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Beckett e o Estupor PDF
Beckett e o Estupor PDF
Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística
Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA
Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: pgletba@ufba.br
O ESTUPOR EM BECKETT
O ESTUPOR COMO LIBERTAÇÃO E TRAGÉDIA EM ELEUTHERIA
por
Orientadora
SALVADOR
2005
Universidade Federal da Bahia
Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística
Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA
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O ESTUPOR EM BECKETT
O ESTUPOR COMO LIBERTAÇÃO E TRAGÉDIA EM ELEUTHERIA
por
Orientadora
SALVADOR
2005
Biblioteca Central Reitor Macedo Costa - UFBA
CDU - 821(417).09
CDD - 820.09
À memória de meu pai, que morreu antes do fim.
Agradecimentos
e a Claudio Simões, meu amigo escritor, quase irmão, pelo olhar atento.
Álvaro de Campos
RESUMO
O ESTUPOR EM BECKETT
STUPOR IN BECKETT
The literary and theoretic establishment of the concepts on stupor, on narrative breaks and
interruption of the narrative flux. The studies about the stupor effect as it is seen in psychiatry
and psychoanalysis, of the rhythm and the effects of a narrative. The critical study about the
stupor in William Shakespeare, Anton Tchekhov and Samuel Beckett. The meaning of an
evolution of the fundaments of tragedy. The stupor as hýbris. The tragic fall through these
fundaments in the Beckettian drama.
The genesis of a Beckettian poetics by his philosophic relations and by his work as a literary
and art critic. The picture of the artist as a critic. Beckett´s philosophic relations and the
development of the Beckett-the-writer through the Beckett-the-critic. Reading of Beckett´s
writings on the works written by James Joyce, Marcel Proust and the modern painters,
relating them with examples taken from the fictional works of the author.
Critic reading of the play Eleutheria, written by Samuel Beckett in 1947. The stupor as
hýbris, functioning as a strategy of liberation and cause of ruin.
1 INTRODUÇÃO
Nosso interesse pela dramaturgia de Samuel Beckett foi despertado muito cedo, depois
– o teatro de Samuel Beckett hoje, promovido pela Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de
Janeiro, no ano de 1986. O espetáculo, sob a direção de Rubens Rusche, fazia parte de um
projeto chamado “Beckett 80 anos” e trazia quatro pequenas peças escritas entre os anos de
1963 e 1982.
Universidade Federal da Bahia, sob a coordenação de Luiz Marfuz, dando início, assim, à
nossa carreira profissional de ator. O resultado final do curso Livre foi a apresentação do
espetáculo Sim, uma coletânea de textos de Fernando Arrabal, um dos expoentes do chamado
“teatro do absurdo”, organizada por Cleise Mendes. Desta maneira, travamos contato com as
Beckett.
Bacharelado em Artes Cênicas com habilitação em Direção Teatral. Durante o ano de 1991,
nos dedicamos à pesquisa intitulada A gênese de um sucesso, que fez parte do Programa de
Iniciação Científica CNPq/UFBa, sob orientação do professor Armindo Bião. Neste mesmo
ano, nosso texto A tragédia feminina (um estudo sobre as personagens femininas da Trilogia
UFBa.
em outras línguas, cujo objetivo sempre fora a montagem dentro de salas de aula ou pequenas
mostras internas de cunho universitário. Faz parte destes exercícios o texto de A lacuna, de
Eugène Ionesco. Nosso projeto de graduação foi realizar a tradução e encenação de três peças
curtas de Samuel Beckett – Come and go (1965), Quad (1982) e What where (1983) – sob o
título de 3xNada.
intitulada Restos, que era composta também por três peças curtas escritas por Beckett – Ohio
é o de dar maior esteio teórico e metodológico que possa implementar nosso trabalho como
encenador.
nosso horizonte metodológico e voltamos nosso olhar para os estudos sobre o estupor sob o
fundamentais da tragédia, para provar que o estupor das personagens das peças de Beckett
funciona como hýbris e, desta maneira, analisamos a precipitação trágica do drama
O segundo capítulo é a busca de uma gênese da poética beckettiana, através das suas
relações filosóficas e da sua experiência como crítico literário e de arte. Nesta parte da
dissertação, nossa intenção é fazer o retrato do artista enquanto crítico. Para isto,
Beckett sobre a obra de James Joyce, de Marcel Proust e de pintores modernos, fazendo
escrito por Beckett em 1947, numa abordagem que utiliza as duas partes anteriores como
subsídio. Desta maneira, vemos que o estupor, enquanto hýbris, atua como estratégia de
Como uma parte da bibliografia que pesquisamos não estava disponível em português,
optamos por traduzir os fragmentos utilizados no corpo de nossa dissertação para não
interromper o fluxo de leitura. Da mesma maneira, fizemos a tradução dos trechos de peças
de Beckett indisponíveis em língua portuguesa. Para isto, utilizamos a edição inglesa Samuel
Beckett - The complete dramatic works, da Faber and Faber, mesmo nas peças escritas
originalmente em francês pois, nesta edição, as traduções para o inglês foram realizadas pelo
próprio Beckett ou sob sua supervisão. O procedimento com Eleutheria ocorreu de maneira
diferente. Como a peça foi escrita originalmente em francês – assim como boa parte da obra
de Samuel Beckett – e não possui tradução inglesa do próprio autor, se fez necessário o nosso
texto original. Foi utilizada, como auxiliar, a tradução inglesa de Barbara Wright, cuja
disciplina empregada como tradutora pode ser considerada um exemplo de método para
tradução. A tradutora explica, numa nota que antecede à peça, que estudou todas as traduções
que Beckett fez de suas próprias obras e decidiu criar um vocabulário próprio a partir destas
traduções. Wright afirma que não utilizou nenhuma palavra que Beckett já não tivesse usado
Todas as vezes em que foi utilizada a nossa tradução, tanto nos textos teóricos como
‘[Tradução do autor desta dissertação]’. As únicas exceções são os vários trechos traduzidos
de Eleutheria que, apesar de não trazerem a nota explicativa, foram todos traduzidos por nós.
Desta maneira, utilizamos nossa experiência na tradução de peças de teatro para trazer para o
1 INTRODUÇÃO
2 ESTUPOR E TRAGÉDIA
2.1 O estupor
2.2 O estupor no drama: Shakespeare e Tchekhov
2.3 O estupor entre a errância e o discurso espiral: Beckett
2.4 A tragédia e a idéia do trágico
2.5 O sentido de uma evolução do trágico: em busca de uma filosofia do trágico
2.6 A partida e a impossibilidade da partida: atos trágicos
2.7 A tragédia em Beckett: o estupor como hýbris
3 BECKETT ENQUANTO DEVIR DE ARTISTA SE NUTRE DAS EXPECTATIVAS FORMAIS
DO BECKETT CRÍTICO
3.1 O retrato do artista
3.2 As relações filosóficas de Beckett
3.3 O primeiro ensaio: Joyce. Em busca de um eixo formal
3.4 O segundo ensaio: Proust. Em busca de um eixo moral
3.5 O terceiro ensaio: a pintura de Pierre Tal Coat, de André Masson e de Bram
Van Velde. Em busca do nada
4 ELEUTHERIA
4.1 A equação beckettiana em Eleutheria
4.2. A importância do nome
4.3 Eleutheria: Entre Círculos internos, vaudeville e meta-drama
4.4 Alexitimia e estupor entre o Tempo, a Liberdade e o Nada
4.5 Libertação e ruína em Eleutheria
5 CONCLUSÃO
6. BIBLIOGRAFIA
2 ESTUPOR E TRAGÉDIA
Samuel Beckett
2.1 O ESTUPOR
pelo mutismo e pela aparente indiferença aos estímulos externos. Geralmente associado,
do momento em que, mesmo estando desperto, o paciente passa a não reagir mais a
Beckett, Barnard, na introdução de seu estudo, toma como exemplo uma das primeiras
narrativas beckettianas, a coletânea de contos More pricks than kicks, e afirma que o
protagonista
Entre os sintomas deste estupor catatônico a que Barnard se refere estão a aparente
1
BARNARD. G. C. Samuel Beckett – A new approach: a study of the novels and plays. Nova York, Dodd,
Mead & Company, 1970. p. 4.
2
BARNARD. Op. Cit. p. 5.
esquizofrenia está associada a disfunções de pensamento e do discurso. Isto causa
Barnard no terceiro capítulo desta dissertação, quando faremos uma leitura da personagem
O termo alexitimia refere-se a pessoas que [...] não conseguem identificar e nem
descrever seus sentimentos. O termo [...] vem do grego: a (que significa
ausência), lexis (palavra) e Thymós (que significa emoção). [.] Os alexitímicos
sofrem de incapacidade de descrever sentimentos próprios ou de reconhecer os
sentimentos daqueles à sua volta. Não sabem discriminar emoções e nem
distinguir emoções de sensações físicas. 3
“alma” ou “espírito”. Desta maneira, podemos concluir que alexitimia pode ser definida
Ao buscar uma possível causa ou algum fator que gerasse a alexitimia, chegamos a
capítulo em que trata do Narrador, afirma que a primeira Guerra Mundial teria
3
QUILICI, Mário. Empatia, simpatia, intuição, intersubjetividade e alexitimia. In.:
http://www.psipoint.com.br/arquivo_psicologias_empatia.htm. Acessado em 21 de dezembro de 2004.
manifestado um processo que se verifica até os dias de hoje: a extinção da possibilidade de
criar uma narrativa a partir de uma experiência terrível. Segundo Benjamim, “no final da
de o estudo de Benjamin apontar para outro caminho, é este pequeno raciocínio de causa e
efeito o que nos interessa aqui. Esta impossibilidade de produção de um fluxo narrativo é
Grenoble, na França. Em sua palestra proferida no ano de 2000 para o Grupo de pesquisa
de que
do ser humano, que consiste em introduzir um tipo de ruptura no fluxo da vida, e um tipo
de descontinuidade na continuidade do real.” 6 Logo em seguida, ele falará sobre o que ele
chama de a cara do estupor. Ele afirma que “é sempre interessante observar o que
4
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 198.
5
LE-QUÉAU, Pierre. O ritmo e os efeitos da narrativa. Transcrição de palestra ministrada no GIPE-CIT: 7
de junho de 2000. p. 1.
6
LE-QUÉAU. Op. Cit. p. 2.
acontece quando uma narrativa não é possível: o patológico, nesse sentido, é sempre útil
para compreender o normal”. E prossegue dizendo que, “[...] de fato, há situações sociais
do olhar humano com o das górgonas8. O que Le-Quéau afirma é que a petrificação
causada pelo contato do olhar das górgonas é, de fato, uma representação mitológica do
estupor. Desta maneira, percebemos que o pensamento grego já havia criado uma
Grécia Antiga.
de Religiões Antigas, Jean Pierre-Vernant afirmará, em A morte nos olhos, que a face do
Segundo Pierre-Vernant,
arranca o homem de sua vida e de si mesmo [...] para projetá-lo para baixo, na confusão e
no horror do caos”. 11
7
LE-QUÉAU. Op. Cit. p. 2. [Grifo nosso].
8
Cada uma das três personagens mitológicas, Esteno, Euríale e Medusa, mulheres que tinham serpentes por
cabelos e transformavam em pedra quem as encarava. Fonte: Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.
9
Gorgó (a górgona Medusa). VERNANT. A morte nos olhos. p. 12.
10
VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos – Figuração do Outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó.
2.ed. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
11
VERNANT. Op. cit. p. 37.
Gorgó aparece no canto XI da Odisséia de Homero como imagem simbólica do
simétrico ao do cão Cérbero. Enquanto Cérbero impede que os mortos retornem ao mundo
dos vivos, a função de Gorgó é impedir a entrada dos vivos no mundo dos mortos: “Do
domínio de Perséfone”12.
quando encaramos Gorgó é ela que faz de nós o espelho no qual, transformando-
nos em pedra, contempla sua face terrível e se reconhece no duplo, no fantasma
que nos tornamos ao enfrentar o seu olho [e simetricamente, através desta
experiência] revela-se a verdade de nosso próprio rosto. 15
Jean-Pierre Vernant não chega a apontar sua análise para os efeitos que a
petrificação da experiência de olhar para a face do terror causa. Portanto, devemos retornar
olhar de Gorgó pode ser utilizada para descrever “toda a experiência limite que suspende o
12
VERNANT. Op. cit. p. 61.
13
VERNANT. Op cit. p. 60. [Grifo nosso]
14
Ibid. p. 61-62.
15
Ibid. p. 105-106.
16
LE-QUÉAU. Op. cit. p. 3.
Desta maneira, voltamos a Benjamin, quando ele afirma a impossibilidade de
produção de uma narrativa pelos soldados regressos das trincheiras da primeira Guerra
horror.
moderno. Mas isto pode ser exemplificado notavelmente na experiência dos atentados
terroristas que destruíram as grandes torres do World Trade Center, na cidade de Nova
Iorque, em setembro de 2001. Há ali dois extremos da face do terror. Um, a face do
de cuja fronte distinguia-se, nos olhos arregalados, “o olhar apavorado de quem foi solto
distância, através da transmissão ao vivo pela televisão, e ficavam, em suas casas, inertes,
exibiam as imagens dos aviões atingindo os prédios repetidas vezes, como um engasgo,
como se aquelas imagens tivessem paralisado os fluxos narrativos naquele ponto, que
emissoras.
17
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2001. Ato II,
cena I. p. 40.
Pierre Le-Quéau, apesar de se fixar em exemplos das duas grandes guerras
Minha hipótese [...] é que é uma aceleração do ritmo do tempo vivido que causa
o estupor, a impossibilidade de narrar. Não é exatamente o horror mesmo, mas a
primeira aparição dele: o evento único, sem precedente. É a novidade absoluta
que causa uma ruptura no senso comum, e uma aceleração do tempo imposto
que impede o trabalho da consciência que consiste em estabelecer uma ligação
entre o passado e o presente. É o passado, acumulado na experiência coletiva – o
senso comum – que pode dar uma forma inteligível ao presente: e finalmente o
limite do inteligível é o memorável. O que não se pode lembrar, não existe.18
estupor que não é causado apenas pelo horror, mas pelo excesso de um outro sentimento
19
tão devastador, o amor, que Beckett chama de “deserto de solidão” . Há situações em
que o excesso de amor provoca uma interrupção de fluxo narrativo, o que causará o estado
de estupor no amante.
discurso amoroso, que ele chama de “amor inexprimível”. Barthes lembra que “Werther,
que outrora desenhava bem e muito, não consegue fazer o retrato de Charlotte” e cita as
palavras de Werther, a partir do próprio texto de Goethe: “Perdi [...] a força sagrada,
vivificante, com a qual criava mundos em volta de mim”.20 Ou seja, Barthes se utiliza do
caso, o desenho da amada – justamente por estar apaixonado por ela e não o poder
exprimir. Barthes diz que “o amor tem certamente alguma coisa a ver com minha
linguagem (que o alimenta), mas ele não pode se instalar na minha escritura”.21 Justamente
escrever este amor e falhar na escritura, o amante entra em estado de estupor. É o amor
Freud chega a esta conclusão no episódio chamado Distúrbio de memória na Acrópole 23,
em que ele narra, em uma carta a um amigo, uma experiência vivida por ele alguns anos
antes na Grécia. Neste texto, ele conta sobre a “situação psíquica, de aparência tão confusa
e tão difícil de descrever” que ele e seu irmão viveram ao rumarem de férias da Itália para
a Grécia. Após terem sido desencorajados, por um amigo, a visitarem a ilha de Corfu,
Freud e seu irmão compraram passagens num navio para Atenas e, na tarde seguinte,
surpreendeu: “Então tudo isso realmente existe mesmo”.24 Não que ele jamais houvesse
duvidado de que a Acrópole realmente existisse, mas sua dúvida era se algum dia chegaria
a visitá-la pessoalmente, por se tratar de uma viagem cara, que parecia impossível de ser
realizada quando Freud era adolescente. O fato marcante aqui é a surpresa de Freud, então
aos 48 anos de idade, que só foi analisado muito tempo mais tarde. Na análise posterior do
estado de espírito que tomou conta dos irmãos nesta ocasião, Freud produzirá um
Logo a seguir, Freud explica que “a segunda característica geral das desrealizações
Naquele momento, diante da antiga cidade grega, de uma certa maneira, eles estavam
23
FREUD, Sigmund. Um distúrbio de memória na Acrópole. In.: Obras completas – Edição eletrônica. v.
XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
24
FREUD. Op. cit.
25
FREUD. Op. Cit.
realizando um sonho que sempre havia sido impossível, estavam realizando algo que
imaginavam, na infância, ser impossível. Desta maneira, vemos o estupor como uma
uma medida defensiva do ego a partir de dois vetores: do mundo externo real e do mundo
interno dos pensamentos e impulsos que emergem no ego. Sendo assim, essa experiência
não-científica para o fenômeno do dèjá-vu, onde o ego procura a prova de uma existência
alemão Heiner Müller, quando ele afirma que “a primeira forma da esperança é o medo, a
grande motor da filosofia. É o que nos afirma o filósofo alemão Martin Heidegger, no seu
texto Qu’est-ce que la Philosophie? (sic). Neste texto, que faz parte de uma coletânea de
26
FREUD. Op. Cit.
27
Fonte: http://www.psicosite.com.br/tra/sod/dissociativo.htm Acessado em 27 de dezembro de 2004.
28
MÜLLER, Heiner. O espanto como a primeira aparição do novo – Para uma discussão sobre a pós-
modernidade em Nova York. In.: KOUDELA, Ingrid D. (Org.). Heiner Müller – O espanto no teatro. São
Paulo: Perspectiva, 2003. [Grifo nosso.]
conferências e escritos filosóficos, Heidegger fará um histórico da origem da filosofia,
buscando seu sentido, usando uma metodologia que remete a uma epistéme grega. Ao se
perguntar ‘O que é isto – a filosofia?’, ele conduz seu pensamento para o caminho trilhado
pelos filósofos gregos, quando se perguntavam ‘O que é isto – o belo?’ ou ‘O que é isto –
significado das palavras em grego, Heidegger nos conduz à sua idéia de espanto (em
Neste ponto, o filósofo alemão afirmará que reduzir a causa da filosofia ao espanto
é “uma atitude mental pouco grega”. Para Heidegger, o espanto é páthos. E ele afirma que
etimologia, ele nos aconselha a traduzir como dis-posição, “palavra com que procuramos
expressar uma tonalidade de humor, que nos harmoniza e nos convoca por um apelo”.
Porque
adiante. Quando nos vimos diante de situações sobre as quais não somos capazes de
conseguimos produzir uma narrativa a partir de uma experiência, então, saímos do estupor
29
HEIDEGGER, Martin. O que é isto – a filosofia? In.: Conferências e escritos filosóficos. Tradução de
Ernildo Stein. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 21-22.
30
HEIDEGGER. Op. cit. p. 22. [Grifo nosso.]
O que vimos até agora é que o estupor pode ser associado a um dos sintomas da
esquizofrenia e que, sob a forma de catatonia, está presente em alguns casos patológicos
o homem grego já havia criado uma representação para estes fenômenos, associando-os à
figura da Medusa. Esta associação à máscara do terror representa a extrema alteridade que
Para que a consciência dê conta da realidade, é necessário que haja um esforço para a
produção de um fluxo narrativo que empurre a experiência do real para o passado e, desta
apaixonado numa situação de desrealização, por ser incapaz de produzir um fluxo que
expresse seu amor. Incapaz de remeter os fatos do presente para a memória do passado, ele
se torna incapaz de viver no presente o seu amor. Pois o que não se pode lembrar não
existe.
qual nos detemos e só conseguimos seguir adiante após a produção de um fluxo narrativo
conclusões de nossa pesquisa para dar uma compreensão mais abrangente de nosso ponto
de vista.
teatro do absurdo, no capítulo chamado A tradição do absurdo. Esslin afirma que a obra
de Beckett pode ser considerada como uma extremidade de uma tradição teatral vinda dos
feiticeiras predizem ao general Macbeth que ele será agraciado com o título de thane de
32
BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de
Janeiro: Objetiva, 1998. p. 31.
Cawdor e que será coroado rei. Quando Macbeth fica sabendo, pouco depois, que o rei
Duncan, seu primo, de fato acabara de nomeá-lo thane de Cawdor, ele passa a ter apenas
uma idéia que ao mesmo tempo o fascina e o aterroriza: realizar, através do assassinato de
Duncan, a etapa seguinte do cumprimento de seu destino. O rei então, para honrar e saudar
o primo pela sua nomeação, decide que passará a noite no castelo de Macbeth. Lady
Macbeth, que havia sido prevenida pelo marido sobre a profecia das feiticeiras, dissipa
com suas palavras eloqüentes qualquer sombra de hesitação que seu marido demonstra. À
noite, após apunhalar Duncan, inicia-se o caos interior de Macbeth, que o psicanalista
doze peças, irá associar aos “remorsos, terrores e alucinações”33 experimentados pelo
atormentado Macbeth. Nosso exemplo se inicia exatamente neste momento: logo após
apunhalar o rei Duncan em seus aposentos, não antes de Lady Macbeth ter colocado
sonífero no vinho dos guardas responsáveis pela segurança do rei, Macbeth surge na cena
para reencontrar a esposa após ter realizado o feito, ainda segurando os punhais com os
campo de batalha já o havia feito acostumar-se com o sangue alheio, parece hesitar diante
da máscara do terror.
LADY MACBETH
Que tolice dizer que é visão triste.
E então, se referindo aos guardas que dormiam entorpecidos pelo sonífero, diz:
MACBETH
Um riu, dormindo; o outro ouviu “Macbeth!”,
Acordando-se os dois. Fiquei ouvindo;
Mas eles só rezaram, pra depois
Voltar ao sono [...]
Disse um, “Louvado seja!”; o outro, “Amém”,
Como se vendo estas mãos de carrasco.
Não pude, ao seu pavor, dizer “Amém”,
33
SIBONY, Daniel. Na companhia de Shakespeare – Fúria e paixão em doze peças. Tradução de Mª de
Lourdes Lemos Britto de Menezes. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 203.
Quando os ouvi dizer “Louvado seja”.
LADY MACBETH
Não pense tanto nisso.
MACBETH
Por que não pude eu dizer “Amém”?
Precisava de bênçãos, mas o “Amém”
Morreu-me na garganta. 34
causado pela visão do terror. E, em sua alucinação, pensa ter ouvido vozes:
MACBETH
[...] Me parece
Que ouvi uma voz gritar! “Não dorme mais!
Macbeth matou o sono” – [...]
“Não dorme mais!” gritou pra toda casa.
Matou o sono Glamis e então Cawdor
Não dorme mais; Macbeth não dorme mais. 35
de seu remorso – como sendo uma voz alheia. Ao proferir a sentença de que não dormirá
pensamento e assim perde o “bálsamo bom de mentes machucadas”. Num claro equívoco
de estratégia, segundo irá constatar Lady Macbeth em seguida, ele trouxe consigo as armas
LADY MACBETH
[...] Por que trouxeste de lá os punhais?
Precisam ficar lá. Volta e besunta
Com o sangue os dois que dormem.
MACBETH
Nunca mais.
Eu temo quando penso no que fiz;
Não posso mais olhá-lo. 36
34
SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1995. p. 216-217. [Grifo nosso.]
35
SHAKESPEARE. Op. cit. p. 217.
36
Ibid. p. 217.
Então, ele finaliza a cena, cheio de remorso, ao ouvir as batidas de alguém no
portão do castelo.
MACBETH
Melhor não conhecer-me que tomar
Consciência do meu feito. 37
O horror em Macbeth é tamanho, que faz Harold Bloom afirmar: “Na contramão
da fórmula aristotélica, Shakespeare inunda-nos com temor e pena, não para nos purgar,
mas com um propósito sem propósito, o qual interpretação alguma será capaz de explicar.”
38
E é este horror, representado pela sua incapacidade de proferir o “Amém” da salvação,
amigo Horácio e outros sentinelas – têm contato com um fantasma. Trata-se do espectro
do pai de Hamlet, morto há menos de dois meses. “Há algo de podre, no Estado da
irmão do falecido rei e recém coroado, comemora suas bodas com Gertrudes, a mãe de
Hamlet, recém viúva. Parte do plano de vingança de Hamlet é simular sua própria loucura
para, assim, criar uma armadilha onde sucumba seu tio, Cláudio. Para não se desviar de
seu objetivo, Hamlet se afasta do amor de Ofélia, filha do conselheiro do rei, o patético
Polônio. Este julga que a loucura do jovem Hamlet reside na recusa do amor da filha.
Ofélia, grande vítima da simulação da loucura de Hamlet, é alvo de uma investida, logo no
segundo ato da tragédia. Shakespeare não dramatiza esta cena, que é narrada pela
37
Ibid. p. 218.
38
BLOOM. Op. cit. p. 634.
39
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2001. p.30.
assustada Ofélia a Polônio e que nos serve de exemplo de como o Bardo representa a
loucura.
OFÉLIA
Oh, meu senhor, meu senhor, que medo eu tive!
[...]
Bom senhor, eu estava costurando no meu quarto
Quando o príncipe Hamlet me surgiu
Com o gibão todo aberto,
Sem chapéu na cabeça, os cabelos desfeitos,
As meias sujas, sem ligas, caídas pelos tornozelos,
Branco como a camisa que vestia,
Os joelhos batendo um contra o outro,
E o olhar apavorado
De quem foi solto do inferno
Pra vir contar cá em cima os horrores que viu. 40
Neste trecho inicial, podemos perceber a caracterização inequívoca que Ofélia faz
vestimenta e na aparência física denota claramente a “decadência física” que Barnard nos
OFÉLIA
Me pegou pelo pulso e me apertou com força.
Depois se afastou à distância de um braço
E, com a mão na fronte,
Ficou olhando meu rosto com intensidade
Como se quisesse gravá-lo. Ficou assim muito tempo.
Por fim, sacudindo três vezes a cabeça,
Soltou um suspiro tão doloroso e fundo
Que eu temi pudesse estourar seu corpo,
Fosse o último suspiro. E aí, me soltou;
Com a cabeça virada pra trás
Foi andando pra frente, como um cego,
Atravessando a porta sem olhar,
Os olhos fixos em mim até o fim. 41
alexitimia. Ao narrar seu encontro com o príncipe, Ofélia não descreve nenhuma palavra
que Hamlet tivesse pronunciado. Ele está impossibilitado de falar. A conclusão de Ofélia é
40
SHAKESPEARE. Hamlet. Op. Cit. p. 39-40.
41
SHAKESPEARE. Op cit. p. 40.
Hamlet acaba matando acidentalmente o velho Polônio no terceiro ato, o que
última – cena do Ato IV, ficamos sabendo, através de Horácio, que Ofélia “está fora de
si”. Numa rápida descrição do estado de Ofélia, que ele faz para a Rainha, Horácio afirma:
HORÁCIO
[...]
Se irrita por qualquer migalha; fala coisas sem nexo,
Ou com apenas metade do sentido. O que diz não diz nada [...].
As palavras, junto com os olhares, meneios e gestos
Que ela faz, dão pra acreditar
Que realmente ali há um pensamento, bastante incerto;
Mas muito doloroso. 42
contrário da loucura de Hamlet, não é uma encenação. A morte de seu pai a deixou
realmente louca. Mas esta loucura se manifesta justamente através das fraturas do fluxo
narrativo, nas mudanças bruscas de humor e na incapacidade de gerar uma narrativa que
falando de maneira desconexa, usando versos e rimas e até canções para tentar expressar o
caos que reina em sua alma, mudando de assunto, sem conseguir um fluxo coerente de
OFÉLIA
Onde está a radiosa rainha da Dinamarca?
RAINHA
O que foi, Ofélia?
OFÉLIA (canta)
Como distinguir de todos
O meu amante fiel?
Pelo bordão e a sandália;
Pela concha do chapéu.
RAINHA
Ai, minha encantadora jovem, que significa essa canção?
OFÉLIA
O que diz? Não, presta atenção, por favor.
(Canta.) Está morto, senhora, foi embora;
42
SHAKESPEARE. Op. cit. p. 101.
Está morto, foi embora,
Uma lápide por cima
E a grama verde, por fora.
Oh, oh!
RAINHA
Mas querida Ofélia...
OFÉLIA
Ouve, por favor.
(Canta.) Seu sudário, como a neve da montanha ...
[...]
O pranto do amor fiel
Fez as flores perfumadas
Descerem à tumba molhadas.
REI
Como está você, minha bela jovem?
OFÉLIA
Bem! E Deus vos ajude. Dizem que a coruja era filha de um padeiro. Senhor,
nós sabemos o que somos, mas não o que seremos. Deus esteja em vossa mesa!
REI
Ela pensa no pai.
OFÉLIA
Por favor, nem uma palavra sobre isso; mas quando perguntarem que coisa
significa, respondam assim:
(Canta.) Amanhã é São Valentino
E bem cedo eu, donzela,
Pra ser sua Valentina
Estarei em tua janela.
E ele acorda e se veste
E abre o quarto pra ela.
Se vê a donzela entrando
Não se vê sair donzela.
RAINHA
Gentil Ofélia!
OFÉLIA
Está bem, Ô!, sem praguejar, eu termino;
(Canta.) Por Jesus e a Santa Caridade
Vão pro diabo os pecados
Os rapazes fazem o que podem
Mas como eles são malhados!
Disse ela: “Antes de me atracar,
Você prometeu casar”.
Ele responde:
“Pelo sol, eu o tinha feito
Se não fosses ao meu leito”.
REI
Há quanto tempo ela está assim?
