujeito que pretende conhecer tem
acesso direto, só delas ele tem conhecimento imediato. As percepções
são, por isso, a matéria-prima de todo o conhecimento. Como então, a
partir das idéias, podemos chegar aos objetos?
O próximo passo da investigação é catalogar as próprias idéias,
e ver se elas possuem qualidades que as distinguem entre si. Alguns
cartesianos vão propor o seguinte: boa parte das idéias deriva de nos-
sos órgãos sensoriais (as “idéias sensíveis”), mas uma outra parte é pu-
ramente inteligível, isto é, habita nossas mentes desde sempre, como
sementes plantadas por Deus, sem nada dever àqueles órgãos. Outros
cartesianos, porém, vão propor pensar todas as nossas idéias e, portan-
to, todo o conhecimento que podemos alcançar sobre objetos, como de-
rivadas das “idéias sensíveis”. Os defensores da primeira tese, o próprio
Descartes entre eles, serão chamados “racionalistas ou inatistas”; os da
segunda tese serão chamados “empiristas”.
A defesa mais conhecida do empirismo inglês no século XVII é
au Essay Concerning Human Understanding, de John Locke, que Ben-
tham leu atentamente em seus anos de formação. Ali estão enunciadas
três coisas que interessarão especialmente ao nosso autor: 1) que todas
as idéias podem ser quebradas em seus componentes mais elementa-
res, ou seja, que as idéias ou são simples (não podem ser decompostas)
ou são complexas, resultantes de uma associação de idéias simples; 2)
todas as idéias simples são sensíveis, mas existem aquelas que represen-
tam qualidades que pertencem aos objetos (as qualidades “primárias”),
e outras que não as representam, expressando apenas qualidades da
mente que percebe (as qualidades “secundárias”). Assim, as cores, os

2 Os textos citados aparecem no primeiro capítulo de An Introduction to the Principles of


Morals and Legislation. Sigo aqui a tradução para o português da coleção “Os Pensadores”.

270
Cicero Araújo

sons, os odores –ao contrário da figura e da extensão– não pertencem


aos objetos, mas são modificações da própria mente; 3) nossas idéias
sobre o bem e o mal, nossas idéias morais, são idéias complexas. Mas
derivadas de que idéias simples? Como todas as idéias simples são sen-
síveis, nossa primeira idéia de bem só pode ter sido uma sensação agra-
dável (“prazer”) e a de mal uma sensação desagradável (“dor”). E é claro
que a dor e o prazer não são qualidades dos objetos que as provocam,
mas apenas modificações da mente.
Como veremos, Bentham acha que Locke nem sempre é consis-
tente com essas afirmações, especialmente quando tem de lidar com
conceitos jurídicos, tais como o de “direito natural”. Mas nosso autor
tem nelas tudo o que precisa para fundar o princípio da utilidade e mar-
car seu distanciamento com aquela longa tradição da filosofia moral
antiga a que nos referimos.
Associada a essa tradição está uma vertente do pensamento po-
lítico de inspiração aristotélica, o chamado “republicanismo clássico”.
Essa tradição, em primeiro lugar, jamais endossaria a idéia de que os
seres humanos estão irremediavelmente sob o domínio desses dois “se-
nhores”, o prazer e a dor, como afirma Bentham no começo da Intro-
duction. Pois ela costuma distinguir e hierarquizar diversas “funções”
no interior da alma, e atribuir à razão uma função superior e dirigente
em relação às outras funções, as chamadas “apetitivas”, as paixões e
as sensações mais simples de prazer e dor, e as “vegetativas”, ligadas
à nutrição e reprodução. Uma vida sob o império do prazer e da dor
é própria de animais ou escravos, ou porque suas almas não possuem
funções inteligentes, ou porque não têm ou não foram educados para
tê-las num grau suficientemente desenvolvido para dirigir a alma.
Essa mesma tradição distingue claramente a felicidade e as sen-
sações de prazer e dor. A felicidade é o resultado da conquista do “bem
supremo”, que é sempre um objeto separado da sensação. É claro que
o sujeito feliz sente prazer, mas o prazer não é o elemento essencial,
definidor, da noção de felicidade: há objetos dignos (“bens”) de serem
buscados –e o principal deles é o que possibilita a felicidade-, e outros
indignos (“males”); correlatamente, há prazeres dignos e indignos.
Em ambos os casos, Bentham pensa exatamente o contrário,
como anunciam as duas primeiras proposições que destacamos acima.
Pois, em primeiro lugar, a metafísica empirista que o inspira vai fazê-lo
recusar a noção de um “bem supremo” que justifique a distinção entre
felicidade e prazer. Na medida em que nossas idéias de bem e mal são
originadas de sensações agradáveis e desagradáveis, a “bondade” ou
“maldade” não são atributos dos objetos que supostamente provocam
essas sensações, mas, como vimos, são apenas modificações do sujeito
que sente.

271
Filosofia Política Moderna

É certo dizer, como faz Aristóteles, que “bem” é aquilo que é dese-
jável, e “mal” aquilo que é indesejável. Mas o que é desejável/indesejável
não pode mais ser um conjunto de objetos classificados como dignos ou
indignos em si mesmos, e cuja apreensão leva à fruição de um prazer
digno ou indigno. Pois a única coisa a que realmente temos acesso dire-
to são as idéias, e entre elas as agradáveis ou desagradáveis. São essas
últimas que apontam os fins de nossas ações. Quanto aos objetos que
supomos provocarem tais sensações, esses são apenas instrumentais
para aqueles fins. Não só não podem ser dignos ou indignos em si mes-
mos, como um mesmo objeto pode ser “bom” ou “mal”, dependendo
das circunstâncias que os levem a produzir sensações prazerosas ou
desagradáveis.
É também neste sentido que nossa inteligência, nossa capacidade
de raciocinar, está subordinada àqueles fins. Pois se a razão fosse capaz
de apontar qualquer outro fim independente, ao qual todos os outros
estivessem subordinados, então teríamos de ser capazes de perceber
idéias totalmente separadas das sensações, inclusive as de prazer e dor.
Mas o empirista nega a possibilidade de qualquer idéia não derivada
das idéias sensíveis. A razão não é “prática” porque nos faz querer tais
fins independentes, mas simplesmente porque, a partir da experiência
e da observação, nos permite conhecer quais objetos e circunstâncias
mais provavelmente nos mantêm longe da dor e próximos do prazer.

