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A representação latina em Hollywood: questões a serem consideradas.

Maytê Regina Vieira

A ideia deste texto é priorizar as discussões que envolvam a representação da


América Latina em Hollywood ao mesmo tempo que sua atual emergência e
visibilidade no cenário mundial, aliada a isto, a ideia central será deixar em aberto
questões para serem refletidas e aprofundadas pelos interessados por este rico campo de
pesquisa.
Certa vez, conversando com uma colega sobre cinema algumas perguntas nos
incomodaram: como Hollywood representa o latino em suas produções? Como a
televisão norte-americana apresenta o latino? Qual a visão e o imaginário em torno
deste povo que constitui uma grande gama de imigrantes nos Estados Unidos que vão
em busca do “sonho americano”? Toda esta discussão surgiu de um comentário sobre
uma famosa entrevista concedida pelo ator argentino Ricardo Darín ao programa de
televisão semanal Animales Sueltos. Um dos assuntos abordados é sua recusa a um
convite para atuar em Hollywood1. O que nos chamou atenção foi o motivo alegado:

Ricardo Darín: - Antes de fazer essa cara, me escuta, me deixe argumentar,


me ofereceram fazer um narcotraficante mexicano!
Alejandro – E?
Ricardo Darín: - E porque querem que eu faça um narcotraficante mexicano?
Então todos os narcotraficantes são latino-americanos? No país que tem o
maior consumo da face da Terra? Primeiro, não gostei. [...]

A fala de Darín traz implicações relativas a forma como a América Latina é


representada no cinema e na televisão norte-americanos. Há algumas discussões na rede
sobre o verdadeiro teor da entrevista e as reais intenções dele ao recusar o convite para o
filme2, o que importa é a verdade em sua justificativa.
Claro que há algum tempo o cenário em Hollywood tem mudado, além disto, a
produção fílmica na América Latina também tem evoluído, mas ainda assim, persistem
os estereótipos latinos na maior parte da produção dos Estados Unidos. Para confirmar
isto basta prestar um pouco mais de atenção aos filmes e séries que assistimos

1
Entrevista disponível no You Tube concedida ao late show argentino Animales Sueltos em setembro de
2013.
2
O filme é questão é Chamas da vingança (Man on fire) de 2004, dirigido por Tony Scott com Denzel
Washington no papel principal. Darín faria o antagonista da trama.
cotidianamente3 e que moldam os imaginários e a forma como são vistas culturas
diversas. A capacidade de construção do cinema e, atualmente, da televisão não tem
comparação com nenhuma outra arte.

Nenhuma outra arte possui uma força de penetração comparável: de todas as


máquinas de sonhar inventadas pelo gênio humano, o cinema é não apenas a
mais engenhosa, mas provavelmente a de maior performance. Graças a ele,
os homens do século XX passaram a viver os territórios do imaginário de
uma forma totalmente inédita, através de um dispositivo que dá a ilusão da
vida em movimento mesmo. Seus sonhos foram projetados, visualizados,
como por magia, na tela. (LIPOVETSKY, 2009. p. 301)

A dominação do mercado cinematográfico, principalmente nas Américas, por


Hollywood é consequência da forma como o cinema se desenvolveu em seus primeiros
momentos como indústria. Antes da Primeira Guerra Mundial a indústria
cinematográfica era dominada por uma parcela dos países europeus: França, Itália,
Inglaterra, Alemanha e Rússia que possuíam um forte mercado de produção e
distribuição. Com a guerra a produção europeia foi drasticamente reduzida e os Estados
Unidos passaram a dominar o mercado mundial. Segundo Mattos (2006), no final dela
90% de todos os filmes assistidos no mundo, em todos os continentes, eram americanos.
Após a Guerra, mesmo sendo a Alemanha e a União Soviética, grandes forças do
cinema mundial com produções que influenciaram a própria Hollywood, seu domínio já
era total.
Produções de outros países europeus e latino-americanos, continuaram
ocorrendo, mas com dificuldade de competitividade pela força dos investimentos feitos
pelos estúdios estadunidenses nos mercados internacionais com o intuito de vender e
fazer circular seus filmes. Nos últimos anos as produções latino-americanas, incluindo-
se aí as brasileiras, tem se desenvolvido e lutado para ganhar espaço nas salas de cinema
multiplex possibilitando um processo de modificações do estereótipo do latino-
americano, entretanto ainda há muito a ser percorrido para quebrar definitivamente um
imaginário construído durante anos de produções massivas. De acordo com alguns
autores os estereótipos latinos (criminosos, empregados, coadjuvantes) se devem a
implantação do Código Hays4 que não permitia a miscigenação de etnias, portanto,

