Você está na página 1de 21

SíNiHsi NuvA FASI-

V. 22 >j. 68 ( I 9 9 5 ) : l 16-137

HEIDEGGER E OS PRESSUPOSTOS
METAFÍSICOS DA CRÍTICA
DA MODERNIDADE
Wilson Gomes
UFBa

KcsK»!!!:! Icidrf;^-:r c os prcsíiipo^los iiiclnfíbií os ÍÍÍÍ I rilitii dú ii:ú.íi-niídiiãi- O artigo pjrte do


pressuposto de que o coniunto de di^cursc»s c inl^^nçõOTi de pensamento que, em
nossa época, constituem o horizonte da chamada "crítica da modernidade" toma a
Heidegger e às suas reflexões sobre o problema do ser como referência primaria c
fiintc de inspiração. Este artigo pretende, enião. discutir tal pressuposto mostraniio
que se, de um lado, é verdade que Heidegger pode ser considerado fundador do
modo contemporâneo de critica da modernidade, por outro lado, paia ele a íoima
moderna na qual se pensa (ou se "esquece") o ser é apenas mais uma versão da
decisão metafísica que podemos flagiai já nas origens do pensamento ocidental. A s
teses, lemas e vocabulário com que se diz e promove em nosso tempo a "crise da
modernidade", rcvelam-.se. assim, como fundadas ao íinal das contas sobre a crítica
heideggeriana dos pressupostos metafísicos da questão do ser.
Pii/íiiimi-i íiijí'1' Critica. Modernidade, Heidegger. Metafísica.

Ahsímct: llcidr^^cr and Iht- mctapUyMal yif^iipiiosal of mcd,'niily'-3 cntiquc. The article
departs from presuposilion that lhe set of discourses and means of thought that
conslilutc lhe horizon of so-called "critique of modernily" lakes from Heidegger and
his reflcclions on thc "being's mafter" one primary reference and source. This article
Ihus intends lu argue on lhal presuposifion, showing that. if. on one hand. il's true
that he can be hcld as a foundcr of lhe contemporary style of crilicizing modernily.
on lhe olher, thc modern way in ivhich lhe being is thought (or "forgotlen") is.
according to lhe same Heidegger. jusl another veision of lhe metaphysical decision
that we could take by surprise in lhe very orit;ins of western thought. The thesis, lhe
lhemes and (he vocabulary by wich Ihis "modernily crisis" is piomoled and said,
ruvcals, fherefore. lhe ways of its foiindalion on lhe heideggerian's critique of lhe
metaphysical presupositions on lhe malter of lhe being.
Kcy uurííi. Crilic, Modernily, Heidegger, Metaphysics.

Stintese Nm>a Fane. Belo Horizonte, o. 22. n. 68, I99Õ 115


1. Heidegger e a crise da modernidade.
T i y .1 íilosoíia, na a r k ' , na l i l i T a t u r a , c o m o nos oiilro'^ discursos
^ Y p r c \ l o m i n a n I e s na c u l t u r a i n t o l o c t u a l d e nossa é p o c a , há, hoje,
u m a c o n s t a t a ç ã o inevitável: estamos e m plena crise da modcnti-
dade. C o m o disse certa ve/ A d o r n o , a m o d e r n i d a d e , d e repente, tor-
n o u - s e e x t r e m a m e n t e fora de m o d a ( U n m o d e r n ) . C o m o q u e r i|Lie
a v a l i e m o s a crise da iiwdeniiiliidi; u m a coisa, p o r é m , é certa: l i u l o s
aqueles que r e s o l v e m considerá-la c o m a l g u m a seriedade não p o d e m
e v i t a r u m a passagem ( q u a n d o n ã o u m p o n t o de p a r t i d a ) o b r i g a t ó r i a :
H e i d e g g e r . l i u m fato i n c o n t e s t á v e l que, p e l o m e n o s , o d i s c u r s o f i l o -
s ó f i c o c|ue i n v e n t a e i n s t a u r a a cnsc da iiiodcniidade r e t o m a e x p l i c i t a -
m e n t e o juízo l i e i d e g g e r i a n o acerca da história d o p e n s a m e n t o (K'iden-
tal c o m o história d o e s q u e c i m e n t o d o ser, c o m o d e c i s ã o p o r pensar o
ser a p a r t i r d o ente c o m o e s t r u t u r a rígida, i n e r t e e d i s p o n í v e l . O des-
t i n o h e i d e g g e r i a n o q u e este d i s c u r s o a s s u m e v a i consistir, p o r o u t r o
l a d o , e m a c o m p a n h á - l o na sua r e p r o p o s i ç ã o d o a u t ê n t i c o p e n s a m e n t o
d o ser e a sua r e l a ç ã o c o m o h o m e m . M a s consiste t a m b é m c m a p r o -
p r i a r - s e d o estilo filosófico d e H e i d e g g e r (no senso m a i s f o r t e q u e se
p u d e r d a r ao t e r m o " e s t i l o " ) , d o seu p r o c e v l i m e n l o h e r m e n ê u t i c o -
p o é t i c o e h e r m e n ê u t i c o - e t i m o l ó g i c o , d a sua i n v e n ç ã o d e i n t e n ç õ e s
f u n d a d o r e s nos "pensadores das o r i g e n s " e na " p a l a v r a p u r a da poesia".

l i n t r e l a n t o , se é b e m v e r d a d e q u e o d i s c u r s o filosófico da "crise da
m o d e r n i d a d e " a t i n g e o a l v o q u a n d o e n c o n t r a e m H e i d e g g e r (e no
N i e t z s c h e h e i d e g g e r i a n o ) as malri^^es para as suas leses a - m o d e r n a s ,
p o r o u i r o l a d o , o tema da m o d e r n i d a d e e m H e i d e g g e r s ó p o d e ser
c o m p r e e n d i d o à l u z d a sua critica à metafísica o c i d e n t a l . N a v e r d a d e ,
s e g u n d o H e i d e g g e r , a única c o n l r i l n i i ç ã o da m o d e r n i d a d e ã hi/hris
f i i n d a m e n l a l da história d o p e n s a m e n t o consisle e m pensar o ente i j i i e
se pergLUila pelo ser a t r a v é s d o conceito de c o n s c i ê n c i a , conceito ade-
q u a d o ã noção de ser já disponível pelas decisões históricas (metafísicas)
q u e f u n d a r a m o p e n s a m e n t o o c i d e n t a l . N a m o d e r n i d a d e a metafísica
da e s l a b i l i d a i l e t r a d u z - s e e m nielafisica d o sujeito. " A é p o c a q u e cha-
m a m o s d e m o d e r n i d a d e se caracleri/.a p e l o f a t o d e q u e o h o m e m se
c o n v e r t e e m m e d i d a c c e n t r o d o ente. O h o m e m é o subjacente a t o d o
e n t e ; d i l o e m l e r m o s m o d e r n o s , o subjacente a t o d a o b j e t u a l i z a ç ã o e
r e p r e s e n t a b i l i d a d e , o h o m e m é o iubjeclitm", d i z H e i d e g g e r ' . Desse
m o d o , a m o d e r n i d a d e t r a d u z a e n é s i m a m e t a m o r f o s e d e u m pecado
das o r i g e n s , o de pensar o ser a p a r t i r d o ente. A m e t a f í s i c a , a d e c i s ã o
d e ohlío d o ser. chama-se na m o d e r n i d a d e teoria d o c o n h e c i m e n t o ,
mas é a m e s m a velha metafísica de l'latão e A r i s t ó t e l e s .

A s s i m , a c o r r e i a c o m p r e e n s ã o das d i s c u s s õ e s pelas q u a i s se i n a u g u r a
a " c r i s e d . i m i ) d e r n i d a d e " , da relação destas c o m H e i d e g g e r c o m o
f u n d a d o r o r i g i n á r i o das suas i n t e n ç õ e s d e p e n s a m e n t o e d o l u g a r da

116 S(ntcxí- Nura FU.SL', Belo lloriíoiil:: i: 22. ii. (ÍH. I99S
" q u o s l à o m o d i T n i d n t l c " no p e n s a m e n t o h e i d e g g e r i a n o , dej^ende ne-
c e s s á r i a m e nle, a nosso m o d o d e ver, da c o r r e i a c o m p r e e n s ã o d a s
d e c i s õ e s pelas q u a i s o p e n s a m e n t o o c i d e n t a l o p t o u p o r pensar o ser
d e u m a cerla f o r m a e não de o u l r a . C o m o esle aspeclo parece passar
despercebidci ã m a i o r i a das d i s c u s s õ e s c o n l e m p o r â n c a s , esle ensaio
p r e t e n d e j u s t a m e n t e oferecer a l g u n s e l e m e n t o s para o j u s t o e n f o q u e
d o p r o b l e m a , i n s i s t i n d o , p o r conseguinte, nos pressupostos metafísicos
da crítica da m o d e r n i d a d e .

2. O sentido da pergunta sobre o ser


A n l e s d e l u d o é p r e c i s o c o m p r e e n d e r p o r q u e na a p a r e n t e m e n t e
absirusa " q u e s t ã o d o ser" entra e m j o g o a c o m p r e e n s ã o da nossa
p r ó p r i a é p o c a . Hasta q u e escutemos a tradição, a f i r m a I l e i d e g g e r . " A
tradição n ã o nos e n i r e g a ã c o e r ç ã o d o passado e d o i r r e v o g á v e l . T r a n s -
m i l i r , dclivivr, s i g n i f i c a p õ r na l i b e r d a d e d o d i á l o g o c o m a q u i l o i j u e já
f o i " - . A p a l a v r a , na q u a l a p e r g u n t a pela r e a l i d a d e nos c o n d u z , c o n -
cede-nos ao m e s m o t e m p o u m a d i r e ç ã o e u m p r o c e d i m e n t o . A pala-
v r a é u m c a m i n h o e se p e r s i s t i r m o s nela estaremos n u m c a m i n h o já
p e r c o r r i d o . O q u e n ã o i m p l i c a que não p o s s a m o s nos p e r d e r e q u e
t e n h a m o s c l a r o o p o n t o d o c a m i n h o e m q u e nos e n c o n t r a m o s , Q u e r
d i z e r apenas q u e a p a l a v r a nos i m p õ e u m cliálogo c o m o passado q u e
chega a f é hoje. É preciso escular a p a l a v r a reiilidadf d e s d e esle passa-
d o . S ó assim ela é u m c a m i n h o ; o q u a l nos está d i a n t e — p o i s a
p a l a v r a nos p r e c e d e u e há m u i t o se d i r i g i u a nós — , mas ao m e s m o
t e m p o está às nossas coslas p o r q u e há m u i t o a p r o n u n c i a m o s .

Pois b e m , o q u e q u e r e m o s d i z e r q u a n d o a f i r m a m o s a nossa p e r p l e x i -
d a d e a n t e o d i s c u r s o sobre o m u n d o , a r e a l i d a d e , as coisas q u e d o m i -
na a nossa é p o c a ? Provinviiumüe aqui sc exprime o desuniparo proivendo
pclii aparente perda de mlidadc do discurso sobre n rcaliditáe em face de novas
caleyoriiis peliis ijiiais se diz e nas quais se formula a experiàicia Innitaiin do
rciil em nosso tempo.

Possível m e nle, a m a i o r p r e o c u p a ç ã o filosófica d e H e i d e g g e r , p r o v a -


v e l m e n t e a única capaz de u n i f i c a r as várias fases d o seu p e n s a m e n t o ,
f o i a d e pen.sar o p r o b l e m a da r e a l i d a d e ( d o ser), r e a v a l i a n d o e
d e s c o n s t r u i n d o todas as categorias afé e n t ã o usadas para d i z e r o ser,
e s f o r ç a n d o - s e ("Ktr e l a b o r a r u m d i c i o n á r i o e u m a g r a m á t i c a q u e d e l e
p u d e s s e m d a r conta. Ü e l a d o d e i x a m o s , a q u i , o p r o b l e m a de saber se
H e i d e g g e r é aquele q u e tenta d a r conta d e l u n a invalidação de cate-
g o r i a s d e t e c t a d a s no a m b i e n t e c u l t u r a l ( d e p o i s d o t e r r e m o t o
nielzscheano), o u se é ele q u e m a p r o m o v e (insatisfeito c o m as conse-
q ü ê n c i a s sociais e políticas d o " p l a t o n i s m o " , e da s u a f o r m a m o d e r n a
na i d a d e da técnica}.