III
Sobrevivências desse “republicanismo clássico”, de inspiração aristoté-
lica, como um ideal de vida coletiva, são largamente reconhecidas no
pensamento britânico, especialmente o inglês, durante o século XVIII,
e servem como arma ideológica contra o regime parlamentar, “Whig”,
instaurado no país após a Revolução de 16883. Essa é uma das duas ver-
tentes do pensamento político com a qual Bentham vai acertar contas
ao elaborar sua própria visão. A outra é o contratualismo de inspiração
lockeana, de que falaremos mais adiante.
Uma das imagens de vida coletiva mais características da tradi-
ção republicana clássica é pensar a comunidade política como um todo
real, a partir da qual as partes ganham sentido. A família e os indiví-
duos são “membros” desse todo mais ou menos como a mão, segundo
a famosa analogia de Aristóteles na Política, é um membro do corpo:
a função da mão só ganha sentido, só é inteligível, a partir da visão de
um todo, o corpo. A comunidade política também constitui um corpo,
o “corpo político”, do qual os cidadãos, individualmente considerados,

3 Ver, entre outros estudos a respeito, o de Pocock, 1975.

272
Cicero Araújo

são membros. O cidadão está subordinado à comunidade como a mão


está subordinada ao corpo.
Como um todo real, a comunidade possui uma “alma” com dife-
rentes funções hierarquizadas, às quais correspondem diferentes luga-
res sociais. Há funções intelectivas, superiores e centrais, que só a polis
torna possível, na qual é exercida uma das atividades intelectuais por
excelência, a deliberação4; e há funções inferiores, as apetitivas e vege-
tativas, subordinadas às primeiras, que correspondem às atividades de
produção dos meios de subsistência e de reprodução da vida (a famí-
lia) e de comércio. Como um todo real, essa alma coletiva possui uma
vida moral independente, orientada para um bem supremo, a felicida-
de comum. Dessa perspectiva, dizer que o cidadão, individualmente, é
subordinado ao corpo político é dizer que sua felicidade depende e é
inseparável da felicidade comum.
O bem supremo define aquilo que é mais nobre e digno de ser
vivido. Corresponde ao ideal de vida mais perfeito que um ser humano
é capaz de atingir. A vida mais perfeita está ligada àquilo que é mais
nobre no homem. A alma é mais nobre que o corpo, o que significa que
a felicidade é resultado de uma atividade da alma. Mas a alma também
tem funções mais ou menos nobres e dignas. As intelectivas ou racio-
nais são mais nobres que as apetitivas e vegetativas, e é por isso que as
segundas estão a serviço das primeiras. Assim, a felicidade é resultado
de uma atividade da alma dirigida por sua parte intelectual (a atividade,
ela mesma, chama-se “virtude”). No âmbito da comunidade, as funções
intelectivas da alma correspondem às atividades deliberativas da polis.
É na polis, como um cidadão que participa das deliberações da comuni-
dade, que o homem pode realizar a vida mais perfeita. O bem supremo
é a vida mais perfeita que o homem pode alcançar, e sua realização é
a felicidade. Em conseqüência, a vida feliz, a “vida boa”, só pode ser
alcançada através de uma vida política o mais ativa possível.
Como Bentham marca seu distanciamento dessa visão? A tercei-
ra proposição do livro que estamos comentando aqui faz isso claramen-
te. Ali o autor quer definir “comunidade política” a fim de dizer qual é o
“interesse da comunidade” que deve fundamentar todas as deliberações
políticas, especialmente as que resultam em legislação. A comunidade
política não é mais vista como um todo real: ela não passa de uma
“ficção” cuja parte real são indivíduos, que é o que dá inteligibilidade
ao resto. A comunidade não constitui um corpo com uma alma que

4 Em Aristóteles, a outra atividade intelectual por excelência é a contemplação filosófica,


que é considerada a mais sublime de todas (ver o livro X da Ética a Nicômaco). Ela não é
exercida na polis, mas só a existência da comunidade política a torna possível. Há, porém,
muita controvérsia entre os leitores de Aristóteles a respeito da compatibilidade entre a
vida política e a vida contemplativa.

273
Filosofia Política Moderna

pensa e sente. Quem pensa e sente são unicamente os indivíduos, são


eles, e apenas eles, que buscam prazer e fogem da dor. O indivíduo é
ele próprio um todo e é a soma desses pequenos todos que vai formar
a comunidade. Do mesmo modo, a felicidade da comunidade não pode
estar relacionada a um bem apartado dos indivíduos, mas deve ser,
para Bentham, uma simples soma das felicidades individuais. Quanto
maior a soma, maior a felicidade da comunidade. E o “interesse” da co-
munidade é a realização da maior felicidade que essa comunidade pode
alcançar. Vale dizer, a maior soma possível de felicidades individuais.
Essa maneira de enunciar o princípio da utilidade está na base
do famoso “cálculo felicítico” que Bentham sugere na segunda proposi-
ção que destacamos aqui. Se queremos chegar ao interesse da comuni-
dade, precisamos levar em conta o número dos indivíduos envolvidos.
Os seres humanos podem até ter diferentes capacidades intelectuais,
mas todos –homens, mulheres, crianças– são considerados igualmente
capazes de sentir prazer e dor. Todos são, desse ponto de vista, “mem-
bros” da comunidade política e possuem o mesmo peso no cômputo
geral. Daí o adágio benthamiano: “cada qual conta por um, ninguém
mais do que um”. Quanto maior o número dos beneficiados por uma
determinada decisão política ou por uma legislação –diga-se, quanto
mais essa decisão ou legislação permite uma maior fruição de prazer
e uma menor exposição à dor de um número mais extenso de pessoas,
maior a felicidade da comunidade, e este é o seu interesse5.
Mas há outra razão, além da crítica empirista à separação entre o
objeto (o bem) e a sensação de prazer e dor –mas de alguma forma rela-
cionada a ela– que leva Bentham a evitar uma definição de bem supre-
mo ao modo aristotélico. É que nosso autor não pensa ser possível esta-
belecer um ideal de vida comum que maximize a felicidade de cada um
e que, em consequência, maximize a felicidade geral. Não é tarefa do
legislador estabelecer esse ideal de vida, pois os objetos e as circunstân-
cias que promovem a felicidade são tão variáveis no tempo e no espaço
que um mesmo estilo de vida, se pode levar uma determinada pessoa ou
grupo de pessoas a uma felicidade maior, pode também levar outros a

5 Mais à frente na Introduction, Bentham listará algumas variáveis que vão definir como
uma soma de prazeres e dores pode ser feita: a soma é maior ou menor se os prazeres en-
volvidos são mais ou menos intensos, mais ou menos duradouros no tempo, mais ou me-
nos férteis (isto é, se sua fruição agora dá ou não nascimento a novas fruições no futuro),
mais ou menos extensos (envolvendo maior ou menor número de indíviduos). Assim, um
prazer mais intenso agora pode não ser o mais duradouro, ou o mais fértil. De modo que
um prazer sentido mais longamente no tempo pode substituir com vantagem, no cálculo
da felicidade, um prazer mais intenso no presente, porém mais curto. Assim como um pra-
zer que se extende a mais indíviduos pode substituir com vantagem um prazer mais inten-
so, mas que envolve um número menor de pessoas. Bentham, contudo, nunca conseguiu
sugerir alguma maneira de medir a intensidade do prazer a fim de fazer a comparação.

