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Rio Araguaia
Eliezer Cardoso de Oliveira1, Carla Ediene da Silva Alves2, Maria de Fátima Oliveira3
RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar as representações estéticas sobre o Rio Araguaia. A hipótese
é que as narrativas de cunho estético sobre o rio, vigentes no século XIX até a primeira
metade do século XX, valiam-se da estética do sublime; após a segunda metade do século XX,
quando a natureza tornou-se, para utilizar uma expressão de Anthony Giddens, humanizada,
os relatos estéticos sobre o rio realçaram a beleza bucólica. A reflexão sobre o belo e o
sublime apoiou-se nos textos de Edmund Burke e Emmanuel Kant; sobre a representação da
natureza, utilizou-se textos de Georg Simmel e Keith Thomas. As fontes para a análise das
representações foram relatos (como os de Conde de Castelnau, Couto de Magalhães, Jacintho
Lacomme e Hermano Ribeiro da Silva) e canções sobre o rio Araguaia (compostas por Tião
Carreiro e Pardinho, Irmãs Freitas, Marcelo Barra e Amauri Garcia)..
Palavras-Chave: Rio Araguaia; Belo; Sublime; Natureza.
1
Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, Professor efetivo do curso de História e do Mestrado em
Territórios e Expressões Culturais no Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás (Anápolis). Email: ezi@uol.com.br
2
Mestre em Ciências Sociais e Humanidades pelo programa de pós-graduação Território e Expressões Culturais do
Cerrado (TECCER) pela Universidade Estadual de Goiás. Tutora presencial no curso de Pós Graduação em
Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar pela UNB EAD. Docente na Educação Básica de Goiás e no
curso de pedagogia da faculdade Fama Anápolis. Email: carlaedieni@hotmail.com
3
Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Docente do Programa de Mestrado Interdisciplinar
Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) e do Curso de Licenciatura em História da Universidade
Estadual de Goiás (UEG). Email: proffatima@hotmail.com
INTRODUÇÃO
Não foi apenas Duliez que ficou encantado pelo Rio Araguaia. Todos os anos,
principalmente nas férias de julho, milhares de turistas acampam nas areias brancas
na margem do rio. O rio é conhecido como a “praia dos goianos”, constituído num
forte elemento identitário do Estado de Goiás, ao ser referenciado em músicas,
comerciais de TV e representações literárias5.
4
Márcia Terezinha Brunatto Bittencourt. “A presença de Jean François Duliez na música em Goiás”. (Dissertação de
Mestrado em Música na Escola de Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, 2008), 45.
5
Carla Edieni da Silva Alves. “Rio Araguaia: de Utopia de Salvação à Praia dos Goianos”. (Dissertação de Mestrado em
Ciências Sociais e Humanidades, Universidade Estadual de Goiás, 2017).
6
Pedro Süssekind. Posfácio, Schiller e a atualidade do sublime. In. Friedrich Schiller: do sublime ao trágico. (Belo
Horizonte: Autêntica, 2011), 81.
Chamo a beleza de uma qualidade social, porque toda vez que a contemplação
das mulheres e dos homens, e não somente deles, quando a visão de outros
animais nos proporciona uma sensação de alegria e prazer (...), somos tomados
7
Eliézer Oliveira. Estética da catástrofe: cultura e sensibilidades. (Goiânia, Editora da UCG, 2008), p. 32.
8
Remo Bodei. As formas da beleza. Trad. Antônio Angonese. (Bauru: Edusc, 2005), 117.
Tudo o que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo,
isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos
terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do
sublime10.
sublimes autênticas; já as que agem com disciplina e firmeza, mas buscando satisfazer
os próprios interesses, são sublimes cintilantes; as que agem apenas pelo amor à hora
são sublimes nobres; e por fim, as que agem por impulsos benevolentes, mas são
emocionalmente instáveis, são belas. O sublime está fundamentalmente no
comportamento dos sujeitos, o que leva o autor a afirmar que “a cólera de um homem
temível, como Aquiles na Ilíada, é sublime12”.
John Houghton escreveu um ensaio para provar como seria bom que não
houvesse nenhuma árvore num raio de 32 quilômetros de qualquer rio
navegável. Em 1712, John Morton observava, com prazer, que havia muito
poucas matas em Northamptonshire: “num lugar habitado por gente
civilizada”, as árvores não podiam crescer. Deviam dar lugar a campos e
pastagens, de uso e de interesse mais imediatos para a vida14.