Sinh-f^i' A'iii'íi Fii.-ií', ISe/ii Horizonir, r. 22. n. (i8, 1995 1 1 7


De q u a l q u e r f o r m a , para H e i d e g g e r a q u i l o q u e caracteriza a concep-
ção d o ser da nossa é p o c a , ú l t i m a fase de u m l o n g o processo que
recobre Ioda a história d o e s p í r i t o o c i d e n t a l , é a p o s t u l a ç ã o d o ser
c o m o " p r e s e n ç a e s t á v e l " . O q u e se d e s t i o b r a e m várias c a r a c l e r i z a ç ò e s
q u e n u m a i n l e r p r e l a ç ã o l i v r e d o t e x t o h e i d e g g e r i a n o p o d e r i a m ser
descritas c o m o se segue:

1 . N ã o i m p o r t a n d o o m o d o c o m o a r e a l i d a d e venha a ser c o m p r e e n -
d i d a , real é a q u i l o que "está d i a n t e " . Ser é e s t a r - d i a n l e , vorüci^ni, e
p e r d u r a r nesta s i t u a ç ã o , fiste e s t a r - d i a n t e q u e d u r a é a iminência d a
r e a l i d a d e , a n i e a q u a l as c o n s c i ê n c i a s n ã o p o d e m se f u r t a r ,

2. E n t r e t a n t o , d u a s o u t r a s s ã o as c a r a c t e r í s t i c a s d a n o ç ã o de r e a l i d a d e
q u e m o r m e n t e d i s t i n g u e m a nossa é p o c a , e q u e H e i d e g g e r condensa
em d u a s p a l a v r a s chaves: VorluiiiíiciilwH e Zubníiilciilifil. listas não
d e v e m ser t r a d u z i d a s , mas i n t e r p r e t a d a s . Real é aquilo qiic esta ao al-
cance da mão (llaiid) como objeto ou coisa inerte, p o r t a n t o , o o b j e t i v a m e n -
te d a d o , o s i m p l e s m e n l e - a í ; real é aqiniu ijiie está ao alcance da mão como
coisa utilizável, c o m o i n s t r u m e n t o , utensílio, d i s p o s i t i v o etc,

O alcance " f i l o s ó f i c o " desta c a r a c t e r i z a ç ã o se m o s t r a l o g o q u e se c o n -


sidera q u e nela o ser se torna presença e a p r e s e n ç a se t o r n a existência
o b j e t i v a . 1'resença i n d i c a q u e o ser é u m " ê x t a s e t e m p o r a l " , u m a e x i -
b i ç ã o q u e s u r g e a p a r t i r d o o c u l t o . C o m o tal essa é a c a r a c t e r i z a ç ã o
d o m i n a n t e desde os gregos. M a s a p r e s e n ç a c o m o e x i s t ê n c i a , i m p l i c a
q u e o ex-stasis se c o n f u n d a c o m u m ex-sistere, u m e s l a r - f o r a — e m
l i n g u a g e m filosófica: u m ultrapassar a p o s s i b i l i d a d e e m d i r e ç ã o à rea-
l i d a d e e aí p e r d u r a r . Dessarte, o ser passa a ser e n t e n d i d o c o m o a q u i l o
q u e subsiste na m u d a n ç a t e m p o r a l e na d i v e r s i d a d e d a s suas a p r e e n -
sões; a q u i l o q u e se fmde encontrar, p o i s d i s p o n í v e l e m seu p e r d u r a r ;
a q u i l o q u e se da, está presente ( t e m p o r a l m e n t e e espacialmente), p o r -
tanto n ã o p o d e n d o f u r l a r - s e à c o n s c i ê n c i a q u e lhe f o r c o n t e m p o r â n e a
e c o n t í g u a . C o m o ta! ele se deixa a p r e e n d e r pela r a z ã o suficiente, pela
e x p l i c i i a ç à o l o l a l d a epistctne científica o u filosófica, p e l o p e n s a m e n t o
c]ue i n d a g a p e l o f u n d a m e n t o (Grundy.

r . x i b i ç ã o . d i s p o n i b i l i d a d e , e x i s t ê n c i a ( n o s e n t i d o d e r e a l i d a d e oir
actuahias. p o r t a n t o de n ã o - p o s s i b i l i d a d e ) , d u r a ç ã o e e s t a b i l i d a d e . A
c o n c e p ç ã o de ser q u e está a q u i e m causa apresenta-o, para usar u m a
m e t á f o r a física, c o m o p a r a l i s a d o , i m ó v e l . F.stamos no A n l i - H e r á c l i t o .
K a d a f l u i . A n t e s , t u d o f l u i , m e n o s o ser q u e , e n q u a n t o s u b - p o r t a tais
m u d a n ç a s , sub-trai-se a elas.

Este é o ser d o " p l a t o n i s m o " , da m o d e r n i d a d e e da sua filha m a i s


r o b u s t a , a civilização técnica, d i z H e i d e g g e r . Este é o ser q u e entra e m
crise nos d i s c u r s o s d o m i n a n t e s da nossa é p o c a , d i z e m o s nós. E aquele
q u e s u c u m b e na pre-visão d o / a r a t u s t r a e é o e n i g m a e s c o n d i d o na
frase, tantas vezes i n c o m p r e e n d i d a , d o p e r s o n a g e m d o poema
nielzscheano: Deus morreu! '

118 Sintffe Niwa FOKI', ISI-III Ihinzonlc, IK 22, ii. 6S. 1995
A este p o n i o st- i n l r o d i i / a nossa q u e s t ã o , l i n r e d a d o s na t r a m a q u e nos
lança a p a l a v r a r e a l i d a d e , nela i n t r o d u z i d o s pela c h a m a d a "crise da
m o d e r n i d a d e " , h a v e m o s de nos p e r g u n t a r c o m o f o i possível q u e che-
ga'ssemos a tal p o n t o , Para H e i d e g g e r , t|ue, c o m o dissemos, c o n s a g r o u
a sua o b r a a r e s p o n d e r a essa q u e s t ã o , t u d o ê f r u t o d e certas escolhas,
d e cerlas d e - c i s ò e s ( n o s e n t i d o m a i s r a d i c a l d e cacdo, c o r t a r ) na história
d o p r o b l e m a . Por isso, para ele n ã o r e s l a n i d ú v i d a s q u a n t o ao f a l o de
q u e a história d o o c i d e n t e é a história d o ser, o u , m e l h o r , d o esqueci-
m e n t o d o ser.

Pode-se, d e f o r m a m u i t o s i m p l i f i c a d a , i n d i c a r as cisòes q u e d e - c i d i r a m
a nossa resposta ao p r o b l e m a da r e a l i d a d e e m a l g u m a s escolhas: 1) A
d e c i s ã o d e pen,sar o ser c o m o realidade, ao i n v é s de c o m o possibilidade;
a escolha d e pensar o ser c o m o estabilidade e s u p o r t e e n ã o c o m o pos-
sibilidade liberta, e m Aristóteles e na sua r e c e p ç ã o na l a t i n i d a d e ; 2) A
decisão de pensar o ser c o m o visibilidade, ao i n v é s de c o m o aberluni,
e m P l a t ã o ; a d e c i s ã o , a esta l i g a d a , d e pensar o ser c o m o presente e n ã o
c o m o clareira; 3) O esquecimento do ser o u d a diferença e n t r e ser e enle,
d e Platão a N i e t z s c h e ; 4) A perda do sentido do nada e a alteração do
sentido da verdade.

2.1 C o m o se f o r m u l a a p e r g u n t a p e l o ser: r e a l i d a d e v e r s u s
possibilidade

D e n t r e as f ó r m u l a s p r e f e r i d a s p o r H e i d e g g e r para i n d i c a r a f o r m a da
p r o b l e m á t i c a o n t o l õ g i c a tal c o m o se d e l i n e o u no o c i d e n t e , pode-.se
e n c o n t r a r esla: " Ü ser assume o s e n t i d o d e realidade'"'. O i ] u e s i g n i f i c a
isso, q u e mistérios se e s c o n d e m na p a l a v r a o n d e f o m o s d e s t i n a d o s a
f o r m u l a r a no,s,sa q u e s t ã o ? T r ê s p e r c u r s o s se nos a p r e s e n t a m , tão l o g o
esboçamos a indagação.

N ã o é preciso u m g r a n d e e s f o r ç o para d e s c o b r i r q u e no c o r a ç ã o de
" r e a l i d a d e " ( o u d o r o m a n o realitas) repousa res, q u e se c o s t u m a t r a d u -
z i r c o m o "coi.sa". De res, no b a i x o - l a l i m d e r i v o u - s e o a d j e t i v o realc,
real. I ^ i n d e p o d e m o s " d e d u z i r " , na t r i l h a de o u t r a s e t i m o l o g i a s , u m
d u p l o s e n t i d o para " r e a l i d a d e " : a) u m s e n l i d o a d j e t i v o , cjue se refere
à essência m e s m a de a l g o , à q u i l o q u e o c o n s t i t u i de f o r m a essencial
c o m o " a l g o " , d e m o d o a estabelecer a sua f r o n t e i r a c o m o n a d a . Neste
s e n t i d o , r e a l i d a d e seria u m a referência ao estatuto d a res, a realitas,
como a " h u m a n i d a d e " é referida a " h o m e m " : " r e a l i d a d e " é a proprie-
d a d e d e f i n i d o r a d a q u i l o cujo m o d o essencial d e ser é o d a res, que,
p o r t a n t o , p o d e ser d i t o reale; b ) n u m s e n t i d o s u b s t a n t i v o , é o sistema
q u e i n c l u i t u d o o q u e subsiai ao e s t a t u t o d e reale. A s s i m , " r e a l " é
a q u i l o q u e existe, exerce o ato d e ser a m o d o d e res; mas t a m b é m
" r e a l " é o sistema de t u d o o q u e c o m p õ e o c o m p l e x o das res. Dois

Sintene Nova Fase, Belo Horiíonte. u. 22, n. 68, 1995 119


cnncüitos q u e se i n t e g r a m na m e d i d a e m q u e é, o b v i a m e n t e , a tVíihdnilr
d e u m ente ( a d j e t i v o ) a q u i l o q u e f a z com que ele v e n l i a a fa/er p a r l e
d o h o r i z o n t e d a realidade ( s u b s t a n t i v o ) . M e s m o a r e l a t i v a c a p a c i d a d e
h u m a n a d e criar, isto é, de c o n f e r i r ser, é i n s c r i t a nas p o s s i b i l i d a d e s
lingüísticas d o t e r m o , c o m o o a t o d e " t o r n a r r e a l " , realizar, c o n f e r i r o
estah-ito d e res.

IJesta f o r m a f o m o s deslocados para o e n i g m a d e rei?. Os r o m a n o s


d i z i a m ics p . i r a " a i j i i i l o de que se d i s c u t e " , a q u e s t ã o e m d i s c u s s ã o ,
p o r t a n t o e m n e g o c i a ç ã o . C'om(t e m res publica, cjue é at|iiilo q u e c o n -
cerne a cada u m e m u m p o v o , q u e lhe interessa o u p r e o c u p a , e q u e
p o r isso d e v e ser d i s c u t i d o , n e g o c i a d o no e s p a ç o p ú b l i c o ; e n i res
adversae, a q u i l o que concerne ao h o m e m e m m o d o d e s f a v o r á v e l , a
a d v e r s i d a d e ; e m res sccuiidae, q u e é o seu c o n t r a r i o ; e m res iiidlius,
a q u i l o c[ue a n i n g u é m interessa, q u e a n i n g u é m concerne.

O q u e s i g n i f i c a q u e n ã o e s t a m o s m u i t o l o n g e d() t e r m o g r e g o p a r a
d e s i g n a r " c o i s a " : a p r a g m a (pra^iua) chama e m q u e s t ã o o s u b s t a n t i v o
liê prdxis, a a ç ã o , a a t i v i d a d e q u e se o c u p a de a l g o — nesse s e n t i d o , a
relação ( c o m m e r t i i u n ) c o m a l g o . Pra^iiia é, p o r t a n t o . at|uilo q u e é o
t e r m o dessa o c u p a ç ã o , a q u i l o d e que se o c u p a a l i v a m e n l e ' .