OFÉLIA
Eu espero que tudo saia bem. Devemos ser pacientes. Mas não posso deixar de
chorar pensando que o enfiaram nessa terra fria. Meu irmão tem que ser
informado. Por isso eu agradeço vossos bons conselhos. Vem, minha
carruagem! Boa-noite, senhoras. Boa-noite, amáveis senhoras; boa-noite, boa-
noite. (Sai.) 43
Para encerrar nossa aventura pelo estupor shakespeareano, parece notável que, no
livro de Harold Bloom, haja um capítulo intitulado O estupor das estrelas. O capítulo
responder aos insultos de Laertes, “é Hamlet quem enfeitiça a platéia, de modo que
personagem”.45
leitor/público ao ver a reação do herói. Até então incapaz de tomar uma atitude realmente
ativa em relação à sua vingança, ao amor de sua Ofélia e à usurpação de seu reino, neste
momento, Hamlet enfrenta Laertes com palavras e, assim, enfrenta Cláudio e faz sua voz
Hamlet saindo de seu estupor, provocando, segundo Bloom, o estupor na platéia, para se
43
SHAKESPEARE. Op. cit. p. 101-103
44
BLOOM, Harold. Hamlet: poema ilimitado. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva,
2004. p. 52.
45
BLOOM. Op. cit. p. 80.
Em Tchekhov, o estupor funcionará de maneira diferente, porém sempre
de sentido que, por vezes, se torna quase completa, algumas cenas de Tchekhov vão sendo
passado que significou alguma coisa se choca com o presente, tão diverso, e se converte
numa esperança fragmentada em relação ao futuro. Isto pode ser visto principalmente em
As três irmãs (1901) e O jardim das cerejeiras (1904). Destacamos aqui dois exemplos da
se despede da cidade. O jovem barão de Tusenbach, apaixonado por Irina, uma das três
irmãs, finalmente conseguiu convencê-la a se casar com ele, apesar de ela não estar
apaixonada. Para Irina, este casamento é a única esperança de sair da cidade onde vive.
Porém, Tusenbach tem um rival, o desagradável Solioni que, na noite anterior, diante do
teatro, o desafiou para um duelo a pistola. É fato sabido que Solioni tem excelente
pontaria. Tusenbach se prepara para o duelo, sem que Irina saiba o que está para
46
WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Tradução de Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify,
2002. p. 183.
47
WILLIAMS. Op cit. p. 188.
48
WILLIAMS. Op cit. p. 183.
que outrora parecia tão eloqüente, mesmo sabendo que está prestes a encarar seu inimigo
num duelo, mesmo sabendo que seu inimigo tem habilidade superior à sua, não consegue
falar de sua preocupação, o que poderia reverter a situação e evitar o seu desfecho trágico.
imaginado – o duelo – faz com que ele se precipite em direção à sua própria morte, sem
possibilidade de resgate. Irina, que pressente claramente que algo está acontecendo sem
que ela saiba, acaba sendo adjuvante neste quase suicídio de Tusenbach.
Olga, a mais velha das três irmãs, encerra a peça dizendo: “Ah, se pudéssemos
Ato 4 de O jardim das cerejeiras, última peça escrita por Tchekhov, onde Lopakhin, ex-
49
TCHEKHOV, Anton. As três irmãs. Tradução de Maria Jacintha. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1995. p.
99-100.
50
TCHEKHOV. As três irmãs.Op. cit. p. 108.
escravo da família dos Andreiêv, hoje é um rico comerciante que acabou de adquirir, em
um leilão, a casa e o terreno do jardim de cerejeiras onde seus pais foram escravos. É o
momento da mudança, no qual os antigos moradores estão indo embora para que o novo
derrubando as cerejeiras seculares. Liuba Andreievna, mulher que teve uma vida luxuosa e
que se recusa em aceitar a nova condição de ex-proprietária falida, sugere a Lopakhin que
ele peça em casamento sua filha adotiva, a jovem Vária. Desta maneira, vemos a única
família. Liuba convence Lopakhin a pedir a mão de Vária e acerta os detalhes para aquele
pedido de casamento. Vária está apaixonada por ele e foi informada de que ele fará o
51
TCHEKHOV, Anton. O jardim das cerejeiras. Tradução de Gabor Aranyi. São Paulo: Veredas, 1994.
p.214.
52
Versta: antiga medida itinerária russa equivalente a 1.067 metros. Fonte: Dicionário Aurélio Eletrônico,
versão 5.0.
53
TCHEKHOV. O jardim das cerejeiras. Op Cit. p. 215.
O que se vê nesta extraordinária cena de Tchekhov é o poder destruidor da
alexitimia. Lopakhin simplesmente não consegue fazer o que ele havia dito que faria – e
que ele deseja fazer. A impossibilidade de dar palavras às suas emoções acaba projetando
toda a ação da peça para um vazio desolador. Neste sentido, Tchekhov anuncia o que a
beckettiana.
o errar sem ilusão prossegue no falar sem repouso de todos os falantes pregados no chão
– quem erra não pode ainda falar, quem fala não pode ainda errar – até que, enfim,
abandonada a busca, o espaço do livro e do tempo de leitura sejam o espaço e o tempo de
uma paralisação fora da busca, fora da tragédia, de uma estada na semiquietude enfim
ganha ou um retiro na brancura do neutro. A errância e o discurso, ambos inquietos,
percurso de palavras, percurso de um corpo, são duas imagens de uma mesma busca: a da
alma, falando em sua habitação, com o único objetivo de se encontrar ali um dia. 54
incapazes de criar um discurso coerente que efetue uma mudança e dê um objetivo às suas
corpo, que sustentam discursos elípticos (ou espirais, ou esféricos) cujo fluxo
54
JANVIER, Ludovic. Beckett. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 74-75
O estudioso irlandês A. J. Leventhal aborda, logo nas primeiras análises da obra de
“Estase55, ou quase estase, é uma característica marcante das criações de Beckett. ‘Cette
homem”.56
Por fim, Martin Esslin, um profundo conhecedor do teatro do século XX, irá
afirmar no seu livro O teatro do absurdo que “toda a obra de Beckett é uma tentativa de
dar nome ao inominável” e que “a linguagem nas peças de Beckett serve para expressar o
observarmos atentamente a obra de Beckett, veremos ali mais que a destruição da cena,
linguagem para provocar-lhe rupturas, no palco, ele resgata os elementos mais ancestrais
da dramaturgia para, com eles, construir sua obra e flagrar a tragédia do homem dos dias
de hoje.
trágico no gênero dramático, tomando como ponto de partida a sua origem, na Grécia do
estudos de alguns pensadores alemães desde o século XVIII até o século XX, buscaremos
seu sentido no drama Esperando Godot e em outras peças escritas por Samuel Beckett.
55
[Do gr. stásis, ‘parada’.] S. f. 1.Patol. Estagnação, no organismo, de matérias de consistência e de origem
diversa, como sangue, urina, fezes, etc. 2.Fig. Entorpecimento, paralisia. Fonte: Dicionário Aurélio
Eletrônico versão 5.0.
56
LEVENTHAL, A. J. The Beckett hero. In.: ESSLIN, Martin. (Org.). Samuel Beckett: a collection of
critical essays. New Jersey: Prentice-Hall, 1965. p. 43. [Tradução do autor desta dissertação.]
57
ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. p. 75.
Assim, procuraremos identificar os elementos do gênero trágico na sua origem grega e na
obra dramatúrgica de Beckett, examinando de que maneira estes elementos evoluíram para
Os estudiosos são unânimes em afirmar que a tragédia alcançou a sua forma mais
perfeita na Grécia do século V a.C. Chega-se a afirmar que somente dos gregos se pode
dramaturgia ocidental que se subordina ao gênero tragédia foi elaborada tomando como
modelo os gregos. Porém, com a evolução histórica, se modificam valores e com isso há
uma evolução no fenômeno trágico, uma mudança de seu sentido mais profundo.
grego do século V a.C., Aristóteles. Em relação à estrutura e aos modos do gênero trágico,
Aristóteles nos dá algumas pistas, porém não chega a esgotar a primeira questão a ser
tratada aqui, que é: qual a essência do fenômeno trágico? O escrito de Aristóteles pretende
determinar os elementos da arte trágica; seu objetivo é a tragédia, não a idéia de tragédia.
Na tragédia – que é uma obra de arte – sempre nos defrontamos com uma situação
humana limite. Porém não é a obra de arte em si que traz intrinsecamente a sua
tragicidade. Segundo Gerd Bornheim, “o trágico [só] é possível na obra de arte porque ele
realidade humana? O homem como homem, em sua própria dimensão, não é trágico. É
58
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003. p. 123.
necessário se fazer uma separação ontológica para que surja o elemento possibilitador do
trágico, que é “aquele rasgo da natureza humana que em tais circunstâncias adquire ou não
uma coloração trágica”.59 É somente somado a um valor que o trágico pode aparecer no
real.
Segundo Schelling,
O essencial da tragédia é [...] um conflito real entre a liberdade no sujeito e a
necessidade, como necessidade objetiva. Esse conflito não termina com a
derrota de uma ou de outra, mas pelo fato de ambas aparecerem
indiferentemente como vencedoras e vencidas. 60
a tragédia grega honrava a liberdade humana ao fazer seu herói lutar contra o
poder superior do destino: para não ultrapassar os limites da arte, tinha de fazê-
lo sucumbir, mas, para também reparar essa humilhação da liberdade humana
imposta pela arte, tinha de fazê-lo expiar. 61
fundamentais da tragédia, deve-se alistar logo o herói trágico. O primeiro elemento básico
para que se possa verificar o trágico é o homem trágico. A tragédia então é, segundo
amor e até mesmo o sentido da realidade. A polaridade entre estes elementos é o que torna
59
BORNHEIM, Gerd. Breves observações sobre o sentido e a evolução do trágico. In.: ___. O sentido e a
máscara. São Paulo, Perspectiva, 1992. p. 72.
60
SCHELLING. Fundamentos da completa doutrina da ciência. Apud. SZONDI, Peter. Ensaio sobre o
trágico. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.31.
61
SCHELLING. Op. cit. p. 32.
viável a ação trágica. O homem e o mundo em que ele se insere são os dois pólos
necessários para o surgimento do fenômeno trágico. “No momento em que esses dois
A questão aqui é que o conflito entre estes dois pólos recebeu diferentes
interpretações através dos tempos. Desde a visão dogmática do jovem Schelling, no fim do
século XVIII, até a visão de Nietzsche, já no final do século XIX, passando por Goethe e
Goethe, que, no início do século XIX, observou que “todo trágico baseia-se em uma
desaparece o trágico”63.
Segundo Szondi,
para Goethe, é essencial que o conflito não se dê primordialmente entre o herói
trágico e o mundo exterior. Mas a dialética trágica mostra-se no próprio homem,
em quem o dever e o querer tendem a se afastar e ameaçam romper a unidade de
seu Eu. [...] Trágica é a cegueira com que ele, ludibriado acerca da meta de seu
dever, precisa querer o que não tem o direito a querer.64
Goethe exclui a necessidade da morte como ato trágico, chegando a afirmar que “a
motivação fundamental de todas as situações trágicas é o ato de partir, e nesse caso não é
preciso nem veneno nem punhal, nem lança nem espada”.65 Goethe desloca a idéia
62
BORNHEIM. Op. Cit. p. 74.
63
GOETHE. Apud. SZONDI. Op. Cit. p. 48.
64
SZONDI. Op. Cit. p. 49
65
GOETHE. Apud. SZONDI. Op. Cit. p. 50.
Mais que atitudes trágicas relacionadas à morte e ao suicídio, o ato de partir, em
Goethe, pode ser considerado um ato trágico. Para Goethe, esta partida pode ser entendida
como uma despedida ou como o abandono da pessoa – ou uma situação – amada. Ora,
observamos aqui uma mudança de ponto de vista em relação à tragédia e às forças que
nela atuam. Não mais à morte cabe o papel do desfecho trágico. A “oposição
A outra diferença é que, para Kierkegaard, o trágico só pode ser algo de provisório,
no sentido de que a falta de uma saída da contradição trágica não se encontra na realidade,
trágico moderno, que faz parte do Ou/ou [Entweder/Oder], Kierkegaard afirma que “para
contradição sejam de mesmo tipo”69. Com Kierkegaard, o tema da crise da tragédia vem à
tona com uma força que já não dá margem a dúvidas; ele separa o fator de redenção e o
66
SZONDI. Op. Cit. p. 51.
67
KIERKEGAARD. Apud. SZONDI. Op. Cit. p. 59.
68
SZONDI. Op. Cit. p. 60.
69
KIERKEGAARD. Ancient tragedy’s reflection in the modern. In.: Either/Or: fragment of life. Traduzido
do dinamarquês para o inglês por Alastair Hannay. Londres: Penguin, 1992. p. 142. [Tradução do autor desta
dissertação.]
trágico e, com isso, prepara uma análise do trágico livre de qualquer atribuição metafísica.
Zaratustra, que: “a tragédia nos conduz ao objetivo final, que é a resignação”.72 Para
a significação do herói trágico é a sua resignação – renúncia não apenas à vida, mas ao
desejo de viver. Os heróis da tragédia são purificados pelo sofrimento, no sentido de que a
vontade de viver, anteriormente inerente a eles, acaba por desaparecer. Nietzsche inaugura
uma forma de ver a tragédia como dissolução, que faz com que encaremos “o fato de que
tudo que é gerado deve estar preparado para se defrontar com esta dolorosa dissolução”. 73
70
KIERKEGAARD. Ancient tragedy’s reflection in the modern. p. 139-142.
71
KIERKEGAARD. Op. cit. p. 142-143.
72
NIETZSCHE. Apud. WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac
& Naify, 2002. p. 61.
73
NIETZSCHE. Apud. WILLIAMS. Op cit. p. 61.
Assim, temos um caminho de evolução do sentido do trágico enquanto idéia.
dialética trágica de querer aquilo que não se tem o direito a querer, em que o ato de partir
assume o porte de ato trágico, não menos trágico que a morte. Goethe diz que o fator
trágico está na despedida, não necessariamente na morte do herói. Sendo a morte mesma
uma despedida, uma partida, e a idéia da partida, para Goethe, um ato trágico, a
impossibilidade da partida ganha cores de tragédia. Querer partir, mas não se ter o direito a
querer partir. Desejar a despedida, porém viver – ou sobreviver – nas fronteiras entre a dor
como única saída possível para a sobrevivência. Assim, Nietzsche inaugura o século XX,
afirmando sem sombra de dúvidas que a tragédia é o fator que conduz o herói à
resignação.
dos pontos deste trabalho. Assim, percorremos o caminho e buscamos uma “ponte” entre o
sentido do trágico nos gregos, com Aristóteles, até o final do século XIX, chegando a
Nietzsche.
do ocidente, como afirma o teórico Raymond Williams em seu livro Tragédia moderna: “a
tragédia é, à primeira vista, um dos mais simples e mais poderosos exemplos dessa
74
WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Tradução de Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify,
2002. p. 34.
desse modo, examinar a tradição trágica não significa necessariamente
interpretar um único corpo de obras e pensamentos ou perseguir variações em
uma suposta totalidade. Significa olhar crítica e historicamente para obras e
idéias que têm algumas ligações evidentes entre si e que se deixam associar em
nossas mentes por meio de uma única e poderosa palavra. 75
cabe a nós agora, passar ao estudo de alguns dos conceitos e elementos fundamentais para
a existência da tragédia.