12
Emmanuel Kant. Observações sobe o Sentimento do Belo e do Sublime. Ensaio sobre as doenças mentais.
Tradução: Vinícius de Figueiredo. (São Paulo: Papirus, 1993), 26.
13
Cfr. Kant. Observações sobe o Sentimento do Belo e do Sublime. Ensaio sobre as doenças mentais, 1993, 21.
14
Keith Thomas. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800).
(São Paulo: Companhia das letras, 2010), 278-279.
Essa apropriação da natureza selvagem para fins estéticos foi analisada por
Georg Simmel a partir do surgimento da consciência da paisagem. A ausência da
paisagem é típica de sociedade em que não se consegue separar determinados
elementos da natureza para a contemplação estética. Quando não se visualiza a
paisagem, tudo é simplesmente mato, sertão, deserto. Da mesma forma que um monte
de livros não forma uma biblioteca, uma porção de natureza não forma uma paisagem.
15
Cfr. Thomas. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais, 273.
16
Keith Thomas. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais, 301.
17
Keith Thomas. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais, 366.
18
Georg Simmel. A Filosofia da Paisagem. Trad. Artur Morão. (Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2009), 6.
Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/simmel_georg_filosofia_da_paisagem.pdf Acessado em 17 set. 2018.
elas, ou seja, uma paisagem19." A paisagem, conforme Simon Schama é “cultura antes
de ser natureza; um constructo da imaginação projetado sobre mata, água, rocha 20”.
19
Anne Cauquelin. A invenção da paisagem. (Lisboa: Edições 70, 2008), 64.
20
Simon Schama. Paisagem e Memória. (São Paulo: Companhia das letras, 1996), 70.
21
José Vieira Couto de Magalhães. Viagem ao Araguaia. (São Paulo: Editora Três, 1974), 62.
22
Pepita Afiune e Eliézer C. de Oliveira. “Do maravilhoso ao desencantamento: Olhares sobre a natureza no cerrado
nos séculos XVIII e XIX”. In. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais - RBHCS Vol. 7 Nº 14, (2015), 311.
Disponível em: https://www.rbhcs.com/rbhcs/article/view/235/pdf
23
Cleber Dias. Epopeias em dias de prazer: uma história do lazer na natureza (1779- 1838). (Goiânia: Editora da UFG,
2013), 53.
pelo Tocantins. Quando se deparou com o rio Araguaia, encantou-se com o cenário:
“pela tranquilidade das águas, magnífico era o aspecto desse lugar do belo rio em que
acabávamos de entrar24.” Tendo como parâmetros os rios europeus, o inglês
assombrou-se com a grandiosidade do rio, o qual descreve com uma dimensão
oceânica.
Mesmo aos nossos pés, o magnifico rio se dividia em dois vastos braços que
limitavam a ilha, e a que dão o nome de furos. Pelo volume das aguas que
tínhamos a nossa frente e pela praia arenosa em que nos achávamos, dir-se-ia
termos chegado a alguma costa oceânica25.
24
Francis Castelnau. Expedição às regiões centrais da América do Sul. (Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000),
164.
25
Castelnau. Expedição às regiões centrais da América do Sul, 165.
26
Edmund Burke. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Trad. Enid Abreu
Dobránszy. (Campinas, SP: Papirus, Editora da Unicamp. 1993), 84.
27
Keith Thomas. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800).
(São Paulo: Companhia das letras, 2010), 377.
28
Thomas. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais, 378.
Outro entusiasta do rio Araguaia no século XIX foi José Vieira Couto de
Magalhães, Presidente da Província de Goiás (1863/64), que deixou suas impressões
registradas no livro Viagem ao Araguaia, publicado em 1863. Como empresário
visionário, estava interessado nas potencialidades econômicas da navegação do rio:
“estou convencido de que principalmente do Araguaya depende não só a prosperidade
desta Província, como também a navegação de todo o centro do Brasil 30”, mas isso não
o impediu de se encantar com as belezas naturais do rio.
Há na grandeza dessas águas uma calma tão serena, como aquela que se
observa no oceano visto ao longe.