3
Me vem à mente especificamente séries como C.S.I. Miami (2002-2012) com sua trama e crimes
centrados em Miami, uma das cidades com maior incidência de imigrantes latinos, dentro deste contexto,
obviamente, os criminosos, geralmente, são latinos ou envolvidos em gangues latinas.
4
Um código de censura que foi estabelecido em Hollywood dos anos 1930 a 1960 por conta da pressão
de religiosos e conservadores que se escandalizavam com cenas consideradas impróprias: nudez,
prostituição, uso de drogas, miscigenação racial, uso de palavras de baixo calão, etc.
somente os atores estadunidenses poderiam protagonizar ou ter papéis de importância
nos filmes. A censura encerrou, porém a postura do cinema com a origem de alguns
atores permaneceu.
Não somente dos latinos, os indígenas e os africanos, mesmo aqueles
estadunidenses também foram sempre deturpados e estereotipados por Hollywood. O
autor Robert Stam (2000), um estadunidense que pesquisa sobre cultura e é considerado
um profundo conhecedor do cinema brasileiro, em seu livro Introdução à teoria do
cinema retrata os vários cinemas ao redor do mundo e sua perspectiva dentro dos
Estados Unidos. Ele fala que frequentemente o homem latino é estereotipado como
violento, membro de gangue, toureiro ou revolucionário, enquanto a mulher é sempre
hipersexualizada. Os mexicanos são comumente retratados nos filmes de faroeste, por
exemplo, de forma inversamente proporcional ao anglo americano (termo usado por
ele), ou seja, enquanto o primeiro é preguiçoso e desmazelado, o segundo é o forte
trabalhador e conquistador, isto no que ele chama de ficção de conquista. “A moralidade
é definida pela cor, quanto mais escura pior será a personagem.” (STAM, 2000). Isto
revela padrões opressivos de preconceito.
Para Stam (2000) não somente a imagem, mas a forma de filmagem também é
fundamental para demonstrar este preconceito, ele sugere que ao analisarmos um filme
buscando estas questões que observemos: quanto tempo eles aparecem na cena? Como
são filmados? Quanto tempo aparecem em comparação com os euro-americanos? São
personagens ativas ou apenas elementos decorativos? Como se posicionam?

Se, por um lado, o cinema é mimese e representação, por outro, é também


enunciado, um ato de interlocução contextualizada entre produtores e
receptores socialmente localizados. Não basta dizer que a arte é construída.
Temos de perguntar: Construída para quem e em conjunção com quais
ideologias e discursos? Nesse sentido, a arte é representação não tanto em
sentido mimético quanto político, de delegação de voz. (STAM, 2000, p. 305)

Uma outra análise apontada pelo autor é de algo que consideramos de alguma
maneira inocente: desenhos e desenhos animados. Neste contexto específico, os estúdios
Disney mostram personagens e lugares latinos, africanos e orientais sob estereótipos
totalmente preconceituosos de forma naturalizada o que nos dá um panorama
desalentador de como uma minoria que detém o monopólio do poder da imagem vê uma
maioria e cria representações sem nenhum pudor sobre ela5.