“palavra grega que significa tudo que ultrapassa a medida, excesso, desmedida; em geral,
indica algo impetuoso, desenfreado, violento, um ardor excessivo. Nos seres humanos, é
conceitos importantes para a elucidação das forças que atuam na essência do fenômeno
socrático filósofo Heráclito afirmará: “O sol não pode transgredir as suas medidas, e se o
75
WILLIAMS. Op. Cit. p. 34.
76
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. 2.ed. São Paulo:
Companhia das letras, 2002. p. 502.
77
HERÁCLITO, Fragmento 94. In.: Heráclito: Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e
comentários de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2000. p. 212.
A hýbris no caráter do herói é a causadora da falha trágica (hamartia) através de
uma ação. Na Poética, Aristóteles chama atenção para que não se reduza o herói ao
Então, a tragédia é gerada pelas ações do homem e não por conseqüência de seu
caráter. Porém, jamais se trata de uma ação qualquer. Quando Aristóteles estuda a
natureza do herói trágico, ele determina a causa da sua tragicidade na hamartia: no erro,
na falta. Para Aristóteles “[...] resta a situação intermediária [...] do homem que nem se
destaca pela virtude e pela justiça, nem cai no infortúnio como resultado de vileza ou
Desta maneira, todo aquele que transgredir sua medida trará desequilíbrio para a
“Na tragédia, deparamos com a existência humana entregue ao conflito que deriva
muito mais a aparência que envolve a existência humana, somada a uma densidade que se
78
ARISTÓTELES. Poética. VI, 32. Trad. Baby Abrão. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 44.
79
ARISTÓTELES. Poética. XIII, 70, p. 51. [Grifo nosso]
80
CHAUÍ. Op. Cit. p. 508.
81
HERÁCLITO. Fragmento 50. Op. Cit. p. 197.
82
BORNHEIM. Op. cit. p. 78.
alia a tal aparência. O desenvolvimento da ação trágica consistiria na progressiva
descoberta de aletheia.83 Não é a essência do herói, restrita a sua individualidade, que vem
mostra a própria phýsis do herói. O problema não reside no seu ser, mas no seu modo de
ser. A partir dos erros da situação real, o herói revela-se à verdade. O herói adota, de um
modo consciente ou não, uma espécie de falsa máscara; ele age como se toda medida que
ou se ela reside em algo que o transcende; e esta pergunta é feita para que ele veja que a
homem é desvelada. E o que vale para a tragédia grega vale também para o fenômeno
anteriormente.
religação de uma ordem transcendente, a tragédia não se verifica. Mas, por outro lado, o
fenômeno trágico perde seu embasamento quando o homem se desprende totalmente dessa
83
Verdade, realidade. Palavra composta pelo prefixo a- e pelo substantivo léthe (esquecimento). É o não-
esquecimento, não-perdido, não-oculto; é o lembrado, encontrado, visível, manifesto aos olhos do corpo e ao
olho do espírito. É ver a realidade. É uma vidência e uma evidência, na qual a própria realidade se revela, se
mostra ou se manifesta a quem conhece. Fonte: CHAUÍ. Op. Cit. p. 494.
com exclusividade crescente, na vida interior, na ‘imitação de Cristo’
compreendida como tarefa subjetiva.84
Mas por que dizer que o herói absurdo é trágico? Mais do que representar a
inserem? Qual foi a falta cometida (hamartia) por eles? Qual foi sua desmedida (hýbris)?
Qual a verdadeira face de Vladimir e Estragon (phýsis)? O que é desvelado (aletheia) com
o motor da ação da peça? Sem dúvida, Vladimir e Estragon trazem dentro de si uma
84
BORNHEIM. Op cit. p. 83.
85
BORNHEIM. Op. cit. p. 88.
86
WILLIAMS, Raymond. Impasse e aporia trágicos. In: Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São
Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 201.
VLADIMIR – Eis o homem! Põe a culpa no sapato quando o culpado é o pé.
[...] (Pausa.) Gogo.
ESTRAGON – O que é?
VLADIMIR – E se a gente se arrependesse?
ESTRAGON – Do quê?
VLADIMIR – Oh ... (Reflete.) Não é preciso entrar em detalhes.
ESTRAGON – De ter nascido?
(Vladimir dá uma gargalhada que reprime instantaneamente, com a mão no
púbis, o olhar crispado.)
VLADIMIR – Não se pode nem mais rir.87
Há uma força invisível que os impede até de rir. Que os impede de sair dali. De
certa maneira, estas personagens estão imersas em uma subjetividade religiosa, porém elas
referências cristãs e bíblicas que permeiam toda a peça e que trazem nitidamente as noções
de culpa e redenção.
aparecer, da mesma maneira que não apareceu no primeiro ato, Estragon e Vladimir têm
ESTRAGON – Você acha que Deus está me vendo? [...] (parando, dedo em
riste, com a voz mais alta que tem) Deus tenha piedade de mim!
VLADIMIR – E de mim?
87
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução de Flávio Rangel. Col. Teatro Vivo, São Paulo, Abril
Cultural, 1976. p. 13-14.
88
BECKETT. Op. Cit. p 14-16.
ESTRAGON – De mim! De mim! Piedade! De mim!89
Esse desespero que não cessa é o mesmo desespero que Kierkegaard expõe. O
desespero que não mata, que se alimenta do próprio desespero. “Desta forma, estar
Estragon é a sua inércia e a sua resignação em acreditar que Godot virá um dia e que suas
vidas irão melhorar com esta chegada. É justamente na ausência total de iniciativa para
mudar sua situação que a dupla trágica/absurda se impede de trazer ordem ao seu cosmo.
Eles não têm a certeza de que Godot virá, de que Godot marcou naquele dia, ou
naquele local. Porém, qualquer possibilidade de movimento para tirá-los deste labirinto
sem saída é abortada antes mesmo de ser colocada em teste. Neste sentido, Beckett utiliza
uma estratégia bastante comum ao gênero lírico, ao fazer com que suas personagens
Este trecho, que se repete sete vezes ao longo de todo o corpo da peça, os coloca
sempre em situação de inércia. Mesmo em momentos em que uma variante que sugere
89
BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 146-147.
90
KIERKEGAARD, Soren. O desespero humano. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret,
2003. p. 23.
91
BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 27.
92
BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 18, 86, 116, 127-128, 134, 149, 164.
uma saída é colocada em cena, o final do trecho sempre resulta em inércia, devido à
indicação do autor. É desta exata maneira que Beckett encerra o primeiro e o último ato de
sua peça:
Vemos aqui uma impossibilidade de partir. Se, para Goethe, a partida é um ato
hamartia, há uma pista bastante evidente que sugere um ato trágico não realizado no
VLADIMIR – [...] Por outro lado, o que adianta desanimar agora? A gente devia
ter pensado em desistir quando o mundo era jovem, ali por 1900. [...] A
gente poderia se atirar da Torre Eiffel de mãos dadas; estaríamos entre os
primeiros. Éramos respeitáveis nesse tempo. Agora é tarde. Eles não nos
deixariam nem subir lá.94
portanto, o fato de eles não terem desistido a tempo. À medida que a peça segue, a espera
sempre violenta; tem seus momentos de calma”95. A aletheia, o desvelar-se, aquilo que se
descobre durante a ação da peça, toda a busca angustiada em descobrir qual a solução que
irá transformar o caos em cosmo, a busca por algo que trará a ordem àquele caos, resultará
em absurdo. A verdadeira face do herói é uma máscara absurda. Logo no primeiro ato,
eles se perguntam:
93
BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p.100, 187.
94
BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p.11.
95
BARTHES, Roland. A espera. In.: Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortêncio dos
Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 95.
ESTRAGON – Qual nosso papel nisso?
VLADIMIR – Nosso papel?
ESTRAGON – Pense bem.
VLADIMIR – Nosso papel? De suplicantes.
ESTRAGON – Só isso? 96
catástrofe, logo antes de receberem a notícia de que Godot não virá naquele dia, Vladimir
faz uma profunda reflexão que revela a verdadeira phýsis de sua personagem; assim como
encontra juntamente com Estragon. A conclusão é aterradora: eles jamais sairão deste
redemoinho, deste engasgo, desta agulha engasgada. Estão condenados eternamente a este
não-fim:
Vladimir e Estragon são integrantes, como afere Martin Esslin, de uma “dupla
defrontarem com um mundo fora de ordem, buscam incessantemente saber qual sua
responsabilidade na total desordem de seu mundo. Essa busca, porém, longe de trazer
96
BECKETT. Esperando Godot. Op.cit. p. 30-31.
97
BECKETT. Esperando Godot . Op. Cit. p. 178. [Grifo nosso.]
Porém, não é apenas em Esperando Godot que encontramos exemplos que nos
fazem afirmar o estupor (a inércia, a inação) como causa da desgraça das personagens de
Beckett. Embora Godot nos ofereça muitos exemplos, há outros tão relevantes quanto à
Na peça Play, escrita em inglês (e traduzida para o francês pelo próprio autor, sob
o título de Comédie), entre os anos de 1962 e 63, há três personagens dos quais vemos
apenas as cabeças que emergem de grandes urnas cinzentas. São duas mulheres (W1 e
W2) e um homem (M) cujos monólogos, entrecortados, nos dão a entender que eles
participaram de um triângulo amoroso (esposa, marido e amante) e hoje estão os três, cada
um por si, sozinhos, repetindo suas histórias infinitamente (numa referência clara a um dos
W1, afirma:
W1 – Silêncio e escuridão era tudo o que eu queria. Bom, parece que consegui
um pouco dos dois. Sendo que são uma coisa só. Talvez seja muito
mesquinho ficar rezando e pedindo mais.98
Ohio Impromptu, uma das últimas peças de Beckett, escrita em inglês, em 1981,
LEITOR – [...] Então a triste história foi contada pela última vez, eles se sentaram
como que petrificados. Pela única janela do quarto, a madrugada não trouxe
luz. Da rua, nenhum som de movimento. Ou estavam enterrados em sabe-
se lá que pensamentos que não prestaram atenção? À luz da manhã. Ao
som da rua. Sabe-se lá que pensamentos. Pensamentos não, não
pensamentos. Profundezas da mente. Enterrados em sabe-se lá que
profundezas da mente. No vazio da mente. Onde nenhuma luz alcança.
98
BECKETT, Samuel. Play. In: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986. p. 316.
[Tradução do autor desta dissertação.]
Nenhum som. Então se sentaram como que petrificados. A triste história
contada pela última vez. (Pausa.) Não resta mais nada a dizer. 99
Este ‘vazio da mente’, estes ‘não-pensamentos’ são sintomas do estupor que está
Victor Krap, cujo estupor, enquanto estratégia de libertação, será alçado à categoria de
99
BECKETT, Samuel. Ohio impromptu. In: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986.
p. 447-8. [Tradução do autor desta dissertação.]
2 BECKETT ENQUANTO DEVIR DE ARTISTA SE NUTRE DAS EXPECTATIVAS
FORMAIS DO BECKETT CRÍTICO
Arnold Geulincx
3.1 O RETRATO DO ARTISTA
o ser humano nas mais extremas fronteiras de abjeção e precariedade como”100 [...]
Beckett. No posfácio que Leminski escreve à sua tradução do romance Malone Morre, ele
Além das obras de ficção, Beckett também foi um crítico que exerceu sua função
com acuidade e referências notáveis. Este acervo crítico é composto de suas leituras sobre
literatura – a obra de seu mestre, James Joyce, e de Marcel Proust – e comentários sobre
pintura contemporânea. Apesar de não ter sido um crítico literário muito profícuo, os
impasses estéticos de Beckett como escritor ficcional já foram-se delineando nas suas
análises críticas. Aqui, destacamos três exemplos de seu método de análise, nos quais
podemos realmente observar vários dos temas beckettianos sendo forjados pelo senso
crítico do autor.
artigos críticos publicada no volume intitulado Our exagmination round his factification
for incamination of Work in progress, composto por escritos de diversos jovens discípulos
de Joyce, em 1929. Beckett faz uma análise de Finnegan´s wake, obra-prima de James
Joyce, então chamada de Work in progress. Neste artigo, alguns dos elementos formadores
da estrutura narrativa beckettiana, que determinamos como o eixo formal da sua obra, já
tempo perdido, em que podemos identificar o eixo moral e ético da obra de Beckett e
quais Beckett deixará claro o eixo estético temático que norteará seu próprio trabalho,
através da análise e comentários sobre a obra de três pintores modernos: Pierre Tal Coat,
Uma coincidência que chama a atenção é o fato de que, ao iniciar sua produção
simplesmente interrompe sua verve crítica e passa a escrever apenas obras de cunho
artístico. É neste período, inaugurado pela publicação das obras Esperando Godot e
Molloy, que Beckett passará a escrever tendo suas próprias idéias como manancial – como
ele mesmo irá declarar em 1961: “Então comecei a escrever as coisas que sinto”.102 É
importante observar que, antes deste período, ele já havia publicado alguns poemas, uma
coletânea de novelas reunidas sob o título de More pricks than kicks, a novela Primeiro
feira Santa do ano de 1906, no dia 13 de abril. Filho de um fiscal de pesos e medidas e de
uma dona de casa que participava de obras de caridade, o pequeno Samuel Beckett
estudou na renomada Portora Royal School, escola primária freqüentada anteriormente por
Oscar Wilde, e no Trinity College. Entre os anos de 1926 e 1927, toma os primeiros
contatos com a França e a Itália. No ano de 1928, parte para Paris, onde trabalha como
James Joyce, “de quem se torna íntimo”103. No ano seguinte, escreve e publica
René Descartes figura como protagonista. Logo depois, escreve e publica Proust,
102
Entrevista a Gabriel D’Aubarède, para a revista francesa Nouvelle Littéraire. In.: ANDRADE, Fábio de
Souza. Samuel Beckett: O silêncio possível. Cotia – SP: Ateliê Editorial, 2001. p.190.
103
JANVIER, Ludovic. Beckett. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 10.
1933, escreve o conjunto de novelas que constituirão More pricks than kicks, obra que dá
início à sua produção como escritor. Neste mesmo ano, exila-se em Londres e visita o
Bethlem Royal Hospital, asilo de internamento de loucos, nos arredores da capital inglesa,
onde adquire conhecimento sobre esquizofrenia. Entre o início de 1934 e o final de 35, ele
Wilfred Bion, discípulo de Freud. Sob sugestão de Bion, Beckett assiste a uma série de
com a vida em Londres, passa uma temporada na Alemanha nazista e retorna a Paris. Em
1938, dá início à sua escrita de grandes romances, com o lançamento de Murphy. Com a
avanço nazista. Em 1941, ocorre a morte de James Joyce. Em 1942, Beckett foge de uma
Watt. Em 1945, escreve Primeiro amor, em francês. Dois anos depois, escreve Eleutheria,
abrindo o ciclo teatral. Em 1948, inicia a trilogia de romances com Molloy, seguido por
Malone morre. No ano seguinte, escreve Esperando Godot, peça que irá lançá-lo de vez
romances com a publicação de O inominável. Sua trajetória como escritor então será
outorgado pela Academia Sueca, cuja declaração foi a seguinte: “Beckett tem exposto a
miséria do homem do nosso tempo através de novas formas dramáticas e literárias. Suas
[...] vozes mudas em tom menor guardam em si a libertação para os oprimidos e o conforto
para os desgraçados”.105
104
Fonte: CONNOR, Steven. Beckett and Bion. Transcrição de conferência realizada na Goldsmiths College.
