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O poder das palavras e a força das imagens

A retórica na era do audiovisual

António Fidalgo∗

Índice gráficas animadas, de que são exemplo conhe-


cido as apresentações feitas em ‘power-point’.
1 O exemplo da hipotipose 1
2 Percepções e inferências 2
3 O geral e o particular ou o abstracto e
1 O exemplo da hipotipose
o concreto 2 Das figuras retóricas destaca-se a hipotipose,
4 A força das imagens 3 provavelmente a mais explosiva de todas, 1
5 As apresentações gráficas 4 figura que procura mediante uma descrição
6 A imagem do orador 5 viva de uma situação impressionar e con-
vencer o auditório. Na literatura portuguesa
7 O poder das palavras 5
é sobejamente conhecida a brilhante hipoti-
pose que o Pe António Vieira faz no Sermão
contra as Armas de Holanda, quando des-
Entendida a retórica como a “faculdade de
creve o que sucederia quando os protestan-
teorizar sobre o que é adequado em cada caso
tes holandeses entrassem na católica cidade
para convencer” (Aristóteles, 1355b), há que in-
da Baía: “E para que o vejais com cores hu-
cluir na teoria os novos meios e as novas técni-
manas, que já vos não são estranhas, dai-me
cas utilizados hoje na arte de convencer. A re-
licença, que eu vos represente primeiro ao
tórica clássica estava centrada na oralidade e
vivo as lástimas e misérias deste futuro di-
na presença física, mas hoje o discurso público
lúvio (...) Finjamos pois o que até fingido
é veiculado por órgãos de comunicação de mas-
e imaginado faz horror; finjamos que vem a
sas, mormente a televisão, e o recurso à imagem
Baía e o resto do Brasil a mãos dos holan-
neste discurso torna-se mais e mais imprescindí-
deses. (...) Entrarão os hereges nesta igreja
vel. Falar para uma plateia é muito diferente de
e nas outras; arrebatarão essa custódia em
falar na televisão, tal como são diferentes as téc-
1
nicas de convencer um auditor em presença rela- - Olivier Reboul, Introdução à Retórica, São
tivamente às de convencer um espectador em au- Paulo: Martins Fontes, 1998, pg. 136. “Mas a mais
explosiva provavelmente é a hipotipose (ou quadro),
sência. E mesmo num discurso presencial assisti-
que consiste em pintar o objecto de que se fala de ma-
mos cada vez mais ao recurso a meios audiovisu- neira tão viva que o auditório tem a impressão de tê-lo
ais, como sejam retroprojectores e apresentações diante dos olhos. Sua força de persuasão provém do
facto de que ela ‘mostra’ o argumento, associando o