O Araguaia corre ordinariamente entre praias de areia fina além das quais
crescem zonas de mato, que o acompanham de uma e outra margem, as quais,
para quem está dentro do rio, semelham orlas de junco, tão grande é a
distância.
29
Francis Castelnau. Expedição às regiões centrais da América do Sul. (Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000),
164.
30
José Vieira Couto de Magalhães. “Relatório apresentado à Assembleia Legislativa de Goiás.” (Goiás: Tipografia
Provincial, 1863), 28. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/313/000028.html Acessado em: 20 set. 2018.
Para qualquer parte que lancemos os olhos, enxergam-se planícies sem fim,
que se vão tornando cada vez mais azuladas, até que de todo se confundem
com o céu.
Da sua beleza encantadora, que é que diremos senão que o Araguaia pode
rivalizar com os rios mais formosos do mundo inteiro? Se há no mundo um rio
31
José Vieira Couto de Magalhães. Viagem ao Araguaia. (São Paulo: Editora Três, 1974), 94.
32
Emmanuel Kant. Observações sobe o Sentimento do Belo e do Sublime. Ensaio sobre as doenças mentais.
Tradução: Vinícius de Figueiredo. (São Paulo: Papirus, 1993), 22.
33
Kant. Observações sobe o Sentimento do Belo e do Sublime. Ensaio sobre as doenças mentais, 21.
34
Magalhães, Viagem ao Araguaia, 95.
Desse modo, Bachelard conclui que é por meio da contemplação que esta
imensidão é intensificada. Ao lado do deleite estético, advindo da contemplação de
“uma beleza encantadora” e das “praias extensas e lindíssimas”, de “ilhas verdejantes e
perfumadas” e “magníficas florestas virgens”, aparece uma visão utilitarista,
destacando, por exemplo, o cloreto de sódio e preciosas madeiras raras.
O jornalista paulista Hermano Ribeiro da Silva era também fascinado pelo rio
Araguaia, ao ponto de se destacar como o primeiro repórter a percorrer todo o rio38.
Conheceu o Araguaia em 1932, escrevendo o diário de memória Nos Sertões do
Araguaia, em que expressa sua admiração pelo majestoso e histórico rio. O seu olhar
sobre o espaço vazio retratou uma natureza onde imperava a barbárie do “homem
primitivo”, mas também a beleza de uma fauna e flora exuberantes da região central
35
Jacintho Lacomme. “Memória Dominicana”. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, n, 3, (1917), 20.
36
Gaston Bachelard. A Poética do Espaço. 2013, 198. In
https://filosoficabiblioteca.files.wordpress.com/2013/11/bachelard-a-poc3a9tica-do-espaco.pdf
37
Bachelard. A Poética do Espaço. 2013, 216.
38
Durval Rosa Borges. Rio Araguaia, corpo e alma. (São Paulo: Ibrasa, 1987), 125.
do Brasil. Ele descreve o Araguaia como um cenário de bela paisagem, relatando que
“A limpidez do azul puríssimo do firmamento casa-se com a cor das mansas águas,
distendidas entre orlas de infinitas e alvas praias de areia39”. De acordo com Burke o
sentimento de infinitude é causa “de nosso deleite em imagens sublimes 40”. Hermano
Silva completa o seu relato, extasiado com a “serena majestade dos panoramas
hieráticos”, devido ao Araguaia ser visto como uma região lendária e enredada de
mistérios.
39
Hermano Ribeiro da Silva. Nos Sertões do Araguaia. (São Paulo: Saraiva, 1949), 49-50.
40
Edmund Burke. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Trad. Enid Abreu
Dobránszy. (Campinas, SP: Papirus, Editora da Unicamp. 1993), 84.
41
Anthony Giddens. Para além da esquerda e da direita. (São Paulo: Unesp, 1996), 119.
42
Ernesto Augustus. “Propaganda da minha infância que ainda hoje marca”. (2011). Disponível em:
https://guiaecologico.wordpress.com/2011/08/03/propaganda-da-minha-infancia-que-ainda-hoje-marca/ Acessado em 17
set. 2018
43
Marcos Napolitano. História e Música: História cultural da música popular. (Belo
Horizonte: Autêntica, 2005), 7.
44
Marcos Napolitano. História e Música: História cultural da música popular. (Belo
Horizonte: Autêntica, 2005), 7.