P e r m a n e c e r e m o s no m e s m o h o r i z o n t e se p e n s a r m o s n u m quase s i n ô -
n i m o r o m a n o para res: causa. Q u e n ã o s i g n i f i c o u p r i m e i r o " c a u s a " n o
s e n t i d o de p r o v o c a ç ã o , c a u s a l i d a d e , mas a q u i l o q u e e m p o r t u g u ê s
existe a i n d a c o m o "caso" { c o m o na express.\o " c r i a r caso"), c o m o a
o c a s i ã o da d i s c u s s ã o . A t u a l m e n t e , nas f o r m a s cousa e coisa ela t o m o u
o e s p a ç o da rvs, a i n d a c o n s e r v a n d o , e n t r e o u t r o s , o s e n t i d o de m o t i v o
e interesse.

h n t r e l a n t o , não p o d e ser ã c o n c e p ç ã o da rcs, e n t e n d i d a c o m o " a q u i l o


q u e interessa", " q u e d i z r e s p e i t o " , " q u e c o n c e r n e " q u e p o d e ser refe-
r i d a .1 c o n c e p ç ã o de r e a l i d a d e q u e está e m crise, C e r t a m e n t e h o u v e a
u m c e r t o m o m e n t o o a f i r m a r - s e v i t o r i o s o d e u m o u t r o s e n t i d o d e ^í^/
causa q u e s u b m e t e a p r i m i t i v a n o ç ã o " p r a g m á t i c a " , p e r d e n d o " r e a l i -
d a d e " o seu s e n l i d o d e c o n c e r n i m e n l o . U m e v e n t o i j u e não s o m o s
capa/es d e i d e n t i f i c a r ,

P o d e r e m o s o b t e r mais f o r t u n a e x p l o r a n d o o d e s t i n o m e t a f í s i c o d a
palavra " r e a l i d a d e " , q u e n ã o nos remete a res, m a s a iiclus. " R e a l i d a -
d e " , no s e n t i d o c]ue a e n t e n d e m o s hoje, é a t r a d u ç ã o ( a r d o - l a l i n a d e
actualitas. Achis seria o r e s u l t a d o d e u m a actio, a ç ã o , a t i v i d a d e , o u d e
u m a operatio, o p e r a ç ã o , E n q u a n t o r e s u l t a d o , o acius é a l g o q u e se se-
gue à a ç ã o , c o m o a q u ü o q u e a a ç ã o c o n s e g u e e q u e v e m d e p o i s d e l a :
o c o n s e q ü e n t e o u o c o n s e g u i d o ' O r a , a c o n s e q ü ê n c i a p r o c e d e t i e algo
prece<lente, é u m seu opus e u m seu efjecius, obra e e f e i t o . A aclualilas
d o acius i m p l i c a a sua p o s s i b i l i d a d e de remeter-se a u m aí;ere a n t e r i o r ,
a u m a caus.i, c a u s a l i d a d e ; a c t u a l i t a s passai a ser c a p a c i d a d e de f u n d a -

120 Sinlese Nova Fane, Beli) Horizonte, o. 22, n. 68. 1995


ç ã o . D o u t r a p.irto, a res c o m o iietus é p o r t a n t o r e s u l t a d o : o roal, o a t u a l
é o e f e t i v o ; a r e a l i d a d e , a a t u a l i d a d e é efelicidiulc. 1'resença efetiva e
c a u s a l i d a d e s à o d o r a v a n t e os caracteres da p e r g u n t a pela r e a l i d a d e .

E m l i n g u a g e m filosíifica, p o r é m , r e a l i d a d e remete t a m b é m a e x i s t ê n -
cia. l ' o r isso K a n l p ô d e c h a m a r as p r o v a s da r e a l i d a d e i l e Deus d e
p r o v a s da sua existência, l i m l i n g u a g e m metafísica r e a l i d a d e e exis-
tência s i g n i f i c a m a m e s m a coisa^ Existerc, i-x aUio shicre, s i g n i f i c a " v i r
para fora a p a r t i r de a l g o " , " e m e r g i r " , o n d e o m a i s i m p o r t a n t e n ã o é
o m o v i m e n t o d o ex-stasis, mas o estabelecer-se. o s u b s i s t i r d a i ] u i I o
q u e é t i r a d o , d a c j u i l o c^ue está " f o r a " . O ex-sislem, o existente, é u m
" f o r a - e s t a n i e " , O " d o n d e " desta e m e r s ã o é d i t o f i l o s o f i c a m e n t e a par-
tir da acliiiditiis: existeutia é a constituição de u m a e n t i d a d e f o r a , a
p a r t i r de sua causa (rt's extni auisas), assim s u p e r a n d o o nada, A exis-
tência é u m iietiis q u e p õ e a coisa fora d o estado da p o s s i b i l i d a d e .
C o m p r e e n d i d a desta f o r m a , a existência é t a m b é m r e s u l t a n t e d e u m
processo e m (|ue d e u m a a b e r t u r a se passa a u m f e c h a m e n t o , da i n -
d e f i n i ç ã o se passa ã d e f i n i ç ã o , da p o s s i b i l i d a d e se passa ã inliiíilihis.
A s s i m e n t e n d i d a , a r e a l i d a d e se encontra a i n d a l u n a vez c o m o presen-
ça efetiva e no h o r i z o n t e d o r e s u l t a d o . Rniüdinie sij^iiififii iiijiii liio so-
iiiciüf o resiilítiilo líc uni reiiUzar: c a realização ( o u p e l o m e n o s seria, se
isso fosse possível d e ser d i t o neste s e n t i d o e m nossa l í n g u a ) .

E n t r e t a n t o , anles f a l á v a m o s , c o m H e i d e g g e r , d e d e c i s ã o . De q u e d e c i -
s ã o se I r a l a a q u i . cjuando c u i d a m o s da r e a l i d a d e e n t e n d i d a c o m o
iicliiiiliins e exisSeiilia? D o p o n t o de vista da história d o p e n s a m e n t o da
r e a l i d a d e estamos d i a n t e de u m a t r a d u ç ã o l i t e r a l , q u e i m p l i c o u n u m a
i n t e r p r e t a ç ã o radical d e u m a categoria c o m i|ue Aristóteles pensava o
p r o b l e m a i j i i e ai|ui c h a m a m o s d e q u e s t ã o da r e a l i d a d e , e q u e para os
gregos era a t|uestão d o ser. D o ser?!

De fato, desde q u e . a p a r t i r i l a p r e p a r a ç ã o sofistica, nasceu c o n i Sócrates


e Platão, a filosofia c o m p r e e n d e u - s e c o m o i n v e s t i g a ç ã o e conquista d o
"ser", ü b v i a m e n i e " f i l o s o f i a " para os greg»ís q u e r d i z e r b e m m a i s t i o
q u e para nós. Aristóteles a d e f i n e c o m o e p i s t é m e theoretiké, c o m o
c a p a c i d a d e de lheoréin, isto é, de d i r i g i r o o l h a r para a l g o e d e acolher
no o l h a r este a l g o para o q u a l se o l h a . Para os gregos filosofia é aquela
a t i t u d e " t e ó r i c a " q u e r e s p o n d e à i n q u i e t a ç ã o q u e s t i o n a n l e i\o h o m e m .

" A t i t u d e " ? " h K | u i e t a ç ã o " ? . Platão e Aristóteles reconhecem q u e é p r ó -


p r i o aos filósofos u m p e c u l i a r p á t h o s — o eslu^xtr; — q u e este r e p r e -
senta o a r c h é da f i l o s o f i a , a q u i l o q u e a d o m i n a c o m p l e t a m e n t e . N e s l e
s e n t i d o o filósofo é a r r e b a t a d o e m d i r e ç ã o a a l g o , a u m a p e r g u n t a , á
pergunta definitiva,

M a s " i n q i i i e ( a ç ã o q u e s t i o n a n l e " acerca d e q u ê ? O q u e é a q u i l o q u e a


filosofia "apreende com o olhar"? Quase dois séculos depois de
H e r á c i i t o , Aristóteles c a r a c t e r i z o u esta i n q u i e t a ç ã o d o s e g u i n t e m o d o ;

Sinle.^e Xmxi Fosf, Belo Horizimli; v. 22. n. 68, 121


" A s s i m , a q u i l o r u m o ao q u a l Ia f i l o s o f i a ] sc d i r i g i u d o s d t ' há m u i l o
t e m p o , e t a m b é m agora e incessantemente, e para o q u a l s e m p r e d e
n o v o não e n c o n t r a acesso lé a q u i l o a q u e m é p e r g u n t a d o ] : o que é o
ente? ( f i fò óii)"".

M a s o q u e p o d e m s i g n i f i c a r p a l a v r a s a n ó s tão misteriosas? Esla é


u m a p e r g u n t a g r e g a e d e v e ser e x p l i c a d a a p a r t i r d o s gregos. Já se
n o l o u c o m o o e s p í r i t o g r e g o tenha t i d o especial p r e d i l e ç ã o pelos p a r -
ticípios, m o v e n d o - s e c o m e x t r a o r d i n á r i a (e para n ó s i n c o m p r e e n s í v e l )
h a b i l i d a d e na a m b i v a l ê n c i a da sua s i g n i f i c a ç ã o q u e é ao m e s m o t e m -
p o v e r b a l e n o m i n a l . O v o c á b u l o óii, tò ón, é u m destes particípios;
m a i s exatamente, particípio presente d o v e r b o eimí, cujo i n f i n i l i v o se
d i z e m g r e g o clnai, "ser", ü p o r t u g u ê s corrente, e x p r e s s ã o de u m
o u t r o espírito, não conhece u m p a r t i c í p i o presente p r ó p r i o para tra-
d u z i r o ÍÍJÍ; recorre, assim, ao l a t i m , q u e conhece o particípio presente
d e s u m c o m o ens, ente, 'I rata-se, p o r t a n t o , de u m dat(ueles particípios
c o m o " c r e n t e " , " v i v e n t e " , " a m a n t e " etc. q u e se sói t r a d u z i r e m p o r -
tuguês p o r u m a locução n o m i n a l d o tipo "aquele que,.,": aquele que
c r ê , aquele q u e v i v e , a q u e l e q u e a m a . C o m o tal, o p a r t i c í p i o " p a r t i c i -
p a " d a q u i l o que é enunciado pelo verbo de dois modos: enquanlo
n o m e , o r i g i n a c o m o q u e u m a espck^ie d e s u b s t a n t i v o ; e n q u a n t o v e r t j o ,
retorna deste s u b s t a n t i v o ao v e r b o i n d i c a n d o o m o d o da ação'". A s -
s i m , o t e r m o " e n l e " , i n d i c a d o c o m o " a q u e l e q u e é " , t e m d o i s acentos
lógicos: u m no "aquele q u e é " , d e s i g n a n d o - o ; o u l r o no "que <•"' i n d i c a n -
d o a t j u a l i d a d e ( v e r b a l ) q u e d i s t i n g u e t o d o s " a q u e l e s " q u e se d e i x a m
d e s i g n a r c o m o tais e t]ue não se esgota e m n e n h u m deles, o ser, lí,
diga-se d e passagem, o fato de os gregos r e s e r v a r e m p r e f e r e n c i a l m e n -
te u m ú n i c o v e r b o — ciiuí— p a r a i n d i c a r a q u i l o q u e nós i n d i c a m o s ,
a d e p e n d e r da o c a s i ã o , c o m o ser, estar e existir, não nos facilita abso-
l u t a m e n t e a tarefa d e c o m p r e e n d e r a p e r g u n t a grega sobre o ser.

A p e r g u n t a íi lò ón faz-se a c o m p a n h a r , e m Aristóteles, p o r d o i s escla-


recimentos, U m . e m b u t i d o no m o d o g r e g o d e p e r g u n t a r mc'smo; o u t r o ,
acrescentado p o r Arisfóleles. l i m p r i m e i r o l u g a r p o r q u e na p e r g u n t a
grega o " o q u e , , . " — li — d e v e ser c o m p r e e n d i d o de u m m o d o p e c u -
liar; o " o q u e , . , " — e m l a t i m "quid" (quid esl...) — p e r g u n t a p o r a q u i l o
q u e c o n f i g u r a r a d i c a l m e n i e o i n t e r r o g a d o , pela sua quiiUlilas. Além
disso, Aristóteles m e s m o , na frase m e n c i o n a d a , faz seguir-se à per-
g u n t a /! Iii án u m a u l t e r i o r e x p l i c a ç ã o : loüto esii lis hv ousia — " i s t o ( o u
seja íi f() ón) s i g n i f i c a : o q u e é a e n t i d a d e (ousia) d o ente?".