Universidade da Beira Interior patos ao logos.”
2 António Fidalgo

que agora estais adorado dos Anjos; toma- 2 Percepções e inferências


rão os cálices e vasos sagrados, e aplicá-
los-ão a suas nefandas embriaguezes; der- Seja como premissa, como confirmação ou
rubarão dos altares os vultos e estátuas dos reforço de uma conclusão, a hipotipose é
Santos; deformá-las-ão a cutiladas, e metê- uma figura claramente perceptiva, isto é, as-
las-ão no fogo; e não perdoarão as mãos fu- senta no testemunho (imaginado) dos senti-
riosas e sacrílegas nem às imagens tremen- dos. O que o orador intenta com a hipotipose
das de Cristo crucificado, nem às da Virgem é que o ouvinte se convença tal como acon-
Maria”. teceria com uma percepção directa do que é
O poder das palavras aqui reside justa- assim descrito. Ora o que caracteriza a per-
mente na força das imagens que suscitam. cepção, em termos de convencimento, é o ser
Aos auditores é-lhes pintado ‘em cores’ e directa. Quem vê e ouve não reflecte o que
‘ao vivo’ os horrores sacrílegos do ‘futuro vê e ouve. Aqui a força do convencimento é
dilúvio’. Deste modo a hipotipose basta-se a força do que entra pelos olhos dentro.
a si mesma, isto é, não necessita de ir bus- Em retórica, ao contrário da lógica, é mais
car a sua força a premissas anteriores; não se fácil acreditar no que directamente se vê ou
funda numa cadeia argumentativa. O con- percepciona do que no que fica demonstrado
vencimento aqui nasce da própria situação numa rigorosa cadeia inferencial ou argu-
descrita e é tanto maior quanto mais carre- mentativa. Na percepção, e na hipotipose,
gados forem os traços e mais vivas as cores não é necessário esforço, as coisas oferecem-
da descrição. se ao olhar, ao passo que num processo in-
Mas se a hipotipose assenta na capacidade ferencial há que permanentemente aferir as
pictórica das palavras e, portanto, na capa- conclusões e os passos da conclusão relati-
cidade imaginativa do ouvinte, então a apre- vamente às premissas e regras de inferência,
sentação de imagens ‘reais’ e não fantasia- o que, não raras vezes, exige um grande es-
das, reforça ainda mais a função retórica da forço intelectual.
hipotipose. É aqui que uma imagem vale A expressão “ver para acreditar”, ou a sua
mais do que mil palavras e é neste ponto que variante “não há como ver para acreditar”
a mais pobre reportagem televisiva suplanta traduz bem a primazia do directo sobre o in-
a mais rica reportagem radiofónica. É prefe- directo, no que ao convencimento diz res-
rível ver a imaginar. peito. O que é directo é evidente por si e,
Retomando a citada hipotipose do Pe An- portanto, basta-se, enquanto o que é indi-
tónio Vieira, mais impressionante que o re- recto é insuficiente, tem de recorrer sempre
lato dos sacrilégios seria o seu visionamento ao directo, nomeadamente às premissas da
numa peça audiovisual, fácil de montar. argumentação.
Poder-se-ia ver a custódia ser arrebatada vi-
olentamente do altar, a hóstia ser deitada ao 3 O geral e o particular ou o
chão, poder-se-ia ver em pormenor a profa- abstracto e o concreto
nação do templo e das alfaias litúrgicas, e a
mutilação das estátuas de santos, em particu- De algum modo associado à distinção entre
lar as do Cristo e as da Virgem. o que é do domínio da percepção e do da in-

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O poder das palavras e a força das imagens 3

ferência, está a distinção entre o geral e o lart, no facto de ser muito mais concreta
particular ou entre o abstracto e o concreto. e emocional. “Enquanto Londres emitia
Tudo o que é percepcionado, aquilo que, em notícias anunciando as atrocidades cometi-
termos retóricos, entra pelos olhos dentro, é das pela soldadesca inimiga, com fotogra-
particular e concreto. O que é dado aos senti- fias mostrando-a em pilhagem, etc., Berlim
dos é aquilo e não outro, é algo determinado, lançava-se em longas dissertações, demons-
concreto e definido. trando que só o interesse do Reino Unido em
Ora para convencer há que descer ao parti- liquidar a indústria do seu concorrente tinha
cular e ser concreto. Os ouvintes precisam de justificado a guerra, explicando com profun-
sentir, e não apenas de entender, a verdade ou dos detalhes as razões históricas e diplomá-
a justeza daquilo que se lhes pretende trans- ticas da política de cerco da Alemanha por
mitir na peça retórica. Para isso nada me- parte de Eduardo VII.”2
lhor do que um caso real, um exemplo ou
uma fábula. Aqui encontramo-nos no âm-
bito do particular e concreto. É sabido que o 4 A força das imagens
livro de Harriet Elizabeth Stowe, A Cabana
A força retórica das imagens advém-lhes de
do Pai Tomás, teve uma influência decisiva
serem particulares e concretas. Não há uma
no sentimento popular norte-americano con-
imagem do homem em geral, mas deste ou
tra a escravatura e que, por isso, é apontado
daquele homem, bem concreto e definido.
como uma das causas da guerra civil ame-
Enquanto as palavras designam (na lingua-
ricana. Para convencer um povo da injustiça
gem de Kant) conceitos, representações ge-
da escravatura, uma boa história vale mais do
rais, as imagens são de cariz intuitivo, e, por-
que um tratado filosófico sobre a igualdade
tanto, representações particulares. Tudo o
humana.
que é real é determinado, particular e con-
No convencimento o apelo às emoções é
creto. Um homem real é um ser com de-
tão ou mais forte, consoante as circunstân-
terminadas características, com uma fisiono-
cias, que o apelo à razão. E aí jogam os ca-
mia própria e outras particularidades únicas.
sos e não as ideias. Para convencer um pai
Ora a imagem é sempre a imagem de alguma
ou uma mãe que, por tradição e cultura, ti-
coisa, com uma forma determinada, a ima-
ram os filhos da escola para os pôr a traba-
gem de algo concreto. As palavras são sem-
lhar e, assim, os integrar logo cedo na eco-
pre da ordem do geral, referem-se a classes
nomia familiar, não bastam discursos racio-
de objectos e o seu significado é de natureza
nais, há que saber ‘pintar’ o futuro negro que
ideal. A palavra “homem”, significando ser
a baixa escolarização acarreta e, simultanea-
humano, tanto pode referir-se a uma homem
mente ‘pintar’ o futuro risonho de uma esco-
como a uma mulher, a um jovem como a um
laridade completa. E aqui ‘pintar’ significa
idoso, a um branco como a um negro, a um
ser concreto, expor esta e aquela possibili-
baixo como a um alto, a um gordo como a
dade.
A supremacia da propaganda britânica so- 2
- Armand Mattelart, A Comunicação-mundo.
bre a germânica, durante a Primeira Guerra História das Ideias e das Estratégias, Instituto Pia-
Mundial, residiu, segundo Armand Matte- get, Lisboa, 1997, p. 65.