274
Cicero Araújo

uma grande miséria. Não há um estilo de vida coletivo, como na visão


de inspiração aristotélica, que corresponda à perfeição da espécie. A
legislação não tem que dispor sobre os fins das ações individuais, mas
sim sobre os meios, e mesmo assim nem todos os meios, na medida em
que a legislação é uma ação governamental que, para ser realizada, tem
de onerar de alguma forma os membros da comunidade. Logo, é a dor
que vai entrar com um sinal de menos no cálculo da felicidade.
A legislação penal, por exemplo, não só significa dor para quem
sofre a pena, mas custos (na forma de impostos) à comunidade inteira
para estabelecer e realizar a punição. Ela só se justifica se os benefícios
estimados superarem aqueles custos e a dor imposta ao condenado6.
Assim como os objetos que provocam sensações de dor ou prazer não
são intrinsecamente nobres ou dignos, a legislação, e a atividade políti-
ca de um modo geral, não é um fim em si mesma: no fundo, apenas os
resultados que produzem devem ser levados a sério. A moral utilitarista
é sim teleológica, mas por ser conseqüencialista, não por ser perfeccio-
nista (como a republicana clássica).
A outra corrente de pensamento político muito influente no tem-
po de Bentham é o contratualismo de inspiração lockeana. Pode-se di-
zer que é a ideologia oficial do parlamentarismo whiguista. Já dissemos
que Bentham não vê coerência entre a metafísica empirista de Locke e
sua doutrina do direito natural, e a visão do contrato entre súditos e so-
berano daí resultante. Mas o principal problema com o contratualismo
é bem prático: Bentham acredita ser essa a versão modernizada de um
antigo mito da política inglesa –o mito do “contrato originário” entre
o rei da Inglaterra e seus súditos no qual estes, em troca de sua obedi-
ência, obtêm do rei a promessa de manter inviolados seus “privilégios”
(entre os quais, a segurança de suas vidas e suas propriedades), que está
na base da defesa da Common Law feita por seu maior adversário no
campo da filosofia do direito, o jurista William Blackstone.
É curioso que Bentham faça uma ponte entre o contratualismo
e os princípios doutrinários da Common Law, pois os historiadores do
pensamento político não se cansam de mostrar como a moderna dou-
trina do contrato serviu de inspiração para o ideal iluminista de um
código legislativo racional, unificado, para os Estados nacionais euro-
peus, que pusesse fim ao localismo e ao caos jurídico das instituições
feudais. Mas esse foi um fenômeno eminentemente continental, graças
a uma forte tradição de estudo do direito romano nas universidades ale-
mãs, holandesas e francesas, no qual os contratualistas costumavam se

6 É baseado nesta idéia, na idéia que a pena é uma dor que só se justifica se produzir um
benefício subseqüente que a compense, que Bentham projetou o seu tão execrado (depois
de Foucault, pelo menos) Panopticon, o sistema presidiário que propôs, insistentemente e
sempre sem sucesso, ao governo inglês para reeducar criminosos.

275
Filosofia Política Moderna

apoiar para escrever seus tratados. Na Inglaterra, onde o direito roma-


no não deitou raízes, encontraram-se maneiras de reconciliar, em parte
pelo menos, a doutrina contratualista e a noção, muito cara à Common
Law, de que as leis inglesas são depositárias de um longo antepassado
de regras e práticas cujo espírito original deve ser continuamente resga-
tado pelo jurista, através de técnicas adequadas de interpretação.
Não por acaso, Bentham vai procurar, já num livro anterior à
Introduction (aliás, seu primeiro livro, A fragment on Government, de
1776) desfechar um ataque simultâneo a conceitos típicos do contratu-
alismo lockeano e aos fundamentos da Common Law, tais como apare-
cem na obra de Blackstone.
Bentham era ardente advogado de um Estado nacional unifi-
cado, coerente e ágil, livre do localismo e de um aparato governante
com múltiplas fontes de comando, dois fenômenos que pensava serem
doenças crônicas do governo inglês. Ele achava que um Estado assim
racionalmente organizado era uma das précondições para a promoção,
no plano político, da mais extensa felicidade dos súditos. Isso não seria
possível, porém, se a leis que regulam as relações entre os súditos, entre
os próprios governantes e entre os governantes e os súditos não fossem
também tornadas coerentes, unificadas e ágeis. Enquanto elas estives-
sem fundadas numa vaga noção de tradição e antepassado –o que para
Bentham significava deixá-las à mercê do capricho de uma corporação
de juristas e advogados com suas “interpretações”, o Estado inglês con-
tinuaria sendo ao mesmo tempo fragmentado e arbitrário, isto é, um
empecilho à promoção da felicidade geral. O grande progresso naquela
direção, portanto, só poderia ser dado através de uma limpeza radical
da parafernália de regras costumeiras e antecedentes em que se base-
ava a legislação inglesa, e a ereção, em seu lugar, de um código de leis
baseado num único princípio diretor, o princípio da utilidade, que lhe
daria ao mesmo tempo forma (coerência) e conteúdo: para Bentham,
a soberania do moderno Estado nacional não é outra coisa senão a
soberania da lei, a qual, em última análise, significa a supremacia do
princípio da utilidade.
Qual o problema do contratualismo lockeano?7 Nosso autor pen-
sa que essa doutrina é confusa e pouco econômica na construção de
seu argumento. Seus pilares são a idéia de que os indivíduos gozam
de certos direitos, ditos naturais, histórica ou logicamente anteriores
à instituição do governo; e que os únicos governos legítimos são os ba-
seados numa renúncia voluntária, por parte dos súditos, de alguns da-
queles direitos à pessoa do soberano, em troca da garantia, por parte

7 A influência dos Essays de Hume na formulação da crítica que segue já foi destacada por
diversos comentadores de Bentham, e nada temos a acrescentar a respeito.