1 ecnicamenle, n e n h u m p r o b l e m a , He Ousia, é o s u b s t a n t i v o a b s t r a i o
q u e c o r r e s p o n d e ao p a r t i c í p i o presente té ón. F,m l a t i m se apresenta
c o m o e n l i t a s o u e s s e n ü a . no p r i m e i r o r e f e r i n d o p r i m a r i a m e n t e ao
particípio ens, no s e g u n d o , ao i n f i n i t i v o esse. C h e g a d o s a m n substan-
t i v o abstrato c o r r e s p o n d e n t e ao particípio o círculo está c o m p l e t o ;
este s u b s t a n t i v o é c o m o que a s u b s t a n t i v a ç ã o d o v e r b o a q u e cor-

122 Sinh'se Nova Fase. IMo Uoriionl,^, v. 22. n. CiH, 1995


r e s p o n d e o particípio. De "ser", e m s e n t i d o v e r b a l , passamos ao "ser"
em senlido nominal,

Nesse s e n t i d o p o d e m o s a f i r m a r i ] u e a f i l o s o f i a , b u s c a n d o a i j u i l o q u e
o e n l e é e n q u a n l o c (ón hcóii), está a c a m i n h o r u m o ao ser d o e n l e , isto
V, r u m o ao ente c o m r e s p e i t o ao ser, l ! m o u t r o s t e r m o s , o ser d o e n l e
consiste n a q u i l o q u e faz d o ente, ente, q u e o c o n s t i t u i , consiste na sua
e n t i d a d e . For o u t r o l a d o , l o d o e n l e ê, eslá e / o u existe no ser; o ser o
c o n s t i t u i c o m o tal, t ) q u e seria u m a a f i r m a ç ã o banal se se tratasse de
o u t r o v e r b o e não d o " s e r " . Ser (em s e n t i d o v e r b a l ) é a " a ç ã o " mais
f u n d a m e n t a l q u e p o d e ser d i t a d e q u a l q u e r coisa; antes, n e m m e s m o
é u m a a ç à o , mas a q u i l o q u e p o s s i b i l i t a q u a l q u e r a ç ã o s e n d o a q u a l -
(juer u m a precedente, F n l e , p o r t a n t o , é l u d o o q u e se d á , se apresenta;
e m linguagem moderna, t u d o o que pode ser conhecido, pensado o u dito.

É i s t o , a f i n a l de conlas, o q u e a metafísica m e d i e v a l , talvez d e m a n e i r a


e q u i v o c a d a , tenta d i z e r ao c o n t r a p o r ser e n ã o - s e r e j u s t i f i c a r lal
c o n t r a p o s i ç ã o na d o u t r i n a da a b s t r a ç ã o . " H n t e é a q u i l o que é e n q u a n t o
é r e a l m e n t e " s i g n i f i c a para eles cjue se d e i n n a coisa eu a b s t r a i o t o d o s
os seus p r e d i c a d o s , a ú l t i m a sua p r o p r i e d a d e antes da a n i q i i i l a ç ã o (de
HI7JÍ7, nada) é o ser: tal coisa c, exerce o ser. Esta última p r t > p r i e d a d e ,
o r e s í d u o d e r r a d e i r o e i n e í i m i n á v e l , c j u s t a m e n t e ac^uilo q u e a susten-
ta e s l a v e l m e n l e a c i m a d o nada, p o r t a n t o a q u é m da i m p o s s i b i l i d a d e
d e n ã o ser ( o u n ã o m a i s ser) d i t a o u pensada. Ser, p o r t a n t o , é o ato d e
sustentar-se f i r m e m e n t e acima d o n a d a . A o revelar-se c o m o a t r i b u t o
ineíiminável resta q u e de ( ] u a l q u e r coisa o mais f u n d a m e n t a l q u e se
possa d i z e r é q u e ela ó, p o r t a n t o , q u e é u m ciitc.

I'arte desta p r o p o s i ç ã o f u n d a m e n t a l — o e n l e é (o q u e é ) g r a ç a s ao ser


— a tarefa essencial d o p e n s a m e n t o d e s d e os gregos, q u e consiste
j u s t a m e n t e e m pensar o ser d o ente. U m a i n v e s t i g a ç ã o q u e s e m p r e
o s c i l o u c n l r e o s e n t i d o o u a f u l g u r a ç ã o v e r b a l d e ser c o m o
e s s e n c i a l i z a ç ã o , ato o u exercício d e / d o ser, e as s i g n i f i c a ç õ e s n o m i -
nais, p o r t a n t o estáveis, d o ser c o m o e n t i d a d e .

M a s , d i z í a m o s — antes de nos a v e n t u r a r a reler a p e r g u n t a pela rea-


l i d a d e c o m o i n d a g a ç ã o sobre o ser — q u e actunHias e cxiMniiu> i n t e r -
p r e t a m a i n t e r p r e t a ç ã o d e Aristóteles d o ser c o m o oiisi/f. M a i s i m p o r -
tante a i n d a é a i n t e r p r e t a ç ã o desla p r i o r i t a r i a m e n t e c o m o cucr^eia e
ciitficcheia. O q u e v é m a ser ciiérgeia e cnteléchciü?

Lncrgcia remete a tá ér<^on, que à p r i m e i r a vista s i g n i f i c a t a n t o o " t r a -


b a l h o " , a " a ç ã o " , a " t a r e f a " , o " o f í c i o " q u a n t o , e talvez de f o r m a mais
originária, a " r e a l i z a ç ã o " (de u m a a ç ã o ) , o " r e s u l t a d o " , " e f e i t o " de
u m a a ç ã o . T r a d u z i n d o desta f o r m a (TI,'I'I; p o r acius o u opus aparente-
m e n t e a acluiililíis nos está d i a n t e c o m o u m d e s t i n o .

O s e n t i d o aristotélico d o t e r m o , e n t r e t a n t o , deslaca a l g u m a s notas que


a q u i f i c a r i a m o l v i d a d a s . Tá érgon não é o m e r o r e n d i m e n t o de u m

Sintene- Nova Fase. Belo Horizimie. v. 22, n. 68. 1995 \ 123


f . i / i T t r . i K i l h o s o , (1 s f i i r c s u I l . K l n m i c o n s e q ü ê n c i a ; anles ló fr^oii pode
ser l i n l o i s s o apenas e i K [ u a i i l o a l e n i l e a o seu s e n t i d o mais ( ) r i g i n a l ; ê
o r e p o u s o o n d e se abriga a c o m p l e l u d e d a q u i l o q u e e m e r g i u d e u m
m o v i n i e n i o " . O r e p o u s o n ã o se o p õ e a o m o v i m e n t o c o m o sua nega-
ção, m a s c o m o a sua c o m p l e l u d e q u e p e r m a n e c e , se f i r m a e se e x p õ e .
7VÍ crgoii é r e p o u s o nesle c r d a e x p o s i ç ã o . S e n d o crçoír o m o d o d a
p r e s e n ç a , a p r e s e n t i d a d e , a oiisúi, é c h a m a d a d e ciicrf^cia, a c o m p l e l u d e .
Para p e r m a n e c e r m o s fiéis a o s e n l i d o d e crf^oii. tvjcrycirt ê o d u r a r e
[ x * r d u r a r d a q u i l o q u e , u m a ve/ c h e g a d o ã e x p o s i ç ã o o u e x i b i ç ã o (crgoii),
aí p e r m a n e c e : liiinir lui criWçiío d a q u i l o q u e é a d u / i d o ' ' . C o m o l a l o
real é o a d u z i d o ( a d - d u c e r e , trazer) e p r o d u z i d o ( p r o - d u c e r e , apresen-
tar) Por i n t u i r a d i n â m i c a a í i n s c r i l a ê q u e p o s t e r i o r m e n t e , e n u m
s e n l i d o p o u c o g r e g o , nur^riii p ô d e se t o r n a r " e n e r g i a " .

Í-Veqüenlemente A r i s l ó l e l e s usa o t e r m o eiilrhrliriii, por ele cunhado,


e m l u g a r d e CÍ/ÍTÇ:'ÍIÍ. N I » c o r a ç ã o d a mirláiuiii. It> Iriu-- é o " t e r m o " , a
" e x l i e m i d a d e " , o " f i m " , a " m e t a " , o " d e s t i n o " . I'ara A r i s t ó t e l e s é o n d e
o m o v i m e n t o ( d o p r o d u z i r , a d u z i r , p r o v o c a r ) se r e c o l h e , se constela,
rej^Kius.) N o v a m e n t e , c o m o na T í s i c a " a r i s l o l é l i c a , o r e p o u s o é u m a
f o r m a e x t r a o r d i n á r i a d e m o b i l i d a d e , e n q u a n t o nele o m o v i m e n t o n ã o
m e r a m e n t e p a r o u , m a s se c o m p l e t o u , se r e c o l h e u . O r i f o l h i n i e n l o d o
!(7i'> ê, (•H>rtanto, a c o m p l e l u d e . Desse m o d o , a viitcUrfu-iii s i g n i f i c a o
deler-se-na-complelude", o reter-se-no-ternm'*.

Uma tal concepção "escatológica" d o s e r p o d e perder a s u a


d i n a m i c i d a d e apenas q u a n d o , c o m o v i m o s , s e i n t e r p r e t a iTçoti corno
iic/iis e opus, e CHCfçc/iJ é e n t e n d i d a n o s e n t i d o d e " o p e r a ç ã o " e d e
" a ç ã o " . Dessarte cucrçcin p ô d e se t o r n a r íictiiíililits, e o ser q u e era a
exibição f u l g u r a n t e d e u m m o v i m e n t o d e a d u z i r e p r o d u z i r , t o r n o u -
se o p r o d u t o e l e t i v o , e f e t i v i d a d e causada, cuja propriL^ladü f u n d a -
m e n t a l é o ser d e f i n i t i v a .

T r a l o u - s e , p o r é m , d e u m a escolha teórica a p a r t i r d a i ] u a l a p r o b l e m á -
tica grega d a r e a l i d a i l e , a i [ u e s l ã o d o ser, d o m i n o u a I d a d e M é d i a
latina e, p o r ela, a m o d e r n i d a i l e . I n f r e t a n t o , liá d e se p e r g u n t a r p o r
q u a l razão i n t é r p r e t e s d e A r i s t ó t e l e s , s e m d ú v i d a d e g r a n d e v a l o r ,
p u d e r a m t r a n s f o r m a r u m a c o n c e p ç ã o d a oiisín c o m o " p o n I o d e chega-
i l a d e u r n p r o c e s s o " , c o m o "t hegar d e " e "ser a t h i / i i l o " e m u m a con-
c e p ç ã o d a csscjfffrt c o m o e f e t i v i d a d e , p r e s e n ç a e f e t i v a . Isso t e m q u e
e n c o n t r a r u m a e x p l i c a ç ã o na o b r a d e A r i s t ó t e l e s m e s m o .

Com e f e i t o , v i m o s , a oiisia é u n i m o d o d e r e s p o n d e r ã ( X T g u n t a pelo


ser d o ente, o c é l e b r e li lò ón. D o n d e se l o r n a p i s s í v e l d e s d o b r a r essa
q u e s t ã o e m A r i s t ó t e J e s . A . d e u m l a d o é possível d e s d o b r a r a reflexão
stibre a oiisíii, e v e r e m o s cjue ela se d i z p r i o r i t a r i a m e n t e d o Inipt^vimcnon,
q u e é u m liidc li. B. j x t r o u l r o l a d o é possível r e n u m l a r para a l é m d a
c a r a c l e r i z a ç ã o e v e r q u e A r i s l ó l e l e s c i n d e a q u e s t ã o d o ser e m d o i s

124 SiiiU-sr Nora Fiisi-. li.-h llomiiiiti: V. 22. n. 68. 1995


v e i o s : fl q u e s t ã o l i o t',ito d e ser, hóli csfin; .1 i|uestào d o m o d o pelo q u . i l
se é, da q u i d i d . K l e , li csliii.

Síéií' A: Sabemos t|ue a o n t o l o g i a lingüística d e A r i s t ó t e l e s , nas Ciilc-


^oriiis, c o n c l u i q u e , d o p o n I o d e v i s l a das c a l e g o r i a s , a c e p ç õ e s o u
p r e d i c a d o s , o ser c o n v é m p r i o r i l a r i a m e n l e ã oiisiii e n q u a n l o deslas s ã o
prc-dicadas todas as l o i s a s , encjuanto ela de n e n h u m a o u l r a se p r e d i c a .
l í e s s a f o r m a , a IÜIMÍÍ, c o m o e s s ê n c i a , f i m d a m e i i l a . s u p o r t a e subjaz aos
p r e d i c a m e n f o s . A ç ã o q u e se d i z e n i g r e g o c o m o v e r b o kctiinii, "estar
p o s t o " , "estar e s t e n d i d o " , " j a z e r " , "achar-se", f i r m a r - s e , ao lado d o
p r e f i x o p r e p o s i c i o n a l in/píh sub, sob. A ÍHISÍII é, p o r t a n t o , a l g o q u e se
acha e m b a i x o , s u p o r t a n d o . O q u e se d i z e m g r e g o c o m o p a r t i c í p i o
presente d e kcinuii: lii kciiiieuoii, d o n d e In/fhÁdiiinioii. A e s s ê n c i a é,
p o r t a n t o , o s u b - p o r l a n t e , o sub-jacenle, o s u b - s l a n t e s i n g u l a r Uinle lí)-
lím A r i s t ó t e l e s isso s i g n i f i c a cshibiliiliiíír r iluraçüo iiiini pwiYsso. l'osle-
r i o r m e n t e , g a n h a o s e n t i d o s u b s t a n t i v o ihiíjiiilo ijue subn-viiv à niiiíliiiiça,
o que épermanente contra todo mudar, entendendo-se p e r m a n e c e r e m u d a r
c o m o e l e m e n t o s r e c i p r o c a m e n t e e x c l u d e n t e s -— subjecium e subslnnlia.