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4 António Fidalgo

um magro. Trata-se de uma representação da imagem universalizou-se e trivializou-se


geral, abstracta. nos mais diferentes domínios da vida hu-
Dito isto, parece óbvio que as imagens es- mana. Neste momento, encontramo-nos na
tão muito mais próximas da realidade do que fase das imagens virtuais que representam
as palavras. Enquanto as imagens são refe- visualmente o que até agora não era possí-
rências directas ao que lá está, as palavras vel de representar (o big-bang) e antecipam
podem ser muito vagas no que concerne ao a realidade do futuro em maquetas de reali-
que elas pretendem referir. Mas visto que o dade virtual (apartamentos, pontes, aeropor-
ponto de partida de todo o convencimento é a tos, ainda por construir).
realidade, esta é a grande premissa da arte re-
tórica; não há retórica que valha contra a re-
5 As apresentações gráficas
alidade! Daí que haja necessidade de verifi-
car pelos sentidos aquilo que se ouve. É pró- A invasão das imagens nos processos de con-
prio de quem é humano ser como o apóstolo vencimento tem um exemplo conhecido no
Tomé, ver com os próprios olhos e tocar com crescente número de comunicações públicas
as próprias mãos para acreditar. Acredita-se feitas com a ajuda de retroprojectores ou en-
no que se vê ou então naquilo que pode ser tão de projecções animadas por computa-
confirmado com os próprios olhos. Os juizes dor. Há oradores (conferencistas, professo-
finais da realidade são os sentidos. res) que não são capazes de fazer uma expo-
De certo modo, ver uma imagem, sobre- sição seca, unicamente oral, sem os condi-
tudo uma fotografia, é como ver a própria mentos visuais. Mas mais do que o facilitar a
coisa. Ficamos de igual modo convencidos vida ao orador, o que interessa aqui é a ape-
quando vemos a fotografia de um aconteci- tência que os públicos têm pelas apresenta-
mento, tal como se lá tivéssemos estado e ções em que não se limitam a ouvir, mas em
visto com os próprios olhos. que também podem visualizar gráficos, es-
É esta força das imagens, a sua ligação quemas, organigramas, fotografias, e até pa-
directa à realidade bem concreta e definida, lavras. Com efeito, há conferencistas que se
que a propaganda e a publicidade hoje em dia limitam a ir lendo o que vão projectando. O
utilizam em catadupa. Quando não há ima- que se passa à primeira vista, é que existe
gens do publicitado, constroem-se, nomea- uma tendência para ocupar os vários senti-
damente por associação ou por simboliza- dos, audição e visão, e quanto maior for a
ção. Há imagens para perfumes, e associam- envolvência sensitiva, tanto mais fácil será a
se imagens de plantas e de jardins, imagens captação da atenção do público.
de solidariedade, uma mão que agarra outra, As apresentações gráficas não se restrin-
imagens de justiça, o símbolo da mulher de gem aos objectos, mas estendem-se também
olhos vendados, com a espada na mão, e a às relações. É frequentemente um traço,
balança noutra. uma linha, uma seta designar uma relação de
Com a facilidade de fazer imagens nos antecedente-consequente, de causa-efeito,
nossos dias, fotografia, vídeo, a simplifica- de condição-condicionado, de premissa-
ção, a miniaturização e portabilidade das res- conclusão. A representação linear, gráfica,
pectivas câmaras, e o seu baixo custo, o uso simboliza a relação temporal, física, lógica,