Londres, 1998. Disponível em <http://www.bbk.ac.uk/english/skc/beckbion/> Acesso em 16 de janeiro de
2005.
105
NELSON, Bonnie E.; MILLER, Walter James. (Org.) Samuel Beckett’s Waiting For Godot and other
works. New York: Monarch Press, 1971. p. 5. [Tradução do autor desta dissertação.]
3.2 AS RELAÇÕES FILOSÓFICAS DE BECKETT
contexto filosófico onde sua obra possa ser inserida para, em seguida, estabelecer em que
No ano de 1930, Beckett lê Schopenhauer e Kant. Depois, não lerá mais filosofia,
por se considerar pouco dotado para isto, como ele mesmo dirá posteriormente numa de
suas raras entrevistas.106 Porém, vários estudiosos, como Martin Esslin e Ludovic Janvier,
entre outros, são unânimes em afirmar que Beckett possui relações filosóficas que não
vê
106
Gabriel D’Aubarède entrevistou Beckett em 16 de fevereiro de 1961, para a revista Nouvelles Littéraires.
Nesta rara entrevista, Beckett afirma categoricamente, após ser questionado sobre a influência que os
filósofos contemporâneos teriam tido em seu pensamento: “Nunca leio os filósofos”. Ao ser questionado por
quê, ele responde laconicamente: “Nunca entendo nada do que eles escrevem”. Fonte: ANDRADE, Fábio de
Souza. Samuel Beckett – O silêncio possível. p. 189.
107
HOFFMAN, Frederick J. Samuel Beckett: The language of the self. In.: NELSON, Bonnie E.; MILLER,
Walter James (Org.) Samuel Beckett’s Waiting For Godot and other works. New York: Monarch Press,
1971. p. 14.
108
ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
p.54.
Descartes e Berkeley.109 Em todas as suas criações literárias, ele usa livremente conceitos
e imagens – por vezes detalhes das próprias vidas – destes e de outros pensadores,
pensador profundo que aceita as provas mesmo quando estas não são aquelas que ele
unidade na Natureza, mas teve de admitir que a única coisa que ele pôde enxergar foi a
duas vezes no mesmo rio”112 e “Eu busco a mim mesmo.”113. Para alguém que vive e atua
na modernidade, a leitura de Heráclito irá afirmar a crença de que o tempo é mais real que
o espaço. Para as personagens de Beckett, o fluxo heraclitiano não está apenas no mundo
exterior, mas pode ser experimentado no mundo interior. A consciência também flutua.
Não se pode contemplar o mesmo rio duas vezes com a mesma mente. No romance Como
109
Beckett cita Heráclito (530 – 470 a.C.) no romance Como é, como será exemplificado a seguir. René
Descartes (1596 – 1650), considerado o pai da filosofia moderna, autor da célebre frase Cogito ergo sum
(Penso, logo existo) é a personagem que monologa no longo poema de Beckett intitulado Whoroscope,
publicado em 1930. Finalmente, George Berkeley (1685 – 1753) é o autor da frase Esse est percipi (Ser é ser
percebido) que Beckett utilizará como epígrafe na publicação do roteiro de Film, seu único texto escrito
exclusivamente para o cinema.
110
Ruby Cohn, em seu artigo Philosophical fragments in the works of Samuel Beckett, publicado sob
organização de Martin Esslin no volume Samuel Beckett: a collection of critical essays apresenta
longamente estas referências.
111
Beckett disse em entrevista a Tom Driver no Columbia University Forum – no verão de 1961: “Quando
Heidegger e Sartre falam de um contraste entre o ser e a existência, pode ser que estejam certos, não sei, mas
sua linguagem é filosófica demais pra mim. Não sou um filósofo.” Fonte: ANDRADE, Fábio de Souza.
Samuel Beckett – O silêncio possível. p. 190.
112
HERÁCLITO. Fragmento L. In.: Heráclito: Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e
comentários de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2000. p.205.
113
HERÁCLITO. Fragmento CVI. Op. cit. p.214.
negras estendidas imóveis o corpo de neve de não sei que pássaro-fragata o
gritante albatroz dos mares do sul a história que eu sabia meu Deus a natural os
bons momentos que tive 114
Em Como é, Beckett cria um narrador que se dá conta de sua própria existência, criando
uma espécie de inventário de estados pelos quais ele teria passado, lembrando que foram
afirmou: “Nada possui existência real; e mesmo se existisse não poderia ser conhecido;
mesmo se algo pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado”115. Neste sentido,
Beckett pode ser considerado uma espécie de Górgias moderno. “A questão crucial das
personagens beckettianas parece ser esta: de que maneira se pode expressar algo que é
inexprimível?”116
Mestre de Platão e principal personagem dos Diálogos, Sócrates (467 – 399 a.C.)
afirma no Fédon: “Uma vida que não foi examinada não merece ser vivida”117. Porém, o
herói beckettiano vai além: ele se dá conta dolorosamente de que a vida, mesmo
examinada, não merece o sacrifício, e ainda assim ele precisa continuar, analisando a si
Segundo Martin Esslin, Beckett citou, numa entrevista, uma frase de Santo
Agostinho (345 – 430 d.C.) que figurará como uma das passagens marcantes de
Esperando Godot: “Não se desespere, um dos ladrões foi salvo. Não seja presunçoso, um
114
BECKETT, Samuel. Como é. Tradução de Ana Helena Souza. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 42.
115
Apud. NELSON, Bonnie E.; MILLER, Walter James. (Org.) Samuel Beckett’s Waiting For Godot and
other works. New York: Monarch Press, 1971. p.15. [Tradução do autor da dissertação.]
116
LEVENTHAL, A. J. The Beckett hero. In.: ESSLIN, Martin (Org.). Samuel Beckett: a collection of
critical essays. New Jersey: Prentice-Hall, 1965. p. 37. [Tradução do autor da dissertação.]
117
Apud. NELSON, Bonnie E.; MILLER, Walter James. Op. cit. p.15.
118
ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
como sendo a essência das coisas. E, da mesma maneira, sempre houve pensadores que
pensadores enxergam o mundo material como resultado dos sentidos do homem, assim
como o mundo das idéias relaciona-se com sua mente. É desnecessário reafirmar que, para
estes filósofos, o mundo abstrato, mental, está num nível hierarquicamente superior ao
mundo real.
(1813 – 1855), re-examinou estas relações. Tanto para Kierkegaard, assim como para
verdade abstrata sobre a natureza do mundo, justamente por ter sido criada pela abstração
da experiência humana, morre e se torna mera casca de verdade”.119 Desta maneira, não
discorre sobre o efeito psicológico provocado no homem pelo fato de, através do seu
Todo o restante de sua natureza urge por experiências reais, pela existência, pela expressão
completa. Este conflito entre mente e coração leva à crise do desespero. O homem fica
paralisado pelo desespero, pela angústia. De quê? Por quê? Porque, se ele quebrar o seu
modo de vida objetivo, de mente limitada, as possibilidades serão infinitas e nada será
quem desespera não pode morrer. Dessa maneira, como um punhal não serve
para matar pensamentos, também o desespero, verme imortal, fogo
inextinguível, não devora a eternidade do eu, que é seu próprio sustentáculo. [...]
119
KIERKEGAARD, Søren. Either/Or: fragment of life. Traduzido do dinamarquês para o inglês por
Alastair Hannay. Londres: Penguin, 1992. [Tradução do autor da dissertação.]
Bem longe de consolar o desesperado, ao contrário, o insucesso do seu
desespero em destruí-lo é uma tortura. 120
principalmente as criadas em francês. Porém, mesmo antes de sua opção pela língua
francesa, já podemos notar este enfoque. Por exemplo, o ensaio crítico Proust, cuja
escritura e influências na obra de Beckett serão analisadas com mais detalhes adiante,
algum tempo depois, em 1961, podemos observar a peça Dias felizes, escrita em inglês e
No entanto, é preciso afirmar que Beckett, apesar de tudo, não estava interessado
em fazer filosofia. Seu interesse sempre pareceu outro. A nós, encontramos uma possível
explicação para o enigma filosófico beckettiano numa carta dirigida a um amigo pouco
íntimo, que ficou conhecida como a “Carta alemã”. Neste precioso documento, Beckett
expressa claramente alguns de seus anseios como escritor e ainda seu descontentamento
com as estratégias literárias contemporâneas a ele. Além disso, nos sugere uma explicação
para a opção de escrever em francês, língua na qual irá escrever grande parte de suas
principais obras. Na “Carta alemã”, endereçada a um tal Alex Kaun, após expor sua
justificativa para negar a tradução dos poemas de um escritor alemão sugeridos por Kaun,
Beckett diz:
Está se tornando mais e mais difícil, até sem sentido, para mim, escrever num
inglês oficial. E, mais a mais, minha própria língua me parece como um véu que
precisa ser rasgado para chegar às coisas (ou ao Nada) por trás dele. Gramática e
Estilo. Para mim, eles parecem ter se tornado tão irrelevantes quanto o traje de
banho vitoriano ou a imperturbabilidade do verdadeiro cavalheiro. Uma
máscara. Tomara que chegue o tempo, graças a Deus que em certas rodas já
chegou, em que a linguagem é mais eficientemente empregada quando mal
empregada. Como não podemos eliminar a linguagem de uma vez por todas,
devemos pelo menos não deixar por fazer nada que possa contribuir para sua
desgraça. Cavar nela um buraco atrás do outro, até que aquilo que está à espreita
por trás – seja isto alguma coisa ou nada – comece a atravessar; não consigo
imaginar um objetivo mais elevado para um escritor hoje. 121
120
KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret,
2003. p. 24.
121
BECKETT, Samuel. “Carta alemã”, tradução de Fábio de Souza Andrade. In: ANDRADE, Fábio de
Souza. Samuel Beckett: o silêncio possível. Cotia – SP: Ateliê Editorial, 2001. p. 169.
O que fica claro aqui é que Beckett tinha, já em 1937, um programa estético, ético
e político bem definido. É justamente o germe inicial deste programa que nós
investigaremos a partir de agora. Pois acreditamos que, mesmo com toda a influência da
filosofia na obra de Beckett, este germe está em sua produção como crítico literário e de
arte.
Em 1929, o jovem Beckett publicou um ensaio que, juntamente com outros artigos
coletânea de ensaios era uma exegese da obra-prima de James Joyce, então chamada de
Work in progress e, mais tarde, finalizada sob o título de Finnegans’ wake. Segundo o
coletivo, segundo a qual o inconsciente de cada pessoa contém memórias recalcadas não
apenas de sua própria experiência, mas também da experiência total de toda a raça
Earwicker que, neste estado de adormecimento, passa a existir enquanto todo ser humano
do sexo masculino: de Adão a Noé, a Romeu, Darwin, Huck Finn e ao próprio Earwicker.
122
Uma tradução possível, em português, deste título tão original seria: Nossa exagminação sobre a
fatificação dele para o encaminhamento do Trabalho em processo.
se emaranhando no método joyceano”123. Ele faz produtivas comparações entre Joyce e
vida’ da virtude absoluta. E, entre as duas, encontra a arte dinâmica: o Purgatório, que
Joyce se caracteriza pela sua ‘absoluta ausência do Absoluto’. Enquanto forma, Beckett vê
purgatório joyceano é esférico: seu formato implica num movimento circular, na direção
Estas observações revelam que, mesmo antes dos trinta anos de idade, Beckett
enfatizaria uma das características marcantes de seu trabalho posterior: sua complexidade
material pode estar contida numa forma simples desde que fiel ao tema. É nesta análise
que podemos antever a ação esférica que irá caracterizar, por exemplo, o drama Esperando
Godot.
dois atos”, Esperando Godot não obedece à estrutura tradicional de, no ato I, fazer a
123
DILKS, Dr. Stephen. Beckett Bethicketted. In.: NTRY 1.2: Literary e-zine. http://www.samuel-
beckett.net/sd.html. Acesso em 14 de dezembro de 2004.
atravessam a ação. 3. As personagens “passivas” recebem uma mensagem (de que Godot
mesma maneira, um outro círculo. Assim, há uma implicação clara de que a ação do
encerram de maneira idêntica para Vladimir e Estragon, mas para Pozzo e Lucky (agentes
da ação) há mudanças extremas. No segundo ato, Pozzo está cego e Lucky perdeu o poder
do discurso, os dois estão cambaleantes e inseguros, sua condição sugere que eles estão
mais próximos da decadência de Vladimir e Estragon. Não ficamos sabendo qual a causa
desses efeitos, que parecem ser simplesmente o curso natural das coisas. O que podemos
saber com certeza é que eles estão em uma espiral descendente. Esta forma nos sugere
que, se por um lado, a vida é cíclica e, por outro, é uma espiral descendente, em ambos os
casos, a vida parece ser repetitiva, vazia, entediante, destituída de um sentido de progresso
Beckett na obra de Joyce. Porém, há outros exemplos. Em uma de suas últimas peças para
teatro, Rockaby, escrita em inglês, em 1980, vemos uma mulher precocemente envelhecida
que ouve sua própria voz gravada, enquanto faz movimentos repetitivos de ir e vir, numa
cadeira de balanço. A voz que a mulher ouve parece vir de sua própria consciência e se
repete, com pequenas modificações, numa estrutura que mais parece um poema. Aos
poucos, o texto parece convergir numa espiral descendente, até que os movimentos e a voz
que Beckett levará os movimentos cíclicos e a ação repetitiva a um grau infinito. Neste
exercício matemático de análise combinatória, quatro figuras humanas, cobertas dos pés à
cabeça por panos que não permitem que elas sejam identificadas, andam sobre um
quadrado imaginário no chão, ora em solos, ora em duplas, ou trios e quartetos, repetindo
como um moto-contínuo. Este mesmo método já havia sido utilizado em duas outras peças
Em Come and go, escrita em inglês, em 1965, e dedicada a John Calder, três
mulheres identificadas apenas pelos nomes – Ru, Flo e Vi – e pelas cores com que estão
vestidas – vermelho, amarelo e roxo –, cujos rostos permanecem sob a sombra de seus
chapéus, criam uma movimentação matematicamente simétrica. Simetria esta que também
se repete no texto falado. Neste dramatículo (como Beckett define) de pouco mais de cinco
espantosas.