Sobre B: F.ntretanto, a d e c i s ã o a r e s p e i t o d o ser q u e liã de d e t e r m i n a r


o m o d o d e p ò r - s e p o s t e r i o r da q u e s t ã o , consiste, s e g u n d o I l e i d e g g e r ,
na escollia d e A r i s t ó t e l e s d e pen.sar e m d o i s sentidos a q u i l o t ] u e Platão,
e anles t i e l e os filósofos das o r i g e n s , p e n s a v a m c o m o a única p r o p r i e -
d a d e d o ser (ousia) d o ente. C o m e f e i t o . A r i s l ó l e l e s reconhece no f u n -
d o da q u e s t ã o da r e a l i d a d e u m a d i s t i n ç ã o f u n d a m e n t a l . Se r e s p o n d e r -
m o s à p e r g u n t a sobre o que u m certo e n l e e f p o r ex. u m n a'rvore o u
u m p á s s a r o ) , h a v e r e m o s d e reconhecer u m a d u p l a e x i g ê n c i a q u e re-
pousa neste quê q u e se refere ao v e r b o H'r — m e s m o s u p o n d o - s e o f a t o
f u n d a m e n t a l q u e " o ser e n u n c i a nesle q u ê a d e c i s ã o d e s u b l e v a ç ã o
c o n t r a o n a d a " ' ' ' , h preciso d i s t i n g u i r e n t r e o que u m e n t e ê e o fato d e
(((((' este enle é o u não é, o u , m e l h o r , o falo de este enle ser o u não ser.

A p e r g u n t a sobre o que c ( u m ente), é^tiii, r e s p o n d e j u s t a m e n t e a


a f i r m a ç ã o d a q u i l o q u e u m enle é. A o enunciar-se (de u m enle) que ele
(•', iióii esliu, c o r r e s p o n d e o fato de q u e u m ente seja o u n ã o . N o p r i m e i -
ro caso, se d i z a q u i l o q u e a coisa é e n q u a n t o tal coisa, a sua essência,
a b s t r a i n d o - s e o f a l o d e saber s f esla coisa ê o u que esla coisa e x i s l a .

Isso a d m i t i d o , r e t o r n e m o s ã c a r a c t e r i z a ç ã o aristotélica da ousia, da


e n t i d a d e d o ente, d o estatuto de r e a l i d a d e das coisas, li v e m o s , e n t ã o ,
que a ousia é própria e e m i n e n t e m e n t e o bypokeinwitou, o substante
q u e . p o r sua vez, se d i z a p r o p r i a d a m e n t e da coisa s i n g u l a r (lò ekaston)
e n q u a n t o p o d e ser i n d i c a d a c o m o esta o u at]iiela coisa (lòde ti). D o n d e
v a i d e c o r r e r p o s t e r i o r m e n t e a c a r a c t e r i z a ç ã o d a ousia c o m o a energcia
d o Uide li. A s s i m , a ousia é p r i o r i l a r i a m e n l e o p e r m a n e c e r , d u r a r , f u l -
g u r a r q u e e m e r g e d e u m m o v i m e n t o , lí o r e p o u s o consistente, no
s e n l i d o q u e ja' i n d i c a m o s , m a s s o b r e t u d o o p e r d u r a r d a q u i l o q u e se dá

Síntese Nica fo.sL', Ki-/" llurizimtc. 11. 22. n. <iH. iílí).^ 125
ti cada vez. M a s , i j u a n d o Aristóteles a f i r m a cjue a oiíS/i; cie t u d o se
p r e d i c a , m a s não é u m p r e d i c a m e n t o , recusa a p o s s i b i l i d a d e d e q u e
ela r e s p o n d a ã p e r g u n t a p o r o que e, pela e s s ê n c i a , f i m s e n t i d o p r ó p r i o
a njisfíi c o r r e s p o n d e n d o ao " p e r d u r a r d a q u i l o q u e se dã a cada v e z " ,
c o r r e s p o n d e ao fiito dc ser, ao ser p r o n u n c i a d o e e n u n c i a d o n o hóli
csftii.

S ó e m u m s e n t i d o s e c u n d á r i o a cusía p o d e ser d i t a d o s m o d o s c o m o
a coisa é, d o aspeclo q u e se m o s t r a (e'idtis). c o m o d i z i a P l a t ã o . Este é
p r o p r i a m e n t e o espaço dos predica mentos o n d e se caracteriza essencial-
m e n t e a coisa, p o r t a n t o o n d e aparece o ser i n t e r r o g a d o c o m o tí cslin.

A s s i m s e n d o , a q u i se r e v e l a o g r a n d e e n i g m a , a c r e d i t a I l e i d e g g e r . D e
f a l o , o que iiiu eiile c (a sua esscniiii, dirão m a i s t a r d e os c o m e n t a d o r e s
l a t i n o s d e A r i s t ó t e l e s ) , enc|uanlo p o d e ser p e n s a d o a b s t r a i n d o - s e d o
fato d e ele r e a l m e n t e ser o u n ã o , é a sua possibilidade. A cssentia i n d i c a ,
p. ex-, o p á s s a r o e n q u a n t o p á s s a r o , e n q u a n t o ele p o d e ser n o caso e m
q u e exisla: acjuilo q u e o l o r n a possível e n q u a n l o t a l ; a p o s s i b i l i d a d e " ' .
Dessarte, fato de ser, só p o d e ser a a f i r m a ç ã o da cxistenlia ( e m l i n g u a -
g e m e s c o l á s t i c a ) , o que s i g n i f i c a a não — (mais) — p o s s i b i l i d a d e , a
f a t u a l i d a d e o u e f e t i v i d a d e . S e n d o a ousía e m s e n l i d o p r i m á r i o o (afo de
ser estava aberto o c a m i n h o para a sua c o m p r e e n s ã o c o m o a n e g a ç ã o
da p o s s i b i l i d a d e , c o m o efetividade, p o r t a n t o c o m o aclualilas e existciitia.
K o f u n d o , s e g u n d o H e i d e g g e r , a d i s t i n ç ã o aristotélica e a i d e n t i f i c a -
ção prioritária da ousia c o m o íiiífi estin estabelece um primado da existeiitia
solirc a essciilia, da efetividade sobre a possibilidade '' na c o n c e p ç ã o d o ser...

Esta d i s t i n ç ã o , e n t r e t a n t o , s e g u n d o H e i d e g g e r , no f u n d o é a d i s t i n ç ã o
e n t r e ente e ser, e a d e c i s ã o Aristotélica no f i m das conlas é a d e c i s ã o
d l ' pensar o ser c o m base no ente, d e n ã o pensií-lo c o m o ser o u , d i l o
de f o r m a grega, de e s q u e c ê - l o .

2.2 A m e t a f í s i c a d o o l h a r

M a s eucri^eia é a i n l e r p r e l a ç ã o aristotélica d a ( ] u i l o t ] u e já antes Platão


i n t e r p r e t a v a c o m o eidos; o u seja, é a respiisla, o c o r r e s p o n d e n t e d a q u i -
lo q u e Aristóteles considera a p e r g u n t a d e f i n i t i v a da f i l n s o f i a : o q u e é
o ser d o ente?

Para H e i d e g g e r , p o r o u l r o l a d o , é c l a r o que se A r i s t ó t e l e s f o i capaz d e


f i r m a r a q u e s t ã o d e f i n i t i v a d a f i l o s o f i a — a i n d a g a ç ã o sobre o ser d o
ente — c o m o o p r o b l e m a da ousía, c a r a c t e r i z a d a c o m o euc'r^eia e na
cisão e n t r e essência e e x i s t ê n c i a , isso se d e u p o r q u e antes a resposta
platônica ao p r o b l e m a c o n s t i t u í r a u m o u l r o d e s t i n o .

A s s i m é q u e , para P l a t ã o , acjuilo q u e para os pensadores das o r i g e n s


era v i s t o n u m v í n c u l o essencial e n t r e r e v e l a ç ã o e o c u l t a m e n t o , o v e r -

I 126 1 Síntese Nom Fase, Bvlit Horiiunte. o. 22, n. 68. 1995


d a d e i r o , o ser, se d i z hc idca o u ló ridos, idéa é u m s u b s t a n t i v o f e m i n i -
n o , d e r i v a d o d o a o r i s t o d e u m v e r b o e x t r e m a m e n t e i r r e g u l a r lumkr,
eidos é u m s u b s t a n t i v o n e u t r o d e r i v a d o d o m e s m o v e r b o . Hordo reco-
bre o c a m p o s e m â n t i c o da visão: o seu i n f i n i l i v o significa " v e r " , " o l h a r " ,
" t e r u m a v i s ã o " ( d o m e s m o v e r b o p r o v é m opUlídiiiós, o o l h o , e opiikc);
c o m o idcia i n d i c a a " f o r m a q u e se d á ã v i s l a " , a " v i s a d a " , o " a s p e c t o " ,
nà<i n o s e n t i d o u s u a l q u e l h e o p õ e , de f o r m a v a l o r a t i v a , a e s s ê n c i a ,
mas n o s e n l i d o d o m o d o c o m o algo aparece, se n i a n i f e s l a , se m o s t r a .
O m e s m o se p o d e d i z e r d e eidos, "a a p a r ê n c i a " , " o v i s í v e l " , n ã o n o
s e n t i d o s u b j e t i v i s t a d o m o d o c o m o u m sujeito percebe n u m a d a d a (e
l i m i t a d a ) p e r s p e c t i v a u m a coisa, q u e p o d e r i a , no f u n d o , a b e m o l h a r ,
r e s u l t a r d i f e r e n t e d a q u i l o q u e se j u l g a v a perceber, mas no s e n l i d o
" o b j e t i v i s t a " , c o m o o m o d o c o m o a coisa m e s m a se exibe, a sua e x i -
b i ç ã o na q u a l ela p e r m a n e c e apreensível. A s p e c t o é a q u i l o o n d e o e n l e
d e t e r m i n a d o t e m a sua e s t a b i l i d a d e e de o n d e ele v e m à t o n a . Eidos e
idéa i n d i c a m , p o i s , o aspecto e m que u m a coisa visível se apresenta ao
nosso o l h o .

O e n i g m a , a f i r m a H e i d e g g e r , consiste e m que 1'lalão i n d i c a dessa f o r m a


j u s t a m e n t e a q u i l o q u e n ã o é e n e m p o d e tornar-se a p r e e n s í v e l p e l o
o l h o ' " . A ide'ii, d e fato, não pertence ao d o m í n i o dos iiislhetd, d a q u i l o
q u e p o d e ser p e r c e b i d o s e n s i v e l m e n t e , mas d o s iim'td, d o n ã o - s e n s í v c l
o u s u p r a - s e n s i v e l , d o inteligível. Se o a t o d e v e r é p a r t i c u l a r m e n t e
a p r o p r i a d o para s e r v i r d e ilustração da a p r e e n s ã o d o ser, se o c a m p o
da v i s i b i l i d a d e serve p e r f e i t a m e n t e para i n d i c a r o ser d o ente e n q u a n -
to t a l , é p o r q u e Platão a>ncebe o ser c o m o e s t a b i l i d a d e , c o m o p r e s e n ç a
e s t á v e l . Pois n o a t o d e ver a coisa a p r e e n d i d a está f i r m e , c o n t r a - s t a n t e ,
d i a n t e d e nós e m u m s e n l i d o m u i l o forte, d e f o r m a q u e n ã o p o d e m o s
nos f u r t a r a vê-la, ela se nos i m p õ e c o m o e s t á v e l . O ciestino da história
d o o c i d e n t e c o m o história d o ser estará, p o r t a n t o , s e l a d o a p a r t i r d a
c a r a c t e r i z a ç ã o d o ser c o m o a q u i l o q u e aparece, c o m o aspeclo, c o m o
manifestação.