276
Cicero Araújo

deste, da proteção dos demais direitos. Para ser exato, um lockeano


não precisa afirmar que este “contrato original” existiu de fato, embora
muitos intelectuais whigs estivessem dispostos a defender que, no caso
da Inglaterra, tal contrato foi mesmo um acontecimento histórico. O
próprio Blackstone não faz isso. Basta afirmar que o contrato é uma
“ficção” indispensável, uma ferramenta heurística para apreender os
verdadeiros princípios do governo, quais sejam: que todos os homens
nascem com iguais direitos, alguns deles irrenunciáveis, e que um go-
verno legítimo pressupõe um consentimento dos governados, explícito
ou tácito, às suas ordens e leis. O termo “tácito”, aqui, é uma maneira
de circunscrever a improvável hipótese de que os súditos se reuniram, e
tenham constantemente de se reunir, para dar seu assentimento às leis:
se um indivíduo resolveu viver sob o manto protetor de um governo e se
beneficiou dessa proteção, isso já implica assentimento às suas leis.
Por que esse argumento é confuso e pouco econômico? Porque
ele não aponta claramente em que sentido os tais direitos naturais exis-
tiriam “anteriormente” à instituição do governo e por qual motivo fun-
damental os súditos estariam dispostos a dar seu consentimento aos
governantes. A falta dessa clareza leva a uma multiplicação desneces-
sária de conceitos. Assim, vamos assumir que os direitos são anteriores
ao governo ou num sentido histórico, ou num sentido lógico. Se num
sentido histórico, isso quer dizer que as pessoas gozavam de certos di-
reitos antes de existir governo. Mas para que, então, submeter-se a um
governo? Para que os direitos fossem garantidos e protegidos. Se assim
é, então as pessoas não possuíam esses direitos, apenas os desejavam
–e o próprio desejo já denuncia a ausência histórica do direito antes
da presença real de um governo. Por outro lado, essa constatação já
mostra que os direitos também não podem ser pensados como anterio-
res num sentido lógico. O reconhecimento de um direito numa parte
pressupõe sempre o reconhecimento de uma obrigação da outra par-
te em respeitá-lo. Toda obrigação neste sentido (aquela que tem por
correlato um direito) implica uma lei reconhecida e que obriga igual-
mente a todos os envolvidos. Todos concordam, porém, que nenhuma
lei é lei efetivamente sem a pessoa do legislador. Locke concorda com
isso, tanto que vai afirmar a existência não só de direitos, mas de leis
“naturais”, não escritas, promulgadas por um legislador divino. Mas é
bem possível que as pessoas divirjam a respeito da verdadeira vontade
deste legislador e, portanto, sobre o conteúdo dessas leis; e também é
bem possível que algumas dessas pessoas não acreditem na existência
de tal legislador. O que equivale a dizer que não existe um legislador
comum e leis que obriguem a todos da mesma maneira. Conclusão: não
é possível se conceber um direito sem ao mesmo tempo se conceber um
legislador concreto, humano, efetivamente reconhecido como tal (leia-
se: governo), que obrigue a sua observação.

277
Filosofia Política Moderna

O que é um governo efetivamente reconhecido? Embarcamos no


problema do motivo do contrato original. A doutrina sugere que a von-
tade das pessoas, em si mesma, constitui um motivo suficiente, tanto
dos súditos para obedecer, quanto o dever do soberano de proteger os
seus direitos. Daí a suposição da “promessa”, que está por trás da figura
do contrato, como se a promessa estabelecesse as obrigações recíprocas
de soberano e súditos. Bentham dispara várias críticas a partir desse
ponto. Primeiro, se o contrato fosse um acontecimento histórico, reali-
zado em algum passado remoto, então as promessas feitas pelos funda-
dores só valeriam para eles, e não para seus descendentes: obrigações
não passam automaticamente de pai para filho. Se não é necessaria-
mente um acontecimento histórico (como pensam Locke e Blackstone),
mas apenas uma ferramenta heurística, o motivo do contrato não pode
ser a vontade pura e simples (consubstanciada na promessa), pois é in-
contestável que uma promessa fictícia não obriga a nada. Se o contrato
há de ser uma ferramenta, é para descobrir o interesse comum que as
pessoas teriam para obedecer a um governo. O que importa, portanto,
não é a figura do contrato, mas esse interesse comum. Se há um modo
mais direto de descobrir esse interesse, a hipótese do contrato é dispen-
sável. Esse modo mais direto existe, e chama-se princípio da utilidade.
Além disso –Bentham poderia acrescentar, Locke é infiel à sua
metafísica empirista, ao pensar que o consentimento livre, voluntário,
já é, em si mesmo, um motivo para obedecer. Pois ter vontade é per-
ceber um objeto desejável. Um objeto desejável é aquele que nos traz
prazer ou nos afasta da dor. Esse é o verdadeiro motivo, essa é a base
do interesse comum, não a vontade pura e simples. A idéia do consenti-
mento é um acréscimo desnecessário. Se o governo promove o interesse
comum, cujo princípio só pode ser o da felicidade mais extensa, inde-
pendentemente do consentimento, ele já está moralmente justificado.
O mesmo tipo de crítica é desfechado contra o argumento caro
aos defensores da Common Law: que as leis inglesas são legítimas por
seu longo antepassado, pela longa tradição de sua prática. Assim como
a obrigação de um contrato original não passa automaticamente de ge-
ração a geração, o tempo por si só não justifica a permanência das leis.
Uma norma pode ter sido adequada num passado remoto, mas pode
não sê-la mais hoje, ainda que praticada durante séculos. Se insistimos
no mesmo caminho sem maior reflexão é por efeito do hábito, uma
disposição da natureza humana. Um comportamento habitual não está
fadado a ser bom: pode ser útil, mas também pode ser prejudicial. O
mesmo pode ser dito de uma norma costumeira. Se prejudicial, é por-
que perdeu seu vínculo concreto com a felicidade geral. Neste caso, o
princípio da utilidade prescreve a reforma.