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O poder das palavras e a força das imagens 5

que normalmente são expressas pela lingua- interfere geralmente nas nossas concepções
gem. de bondade e de beleza, e sempre na de ver-
Tais representações gráficas de relações dade.5
lógicas são usualmente uma simplificação, Dito isto, Postman procura demonstrar ao
por vezes tremenda, que torna muito mais fá- longo do livro de que “o declínio da epis-
cil o acompanhamento de quem ouve, e vê, temologia tipográfica e a concomitante as-
das ideias do orador. É que há uma ambi- censão da epistemologia televisiva tem gra-
guidade nas grafismos, quase plástica, que ves consequências na vida pública, que desse
dá para todos. No momento em que houver modo nos tornamos cada vez mais néscios.”6
necessidade de determinar de forma clara o
tipo de relação em vista, e isso só poderá ser
feito por palavras, então a simplicidade de- 6 A imagem do orador
saparece e surgem as incongruências e dis-
Ao mesmo tempo, e numa sociedade suma-
sonâncias.
mente mediatizada o político converteu-se na
Na crítica que faz à televisão em Amusing
sua própria imagem. Postman deu-e bem
Ourselves to Death,3 Postman dá-se bem
conta disso ao afirmar que a retórica passou
conta de como a veiculação do discurso pú-
de uma retórica do discurso para uma retó-
blico pelos meios de comunicação audiovi-
rica da apresentação audiovisual, em que as
suais transforma radicalmente a natureza do
pessoas da esfera pública são obrigadas a um
discurso e mesmo toda a sociedade. A aná-
desempenho de verdadeiros actores. Mais do
lise que faz é de como a televisão representa
que o conteúdo, o que importa é a telegenia
o fim do espírito tipográfico no discurso pú-
de quem o transmite e a forma agradável de
blico.
como o transmite.
A expansão da televisão no quotidiano das
pessoas significa uma alteração no seu modo
de percepcionar, pensar e viver, ou seja, dá 7 O poder das palavras
azo a uma nova epistemologia. É que, pelo
princípio da ressonância, 4 um meio ultra- E, no entanto, só as palavras verdadeira-
passa o contexto inicial e restrito do seu uso, mente têm o poder de convencer. Parece isto
ele induz a uma nova maneira de organizar um paradoxo, depois do que foi dito. Procu-
a mente e a outras formas de assimilação da rarei demonstrar que não há paradoxo algum.
experiência do mundo e dos outros. O meio
5
- “It sometimes has the power to become impli-
3
Neil Postman, Amusing Ourselves to Death. Pu- cated in our concepts of piety, or goodness, or beauty.
blic Discourse in the Age of Show Business, Penguin And it is always implicated in the ways we define and
Books, New York, 1986. regulate our ideas of truth.” Ibidem, p.18
4 6
- O conceito de ressonância busca-o Postman - Some ways of truth-telling are better than
(ibidem, p. 17) em Northrop Frye, The Great Code: others, and therefore have a healthier influence on the
The Bible and the Literature, Toronto: Academic cultures that adopt them. Indeed, I hope to persuade
Press, 1981. “Through resonance, a particular state- you that the decline of a print-based epistemology and
ment in a particular context acquires a universal sig- the accompanying rise of a television-based epistemo-
nificance.” logy has had grave consequences for public life, that
we are getting sillier by the minute.” Ibidem, p. 24.

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6 António Fidalgo

O significado das imagens depende neces-


sariamente das palavras que as acompanham.
As imagens só por si não são suficientes, an-
tes o seu significado depende e varia com as
palavras associadas. O significado da mesma
imagem, da mesma fotografia, altera-se con-
soante a informação que sobre ela se dá. Foi
a partir desta intelecção que Roland Barthes
concebeu, ao arrepio da teoria de Saussure,
a linguística como uma disciplina mais ge-
ral que a semiologia. A razão dada para
esta inversão deve-se à constatação de que
"qualquer sistema semiológico se cruza com
a linguagem". Barthes nega aos outros siste-
mas semiológicos uma autonomia de signi-
ficação, isto é, eles só significam na medida
em que se cruzam com a linguagem.7
Mas, porventura, a abordagem mais sim-
ples para averiguar do poder específico da
linguagem no processo de conhecimento re-
sida no valor ilocucionário das palavras. Os
actos de fala representam uma performance
específica da língua. Ora o convencimento
também pode ser considerado um acto ilo-
cucionário, ou melhor, perlocucionário. O
impacto das palavras pode não ser, e usual-
mente não é, tão forte como o das imagens,
mas a sua acção é mais forte, o seu efeito
mais entranhado.

7
- Roland Barthes, Elementos e Semiologia, Lis-
boa: Ediços 70.

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