A l é m disso o m o d o m e s m o n i e d i a n i e o q u a l Platão p õ e - s e a p e r g u n t a
p e l o ser, c o m o ousía, reserva à q u e s t ã o u m o u t r o d e s t i n o . O ser d o
ente, c o m o a e n t i d a d e d o ente, f i n d a p o r s i g n i f i c a r , para P l a t ã o , o
u n i v e r s a l c o m respeito ao ente. Se d i s s e r m o s q u e Deus, a p e d r a , o
c a v a l o , o p á s s a r o , a á r v o r e s ã o entes, e n t ã o d i r e m o s deles a q u i l o que
de m a i s geral p o d e ser d i t o . A e n t i d a d e é, p o r t a n t o , o m a i s geral que
se p o d e d i z e r de a l g o ; e m g r e g o , íii kviuóíiiioii. Ü r a , t a n t o c o m respeito
ao processo d o c o n h e c i m e n t o , q u a n t o c o m respeito às coisas, aos entes
e m g e r a l , o ser c o m o c f i f i d a d e — tô koiiióu — é próleron, é prévio, é
precedente. E m o u t r o s t e r m o s , v i s t o d o p o n t o d e vista da á r v o r e o u da
casa s i n g u l a r , a q u i l o q u e as faz ser o q u e s ã o , a sua " a r b o r e i d a d e " o u
" c a s i d a d e " s ã o e n t ã o a iden da á r v o r e o u da casa, o " u n i v e r s a l " e m
face d o p a r t i c u l a r , p o r isso c o n t e n d o i m e d i a t a m e n t e o ca r á t er d e koiuóii,
d a q u i l o que é vários singulares juntos.

Síntese Nova Fase. Belo Horizonte, v. 22. n. 68, 1995 127


A p r i o r i d a d e da idéa e m face d o s s i n g u l a r e s q u e nela lêm a sua esta-
b i l i d a d e , o seu ser, faz c o m que esla possa ser v i s l a c o m o o ente
autêntico, ÍÍJÍÍOS õil. E n q u a n t o a casa o u a á r v o r e s i n g u l a r e s , sendo
posteriores e m d i g n i d a d e s ã o na v e r d a d e mi- óiiln, n à o - e n t e s , O q u e
não e q ü i v a l e ao n a d a , m a s a u m m u n d o d e r i v a d o d e e s s e n c i a l i z a ç ã o ,
d e ser ente: a idca é q u e designa o e n l e c o m o l a l .

C o m o o e n l e a u l ê n f i c o , as idéias t a m l x ' m p<jdem ser " k o i n o l a d a s " , ter


a sua o j / i d a d e i d e n t i f i c a d a . Para Platão a e s s ê n c i a de todas as idéias
o u , o q u e v e m a ser o m e s m o , a m a i s alta d e n t r e elas é o li^idhóii, o
" b e m " , o u , p e n s a d o ao m o d o g r e g o , " a q u i l o q u e torna i d ô n e o a",
" a p t o a", "capaz d e " , q u e "capacita e p o s s i b i l i t a " ' " . O ser se caracte-
riza pela p o s s i b i l i t a r ã o , p o r ser c o n d i ç ã o d e p o s s i b i l i d a d e . O " b e m "
tem c o m o m o d e l o o sol, i j u e não apenas oferece a l u z , m a s . c o m o
claridacle. p o s s i b i l i t a o ato t l e ver e a v i s i b i l i d a d e . [•H>rlanlo o ser c o m o
aspecto -". A s s i m , a característica essencial da idi'a é p o s s i b i l i t a r o ente
e n q u a n t o enle, fazer c o m q u e o e n l e seja... e s l a v e l m e n l e .

Para I l e i d e g g e r esla c o n c e p ç ã o , q u e é i m i a d e c i s ã o , l e v a r á f a t a l m e n t e
à c o n c e p ç ã o d o ser c o m o e f e t i v i d a d e i|ue d o m i n a a nossa é p o c a . M a s
esla f o i u m a escolfia q u e se fez c o n t r a as m a i s p r i m o r d i a i s caracteri-
z a ç õ e s d o ser. A s s i m , se é v e r d a d e c]ue a i n t e r p r e t a ç ã o d o ser c o m o
ousía torna-se v i n c u l a n i e para o p e n s a m e n t o o c i d e n t a l , não m e n o s
v e r d a d e é o f a l o d e i ] u e a l g u n s SCHTUIOS anles de Platão e A r i s l ó l e l e s os
pensadores gregos já se p u n h a m a p e r g u n t a p e l o ser. D e n t r e estes,
p a r t i c u l a r m e n t e H e r á c l i l o e P a r m ê n i d e s f o r a m d e s c o b e r l o s pela crítica
recente, sob o influxíi da "exegese" d e H e i d e g g e r . c o m o pi^nsadores
densos e f e c u n d o s da i j u e s l ã o d o ser.

Várias s ã o as palavras-pensantes q u e se a p r e s e n t a r a m na t e n t a t i v a d e
circunscrever o e n i g m a d o ser: l o g o V , en, fasiV, f u s i V , alliqeia, fainesqai,
Uma delas l e n i p a r l i i u l a r n i e n l e a c a p a c i d a d e de remeter a Iodos as
o u t r a s , c o n c e n t r a n d o m o r m e n t e e m si as a t e n ç õ e s d o s ['ensailores das
o r i g e n s : he p h v s i s . Sendo, p o r c o n s e g u i n t e , a ousía u m a i n l e r p r e l a ç ã o
m o d i f i c a d a da(|irilo i|ue a l g u n s s é c u l o s anti.'s se c h a m o u d e p h y s i s , a
nossa p e r g u n t a pela r e a l i d a d e c o n s t i t u i - s e , na esfera mais originária
d o p e n s a m e n t o g r e g o , c o m o u m i n q u i r i r pela p h y s i s .

a) O Ser p e n s a d o c o m o p h y s i s . E m e r g i r c c s f a r - à - l u z

P e r g u n t a r m o - n o s p o r cjue este t e r m o serve de f u n d a m e n t o , no desa-


b r o c h a r d o p e n s a m e n t o o c i d e n t a l , p a r a se pensar o ser, é p e r g u n t a r
pelo seu s i g n i f i c a d o . H a b i t u a l m e n t ü nós r e c o r r e m o s à t r a d u ç ã o r t u n a -
na d e pin/sis c o m o n a i u r a e a v e r t e m o s s i m p l e s m e n t e c o m o " n a t u r e -
z a " , nas suas várias a c e p ç õ e s : " o c o n j u n t o dos enles d o u n i v e r s i > " . " o
m u n d o e n q u a n t o a q u i l o q u e se dá p o r si m e s m o e p o r si s ó se m a n -
t é m " , " c o n s t i t u i ç ã o essencial das coisas o u pessoas", etc, FTnlretanlo, já

I 128 1 Sinlese Nova Fo>:,: Brio Horhunle, o. 22, n r,H. 19!)5


c m l a t i m n a t u r a t e m a ver c o m nascere, " v i r à l u z " , "nascer", " n a s c i -
m e n t o " , A l é m d i s s o , o tato m e s m o de i n c l u i r na fííi/sís não apenas a
nossa natureza o u os f e n ô m e n o s " n a t u r a i s " ícéu, terra, p l a n t a s , a n i -
m a i s , e t c ) , c o m o t a m b é m a história q u e é obra d o s h o m e n s e deuses
e os p r ó p r i o s deuses, l e v a m a repensar esla p a l a v r a .

l : m g r e g o , o v e r b o c o r r e s p o n d e n t e — plit/ciii (phyo) — s i g n i t i c . i o
b r o t a r , e m e r g i r , despregar-se. A semente, p o r ex., phi/fiii, germina.
Talvez fosse m e l h o r , p o r t a n t o , c i r c u n s c r e v e r he pht/sis p o r u m a l o c u ç ã o
d o t]ue t r a d u z i - l a p o r u m a p a l a v r a jã s e d i m e n t a d a e, nesse caso, e n -
ganosa, c o m o " n a t u r e z a " . Por he physis os g r e g o s p e n s a m n a q u i l o q u e
a) e m e r g e (sai, surge, desprega-se); b) d e d e n i r o d e si m e s m o ( b r o t a ,
nasce); c) e p o r si n i e s m o (desabrocha), a p a r t i r d e s i ; d ) e q u e nesle
e m e r g i r estabelece-se, p e r m a n e c e , se r e t é m . Fosse p o s s í v e l recorrer-se
a tmia palavra poderíamos traduzi-la como a "emergência" o u o " a d -
v e n t o " , o u , se p r e t e r i r m o s os verbos s u b s t a n t i v a t i o s , o " e m e r g i r " i n -
c l u i n d o aí todas aquelas características i n d i c a d a s acima^'.

C o m o t a l . a idéia prioritária aqui é a d e um p e c u l i a r m o v i m e n t o —


acentuando-se o aspecto de p o n t o d e chegada d e u m processo, e o
aspecto d e e x i b i ç ã o — q u e se c o m p l e t a e h a r m o n i z a c o m a idéia d e
r e p o u s o , e n q u a n t o d u r a r , permanecer: a physis é u m " c h e g a r d e " q u e ,
c h e g a n d o , exibe-se, mostra-se, conserva ndo-se nesta m a n i f e s t a ç ã o . U m
"chegar d e " que chega p o r s i , isto é, a p a r t i r d e si m e s m o . Deste m o d o ,
a t r a d u ç ã o u s u a l de physis c o m o n a t u r e z a e essência, chega até m e s m o
a c o n s e r v a r a idéia d o " p o r s i " e d o " p e r m a n e c e r " q u e os gregos
c o m p r e e n d e m c o m o c a r a c t e r i z a n d o o ser, mas p e r d e o s e n t i d o da
"chegada q u e se e x i b e " .

J u s t a m e n t e para d e c l i n a r I o d o s os s e n t i d o s i ] u e se e s c o n d e m e se ofe-
r e c e m na c a r a c t e r i z a ç ã o d o ser c o m o physis os pensadores das o r i g e n s
r e c o r r e r a m a u m certo n ú m e r o de t e r m o s , q u e Uies f o r n e c e m o u t r a s
tantas achegas, a p r o x i m a ç õ e s , a f l o r a ç õ e s ao e n i g m a que aí se esconde.
Aflorações, enquanto nem Heráclilo, n e m Parmênides e m verdade
oferecem d o u t r i n a s , mas p r o - v o c a ç õ e s a p ô r - s e à escuta d o ser.

F estas p r o v o c a ç õ e s n ã o f o r a m poucas. C o m efeito, o ente e n q u a n l o


lal é p h y s i s — i s t o é, a q u i l o q u e o t o r n a o q u e é, é esle e m e r g i r i p e
e m si m e s m o permanece, este b r o t a r q u e repousa e m si m e s m o , O ente
e n q u a n t o t a l , c o n f o r m e a c a r a c t e r i z a ç ã o dos pensadores g r e g o s d o
s é c u l o V I , é u m consistente estar-à-luz. E n t r e t a n t o , apenas nos d a m o s
ao t r a b a l h o d e pensar estas três características — a d v e n t o , m a n i f e s t a -
ç ã o e consistência — nos s e n t i m o s p r o v o c a d o s . Os aspectos e n v o l v i -
d o s no m o v i m e n t o ( a d v e n l o - m a n i f e s t a ç ã o ) , p . ex., e m e r g e m na per-
g u n t a p e l o " d e o n d e " : e m e r g i r d o q u ê ? a d v i r d e onde?. O r e p o u s o
p r o v o c a a q u e s t ã o d o " c o m o " da s u b s i s t ê n c i a . E é a q u i e x a t a m e n t e
onde se manifesta a densidade deste m o d o de compreer^ier o ser d o ente.

Síntese Nooo Fa«i\ IMo lliirizimte. v. 22. n. 68. I99íi 129


Poderemos m e l h o r considerar aquilo que, por c o m o d i d a d e , chama-
m o s de aspectos d o m o v i m e n t o se p e n s a r m o s que, c o m o t u d o leva a
crer, o g r e g o p h y o p r o v é m da m e s m a r a i z i n d o - g e r m á n i c a (biúi, bhcu)
q u e u m a o u t r a raiz grega fa. Desla úilinia. I o d o s o s a b e m , v ê m u m a
série d e v o c á b u l o s gregos associados ao c a m p o s e m â n t i c o da v i s i b i l i -
d a d e : fíi /i/iíis ( l u z , i l u m i n a ç ã o ) , pbiiíníi ( b r i l h a r , r e l u z i r , m o s t r a r - s e ,
aparecer, revelar-se, parecer...), phaneróo ( t o r n a r visível, manifestar, fazer
conhecer...), etc. Desta f o r m a , ser v e m a c o i n c i d i r c o m aparecer. N ã o
no s e n t i d o d e q u e o m o s t r a r - s e d o aparecer seja a l g o q u e se acrescente
e v e n t u a l m e n t e ao ser; o soerguer-se da physis é e p i f a n i a , o ser v i g e
c o m o aparecer, a p r e s e n t a ç ã o , p r e s e n ç a .

b) P h y s i s e A I c t h e i a , A reserva

Essa m a g n í f i c a m e t á f o r a da l u z — i ] u e a q u i se i n i c i a para a t i n g i r o seu


p o n t o m a i s a l t o e m Platão e na t r a d i ç ã o platônica (S. A g o s t i n h o p . ex)
— i n d i c a q u e ser é sair da d i m e n s ã o d o v e l a d o , d o c o b e r t o , {'hysis é
o ex-lrair-se d o e s c o n d i d o ; a c o n s i s t ê n c i a q u e se i n s t a u r a a p a r t i r d o
ocultamento, como u m abandoná-lo — consecjüentemente, como u m
e n t r a r e u m p e r m a n e c e r no dest>cultaniento. Ser é s u b t r a i r - s e ao es-
c o n d i d o , d e s - o c u l l a r , r e - v e l a ç ã o , d e s - v e l a m e n t o o u , c o m o d i z i a m os
gregos a n t i g o s , alélhcia.