278
Cicero Araújo

IV
Tal como desenvolvido até aqui, o pensamento político de Bentham
apresenta uma certa feição tory, especialmente no ponto de sua críti-
ca ao vínculo entre consentimento e legitimidade do governo. Se não
real, pelo menos a aparência de um Bentham tory paira de fato sobre
sua biografia intelectual até o início dos anos 1800. Por volta de 1808,
porém, Bentham inicia sua colaboração com James Mill, que acaba por
convertê-lo para a causa do radicalismo, então em plena campanha
pela extensão do sufrágio. A inflexão é profunda, e apresenta-se como
uma oportunidade para aplicar o princípio da utilidade num terreno
até então inexplorado pelo autor.
Estudiosos do benthamismo apontam a sua profunda decepção
com o regime político então vigente na Inglaterra –cujos governantes,
apesar das demonstrações de simpatia por parte de alguns ministros,
simplesmente ignoram suas insistentes ofertas para reformar os siste-
mas judiciário e penal do país– como um dos grandes motivos dessa
inflexão. Verdade ou não, é bem possível que os insucessos de Bentham
tenham despertado sua atenção para a importância de se refletir não
só sobre o conteúdo das ações governamentais (conteúdo da legislação,
por exemplo), o que tinha sido sua maior preocupação até essa época,
mas também sobre as formas de governo e, especialmente, sobre quem
sustenta o governo.
Bentham concluiu que não basta convencer os governantes, atra-
vés de uma batalha de idéias, a respeito de boas iniciativas ou bons pro-
jetos de administração pública. Ainda que convencidos de que tais ini-
ciativas são capazes de promover a felicidade geral, um governo pode ter
interesse em não promover a felicidade geral. Nosso autor começa a falar,
com freqüência, de “interesses sinistros” dos governantes de seu país.
Mas não se trata de uma demonização da aristocracia inglesa.
Segundo Bentham, ocorre que a distinção entre governantes e gover-
nados, embora inevitável e útil em princípio, cria uma virtual distinção
de interesses. Quando governantes e governados se vêem como dois
grupos separados, como o são efetivamente, é bem provável que eles
constituam interesses não só separados, mas divergentes. Assim, pro-
mover o interesse comum do grupo dos que governam pode significar
uma coisa, e promover o interesse comum dos governados, outra. A
partir dessa descoberta, passa a ser axiomático para Bentham que um
governo sempre agirá no sentido de promover os interesses do grupo
governante. Acontece que este sempre constituirá um grupo numerica-
mente muito menor que os governados. Isto significa que um governo
pode promover uma felicidade muito menos extensa que a felicidade
geral. Em outras palavras, a mera existência de um governo pode impli-
car uma subversão do princípio da utilidade.

279
Filosofia Política Moderna

Pode, mas não necessariamente. Isso depende da forma de gover-


no. A questão fundamental, sobre a qual Bentham vai insistir nos textos
que escreve neste novo, e derradeiro, período de sua obra8, é a seguinte:
existiria uma forma de dispor, institucionalmente falando, governantes
e governados de tal maneira que tornasse mais provável que os gover-
nantes vissem seus interesses convergindo com o dos governanados,
isto é, uma forma em que mais provavelmente os próprios governantes
se vissem obrigados a promover a felicidade geral a fim de promover
seu próprio interesse? Invariavelmente otimista, Bentham responderá
que sim, e esta forma chama-se “democracia representativa pura”.
Mas vejamos primeiro por que um governo tal como o parla-
mentarismo whig inglês, o “governo da aristocracia”, não pode respon-
der satisfatoriamente aquela questão. Entender isso já nos ajudará a
caracterizar a forma ideal de governo que Bentham está procurando.
A razão fundamental é que o parlamentarismo whig é sustentado por
uma ínfima minoria de eleitores constituída de grandes proprietários,
funcionários de alta patente e pensionistas do próprio governo. Dada
essa base eleitoral, trata-se de um governo de representação pratica-
mente exclusiva da aristocracia, mesmo na Câmara dos Comuns. O que
esse governo fará, inevitavelmente, é aplicar o princípio da utilidade de
forma pervertida: maximizar a felicidade daqueles cujo interesse está
em jogo –no caso a aristocracia, em detrimento de todo o resto, isto é,
dos que estão alijados da participação eleitoral. Do ponto de vista dos
grupos excluídos, o governo da aristocracia é e só pode ser um governo
de tipo despótico.
Evitar o governo despótico é, sem dúvida, um dos objetivos explí-
citos e comuns ao republicanismo clássico, ao contratualismo lockeano/
blackstoneano e ao benthamismo. Mas o diagnóstico acima providencia
a Bentham uma explicação de por que os outros dois concorrentes não
providenciam remédios adequados para o problema. Para o sobrevi-
vente republicanismo inglês do seu tempo, o remédio adequado ao des-
potismo é o “governo misto”, isto é, a constituição que absorve num só
e mesmo governo as três formas simples –a monarquia, a aristocracia
e a democracia (a idéia é sugerida na Política de Aristóteles, mas a sua
apresentação mais explícita, introduzida aqui, encontra-se na História,
de Políbio). O governo misto, ao submeter cada um dos componentes
da constituição ao controle dos outros dois, seria a melhor maneira
de zelar pela “virtude” dos cidadãos –seu ativo interesse em participar

8 Em linhas gerais, o argumento que segue aparece em vários panfletos publicados em


favor da campanha em favor do sufrágio universal masculino, entre os quais Plan of Par-
liamentary Reform, in the form of a catecism... showing the necessity of radical, and the
inadequacy of moderate, reform. Mas uma apresentação mais sistemática e rigorosa pode
ser encontrada no Constitutional Code, livro publicado postumamente.

280
Cicero Araújo

dos negócios da polis e conservar o bem comum– a qual seria o motor


psicológico fundamental para garantir a “balança da constituição” e
promover um ideal de vida coletiva.
Mesmo sem colocar o acento na virtude, o contratualismo locke-
ano reintroduz a idéia do governo misto na forma da divisão funcional
dos poderes legislativo e executivo: na medida em que um se encarrega
de dar as leis e o outro de aplicá-las, cada qual teria o interesse de cer-
cear qualquer tentativa do outro de usurpar suas funções. Na tradição
da Common Law a divisão de funções é um pouco mais complexa. O
governo misto é uma constituição que perfaz uma “balança” dos in-
teresses dos três componentes fundamentais da sociedade inglesa: os
“comuns”, os “lordes” e o “rei”, a cada qual cabendo diferentes respon-
sabilidades de governo. Mas na junção contratualismo/Common Law o
objetivo fundamental do governo misto não é promover um ideal co-
mum de perfeição (um ponto que coincide com a crítica de Bentham
ao republicanismo), mas simplesmente o zelo pelos “direitos naturais”
ou “privilégios fundamentais” dos súditos.
O remédio do governo misto apresenta, para Bentham, três de-
feitos centrais. Primeiro, um governo misto é um governo fragmentado,
portanto um obstáculo ao Estado coerente, ágil e unificado que, como
vimos, é pré-requisito para a promoção da maior felicidade. Segundo,
o governo misto, como corretamente apontaram Hobbes e Rousseau,
está em contradição com o conceito de soberania: “soberania limitada”
é um termo sem sentido. Pois se soberania é expressão de vontade, ou
ela é única ou simplesmente não é. Mas o governo misto é um governo
de muitas vontades simultâneas. Bentham, contudo, é um defensor da
soberania absoluta não só por razões de coerência lógica, mas porque
ela é compatível com o princípio da utilidade9. Mais do que isso: depen-
dendo de quem sustenta o governo, é a melhor maneira de evitar a per-
versão desse princípio. E aqui chegamos ao terceiro defeito do governo
misto: ele é um obstáculo à soberania popular.
O que é a soberania popular? É a supremacia dos interesses das
“classes numerosas”, isto é, da maioria. Ora, o princípio da utilidade
prescreve a maximização da felicidade da comunidade política. Manti-
das iguais as outras variáveis do prazer e da dor, a felicidade mais ex-
tensa é a maior felicidade do maior número. Logo, a soberania popular
coincide com o princípio da utilidade. O problema de quem sustenta o
governo seria irrevelante, se o interesse do governo, em qualquer for-
ma, fosse sempre garantir a soberania popular. Mas nós já vimos por
que, agora, Bentham pensa que isso não ocorre na prática. O problema
de quem sustenta o governo é, sim, relevante.