E, finalmente, na peça Play, escrita em inglês, entre 1962 e 1963, Beckett cria
umas de suas obras mais instigantes, em que ele se utiliza de referências marcantes do
martírio no inferno da Divina comédia, de Dante, para colocar suas personagens – duas
como estrutura que nos diz: ‘isto é ruim, e pode ficar ainda pior’. A resposta que Beckett
longo ensaio intitulado Proust, sobre o autor de Em busca do tempo perdido, iniciando seu
exame com uma frase intrigante: “A equação proustiana nunca é simples”.126 Beckett irá
sutilmente analisar o tempo perdido entre seus dois pólos: diluição da persona no tempo –
a danação; e o alçar vôo da persona na verdadeira memória, que é a arte que eterniza – a
redenção. A busca de Beckett aqui é pela “estrutura nervosa sutil”, como afirma Martin
formulação da poética radical da narrativa que Beckett não tardará em colocar à prova em
significados podemos extrair uma idéia do que viria a se tornar uma poética beckettiana.
Estes quatro pilares construídos a partir da leitura de Em busca do Tempo perdido são: o
Beckett afirmará, logo no início do seu ensaio, que “as criaturas de Proust são,
como fugir das horas e dos dias. Nem de amanhã nem de ontem”.127
124
Repetir a peça.
125
ESSLIN. O teatro do absurdo. Op. cit. p.28.
126
BECKETT. Proust. Tradução de Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 9.
127
BECKETT. Proust. Op. Cit. p.11.
Logo em seguida, Beckett analisará os efeitos do tempo sobre as pessoas,
afirmando que “não estamos meramente mais cansados por causa de ontem, somos outros,
não mais do que éramos antes da calamidade de ontem. [...] As aspirações de ontem foram
válidas para o eu de ontem, não para o de hoje”.128 Ele segue aqui um raciocínio que, em
conceito, lembra o fragmento de Heráclito: “Não é possível entrar duas vezes no mesmo
rio”.129
Este modo de ver a ação do Tempo sobre os sujeitos é algo que marcará a escrita
O Tempo marcará a obra de Beckett de maneira a não deixar dúvidas sobre a sua
natureza destruidora, assim como, em Proust, o Tempo interfere nas vidas e percepções
passado.
Ao ler Proust, Beckett descobre que “o entendimento tácito de que o futuro pode
128
BECKETT. Proust. Op cit. p. 11-12.
129
HERÁCLITO. Fragmentos. In.: Heráclito: Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e
comentários de Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2000. p. 205.
130
BECKETT. Esperando Godot. Tradução de Flávio Rangel. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 10.
131
BECKETT. Proust. Tradução de Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 13.
132
BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 14.
questões do tempo e da sua força destruidora e inelutável, para concluir as relações do
tempo nos sujeitos, Beckett irá apontar sua lente para o foco das relações humanas e da
Esperando Godot, quando a personagem Pozzo, após ser argüida sobre quando Lucky
‘tumor do tempo’, e é nestes dois atributos que ele irá seguir sua análise sobre a “tragédia
que se abaterá nas relações humanas, cujo fracasso é preestabelecido”, na história entre
hábito. A vida é um hábito. Ou melhor, a vida é uma sucessão de hábitos, posto que o
133
BECKETT. Proust. Op. Cit. 15-16.
134
BECKETT. Esperando Godot. Op. cit. p. 176.
135
BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 16. [Grifo nosso]
136
BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 17.
de nossos gritos”. Em seguida, ele se cala, tentando escutar os ecos de seus gritos e
O autor vê o Hábito como algo a ser desprezado e arrancado da alma dos homens
para que haja alguma possibilidade de redenção. Num aparente desprezo por aqueles que
Para Beckett, o Hábito impede o único modo de triunfar sobre o Tempo, que são os
períodos de transição, de adaptação entre uma situação e outra, com a criação de novos
hábitos. Não há possibilidade de um indivíduo ‘ser’ quando ele está inserido totalmente
contrário,
Na relação entre sofrimento e hábito, Beckett ainda conceitua sua relação com o
137
BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 178.
138
BECKETT. Proust.Op. Cit. p. 18-19.
139
BECKETT. Proust.Op. Cit. p.18.
140
BECKETT. Proust.Op. Cit. p. 23
141
Ibid. p. 28.
Fica claro, nesta passagem, o ponto de vista radical que Beckett tem do sofrimento
hábito. Esta visão pode ser percebida em várias de suas obras posteriores.
amor, novela que Beckett escreverá em 1945. O narrador de Primeiro amor está
jacintos e seu pequeno quarto. Sua pequena e confortável prisão do hábito é ameaçada
apenas quando este é interrompido após a morte de seu pai. Durante uma das longas
sessões no vaso sanitário – com diarréia ou prisão de ventre, nem ele sabe ao certo –, o
narrador é obrigado a abandonar sua casa e passa a viver entre o cemitério, onde
constantemente vai visitar o túmulo do pai, e um banco à beira do rio, que passa ser sua
nova morada. Quando ele já está construindo este novo hábito confortável, aparece Lulu,
uma prostituta gorda e estrábica, com quem ele irá morar, criando sempre novos hábitos.
Beckett encerra a parte de seu ensaio que fala sobre o Hábito com uma citação do
próprio texto de Proust: “Se não existisse o Hábito, a Vida teria, por certo, uma aparência
deliciosa para todos aqueles a quem a Morte ameaça a cada momento, isto é, para toda a
Humanidade”.142
O homem de boa memória nunca lembra de nada, porque nunca esquece nada.
Sua memória é uniforme, uma criatura de rotina, simultaneamente condição e
função de seu hábito impecável, um instrumento de referência e não de
descoberta. [...] Porque sua memória é um varal e as imagens de seu passado são
roupa suja redimida, criados infalivelmente complacentes de suas necessidades
de reminiscência. 143
142
PROUST. Apud. BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 28.
143
BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 29-30.
voluntária, aquela primeira, escrava do hábito, que Beckett chamará de “testamento do
memória da realidade”.
nem sequer está à mercê dos desejos de utilização do sujeito. Sua função é criar entre o
mágico rebelde e não se deixa importunar. Escolhe seu próprio tempo e lugar para a
operação do milagre”.145
quase prosaicos, mas de grande importância dentro do contexto em que estão inseridos. O
ruído da batida de uma colher num pires, alguém roçando levemente um guardanapo
engomado nos lábios, um odor, pequenos elementos que assumem o papel do mágico que
irá operar o milagre de, através da memória involuntária, reproduzir a experiência do real,
justamente no contraste de tempo entre passado (um passado que o hábito – ou novos
presente, dando ao sujeito a percepção de que ele está vivo e atrelado a uma rede que
144
BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 32-33.
145
BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 33.
146
BECKETT. Proust.Op. Cit. p.57.
No exame da estrutura proustiana, ele produzirá reflexões que irão realmente
definir muito de suas próprias opções estéticas, como quando ele afirma que
Podemos perceber aqui, claramente, através das suas conceituações para o binômio
Amor / Amizade, que Beckett observa funções muito bem definidas no surgimento e
destes conceitos muito bem marcados na composição da linha de pensamento que irá
nortear a criação de suas personagens. O primeiro exemplo é a relação de amor entre Nagg
e Nell, no drama Fim de partida, escrito em francês, em 1956. Nagg e Nell são os pais do
protagonista, Hamm, e vivem dentro de latões de lixo, no pequeno ambiente onde todos
habitam, sob os cuidados de Clov. Nagg e Nell dirigem um ao outro pequenos gestos e
meio de sobrevivência deste amor. Falar do amor alimenta o amor. Falar do passado
Este suspiro elegíaco ao “ontem” é como um refrão que se repete, durante uma
cena que beira o patético: os velhos Nagg e Nell, cada um em seu latão, procuram
147
BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 67.
148
BECKETT. Fim de partida. Tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac &
Naify, 2002. p. 57, 64.
reacender a chama da sua paixão. Falar de um passado é reescrevê-lo, criando memórias
Um outro exemplo, que pode ser entendido como o valor da amizade associada à
covardia é, perto do final, o argumento que Hamm utiliza para tentar convencer Clov a não
abandoná-lo. Hamm utiliza um argumento que estabelecerá uma relação da amizade com a
HAMM – [...] (Pausa. Tom profético, com volúpia) Um dia você ficará cego,
como eu. Estará sentado num lugar qualquer, pequeno ponto perdido no
nada, para sempre, no escuro, como eu. (Pausa.) Um dia você dirá, estou
cansado, vou me sentar, e sentará. Então você dirá, tenho fome, vou me
levantar e conseguir o que comer. Mas você não levantará e nem conseguirá
o que comer. (Pausa.) Ficará um tempo olhando a parede, então você dirá,
vou fechar os olhos, cochilar talvez, depois vou me sentir melhor, e você os
fechará. E quando reabrir os olhos, não haverá mais parede. (Pausa.) Estará
rodeado pelo vazio do infinito, nem todos os mortos de todos os tempos,
ainda que ressuscitassem, o preencheriam, e então você será como um
pedregulho perdido na estepe. (Pausa.) Sim, um dia você saberá como é,
será como eu, só que não terá mais ninguém, porque você não terá se
apiedado de ninguém e não haverá mais ninguém de quem ter pena.150
Porém, o valor da amizade como covardia pode ser exemplificado mais largamente
VLADIMIR – Quando eu penso ... em todos estes anos ... eu me pergunto o que é
que você seria sem mim. (Decidido.) Você seria um feixe de ossos, nesta altura
dos acontecimentos. Sem dúvida. 151
um abrir sua subjetividade para o outro, é imediatamente rechaçada, como pode ser visto,
149
BECKETT. Op. Cit. p. 57.
150
Ibid. p. 86.
151
BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 10.
depois do episódio no qual Estragon, que esteve dormindo, deseja contar um sonho a
Vladimir.
Desta maneira, percebemos que, a partir da leitura crítica da obra de Marcel Proust,
Beckett encontra o esteio para fundamentar o eixo moral e ético de sua escrita. As relações
entre o Tempo (Krónos) e seus dois auxiliares, o Hábito (Éthos) e a Memória (Mnéme),
Nos três diálogos com Georges Duthuit, publicados em 1949, Beckett é argüido
ostensivamente sobre o trabalho dos pintores modernos Pierre Tal Coat, André Masson e
Bram Van Velde. Logo no primeiro diálogo, Beckett admite que o artista deva preferir “a
expressão de que não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do que
obrigação de expressar”.153
152
BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 23-24.
153
BECKETT. Três diálogos com Georges Duthuit (1949). Tradução de Fábio de Souza Andrade. In.:
ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: O silêncio possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. p.175.
Fábio de Souza Andrade ainda acrescenta uma nota explicativa, chamando atenção que a tradução perde o
sentido positivo da formulação original, que a necessidade da dupla negação mascara em português: nothing
to express significa não apenas que não há nada a expressar, mas também que há justamente este nada a ser
expresso.
Esta prerrogativa se torna quase como um axioma da peça Esperando Godot,
parece nos afirmar que, se o artista deseja dizer a verdade, ele deve começar como Górgias
de Lentini156 começou, admitindo que não sabemos nada e que não possuímos meios
eficazes de expressar esta ignorância. Este ‘nada’, este zero, pode ainda ser usado como
Mas este ‘nada’ a que Beckett se refere deve ser compreendido no sentido que
Kierkegaard nos oferece: o ‘nada’ que o homem encara na sua crise de desespero. Antes
de poder sair desta armadilha, ele precisa admitir que as possibilidades são infinitas, e que
nada é certo. É apenas com a disposição de encarar a possibilidade do ‘nada’ que o homem
marche, escrita em inglês, em 1983. “Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter
154
BECKETT. Esperando Godot. Op. Cit. p. 9.
155
ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: O silêncio possível. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
p.175.
156
Górgias de Lentini (483 – 375 a.C.), filósofo siciliano da Antigüidade, criou a seguinte formulação: Nada
tem existência real; mesmo que existisse, não poderia ser conhecido; e mesmo que pudesse ser conhecido,
não poderia ser comunicado.
tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar
melhor”.157
Beckett como crítico. Todo o mundo circular de Joyce, apontado em Our exagmination
enquanto motivo para a criação artística e sobre a impossibilidade do homem criar sobre
este ‘nada’, que estão presentes nos diálogos com Duthuit; tudo isso inscreve Beckett na
situação-limite do crítico que, ao analisar a obra de outros artistas, vê, como única
possibilidade de saída para suas posições estéticas, atuar ele próprio como artista, para
sua criação artística, pode-se formular uma consistente estética beckettiana. O homem
contemporâneo está paralisado pela confusão tanto do seu mundo interior quanto do
constante fluxo. Ele é incapaz de ter certeza nas suas percepções ou mesmo expressar as
percepções de modo a estar habilitado a se comunicar. De que maneira então ele pode agir
como um Eu único? O mundo exterior, privado de idéias absolutas, longe tanto do paraíso
157
BECKETT. Pioravante marche. Tradução de Miguel E. Cardoso. Lisboa: Gradiva, 1988. p. 7.
4 ELEUTHERIA
A equação beckettiana nunca é simples. Nosso olhar se voltará agora para uma
peça teatral muito pouco conhecida, tanto no meio literário quanto no mundo do teatro
como um todo. O motivo para que isto aconteça é que esta peça jamais foi encenada e,
mesmo num futuro próximo, haverá pouca chance de ser levada aos palcos, simplesmente
porque esta peça foi banida do Inventário de Samuel Beckett, The Beckett Estate. E ainda
mais, apesar de ter sido escrita há quase 60 anos, apenas em 1995 uma versão integral do
texto foi publicada no original em francês e traduzida com certa polêmica para o inglês. 158
primeira peça de Samuel Beckett, seguida por Esperando Godot, de 1948. Segundo o
estudioso holandês Marius Buning, Eleutheria foi preterida pelo encenador francês Roger
Blin – que preferiu realizar a primeira montagem de Godot – porque a peça tinha muitas
Eleutheria, de 1995, deixa clara a recusa de Beckett em publicar a peça. Segundo Lindon:
Samuel Beckett não queria que se publicasse Eleutheria. Foi a primeira peça que
ele havia escrito em francês, no final dos anos 40. [...] Ele me deu Eleutheria e
Esperando Godot para ler. Se ele aceitou voluntariamente que se publicasse a
segunda de suas peças em 1952, um pouco antes da montagem de Roger Blin no
Teatro Babylone, ele se opôs à publicação de Eleutheria assim como eventuais
representações no palco. [...] Ele falou ainda, poucos dias antes de sua morte, a
alguns amigos íntimos, a propósito de um projeto de publicação de suas Obras
Completas: “Em nenhuma circunstância deve figurar Eleutheria”. 159
158
A polêmica sobre as traduções em inglês de Eleutheria é exposta na palestra Eleutheria revisited,
ministrada por Marius Buning, presidente da Dutch Samuel Beckett Society (Sociedade Holandesa de
Samuel Beckett), em 1997, na qual ele apresenta e compara a tradução norte-americana de Michael Brodsky
(segundo ele, repleta de erros de tradução e estilo) com a versão britânica escrita por Barbara Wright (cuja
tradução, segundo Buning, é exemplarmente mais bem sucedida.)