A alélhcia grega c h e g o u a t é nós já t r a d u z i d a p e l o r o m a n o vcrilas, en-


t e n d i d a c o m o a a d e q u a ç ã o , n o i n t e r i o r da p r o p o s i ç ã o , e n t r e o d i t o e
a coisa c o m o l a l . M a s o fato m e s m o de q u e " v e r d a d e " é u m t e r m o q u e
se e x p r i m e p o s i t i v a m e n t e , e n q u a n l o alélhcia — p o r q u e r e g i d a p o r u m
alfa p r i v a t i v o — é u m t e r m o n e g a t i v o , p r i v a t i v o , acena na d i r e ç ã o cie
u m e n i g m a presente na f o r m a grega desta p a l a v r a . A q u i a p r i v a ç ã o se
refere ao s u b s t a n t i v o Icllu; d o v e r b o lanihdno (ficar e s c o n d i d o , ficar
o c u l t o , esquecer: c o m o no a d j e t i v o p o r t u g u ê s " l a t e n t e " ) . A r e - v e l a ç ã o
é a característica f u n d a m e n t a l d a q u i l o q u e se a p r e s e n t o u e d e i x o u
para trás o e s t a d o d e o c u l t a ç ã o .

O alfa p r i v a t i v o e n t r e t a n t o , ao i n v é s de nos fazer ler a q u i a revelação


c o m o d e s t r u i ç ã o d o o c u l t a m e n t o , parece acenar na d i r e ç ã o de u m
v í n c u l o e n t r e d e s c o b r i m e n t o e o c u l t a ç ã o . A recusa q u e se manifesta
p e l o a- i m p l i c a n u m a e s p é c i e d e c o n s e r v a ç ã o , c o m o reserva d e s e n t i -
d o , d a q u i l o q u e é recusado; o p o s i h v o , a q u i recusado, i^iermanece c o m o
u m f u n d o , o b s c u r o mas que, d e cjualquer f o r m a , i n t e r v é m para cons-
t i t u i r o p o s i t i v o . O desvelar-se não apenas não e l i m i n a o esconder,
mas dele necessita para p o d e r ser c o m o é, isto é, c o m o des-velar. U m
v í n c u l o o r i g i n á r i o — a mé)vel i n t i m i d a d e de d e s v e l a r e esconder —
q u e se m a n i f e s t a n o f r a g . 123 d e H e r á c l i l o , p , ex. o n d e se d i z e x p l i c i -
t a m e n t e q u e physis krypleslhai pilei ("a ph\/sis a m a o c u l l a r - s e " ; " o s u r g i r
I d o ocultar-se) t e m , e m s i , a i n c l i n a ç ã o para o c u l t a r - s e " ) .

130 Sinlcnc Nmiii Fíj,sc, Belo Horizonte, v. 22. n. 68. 1995


A s s i m , Tò pb}/oii, — "íiquilo q u e e m e r g o " — e q ü i v a l e a tò phanôn —
" a q u i J i i q u e a p . i r e i e , r e s p l e n d e " — : a m b o s p o r é m se a p r e s e n t a m c o m o
estando na d i m e n s ã o d o r e - v o l a d o , d o des-coberto. A s s i m , a v e r d a d e
c o m o r e v e l a ç ã o não é algo q u e se soma ao ser; é o ser m e s m o . A
aWihcia é a r e v e l a ç ã o q u e c o n c e d e ao e n l e a p o s s i b i l i d a d e d e ser o u
(para f i c a r m o s na m e t á f o r a da v i s i b i l i d a d e ) cjue c o n c e d e a l u / e m q u e
a q u i l o q u e é p o d e aparecer. D e s o c u l l a m e n t o q u e , p o r é m , se i n s t a u r a
sob o f u n d o c o n s e r v a d o d e u m o r i g i n á r i o o c u l t a m e n t o ; f u n d o este q u e
faz c o m q u e j u s t a m e n t e a l u z possa existir. M a s isto i m p l i c a , ao mes-
m o t e m p o , u m f a t o e x t r a o r d i n á r i o e q u e só neste m o m e n t o d o pensa-
m e n t o é presente: o ser i m p l i c a u m o r i g i n á r i o n ã o - s e r . Por isso ,
[ i e r á c l i t o d i z ( f r a g . 53) q u e " p o l e m o V (polcmtK) é d e todas as coisas
p a i , d e todas rei Há u m e m b a t e o r i g i n á r i o , u m a t e n s ã o q u e faz ciom
que os combatentes nasçam c o m o tais e se s u p o n h a m redprtx-amente.

O o c u l t a m e n t o , o não-ser ( n ã o - m a i s - s e r o u n ã o - a i n d a - s e r , o nada e a
p o s s i b i l i d a d e ) é a c o n d i ç ã o " e s c a t o l ó g i c a " d o ser, a sua reserva obscu-
ra e p e r m a n e n t e , ([ue se r e t r a i ( d a n d o m a r g e m à d e s o c u l l a ç ã o ) mas
t a m b é m se fecha. Neste m o m e n t o d o p e n s a m e n t o f o i possível entre-
ver, a i n d a q u e p o r p o u c o t e m p o , o f a l o óe q u e ao ser i n e r e m a reve-
lação e a reserva. Neste m o m e n t o , a a f i r m a ç ã o d e q u e " o N a d a m a n i -
festamente n ã o é " ( e n q u a n t o n ã o é u m ente) não i m p l i c a q u e ele n ã o
p e r t e n ç a , a seu m o d o , ao ser. O nada a q u i é l ã o - s o m e n t e o " n a d a d o
e n t e " , a q u i l o q u e não se r e d u z ao ente, a q u i l o q u e d e l e é d i f e r e n t e ; não
é o conceito oposto ao ente, m a s pertence à essência d o próprio ser.

A o ser — c a r a c t e r i z a d o e m seu nexo c o m a q u i l o q u e ao ser se f u r t a


mas que, d e a l g u m m o d o , lhe i n e r e — n ã o pertence a c a r a c t e r i z a ç ã o
c o m o e f e t i v i d a d e , d e f i n i t i v a e f i x a . A q u i o ser se apresenta c o m o o
e t e r n o mais a l é m , l u z ( n ã o l â m p a d a , s i m p l e s m e n t e i l u m i n a ç ã o ) , d e
u m certo m o d o , c o m o n e g a ç ã o da e f e t i v i d a d e d o ente, e n t e n d i d o c o m o
u m a p r e s e n ç a n ã o - r í g i d a , p a r a l i s a d a . O ser é a q u i l o q u e m o s t r a o ente,
q u e o apresenta, mas que neste m o s t r a r ao m e s m o t e m p o se retrai e
subtrai.

M a s o fazer aparecer d i z - s e t a m b é m c o m o deixa ( d o v e r b o dokeo " p a -


r e c e r " ) . O r i g i n a l m e n t e , dòxií s i g n i f i c a " g l ó r i a " (a glória d i v i n a , p . ex.),
" f a m a " , " e s p l e n d o r " e se r e f e r i a à a d m i r a ç ã o q u e a l g u é m a d q u i r i a
p o n d o - s e , a s s i m , ã l u z . D e p o i s , dóxa acaba p o r s i g n i f i c a r t a n t o a " a p a -
r ê n c i a " , q u a n t o a " o p i n i ã o " c]ue esta a p a r ê n c i a gera. A líif.Víi t a m b é m
m o s t r a , e x p õ e , m a s engana neste seu " f a z e r - a p a r e c e r " e n q u a n t o este
não e m e r g e da coisa e m e r g e n t e p o r si m e s m a ( c o m o a aictiwía), é u m a
conslrição de aparição.

c) l ' h y s i s e L ó g o s . O a b r i g o .

M a s o ser, e n t e n d i d o c o m o pht/sis i n c l u i t a m b é m a d i m e n s ã o d o re-


p o u s o , d o a d v i r c o m o u m p e r d u r a r . Os pensadores d o ser r e f l e t e m

Sintene Nova Fase. Belo Horizonte, v. 33. n. 68,1995 13J


snbre i s l o p a r t i c u l a r m e n t e a t r a v é s da n o ç ã o d e /^fíjd.s. N o s é c u l o V I
a . C esta p a l a v r a c o n s e r v a v a a a m b i g ü i d a d e de d o i s s i g n i f i c a d o s q u e
se i l u m i n a m na c o n s i d e r a ç ã o d o i n f i n i l i v o d o v e r b o le^o. Pensar o
/.liycs a p a r t i r de /cycíii i m p l i c a c o n h e c é - l o ao m e s m o t e m p o c o m o
" f a l a r " , " d i z e r " — UigiK c o m o vcrbum, p a l a v r a o u d i s c u r s o — e c o m o
"estender" e " c o l h e r " . O segundo senHdo é a i n d a mais antigo e e n v o l -
v e u m a d u p l i c i d a d e , p o s s i v e l m e n i e c o n v e r g e n t e , de s e n t i d o . A s s i m ,
/('yi'!!; e x p r i m e a m e s m a r a i z q u e se m a n i f e s t a na língua d e R o m a n o
i n f i n i l i v o Ic^crec no a l e m ã o Icseu: j u n t a r , r e u n i r , recolher, coletar, c o l i g i r .
M a s i n d i c a i g u a l m e n t e a q u i l o q u e se expressa no v e r b o a l e m ã o Ic^eii:
e s t e n d e r , p õ r - d i a n t e . ü s e n t i d o de r e u n i ã o é e v i d e n t e a i n d a e m
Aristóteles, p . ex.; " T o d a o r d e m , e n i r e l a n i o , t e m o c a r á t e r d e r e u n i ã o
(/(ííjos)" (Tísica V I I . 1 . 2'^2í•\ 13:]. O s e n t i d o d e " p ó r d i a n t e " , p o r sua vez,
é c l a r o se p e n s a r m o s n o i n f i n i t o presente p a s s i v o , u s a d o no m o d o
(IKKIÍO — li'\;i-stliiii — que significa "pôr-se no r e a i l h i m e n l o d o repouso".