5
Pense em Zé Carioca: como ele é representado? Um corvo, portanto, preto, malandro, preguiçoso,
sempre tentando “se dar bem”.
O latino6, desde as primeiras décadas, é retratado como o bandido, o malandro.
Isto é visível nos faroestes que retratam a conquista e expansão de fronteiras nas terras
de um povo preguiçoso, pobre e servil sendo coadjuvantes para o heroico cowboy
americano. Nos anos 1970 e 1980 o papel passou a ser de mafioso (para os italianos) e
narcotraficantes das mais diversas origens: México, Colômbia, Bolívia, etc. Neste
ponto, voltamos a fala de Darín que demonstra o quanto esta imagem ainda está posta.
Numa outra frente, temos a questão das mulheres. E evoco como um exemplo
primordial Carmem Miranda. A atriz foi convidada para participar de produções
cinematográficas nos Estados Unidos durante o período de 1940 a 1945 em que a
política externa norte americana estava voltada para conquistar e moldar o restante das
Américas através da utilização de atores latino-americanos no cinema hollywoodiano. A
ideia era promover a amizade e a troca cultural, porém deixando claro a superioridade
dos Estados Unidos sobre o restante. “Ao lado de outros artistas latino-americanos, seu
papel era suavizar, naturalizar e disseminar as narrativas interamericanas [...] por meio
da comédia, da música, de suas curvas, das piscadelas e do grande sorriso.” (MACEDO,
2013).
Neste contexto, Carmem Miranda representa bem a forma como os latino-
americanos eram vistos de forma distorcida principalmente as mulheres. Suas roupas
precisavam deixar a mostra as pernas, o abdômen, os braços e o busto, suas unhas e
boca pintados de vermelho e com uma forte conotação de inspiração nos trajes
caribenhos. A baiana da atriz mescla identidades diversas ao mesmo tempo em que as
distorce, confundindo e negando as diversas etnias, costumes e culturas que convivem
nas Américas do Sul e Central e no México. Além do agravante de mostrar a mulher
latina como objeto de desejo e disposta ao sexo fácil, a mulher caliente, como a cubana
Estelita Rodriguez que atuou na década de 1950 e era chamada de Cuban fireball (bola
de fogo cubana). A representação e a apresentação delas induz à ideia de que as
mulheres latinas são somente para desfrutar, não para se apaixonar.
Neste período propagou-se e consolidou-se a imagem da América Latina como o
paraíso para as férias dos estadunidenses com suas praias, belezas naturais, mulheres
permissivas e homens servis, onde seu dinheiro compra tudo por tratar-se de lugares
pobres e subdesenvolvidos. Mesmo com toda a evolução das últimas décadas ainda há
6
Latino: aqui referido como os povos de línguas originadas do latim como alguns europeus (espanhóis e
italianos) e os da América Latina englobando Américas do Sul e Central e o México. Inclusive o México,
assim como o Egito, é tão estereotipado que o imaginário cinematográfico o descolou de sua localização
geográfica. “Esquecemos” que o primeiro faz parte da América do Norte e o segundo da África, embora
eles sejam vistos de forma contrária, é um bom exemplo.
muito que mudar nesta visão que compartimenta conhecimentos, que não vê os
verdadeiros sujeitos sociais, que contempla o outro somente de acordo com seu desejo.
É a cultura de que o homem branco, civilizado, racional é aquele que vem da Europa
(ainda assim, partes dela) e dos Estados Unidos da América.
Mais recentemente as mudanças, bem vindas, tem sido por conta das produções
e inserções da América Latina no cenário dos Estados Unidos e da Europa. Vários
filmes de qualidade inquestionável tem tido visibilidade, assim como diretores e atores
latinos, tem ganho cada vez mais espaço.
Em 2014 Gravidade (2013) deu a seu diretor, o mexicano, Alfonso Cuarón o
Oscar de Melhor Diretor, prêmio recebido também em 2015 por outro mexicano,
Alejandro González Iñarritu por Birdman ou A inesperada virtude da ignorância
(2014). Nos últimos anos filmes latino-americanos tem conquistado sucesso de público
e crítica numa clara demonstração da capacidade e da qualidade do cinema local, filmes
como Relatos Selvagens (2014), O segredo de seus olhos (2009), A pele que habito
(2011), O labirinto do fauno (2006) para citar somente alguns e os diretores como
Guillermo Del Toro, Pedro Almodóvar, entre outros, além dos mencionados por
ganharem o Oscar, ficaram conhecidos por projetos de sucesso. Cada vez mais latinos
tem participado e ganhado notoriedade em Hollywood.
A qualidade e a capacidade do cinema latino-americano tem crescido cada vez
mais conquistando o público e competindo no e com o mercado internacional,
esperemos que este desenvolvimento faça com que avance cada vez mais a
desconstrução dos estereótipos. Prova disto, são os excelentes diretores e atores latinos
que tomado cada vez mais espaço, além de cinemas nacionais que tem se destacado pelo
mundo afora, como é o caso do Novo Cinema Argentino, nas palavras de Fernando
Mascarello (2008) que tenta ter no cinema uma forma de reflexão, de catarse,
mostrando conflitos pessoais e do indivíduo de forma a mostrar o mundo, algumas
vezes de um realismo desconcertante ao nos fazer encarar um mundo ao qual temos que
nos adaptar.
A intenção desta breve exposição era deixar em aberto as questões para
discussão e aprofundamento na apresentação do projeto, para isto, utilizaremos trechos
de alguns filmes e séries de televisão na intenção de gerar um debate produtivo e
dinâmico. Alguns podem se perguntar e apontar a falta de menção aos filmes brasileiros,
estes serão deixados para mais tarde pois, há previsão de um momento somente para o
nosso cinema nacional, por isto não o abordamos aqui.
Bibliografia de apoio:

BALIEIRO, F. F. Carmem Miranda entre desejos de duas nações: uma análise de suas
personagens baiana e latino-americanas no cinema. In: Anais do XI Congresso Luso
Afro Brasileiro de Ciências Sociais, Salvador, 2011.

BAPTISTA, M; MASCARELLO, F. (orgs). Cinema mundial contemporâneo.


Campinas, SP: Papirus, 2008.

GUSMÃO, N. M. M. Linguagem, cultura e alteridade: imagens do outro. In: Cadernos


de Pesquisa, nº 107, p. 41-78, julho/1999.

LIPOVETSKY, G. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto


Alegre: Sulina, 2009.

MACEDO, K. B. Formas de desrespeito na representação latino-americana de


Hollywood, através de Carmem Miranda (1940-1945). In: Anais eletrônicos do
Seminário Internacional Fazendo Genêro 10 – Desafios atuais dos feminismos,
Florianópolis, 2013.

MATTOS, A. C. G. Do cinetoscópio ao cinema digital: breve história do cinema


americano. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

MASCARELLO, F.; BAPTISTA, M. (orgs.). Cinema mundial contemporâneo.


Campinas, SP: Papirus, 2008.

PAIVA, C. C. O cinema de Hollywood e a invenção da América. Mídias e


interculturalidades locais e globais. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/paiva-
claudio-hollywood-invencao-america.pdf Acesso em: 25 jun. 2015.

STAM, R. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003.

Alguns sites

Mesmo se tratando de publicações não científicas, os artigos fazem um bom apanhado


geral sobre o assunto e servem como exemplos de filmes a serem analisados:
http://super.abril.com.br/linha-do-tempo-a-historia-dos-latino-americanos-em-
hollywood
http://super.abril.com.br/blogs/cultura/como-os-artistas-latino-americanos-
conquistaram-hollywood/
Sugestão de Filmes: (títulos em português)

A máscara do Zorro (1920, 1940, 1974 e 1998) (todos disponíveis na internet)


De 1998: Antonio Banderas (espanhol) é o protagonista

Meu amor brasileiro (1953) (Latin lovers)


Ricardo Montalban – mexicano retratado como brasileiro

Sete homens e um destino (1960)


Mexicanos que procuram um grupo de pistoleiros (todos americanos) para defende-los.

Boulevard night (1979)


Latinos que vivem em Los Angeles e buscam sair de uma gangue, o filme retrata a vida
na gangue

O poderoso chefão (1972, 1974 e 1990)

Frida (2002)

O segredo dos seus olhos (2009)


Filme argentino sobre a obsessão de um funcionário da justiça com um caso não
resolvido de estupro e assassinato.

Relatos Selvagens (2014)


O labirinto do fauno (2006)
Amores brutos (2000)
Gravidade (2013)
Birdman (2014)
Narco (2015) – série original da e disponível na Netflix

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