159
LINDON, Jérôme. Avertissment. In.: BECKETT, Samuel. Eleutheria. Paris: Les Éditions de Minuit,
1995. p. 7. [Tradução do autor desta dissertação]
Sejam quais forem os motivos do autor para esta rejeição, não nos cabe aqui
análise do significado do título da peça, além de uma breve apresentação das personagens,
o significado de seus nomes e suas ações principais; em seguida, iremos apresentar uma
leitura de cada um dos três atos, buscando identificar na escritura de Eleutheria os três
apontar em quais momentos da peça podemos identificar: o eixo formal, representado pela
ação circular herdada de James Joyce; o eixo moral e ético, demonstrando como estão
Música, de acordo com a análise beckettiana da obra de Marcel Proust; e ainda as relações
de Eleutheria com o Nada, numa articulação com o eixo estético observado nos
algum lugar não específico. Esperando Godot se passa à beira de um deserto, cuja
descrição, na indicação de cenário sugere apenas “Uma estrada. Uma árvore”.160 A mesma
160
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução de Flávio Rangel. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p. 9.
cinzenta.”161 Em Eleutheria é diferente. O autor especifica, logo após a lista de
uma pequena sala na casa da família Krap, cuja riqueza e decoração elegante devam
contrastar com a outra metade do palco, o quarto de pensão onde vive Victor – filho dos
Krap – onde não há nada, apenas uma pequena cama. Além disso, logo ficamos sabendo
que a peça é composta de três atos. Nenhuma outra peça escrita por Samuel Beckett possui
três atos.163 A ação de Eleutheria se passará em Paris, com referências diretas a ruas que
realmente existem.
Porém, a peça funciona de maneira um pouco diferente deste esquema sugerido por
Esslin. São três atos. Apesar de o palco estar sempre dividido em duas partes, a ação do
primeiro se passa totalmente na sala de estar da casa da família Krap. No segundo ato, a
ação é deslocada para o quartinho de Victor, assim como no terceiro e último ato. Beckett
deixa clara a sua intenção ao colocar esta distribuição de cenário na indicação em que
direção ao salão dos Krap, como a sujeira em direção ao limpo, o sórdido em direção ao
161
BECKETT, Samuel. Fim de partida. Tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade. São Paulo,
Cosac & Naify, 2002. p. 37.
162
BECKETT, Samuel. Eleutheria. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. p. 17.
163
À exceção de Esperando Godot e Dias felizes (Happy days, escrita em inglês, em 1961, e depois
traduzida para o francês pelo próprio autor sob o título de Oh, les Beaux jours), ambas com dois atos cada,
toda a dramaturgia de Beckett será limitada a peças em apenas um ato único.
164
ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. p. 31-32.
165
BECKETT. Eleutheria. Op. cit. p. 13.
O título da peça já sugere o tema que será tratado no drama: a liberdade. Segundo
Ludovic Janvier, “é da liberdade que trata o debate que opõe Victor Krap [...] à
Desta maneira, podemos aferir que a ação de Victor Krap, sua inação, é uma estratégia de
A lista de personagens que se opõem a Victor deve ser estudada com cuidado. Os
nomes destas personagens trazem pequenos trocadilhos em inglês que não podem passar
inevitável.
que conduzirá a ação do ato até o final surpreendente. É importante notar o significado da
sonoridade do nome ‘Krap’ que se pronuncia da mesma maneira que ‘crap’, cujo
significado, em inglês vulgar, é ‘merda’, ‘bosta’, e ainda na forma de verbo ‘to crap’ que
significa ‘defecar’169. Assim, Beckett já inicia sua lista de personagens com um trocadilho
infame. O próprio senhor Krap irá ressaltar o significado vulgar de seu sobrenome, quando
é interrogado sobre qual tipo de literatura ele prefere escrever. Ele cinicamente responde:
“Ao gênero merda”170. Beckett iria escrever outro personagem com o mesmo sobrenome,
166
JANVIER, Ludovic. Beckett. p. 73.
167
Fonte: Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.
168
BECKETT. Eleutheria. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. p.29.
169
Fonte: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed.
170
BECKETT. Eleutheria. Op. cit. p. 43.
acrescido apenas de um ‘p’ ao final. Na peça Krapp´s last tape, escrita em inglês, em
próprio corpo. A senhora Krap sofre com um útero em prolapso172. Seu esforço em trazer
o filho de volta pra casa é tão grande que ela chega a contratar um torturador chinês,
chamado Tchoutchi, para ameaçar o filho e forçá-lo a retornar. Ela é definida pelo marido
das maneiras mais hostis e sarcasticamente mordazes. Ele a chama de: “aquela massa de
órgãos gastos”173; e ainda se refere a ela como: “minha mulher, aquela catástrofe”174.
abandonou a casa da família, os estudos e a noiva, mora num quarto de pensão decadente e
passa os dias prostrado em sua cama ou, quando tem fome, revira latas de lixo em um
bairro decadente de Paris. Ele é o que se pode chamar de um ‘eleuterômano’: uma pessoa
prostração, a força que tenta subjugá-lo e conquista sua libertação, pagando o preço da
Mme. Meck176, amiga da família, que faz uma visita aos Krap, preocupada com a situação
171
BECKETT. Krapp´s last tape. In.: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986. p. 215.
172
A versão francesa da peça utiliza o formato ‘bas-ventre qui tombe’, a tradução de Barbara Wright sugere
‘prolapsed womb’. Optamos traduzir em português, a partir da versão inglesa.
173
BECKETT. Eleutheria. Op. cit. p. 39.
174
BECKETT. Eleutheria. Op. cit. p. 57.
175
Fonte: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed.
176
O significado da palavra ‘mec’, em francês, é ‘alcoviteiro’, ‘gigolô’. Fonte: Dictionnaire de l'Académie
française, 9.ed. Version informatisée.
177
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 35.
No segundo ato da peça, Mme. Meck tentará inutilmente tirar Victor da pensão
onde ele se encontra, usando a força física de seu chofer e de uma espécie de guarda-
Há ainda o casal formado pelo Dr. Piouk e por Marguerite, irmã da Sra. Krap. A
‘puke’, cujo significado é ‘vômito’178. O Dr. Piouk é médico e se diz um interessado pela
humanidade, cujos problemas ele sugere resolver da seguinte maneira, como ele expressa
O Dr. Piouk aparecerá no segundo ato com uma sugestão de oferecer uma pílula de
veneno para Victor, a fim de que o jovem, ao ver uma possibilidade de realmente morrer,
seja ‘curado’ de sua melancolia. Será justamente Mme. Piouk, irmã de Mme. Krap, que
dará a definição para o estado de Victor e apresentará a angústia da família com aquela
MME. PIOUK – Mas alguma coisa precisa ser feita! Nós não podemos deixá-lo
daquele jeito.
M KRAPP – De que jeito?
MME. PIOUK – Naquele estado de ... de inércia sórdida. 180
É justamente nesta ‘inércia sórdida’ que identificamos o estupor que acomete Victor Krap.
está Mademoiselle Olga Skunk, noiva de Victor. A palavra ‘skunk’ possui três
178
Fonte: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed.
179
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 50.
180
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 33.
vil’; e, como gíria, tem o significado de ‘esculhambado’181. É a Olga Skunk que o senhor
as outras personagens da trama, representantes das classes menos abastadas, não possuem
marcante. Ele não apenas tenta persuadir Victor a se explicar, como outros tentaram antes,
ESPECTADOR – Beckett (ele deve pronunciar: Béké.) Samuel. Béké, Béké, isso
deve ser um cruzamento de judeu da Groenlândia com um caipira de
Auvergnat.184
a senhoria da pensão onde Victor vive; Thomas, o chofer da Mme Meck que, juntamente
com Joseph, o guarda-costas, ameaçam Victor em seu quarto; Jacques e Marie, criados da
praticamente o tempo todo ao lado de Victor será o Vidraceiro, que foi chamado para fazer
reparos no vidro da janela que foi deliberadamente quebrada por Victor com seu sapato. O
181
Fontes: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed. e Novo Dicionário
Eletrônico Aurélio versão 5.0.
182
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 57-58.
183
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 136. [O termo utilizado por Beckett é ‘navet’, cujo significado literal é
‘nabo’ mas pode ser compreendida como ‘coisinha sem importância’, a tradução de Barbara Wright opta por
‘rubbish’, cujo significado é ‘porcaria’.]
184
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 136.
Vidraceiro, “como representante do senso-comum da humanidade e homem prático,
questiona, numa série de interrogações, os motivos que levaram Victor a optar por aquela
vida sórdida, mas não obtém sucesso”.185 A função dramática do Vidraceiro é, por vezes, a
questionamentos da platéia. Juntamente com Michel, seu quase letárgico filho de dez anos
de idade, o Vidraceiro será protagonista de um dos diálogos mais tocantes, que finaliza o
segundo ato da peça e que, em muitos elementos, se assemelha com o diálogo de Vladimir
185
BUNING, Marius. Eleutheria revisited. Transcrição de palestra ministrada no Teatro Quijano. Ciudad
Real, Espanha. 2 de dezembro de 1997. Disponível em <http://samuel-beckett.net/Eleutheria_Revisited.html
Acesso em 10 de janeiro de 2005. [Tradução do autor desta dissertação.]
MICHEL – Me pinica, papai.
VIDRACEIRO – Viu, você soube dizer por que é que você não gosta quando eu te
beijo.
MICHEL – Sim, papai.
VIDRACEIRO – Então, diga por que você gosta quando você está na cama.
MICHEL (após uma reflexão) – Eu não sei, papai.
Silêncio.
VIDRACEIRO – Você ainda está com fome?
MICHEL – Sim, papai.
VIDRACEIRO (entregando-lhe seu sanduíche) – Tome, coma isso.
MICHEL (hesitante) – Mas este é seu, papai.
VIDRACEIRO (com energia) – Coma!
Silêncio.
MICHEL – O senhor não está com fome, papai?
VIDRACEIRO – Não.
MICHEL – E por quê?
Silêncio.
VIDRACEIRO – Eu não sei, Michel.
Silêncio.
Cortina. 186
forma. Da mesma maneira, haverá esta semelhança com outras peças de Beckett,
A peça começa com a senhora Krap, imóvel, sentada diante de uma mesa. Esta
primeira imagem da peça será evocada, em 1980, na peça Rockaby, cujo início apresenta a
Jacques anunciando a chegada da irmã da senhora Krap, a senhora Piouk. Após pedir o
chá para Marie, a criada, noiva de Jacques, as irmãs começam a conversar. A senhora
Piouk informa à irmã que está recém casada com um médico, o Dr. André Piuok e, logo
em seguida, deseja saber como está Victor. É a primeira vez que ouvimos falar em seu
nome:
Logo após sermos informados sobre alguns detalhes do Dr. André Piouk, Jacques
retorna informando a chegada da Mme Meck, amiga da família. As três senhoras, juntas,
se assemelham em muito às três mulheres sentadas num banquinho, na peça Come and go.
Este pequeno drama de apenas cinco minutos de duração, escrito em inglês, em 1965, nos
apresenta Flo, Vi e Ru, três mulheres vestidas de maneira formal, cada uma de uma cor
diferente. Alternadamente, cada uma das três sai de cena, deixando as outras duas a sós.
Neste momento, uma das duas em cena sussurra um segredo sobre a que saiu. Quando a
que saiu retorna, elas mudam de assunto. Todas as três possuem um segredo que jamais
deveria ser revelado para as outras. No caso das senhoras Krap, Meck e Piouk, ficamos
sabendo que o senhor Krap está com problemas na próstata e que tanto a senhora Meck
quanto a senhora Krap possuem úteros em prolapso. Logo em seguida, temos mais
informações sobre o estado de espírito de Victor. Ele quase não sai da cama, apesar de não
estar doente e, quando tem fome, revira latas de lixo no bairro de Passy. Ficamos sabendo
também que a senhora Krap, mensalmente, envia-lhe dinheiro, para que ele sobreviva.
188
BECKETT. Rockaby. In.: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986. p. 433.
189
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 23.
Esta seqüência inicial, semelhante a uma cena de vaudeville, com seus fuxicos e
tiradas irônicas, na verdade parece ser mais que apenas uma tradicional apresentação de
personagens. As cenas da sala de estar da família Krap são escritas num estilo que nos
remete à Cantora careca, obra-prima de Eugène Ionesco. Representada pela primeira vez
em 1950, em Paris, A cantora careca é uma peça repleta de jogos de palavras e trocadilhos
cuja ação se passa numa noite, na sala de estar do Sr. e Sra. Smith – um casal de ingleses
da classe-média alta – quando eles recebem a visita de outro casal, os Martin. Eles se
engajam em cenas cujos diálogos parecem uma “conversa desordenada e sem nexo [...]
A cantora careca encerram-se aqui, pois a peça de Beckett não possui, segundo Marius
primeiro ato: o senhor Krap. Num certo sentido, o senhor Krap é um espelho de seu filho,
Victor. Ambos são – ou foram – escritores, e o senhor Krap insinua que o que o filho está
fazendo agora teria sido um antigo desejo seu, cuja realização cabe agora a Victor. Apesar
de não termos uma ação circular – como vemos claramente em Esperando Godot, Fim de
partida e Dias felizes, por exemplo –, os círculos de Eleutheria parecem ser internos, não
na ação, mas na psicologia das personagens, principalmente na ligação que se dará entre o
A postura do senhor Krap em relação à opção do filho é clara quando ele afirma:
O drama segue. Numa conversa com o Dr. Piouk, a quem o senhor Krap acaba de
ser apresentado, há um diálogo muito interessante que nos remete à idéia de meta-drama,
190
ESSLIN. O teatro do absurdo. Op. Cit. p.278.
191
BUNING, Marius. Eleutheria revisited. Op. cit.
192
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 36.
onde as personagens parecem estar cientes de que estão representando papéis em uma
peça:
temática é o fato de o senhor Krap ter sido escritor. Segundo Ludovic Janvier, “fazendo os
E o final do primeiro ato nos conduz a três cenas protagonizadas pelo senhor Krap
que, como Hamm, de Fim de partida, está impossibilitado de levantar-se e sair de sua
cadeira. Após a saída de todos, o senhor Krap se vê sozinho com a senhorita Skunk.
Aproveitando este momento, ele a faz tirar o casaco e subir a saia, numa cena que sugere
abuso sexual. No meio da cena, ela o chama, sem se dar conta, de pai. Em seguida, ele
193
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 39-40.
194
JANVIER, Ludovic. Beckett. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 74.
195
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 43-44.
pede a ela que se finja de viva, para que seu filho pareça vivo. E, logo após, pede a ela um
beijo, que ela recusa. A chegada da senhora Krap em cena desfaz a atmosfera de abuso
sexual. Olga Skunk consegue escapar. O casal Krap mantém um diálogo que, em
determinado momento, passa a ser sobre as tentativas de aborto que a senhora Krap teria
Em seguida, no momento em que a senhora Krap está de saída, ele pede ainda um
beijo. Ela nega. Está atrasada para um compromisso. O primeiro ato se encerra com uma
longa cena entre o senhor Krap e o criado Jacques que lembra, em muito, algumas
passagens de Fim de partida. A cena apresenta a íntima relação entre patrão e empregado,
razões sociais, jamais se sentaria na presença do patrão. Jacques sugere deixar as portas do
salão abertas para que o senhor Krap possa ouvir a música que está sendo escutada na área
Marcel Proust, a música aqui, em vez de libertar, oprime. O senhor Krap sufoca e se agita
música é o catalisador da obra de Proust. É ela que afirma, para sua descrença, a
196
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 61-62.