45
Tião Carreiro e Pardinho. “Travessia do Araguaia”, (1975). Disponível em: https://www.letras.mus.br/tiao-carreiro-e-
pardinho/807032/ Acessado em 17 set. 2018.
46
Edmund Burke. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Trad. Enid Abreu
Dobránszy. (Campinas, SP: Papirus, Editora da Unicamp. 1993), 76.
XX. O que predomina nas melodias sobre o Araguaia é uma visão idealizada da
natureza, cuja beleza bucólica é apropriada pelos seres humanos. É o caso, por
exemplo, da música “Canoeira do Araguaia”, das Irmãs Freitas, cuja protagonista é
uma jovem ribeirinha que navega pelo rio, em sua canoa, contemplando a singeleza da
população indígena:
47
Irmãs Freitas. “Canoeira do Araguaia” (1978). Disponível em: https://www.letras.mus.br/irmas-freitas/1530344/
Acessado em 17 set. 2018.
48
Emmanuel Kant. Observações sobe o Sentimento do Belo e do Sublime. Ensaio sobre as doenças mentais.
Tradução: Vinícius de Figueiredo. (São Paulo: Papirus, 1993), 26.
49
Marcelo Barra. “Araguaia”. (1981). Disponível em: https://www.letras.com.br/marcelo-barra/araguaia Acessado em 17
set. 2018.
perspectiva da música “Jeito goiano”, de Amauri Garcia (2013), que realça o por do sol,
uma das mais icônicas representações do Rio Araguaia:
CONCLUSÃO
50
Amauri Garcia. “Jeito Goiano” (2013). Disponível em: https://www.vagalume.com.br/amauri-garcia/jeito-goiano.html
Acessado em 17 set. 2018.
51
Gaston Bachelard. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. (São Paulo: Martins Fontes, 1997),
18.
REFERENCIAS
Anthony Giddens. Para além da esquerda e da direita. (São Paulo: Unesp, 1996), 119.
52
Carla Edieni da Silva Alves. “Rio Araguaia: de Utopia de Salvação à Praia dos Goianos”. (Dissertação de Mestrado
em Ciências Sociais e Humanidades, Universidade Estadual de Goiás, 2017), 107.
Carla Edieni da Silva Alves. “Rio Araguaia: de Utopia de Salvação à Praia dos Goianos”.
(Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais e Humanidades, Universidade Estadual
de Goiás, 2017).
Cleber Dias. Epopeias em dias de prazer: uma história do lazer na natureza (1779-
1838). (Goiânia: Editora da UFG, 2013), 53.
Durval Rosa Borges. Rio Araguaia, corpo e alma. (São Paulo: Ibrasa, 1987), 125.
Ernesto Augustus. “Propaganda da minha infância que ainda hoje marca”. (2011).
Disponível em: https://guiaecologico.wordpress.com/2011/08/03/propaganda-da-
minha-infancia-que-ainda-hoje-marca/ Acessado em 17 set. 2018
Hermano Ribeiro da Silva. Nos Sertões do Araguaia. (São Paulo: Saraiva, 1949), 49-50.
José Vieira Couto de Magalhães. Viagem ao Araguaia. (São Paulo: Editora Três, 1974),
62, 94,95.
Remo Bodei. As formas da beleza. Trad. Antônio Angonese. (Bauru: Edusc, 2005), 117.
Simon Schama. Paisagem e Memória. (São Paulo: Companhia das letras, 1996), 70.
ABSTRACT
The objective of this article is to analyze the aesthetic representations about the Araguaia
River. The hypothesis is that the aesthetic narratives on the river, in the nineteenth century
until the first half of the twentieth century, were worth the aesthetics of the sublime; after
the second half of the twentieth century, when nature became, to use a humanized
expression of Anthony Giddens, the aesthetic accounts of the river emphasized bucolic
beauty. The reflection on the beautiful and the sublime was based on the writings of Edmund
Burke and Emmanuel Kant; on the representation of nature, used texts by Georg Simmel and
Keith Thomas. The sources for the analysis of the representations were reports (such as those
of Conde de Castelnau, Couto de Magalhães, Jacintho Lacomme and Hermano Ribeiro da
Silva) and songs about the Araguaia river (composed by Tião Carreiro e Pardinho, Irmãs
Freitas, Marcelo Barra and Amauri Garcia).
Recibido: 15/05/2018
Aprobado: 15/08/2018