9 Para um comentário mais extenso sobre essa questão, ver Rosenblum, 1978.

281
Filosofia Política Moderna

Em síntese, a única forma de garantir a soberania popular é es-


tender o sufrágio para as “classes numerosas”, garantir a igualdade do
voto (“cada cabeça um voto”), pois de outro modo estaríamos subver-
tendo o critério do número, que para Bentham é crucial, estabelecer
o voto secreto (a melhor maneira de garantir a liberdade do eleitor)
e submeter o governo assim escolhido a eleições periódicas. Bentham
não tem nenhuma ilusão de que sua democracia representativa pura
será um governo “do” povo. “Pura”, aqui, é um adjetivo para expressar a
noção de soberania absoluta: “não mista”. “Democracia representativa”
significa que o povo escolhe as pessoas que vão governá-lo. Tal como os
outros governantes, os representantes também constituirão interesses
próprios. Mas desta vez, graças à extensão do sufrágio e às eleições
periódicas, estarão sob controle de uma classe muita mais extensa e va-
riada de pessoas, e não apenas dos grandes proprietários, pensionistas
e funcionários. E o problema central de Bentham é exatamente este:
como evitar que os governantes, uma minoria, oprimam a maioria. Na
democracia representativa, eles terão de dar um jeito de adequar seus
interesses com os interesses desse eleitorado muito mais extenso. O
princípio da utilidade se imporá de uma forma ou de outra.
Porque os republicanos se preocuparam quase que exclusiva-
mente com a qualidade moral da cidadania, e os contratualistas de-
fensores do regime Whig com a defesa dos “privilégios” dos cidadãos,
nenhum dos dois interessou-se realmente em colocar na ordem do dia a
extensão do sufrágio. Os primeiros porque pensavam que a democracia
significaria um rebaixamento, uma corrupção, da virtude e da qualida-
de da política (daí os republicanos aristotélicos dizerem que o critério
do número, sendo o que norteia as decisões da democracia, provoca um
“desvio”, uma corrupção na forma legítima do governo dos “muitos”).
Os segundos porque pensavam que se os pobres, as classes numerosas,
participassem da eleição dos governantes, eles naturalmente escolhe-
riam um governo comissionado a nivelar a riqueza e “saquear” a pro-
priedade: por isso nenhum contratualista lockeano, apesar de toda a in-
sistência na idéia do consentimento dos súditos, jamais pensou que isso
implicava o sufrágio popular. Em suma, ambos puderam, na Inglaterra,
se degladiar um com outro durante quase todo o século XVIII sem nun-
ca colocar em xeque aquilo que, para Bentham, realmente mudaria o
estado de coisas: o próprio governo da aristocracia.
Em oposição à “oligarquia Whig”, os republicanos pensavam, no
fundo, apenas trocar uma aristocracia corrupta por uma aristocracia
virtuosa. Esperança vã, pois o modo de vida moderno, em todo lugar,
estava liquidando com a valorização das qualidades honoráveis de uma
classe de “homens bons”, vocacionados por isso mesmo a exercer as
altas responsabilidades do governo. A própria aristocracia inglesa, com
seu apego a cargos e pensões, estava tratando de mostrar que sua au-

282
Cicero Araújo

toproclamada honorabilidade já não passava de uma palavra vazia.


Além disso, um Estado coerente, ágil e unificado requer um governo
de profissionais, dedicados exclusivamente ao aperfeiçoamento da arte
de governar, e não de amadores e diletantes, como os nobres, ainda que
estivessem totalmente à disposição do governo. Mas, entre os republi-
canos, a ênfase na “virtude” se fazia em detrimento da competência
técnica e administrativa. E o problema do governo é menos de caráter
do que de conhecimento.
A defesa da democracia representativa feita por James Mill (1773-
1836) segue, em linhas gerais, o mesmo raciocínio de Bentham, mas
é enriquecida com argumentos de natureza mais econômica, graças à
contínua colaboração do autor com David Ricardo (que se declarava
um benthamista em matéria de reforma parlamentar). Vale a pena res-
gatá-la aqui, ainda que brevemente10.
Antes, porém, o argumento contra o governo misto. No fundo,
um governo em que os três “estates”, cada qual com um interesse distin-
to, possuem o mesmo peso nas decisões, independente da força numé-
rica de cada um, sempre será um governo em que, para evitar a parali-
sação, dois deles procurarão se aliar contra o terceiro. Os interesses da
Coroa e dos Lordes, via de regra, são muito mais próximos entre si do
que de um deles com os Comuns. Em conseqüência, o governo misto é
uma forma de fazer a minoria predominar sobre a maioria. A minoria,
neste caso, não governará tendo em vista a utilidade geral, mas contra
ela. Por quê? Pelos seguintes motivos:
1) O equivalente econômico da busca do prazer e da fuga da dor
é: os homens procuram obter o máximo de riqueza para si (com
todas as comodidades que a acompanham) com o menor esfor-
ço possível. A grande fonte da riqueza é o trabalho, e trabalho
significa esforço, dor. Como então podemos obter o máximo de
riqueza com o mínimo de trabalho? Fazendo com que outros tra-
balhem para nós.
2) A sociedade é dividida em dois grupos fundamentais: os gover-
nantes e os governados. Os governantes sempre procuram agir
segundo seus próprios interesses. Do ponto de vista econômico:
obter o máximo de riqueza com o menor esforço. E tentam fazê-
lo a partir de uma posição privilegiada, através dos postos de po-
der que ocupam. Como? Fazendo com que os que não governam
trabalhem para os que governam, e apropriando-se de parte da
riqueza produzida por aqueles, através de impostos, emprésti-
mos com hipoteca da receita pública, etc. Dependendo da forma