197
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 64. Beckett sugere, em indicação de cena, que a música toque
enquanto o senhor Krap se agita, deixando-a tocar por “um bom minuto, se possível”.
permanência da personalidade e a realidade da arte. A música sintetiza os momentos de
privilégio”198, em Eleutheria, a música será motivo de aflição. Beckett não permite nem
que a música surja como válvula de escape para a pressão que ele mesmo cria. Esta
relação com a música aparecerá também em outras peças de Beckett, como é o caso de
Rough for theatre I, escrita em francês, no final dos anos 50, na qual um mendigo cego –
identificado como A – está “arranhando seu violino” numa esquina em ruínas, quando um
B – Música! (Pausa.) Então não é um sonho. Finalmente! Nem uma visão, pois
elas são mudas para mim e eu fico mudo diante delas. 199
A música de Schubert foi ainda inspiração para uma das últimas peças escritas por
Südeutscher Rundfunk. O título desta peça para televisão é Nacht und träume, o mesmo
título de um lied de Schubert, cujos sete últimos compassos servem como trilha musical
para esta peça sem palavras, na qual um sonhador observa o seu ‘eu’ no sonho e suas
Em Eleutheria, depois de gritar para que Jacques pare a música que o incomoda, o
senhor Krap pedirá ao criado que não o abandone mais. O primeiro ato se encerra numa
pequena cena entre patrão e empregado, de efeito surpreendente. O senhor Krap, depois de
ter pedido um beijo a Olga Skunk e à sua esposa, e estes beijos lhe terem sido negados,
M KRAP – Jacques.
JACQUES – Sim, senhor.
M KRAP – Eu gostaria que você me desse um beijo.
JACQUES – Certamente, senhor. Na bochecha de monsieur?
M KRAP – Onde você quiser.
(Jacques beija M Krap.)
JACQUES – De novo, senhor?
M KRAP – Obrigado.
198
BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 99.
199
BECKETT. Rough for theatre I. In.: The complete dramatic works. Op. Cit. p. 227. [Tradução do autor
desta dissertação.]
JACQUES – Muito bem, senhor. (Ele torna a erguer-se.)
M KRAP – Tome. (Oferece-lhe uma nota de cem francos.)
JACQUES (pegando a nota) – Oh, não era necessário, senhor.
M KRAP – Sua barba pinica.
JACQUES – A do senhor também pinica um pouco.
M KRAP – Você beija bem.
JACQUES – Eu faço o melhor que posso, senhor.
(Silêncio.)
M KRAP – Eu devia ter sido homossexual. (Silêncio.) O que é que você acha?
JACQUES – De quê, monsieur?
M KRAP – Da homossexualidade.
JACQUES – Eu acho que deve ser mais ou menos a mesma coisa, senhor.
M KRAP – Você é um cínico. 200
É o fim do primeiro ato. No início do segundo ato, saberemos que o senhor Krap morreu
nesta noite, sozinho. Seu corpo foi descoberto por volta da meia-noite, pela senhora Krap,
imóvel, na sala.
ver bem o jovem Victor Krap. Ele está sozinho em seu pequeno quarto, “sordidamente
vestido”, andando de um lado para o outro. Num determinado momento, ele pára no meio
do palco, olha para o público e vai dizer alguma coisa. Mas desiste, e volta a andar de um
lado para o outro. Pára novamente, olha para a platéia e diz, “muito embaraçado,
procurando as palavras”:
VICTOR – Eu preciso dizer que ... eu não sou ... (Ele se cala.) 202
soubemos, durante todo o primeiro ato, do processo de decadência em que ele se encontra,
vemos aqui, claramente uma intenção do autor em criar um efeito de suspensão na platéia.
200
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 65-66.
201
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 67.
202
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 71.
O protagonista, sobre o qual sabemos estar naquele estado de “inércia sórdida” há dois
anos e meio, de quem se falou praticamente durante o primeiro ato inteiro, finalmente
aparece aos olhos do público, para balbuciar de maneira vacilante que tem algo a dizer,
Deixemos um pouco de lado a ação do segundo ato para analisarmos um ponto que
consideramos fundamental para a compreensão do sentido desta obra. É para Victor que
dirigiremos nosso olhar a partir de agora. Sendo ele o pivô central da peça, é preciso fazer
algumas considerações e lançar uma luz para a compreensão de sua estrutura enquanto
personagem, levando em conta o significado do título da peça e sua obsessão pelo Nada.
a peça gira em torno da libertação de Victor, é preciso entender qual o sentido para
‘liberdade’ que Victor nos dará. E se está certo, como quer Ludovic Janvier, que “Victor
Krap reivindica [...] a liberdade de ser nada, opondo ao mundo da tagarelice, da utilidade,
dos sentimentos da procriação, sua recusa total de entrar no jogo. Contra todo o mundo,
ele ‘se defende’ pela força de inércia”203, precisamos entender também o valor do ‘nada’
para Victor. Pois, se uma das influências filosóficas de Beckett é o pensamento do filósofo
belga Arnold Geulincx, autor da máxima Ubi nihil vales, ibi nihil velis (Onde nada vales,
nada deves desejar), entendemos que as relações com o Nada, em articulação com a
Liberdade e o Nada.
203
JANVIER. Ludovic. Beckett. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 19.
VICTOR – Mas eu não estou entendendo nada. Além do mais, eu não tenho que
dizer nada a você. Quem é você? Eu nem te conheço. Me deixe em paz.
(Pausa.) E saia daqui.
VIDRACEIRO – Mas claro, claro, ia fazer muito bem pra você, se você se
explicasse um pouco.
VICTOR (gritando) – Eu estou dizendo que eu não estou entendendo nada.
VIDRACEIRO – Explicar-se, não, não é isso que eu quero dizer, eu não coloquei
direito. Definir-se, é isso. Chegou a hora de você se definir. Você fica aí
sentado como um ... como é que eu posso dizer? Como um furúnculo
escorrendo pus. Como uma purulência, é isso. Ganhe um pouco de
contorno, pelo amor de Deus.
VICTOR – Por quê?
VIDRACEIRO – Assim, toda essa coisa pode parecer que faz algum sentido. Até
aqui você tem sido impossível. Ninguém pode acreditar ... Mas você está se
tornando simplesmente nada, meu pobre amigo.
VICTOR – Talvez tenha chegado a hora de que alguma coisa tenha se tornado
simplesmente nada.204
Mais tarde, no mesmo ato, depois de ter usado de sua parca força física para
rechaçar a senhora Meck de seu quarto, com a ajuda do Vidraceiro, este o interroga sobre
com o Dr. Piouk, apresenta questionamentos, como uma espécie de interlocutor da ação da
VIDRACEIRO – Tem que haver uma razão, pelo amor de Deus! Por que ele se
deixou cair deste jeito? Por que esta vida absurda? Por que concordar em
morrer? Razões! O próprio Jesus tinha suas razões. Não importa o que ele
venha a fazer, nós temos que saber mais ou menos o porquê. Senão, ele vai
acabar sendo rejeitado. E nós vamos rejeitá-lo também. Com quem você
pensa que está lidando? Com os estetas?
DR. PIOUK – Decididamente, eu não sei.
VIDRACEIRO – Será que o senhor não consegue enxergar que nós estamos dando
voltas numa coisa que não faz o menor sentido? Precisamos achar um
sentido para isto, caso contrário, não há outra opção senão descer as
cortinas. 206
No terceiro ato, o alexitímico Victor será forçado a falar, sob ameaça de tortura,
204
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 84-85.
205
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 90.
206
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 110-111.
VICTOR – Minha vida é uma vida consumida pela própria liberdade. [...] Eu
sempre quis ser livre. Não sei por quê. Nem sei exatamente o que isto quer
dizer: ser livre. Mesmo que você arrancasse as minhas unhas, eu não
saberia dizer. Mas, mesmo que eu não consiga colocar em palavras, eu sei
o que é. Eu sempre desejei isso. E ainda desejo. Isso é tudo o que eu desejo.
Primeiro eu era prisioneiro das pessoas. Então eu as deixei. Depois, eu
fiquei prisioneiro de mim mesmo. Foi pior. Então eu me deixei. (Volta ao
silêncio.) [...]
ESPECTADOR – Você se deixou. [...] Como é que você conseguiu fazer isto?
VICTOR – Sendo o mínimo possível. Não me movendo, não pensando, não
sonhando, não falando, não ouvindo, não percebendo, não sabendo, não
querendo, não sendo capaz, e por aí adiante. Eu acreditava que minha
prisão estava aí. [...]
ESPECTADOR – E a morte? A morte, ponto final. Isso não te atrai?
VICTOR – Se eu estivesse morto, eu não saberia que estava morto. Esta é a única
coisa que eu tenho contra a morte. Eu quero gozar a minha morte. É aí que
está a liberdade: ver-se a si mesmo morto. 207
fundamentais: a notícia da morte do senhor Krap, que é recebida por Victor através da
senhora Meck; e a visita que Olga Skunk faz ao quarto do ex-noivo, para realizar o desejo
do senhor Krap.
morte do pai, em si, não retira Victor de seu estupor, porém a preocupação – quase uma
obsessão – do rapaz em determinar a hora exata da morte assume um contorno que nos
chama a atenção por vermos aí uma referência a uma obra anterior. Na novela Primeiro
Fui, não faz muito tempo, visitar o túmulo de meu pai, isso eu sei, e anotei a
data de seu falecimento, de seu falecimento apenas, pois a de seu nascimento me
era indiferente, naquele dia. [...] Alguns dias depois, porém, querendo saber com
que idade ele havia morrido, tive de voltar ao seu túmulo, para anotar a data de
seu nascimento. Essas duas datas limites, eu as escrevi num pedaço de papel,
que guardo bem comigo. 208
MME MECK – Você não tem mais nenhum interesse por ela? [Olga Skunk]
VICTOR – Não.
MME MECK – Nem por ninguém?
VICTOR – Não.
MME MECK – A não ser por você mesmo.
VICTOR – Nem isso.209
207
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 146-149.
208
BECKETT, Samuel. Primeiro amor/Premier amour. Tradução de Waltensir Dutra. Ed. bilíngüe. Rio de
Janeiro: Nova Frinteira, 1987. p.06.
209
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.79-80.
A senhora Meck acaba disparando:
pai tem uma função. Ele associa seu casamento com a morte de seu pai, pois, após a morte
do pai, ele foi expulso da casa onde morava e, assim, acabou conhecendo a mulher com
quem veio a se casar. Saber a data da morte do pai e equacioná-la com a sua própria data
Para Victor, a importância de estabelecer a hora exata da morte do pai parece estar
relacionada à cena marginal ao primeiro ato, que Beckett descreve detalhadamente logo no
início da peça, numa longa nota explicativa. Assim, percebemos que Victor deseja saber o
que ele próprio estava fazendo, quando seu pai morreu. E a resposta é: ele estava “deitado
A segunda cena que destacamos neste ato é a cena entre Victor e Olga Skunk.
dissertação. Victor “parece despido de afeto por qualquer pessoa” e “retirou sua libido das
que lembra uma “comédia de boulevard”214, com suas entradas e saídas, o segundo ato se
encerra depois de termos visto Victor se mostrando incapaz de sair do estupor voluntário
no qual mergulhou.
Vidraceiro e seu filho Michel, na qual podemos perceber, além da semelhança com a cena
Será apenas no terceiro – e último – ato que Victor, depois de ter sido ameaçado de
capítulo.
Logo, o sonho de Victor será interrompido pela presença do Vidraceiro que, mais
uma vez, foi ali consertar o vidro da janela. Quem surge também é o criado Jacques, que
veio preparar Victor para o funeral do pai. Neste ponto, Beckett se utilizará amplamente
Victor. Ao final, Victor expressa a Olga Skunk sua decisão de permanecer naquele quarto
de pensão.
VICTOR – Dois anos não são o suficiente. (Pausa.) Uma vida inteira não é
suficiente. Minha vida será longa e horrível. (Pausa.) Porém, menos
horrível que a sua. (Pausa.) Eu jamais serei livre. (Pausa.) Mas eu me
sentirei sempre à beira da liberdade. (Pausa.) Minha vida, vou te dizer o
que vou fazer com o resto dela: vou esfregar minhas correntes uma na
outra. Da manhã até a noite e da noite até a manhã. Esse pequeno ruído
inútil será a minha vida. Não digo minha alegria. Isso eu deixo para você –
a alegria. Minha calma. Meu limbo. (Pausa.) E você vem me falar de amor,
de razão, de morte! (Pausa.) Não! Então, vá embora daqui, vá embora!216
Logo depois, o Dr. Piouk, que acompanhou de perto a situação do jovem Victor,
215
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.119.
216
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.162.
217
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.163.
A peça se encerra com um pequeno diálogo melancólico entre a dona da pensão e
assassino, Victor desmascara o mundo que o cerca “recusando-se a dar forma ao que lhe
parece ser simulacro, ilusão”219. Este desmascaro, singelo grito de desespero, causa a ruína
de tudo que o cerca. Victor finalmente encerra Eleutheria “com as costas magras voltadas
para a humanidade”.220
É justamente neste “virar as costas” que identificamos sua hýbris. Sua desmedida é
desorganiza a ordem da família e da vida produtiva: seu cosmo. O final que Beckett
reserva para Victor é a ordem do estupor. O que nos provoca terror e piedade é o espelho
patético que Victor representa. Seu erro não o iguala aos deuses, ao contrário, em sua
busca desesperada por liberdade para ser ‘nada’, ele se torna dejeto. Eleutheria é a sua
libertação.
Do outro lado do fio da obra de Beckett, em sua última peça – What where, escrita
Estou só.
No presente, como estive, permaneço.
218
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.166.
219
JANVIER. Beckett. Op. Cit. p.73.
220
BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p.167.
É inverno.
O tempo passa.
Isto é tudo.
Faça sentido a quem fizer.
Eu desligo.221
221
BECKETT, Samuel. What where. In.: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986.
p.476.
5 CONCLUSÃO
Façamos justiça. É preciso incluir Victor Krap e seu estupor trágico na galeria de
grandes personagens criadas por Samuel Beckett. Desta maneira, ele figurará com
Clov, de Fim de partida; e ao lado da pobre Winnie, de Dias felizes. Acreditamos que ele
século XX. É possível colocá-lo sem temor ao lado de Clara Zahanassian, de A visita da
rinoceronte, na peça de Ionesco; e ainda ao lado de Alaíde, com sua memória fragmentada,
Podemos colocar Victor Krap na galeria onde figuram Édipo, Hamlet e tantos
como teima em afirmar o poeta português, cabem neste abismo muitas almas. Eu é que sei.
Resta-nos a tarefa que ora nos prescrevemos: verter para a língua portuguesa todo o
embate entre o nada e a liberdade contidos em Eleutheria. Fazer uma tradução completa
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DICIONÁRIOS