10 O texto em que nos apoiamos para os comentários abaixo é o An essay on Government.

283
Filosofia Política Moderna

de governo, essa tendência obtém livre curso ou é devidamente


limitada. Se obtém livro curso, o que acaba ocorrendo é o deses-
tímulo dos que trabalham para produzir riqueza, desde que con-
tinuamente uma parte maior dela não fica em suas mãos, mas
é transferida para outros. E o resultado final é a diminuição, ao
invés de crescimento, do estoque total de riqueza da sociedade.
Logo, menos comodidades, menos prazer, menor felicidade. O
oposto da utilidade geral.
3) A aliança da Coroa com os Lordes é o governo da aristocracia
sem qualquer possibilidade de controle efetivo por parte dos Co-
muns. É, portanto, o regime político em que os governantes mais
chances têm de levar o princípio do menor esforço ao paroxismo.
Trata-se de um governo opressivo e abertamente contra a maior
felicidade do maior número.
Como em Bentham, o problema todo consiste em encontrar meios para
conter com razoável eficácia a tendência dos governantes de viver às
custas dos governados. Mill não vê outra saída senão alguma forma de
democracia. O autor vê duas alternativas: ou a democracia direta, em
que os cidadãos se dedicam, eles mesmos, a governar; ou a democracia
representativa, em que os cidadãos não governam, mas escolhem os
que vão governá-los.
A primeira alternativa resolve o problema porque significa a vir-
tual dissolução da diferença entre governantes e governados: não have-
rá um grupo com um interesse distinto. Assim mesmo, porém, é contra
a utilidade geral. Seguindo a terminologia dos economistas clássicos,
Mill distingue “trabalho produtivo” e “trabalho improdutivo”. O primei-
ro é o trabalho diretamente voltado para a produção de “commodities”
e representa acréscimo de riqueza; o segundo é o trabalho necessário
para administrar a produção daquelas e representa subtração de rique-
za. Porém, é indispensável. Trata-se de encontrar a melhor combinação
dos dois: a maior disponibilidade de trabalho produtivo com o menor
uso de trabalho improdutivo. Mas a democracia direta é um governo
em que todos se envolvem com as tarefas da administração pública –
trabalho improdutivo, o que requer muito tempo, em prejuízo do traba-
lho produtivo. Conclusão: a separação entre governantes e governados
está mais de acordo com a utilidade geral, pois neste caso a maioria se
dedica ao trabalho produtivo enquanto uma minoria se ocupa full time
com a administração.
A democracia representativa seria então a melhor combinação
possível, ainda que muito imperfeita, entre a necessidade de contro-
lar os governantes e o imperativo de aumentar continuamente o es-
toque total de riqueza da sociedade. O argumento para mostrar como
um eleitorado bem mais extenso que o da época seria capaz de exercer

284
Cicero Araújo

um razoável controle sobre os governantes segue, aproximadamente, o


de Bentham. Há, porém, uma diferença considerável a respeito de quão
extenso deve ser o sufrágio: baseado no princípio da “representação
virtual de interesses” –os interesses de crianças e mulheres já estão re-
presentados pelo voto do chefe de família, os das gerações mais novas
pelas gerações mais velhas etc.– Mill propõe muito mais qualificações
no direito de voto (baseado na idade, sexo e, em certa medida, na pro-
priedade) do que Bentham estaria disposto a defender. Neste último o
sufrágio masculino adulto é praticamente irrestrito: as mulheres são
excluídas simplesmente por questões táticas, já que colocar este tema
na agenda iria complicar ainda mais a luta pela extensão do sufrágio;
os iletrados, apenas para estimulá-los a rapidamente se alfabetizar; e os
soldados e marinheiros, porque as rígidas demandas de lealdade para
com seus comandantes viciariam sua participação11.
O critério numérico sempre foi o cavalo de batalha do e contra
o benthamismo. Autores bem mais preocupados do que Bentham com
a defesa do liberalismo, viam neste critério uma ameaça aos direitos
individuais. John Stuart Mill (1806-1873), que tentou ser um aplicado
discípulo de Bentham na juventude, encarou essa objeção com toda a
seriedade. O resultado é um desvio considerável na rota do utilitarismo.
O ensaio deste filósofo que leva o nome da escola é um tremendo esfor-
ço para reconciliar um princípio da utilidade reformulado com a noção
de direito natural. Aqui os prazeres são diferenciados qualitativamente,
e não apenas pela intensidade, duração, extensão etc. (como queriam
Bentham e Mill pai). Há prazeres de ordem “inferior”, os prazeres cor-
porais, e de ordem “superior”, os prazeres intelectuais. Seres humanos
estão destinados ao segundo tipo12.
As repercussões se fazem sentir na política: mecanismos de re-
presentação de minorias, maior preocupação com a possibilidade de
decisões majoritárias “injustas”, voto plural ao invés de igualitário e
uma ênfase especial aos propósitos educativos do governo. A partici-
pação política, a cidadania ativa, é vista como uma das formas privile-
giadas de estimular a passagem dos prazeres corporais para os intelec-
tuais. Um ideal de perfeição se insinua no pensamento de Stuart Mill:
curiosa combinação de liberalismo com republicanismo.
Bentham e James Mill sabiam que os “privilégios” dos cidadãos
–o privilégio da propriedade, especialmente– seriam brandidos contra
a democracia. Ambos não tinham a menor dúvida de que a proteção
da propriedade privada era uma das funções essenciais do governo,
qualquer governo. Smithianos convictos pensavam que, na medida em

11 Ver Halévy, 1955.


12 Ver Mill, 1993: cap. 2.

285
Filosofia Política Moderna

que os proprietários se concentrassem seriamente na busca do lucro, o


resultado não intencionado seria o aumento da riqueza geral, portanto
também em benefício das “classes numerosas”. Propriedade e utilidade
andam juntas.
Mas os pobres desejam ardentemente melhorar de vida, enrique-
cer: enquanto esta esperança prevalecer sobre a inveja –o que é intei-
ramente plausível, pois na “sociedade comercial” a abundância tem o
dom de aplacar o mal-estar da desigualdade, Bentham e Mill estavam
seguros de que as próprias classes numerosas tratariam de fazer da
democracia o grande baluarte da propriedade.

BIBLIOGRAFIA
Bentham, Jeremy 1984 Uma introdução aos princípios da moral e da
legislação, coleção “Os Pensadores” (São Paulo: Abril Cultural).
Bentham Jeremy 1962 “Constitutional Code” em The Works of Jeremy
Bentham, ed. J. Bowring (New York: Russell & Russell).
Bentham, Jeremy (1789) 1982 An Introduction to the Principles of Morals
and Legislation (Londres: Methuen Univerity Paperback).
Bentham, Jeremy (1776) 1982 “A Fragment on Government” em The Works
of Jeremy Bentham, ed. J. Bowring (New York: Russell & Russell).
Halévy, E. 1955 The Growth of Philosophic Radicalism (Boston: Beacon Press).
Hume, David 1985 Essays, Moral, Political and Literary (Indianapolis:
Liberty Fund).
Locke John 1894 An Essay Concerning Human Understanding (Oxford:
Clarendon Press).
Mill, James 1955 An Essay on Government (Indianapolis: Bobbs-Merril).
Mill, John Stuart (1863) 1993 Utilitarianism (Londres: Everyman).
Pocock, J. G. A. 1975 The Machiavellian Moment (Princeton: Princeton
University Press).
Rosenblum, N. L. 1978 Bentham’s Theory of the Modern State (Cambridge,
Mass.: Harvard University Press).

286
          Teoria Política 

Orientações para a realização da actividade formativa n.º 1

Em seguida, são indicadas as ideias base que deveria ter abordado e desenvolvido na
resposta às questões colocadas na actividade formativa.

Grupo I
No capítulo do manual sobre o utilitarismo, são apresentadas várias concepções de
«bem-estar», estando cada uma delas sujeita a vários tipos de objecções. Sendo assim,
não seria melhor abandonar o princípio do bem-estar?

A ideia de utilidade remete para algo de que se possa retirar proveito, interesse ou
vantagem. Deste modo, as acções correctas serão aquelas que podem promover a
retirada de vantagens (a felicidade, o prazer, etc.), enquanto as acções incorrectas
serão todas aquelas que não promovem qualquer tipo de vantagem.
A organização do Estado e a definição das políticas públicas têm como finalidade
assegurar a satisfação das necessidades colectivas. E, se o indivíduo age no sentido de
obter o seu bem-estar, parece natural que a comunidade política procure também
alcançar o bem-estar dos seus membros.
Neste sentido, a maximização do bem-estar dos membros da comunidade política
parece ser um bom critério orientador da acção do Estado. Como tal, e à luz do
utilitarismo, a acção política não deve estar sujeita a princípios de tipo moral ou ético
(como aqueles associados, por exemplo, a critérios de justiça), pois, se eles não
maximizarem o bem-estar de todos, não assegurarão a melhor decisão.

   Universidade Aberta                
          Teoria Política 

Grupo II
Suponha uma situação em que uma pessoa com conhecimento efectivo de um ataque
terrorista iminente, o qual matará centenas de pessoas, é detida pelas autoridades e
recusa divulgar informações necessárias para impedir o ataque, mas que essas
informações podem ser obtidas se ela for torturada.
Na sua opinião, e tomando como base os princípios fundamentais da teoria utilitarista,
esta pessoa poderia/deveria ser torturada?

Para a resposta à questão, para além do conceito de bem-estar e do agregacionismo, é


fundamental considerar o consequencialismo, separando neste, pelo menos, o dos
actos e o das regras.
Assim, no caso do consequencialismo dos actos, parece que a defesa da tortura seria
aceitável. À luz do consequencialismo das regras, o código moral ideal subjacente à
aceitação das consequências reconhece restrições, obrigações especiais e
prerrogativas, as quais, na prática, podem impedir ou limitar a utilização da tortura.
Também se poderia defender que o utilitarismo, mesmo na perspectiva do
consequencialismo dos actos, não subscreveria necessariamente a adopção da tortura,
porque na análise estamos a considerar um cenário hipotético abstracto quando, na
prática, as situações são menos lineares e transparentes, dado que a pessoa detida
poderia não ser suspeita ou não possuir informações relevantes, não é certo que a
tortura funcionasse, que a pessoa cedesse informações ou que estas fossem
verdadeiras. Ou seja, não é certo que se conseguisse alcançar qualquer “bem” com a
realização da tortura.

   Universidade Aberta                
Iniciado em Quinta, 4 Abril 2024, 21:24
Estado Terminada
Completado Quinta, 4 Abril 2024, 21:27
em
Tempo gasto 2 minutos 57 segundos
Avaliar 5,00 num máximo de 5,00 (100%)

Pergunta 1

Correta

Nota: 1,00 em 1,00

O utilitarismo caracteriza-se por três elementos essenciais: consequencialismo, liberdade e agregacionismo.

Selecione uma opção:

Verdadeiro

Falso 

Certo. Os três elementos essenciais são o consequencialismo, o bem-estar e o agregacionismo.

Resposta correta: Falso

Pergunta 2
Correta

Nota: 1,00 em 1,00

Para um utilitarista, uma decisão justa será aquela que produza o maior bem-estar para o maior número de pessoas.

Selecione uma opção:

Verdadeiro 

Falso

Certo. Neste caso, estão reunidos os três elementos que caracterizam o utilitarismo.

Resposta correta: Verdadeiro


Pergunta 3
Correta

Nota: 1,00 em 1,00

A exclusão das preferências externas permite responder ao problema da “maioria fanática”.

Selecione uma opção:

Verdadeiro 

Falso

Certo. Como as preferências externas dizem respeito à atribuição ou não de bens a outros, a alternativa pelas preferências
internas, ou seja, por aquilo que cada pessoa deseja para si própria, permite proteger as minorias.

Resposta correta: Verdadeiro

Pergunta 4

Correta

Nota: 1,00 em 1,00

O consequencialismo das regras prevê que o melhor acto será sempre aquele que resultará no máximo valor impessoal.

Selecione uma opção:

Verdadeiro

Falso 

Certo. O consequencialismo das regras estabelece que o melhor acto será aquele que está de acordo com as regras ou
códigos morais que obtém a aceitação do maior número de pessoas e não com a maximização do valor impessoal.

Resposta correta: Falso

Pergunta 5
Correta

Nota: 1,00 em 1,00

O utilitarismo permite distribuições injustas de bens?

Selecione uma opção:

a. Sim.  Certo. Essa é uma das principais críticas que é dirigida ao utilitarismo, uma vez que a obtenção do
maior bem-estar total ou médio pode não ser suficiente para proteger a situação dos mais
desfavorecidos ou das minorias, uma vez que o seu sacrifício seria aceitável se isso contribuísse para
o maior bem-estar.

b. Não.

A sua resposta está correta.

Resposta correta: Sim.

Você também pode gostar