H é j u s t a m e n t e nesta p l u r a l i d a d e d e s e n l i d o q u e o Lõnos torna-se o


conceito-cliave da f i l o s o f i a cie Heráclilo, N ã o é o caso d e e s t u d a r m o s
ai|ui a " d o u t r i n a " d o i.n\'ii.s e m l Ieráclito, a c o m e ç a r d o c é l e b r e f r a g , 1 ,
mas i m p o r i a c o m p r e e n d e r c o m I Ieráclito o Lóaos c o m o a l g o q u e é ao
m e s m o t e m p o p e r n i a n e n t e ( " e t e r n o " frag, I ) , u n i f i c a n t e ( " t u d o é u n o "
f r a g , 30) e c o n d i ç ã o de p o s s i b i l i d a d e d o e n l e e n q u a n t o l a l , O /.(íyos é
a u n i d a d e q u e r e c o l h e e m si o enle; a u n i d a d e d o r e c o l h i m e n t o d o
ente. D i t o de o u t r o m o d o , para H e r á c i i t o , a q u i l o q u e é enle, q u e é
constante e estável, acha-se r e u n i d o e m si m e s m o e p o r si m e s m o , p e l o

O f r a g . 51) fala q u e o sábio é aquele q u e d i z c o n f o r m e o Lói^os: ficn


Punia, " U n o [é| •Tudo"lTrag. 501. O n d e " T u d o " s i g n i f i c a "a t o t a l i d a d e
d o s entes" {Pduta lâ õiita) e " U n o " q u e r d i z e r a q u i l o q u e u n e t u d o .
Ac|uilo que t u d o i m e é o ser. A s s i m , o ser recolhe e m si os entes, os
coleta, lí r e c o l h i m e n t o , coleta, n o g r e g o de H e r á c l i l o , s i g n i f i c a a p a l a -
vra q u e lhe é f u n d a m e n t a l hó Lógos.

l í n t r e t a n l o , o /.(íços, n ã o apenas representa o r e c o l h i m e n t o LÍO e n l e


(acjuilo q u e o faz tal), mas deixa-estar a q u i l o q u e p o r si m e s m o eslá
r e u n i d o , e n q u a n t o a l g o q u e está d i a n t e , está na custódia e m q u e é
p o s t o e permanece. O q u e significa isto? S i m p l e s m e n t e q u e a q u i l o q u e
é r e u n i d o no Lógos é r e s g u a r d a d o , c u s t o d i a d o na revelação, na airtiicia.
O Lóf^os d e - p ò e l u d o a q u i l o emerge na revelação, r e s g u a r d a n d o - o ; o n d e
ele p o d e ser a l c a n ç a d o p e l o falar dos m o r t a i s . Por isso A r i s l ó l e l e s
d e f i n e o lógciii c o m o aihiphaiuesthai, m a n i f e s t a ç ã o . R e t o r n a n d o à m e t á -
fora da l u z , pode-se d i z e r q u e o lógos leva a q u i l o q u e aparece a m o s -
trar-se p o r si m e s m o , a d o i x a r - s e ver à l u z Se ser u m ente s i g n i f i c a
aparecer e p e r m a n e c e r r e s g u a r d a d o na r e v e l a ç ã o , o lógos — e n q u a n l o
recolhe e c u s t o d i a o ente, desvela-o e r e s g u a r d a - o — p o s s i b i l i t a este
e n l e c o m o t a l , i d e n t i f i c a - s e c o m o ser desle m e s m o ente. O q u e i m p l i c a

132 I Sintene Noi-a Fase. Bela Horizonte, i: 22. n. 68, 1995


que, ao pensar o /jfços c o m o a q u i l o t]ue r e ú n e l u d o aL|uilo q u e e m e r g e
(o ente) na sua a p r e s e n t a ç ã o d e i x a n d o - o estar-aí, Heráciito, p e n s o u o
ser d o ente c o m o lio Lógos.

C o m i s t o SC c o m p l e t a o q u a d r o d o m a i s o r i g i n á r i o p e n s a m e n t o d o s
gregos sobre o ser d o ente, s e g u n d o H e i d e g g e r , E m s e n t i d o m u i t o
geral, o ser aparece aí c o m o a d i m e n s ã o i n s t a u r a d a para o a p a r e c i -
m e n t o d o ente; o h o r i z o n i e e m q u e estes se t o r n a m visíveis e n q u a n t o
tais, O enle é v i s t o c o m o a q u i l o q u e e m e r g e p o r si m e s m o (pin/sis) e,
e m e r g i n d o , põe-se ã l u z , aí p e r m a n e c e n d o r e c o l l i i d o e c u s t c i d i a d o ; o
ser d o ente é a q u i l o q u e o faz aparecer n a q u i l o q u e ele é {aictiieia) e
q u e o resguarda, a b r i g a n d o - o (Lógos). O ente é a q u i l o que a t i n g i n d o a
d e s v e l a ç ã o (aparecendo) d u r a , a i p e r m a n w e n d o ; o ser é a q u i l o t]ue o
d e i x a aparecer e o a b r i g a , O aparecer é u m r e t i r a r a q u i l o q u e aparece
d o o c u l t a m e n t o ; mas o desvelar (o ser) t e m necessidade d o o c u l t a m e n t o ,
a alélhcia precisa d a /c'//fc c o m o d a reserva a q u e , p o r assim d i z e r , ela
recorre. A v i s i b i l i d a d e q u e o ser concede faz e m e r g i r o e n l e c o m o t a l ;
mas o ser, p o r Irás d e l a , pactua c o m o não-ser. O ente q u e e m e r g e ,
p o r t a n t o , é, d e a l g u m m o t i o , não apenas constante, consistente, mas
g r á v i d o de promessas d e r i v a d a s da pulemos entre d e s v e l a m e n t o e re-
serva; o ente i n c l u i , d e a l g u m m o d o e e m v i r t u d e desta c o n c e p ç ã o d o
ser, t a m b é m a p o s s i b i l i d a d e

C a b e d i z e r a q u i , p o r é m , clue esla c o n c e p ç ã o logo se p e r d e e m g r a n d e


p a r t e , q u a n d o o lógos p e r d e o seu s i g n i f i c a d o de r e c o l h i m e n t o e r e t e n -
ç ã o , c o n s e r v a n d o apenas o s i g n i f i c a d o d e " d i s c u r s o " , ü Ló^^os d e i x a d e
ser a a b e r t u r a e m a n i f e s t a ç ã o d o ente, a sua v e r d a d e , para ser o â m -
b i t o c o l u g a r e m q u e se d e c i d e sobre a v e r d a d e . E a mesma v e r d a d e
a q u i d e i x a d e ser o e s p a ç o i n s t a u r a d o para o a p a r e c i m e n t o d o ente,
para se t o r n a r c o r r e ç ã o , a d e q u a ç ã o , justeza.

2.3 O e s q u e c i m e n t o d o ser o a p e r d a d o s e n t i d o d o nada

O g r a n d e d r a m a da história d o p e n s a m e n t o d o ser, desde l*latão q u a n -


d o e s t e p e n s a m e n t o s e t o r n a metafísica, é, para H e i d e g g e r , o esqueci-
m e n t o d o ser m e s m o o u o esi|uecimenlo cia diferença entre ser e ente.
Neste contexto inclui-se a perda d o sentido d o nada. O que significa isso?

Se o ser d o e n l e é acjuilo cjue o c o n s t i t u i c o n i o lal — a q u i l o q u e faz d o


e n l e j u s t a m e n t e e n t e , a s u a C H l i d a d e — o é pela razão a i n d a mais
p r o f u n d a <]ue o ser d o ente é a q u i l o q u e d e l e " d á c o n t a " , Todo e n i g m a
da p a l a v r a consiste no m o d o d e e n t e n d e r este " d a r c o n t a " , de que
p o d e m o s falar, d e f o r m a m u i t o g e r a l , que é u m e v e n t o q u e apresenta
a coisa (o ente) n a q u i l o q u e eia é, O ser de u m ente — u m a f l o r o u
u m a l â m p a d a — é a q u i l o q u e o c o n s t i t u i c o m o ente p o r q u e é a q u i l o
e x c l u s i v a m e n t e à l u z d o q u a l é possível pensar a l g o c o m o , j u s t a m e n t e .

Siníeíe Niwa Fase, Belo Horizonte, v. 22, n. 68, 1996 133


(ligo, u m pensavL'1. O ser é o c o n t o r n o , a c o n f i g u r a ç ã o d o ente, acjuilo
q u e o re-colhe, o re-une, q u e o taiha e r e t a l h a , (tjue o a b r i g a , d i z
H e i d e g g e r ) . F o q u e c o n s t i t u i a r e a l i d a d e d o real, o t o r n a , e m s u m a ,
a l g o d i s p o n í v e l ao p e n s a m e n t o e à p a l a v r a o u no p e n s a m e n t o e na
p a l a v r a . E m l i n g u a g e m o n t o l õ g i c a , o ser é o que lhe faz e m e r g i r d o
nada, l e v a n d o - o ã d e s v e l a ç ã o . O ser é a f u l g u r a ç ã o d o e n l e , a r e u n i ã o
que o unifica, a luz que faz com que este apareça, é a pro-dução d o enle.

Dessa f o r m a , a p e r g u n t a p e l o ser n ã o p o d e ser r e s p o n d i d a q u a n d o se


t o r n a u m a i n d a g a ç ã o pela essência. E estes f o r a m os d e s v i o s d e 1'iatão
e Aristóteles Q u a n d o P l a t ã o tenta pensar o ser c o m o ousía, c o m o
entidade ( d o ente), passa a pensar o enle; f a t a l m e n t e o ser l i n h a c]ue se
t o r n a r u m ónto ón, u m ente e m s e n t i d o p l e n o , mas n ã o mais o ser.
Q u a n d o pensa a ousía c o m o idéa, p e r d e de vista o e n i g m a e s c o n d i d o
na p a l a v r a alétheia, q u e i m p l i c a na e m e r s ã o c o m o u m a d v i r , u m chegar
q u e se a b r i g a ; P l a t ã o p e r d e o o b s c u r o q u a n d o c o n t e m p l a o ser c o m o
p u r a a p a r ê n c i a , c o m o ente. Q u a n d o Aristóteles pensa a ousia c o m o
enérgeia pensa o ser de u m a m a n e i r a m u i t o m a i s p r ó x i m a d o s pensa-
dores das o r i g e n s d o q u e P l a t ã o , e n q u a n t o m a n t é m o s e n t i d o d e u m
"chegar d e " , com») p o n t o d e chegada d e a l g o q u e se f u r t a . M a s ao
c i n d i r a q u e s l ã o d o ser e m d u a s , p r i o r i z a n d o a exiili^-iieia, a e f e t i v i d a d e ,
d e i x a n d o i n c j u e s t i o n a d o o lí éstiti, q u e seria a p e r g u n t a p e l o ser mes-
m o e n q u a n l o p o s s i b i l i d a d e , o ser q u e c o n s t i t u i o ente c o m o ente per-
m a n e c e u i n i n t e r r o g a d o . O r a , r e d u z i r o ser ao ente s i g n i f i c a paralisa'-
lo, imobilizá-lo, d e i x a r d e c o m p r e e n d é - l o c o m o u m e t e r n o - m a i s - a l é m .
O c a m i n h o da o m i s s ã o d o ser, o u d o e n g a n o d e se pensar o ser a p a r t i r
d o ente l e v o u f a t a l m e n t e à falsa c o n c e p ç ã o d o ser c o m o e f e t i v i d a d e ,
c o m o e s t r u t u r a estável q u e d o m i n a o d e v i r e dá s e n t i d o ao c o n h e c i -
m e n t o e ãs n o r m a s d a c o n d u t a — q u e é j u s t a m e n t e a c o n c e p ç ã o q u e
resulta estar e m crise neste f i m d e s é c u l o .

U m ente p o d e ser c o m p r e e n d i d o d escrevendo-se as suas p r o p r i e d a -


des, i d e n t i f i c a n d o - s e a q u i l o q u e nele é p e r m a n e n t e na v a r i e d a d e d e
suas a p a r i ç õ e s e na m u d a n ç a d e seus acidentes, classificando-o e m
g ê n e r o s e espt*cies. M a s a p e r g u n t a p e l o ser c o n t i n u a , e m I o d o s esses
casos, i n t o c a d a . O ser d o ente, a q u i l o q u e lhe assegura a c i m a e a p a r t i r
d o nada, c o m o u m a l g o p e n s á v e l , dizível, e x p e r i m e n t a v e l ê o q u e o
c o n s t i t u i c o m o tal. Este se s i t u a n u m a brecha e n l r e o d e s v e l a m e n t o e
a reserva, é a q u i l o q u e e x - p õ e e q u e se retrai e se fecha. A s s i m , o ser
é t a m b é m o n ã o , a n e g a t i v i d a d e , o nada d o ente. O ente, p o i s , s i t u a -
se sobre u m f u n d o q u e p e r m a n e c e o b s c u r o e q u e , apesar d e l u d o ,
i n t e r v é m para o c o n s t i t u i r . P o r t a n t o , é d i f e r e n t e d o ente. N a c o m p r e -
e n s ã o desta diferença encerra-se t o d o o m i s t é r i o da n u n c a lão e v i d e n -
te leveza d o ser, b e m c o m o I o d o s os m i s t é r i o s d a h o d i e r n a crise d o
conceito d e r e a l i d a d e .

134 Síntese Nnva Fase, Belo Horizonte, ir '22. n. fí8. I99S


Notas
1. M . HF.ii)m:rR, Nielzsche, vol. I I , Pfullingon, (íüntlicr Ncskf, 1%1, p. f i l .
2. M . Hr;!DEi.x;rR, Was isl das - dic Philosophie?, (ed. bilingüe alemão-ilallano),
Gênova. II Melangolo, 19H1, p p . 15,fííí.
3. Cf. M . llLiuhcciFK, Voiii Wesen dcs Gritndcs, Halle, Niemeyer, 1929 ' e Idem,
Der- Saíz vom Gnind, 1'fullingen, Neskc. 1958 -.
4. Cf, G. l'i'N/o, " I I pensare d i Nietzsche c i l divino come polarità", i n : Nielzsche
e Ia fine delia filosofia occiàentak, Assisi, Citadclla liditricc, 1986,
5. M . HHIDLCÍ;LR, Sein tind Zeil, Tübingcn, Max Nliemeycr, 1957 '•, p. 201.
6. Ibidem, p. 68.
7. Cf. Idem, Vortràge und Aufsãize. ffullinjçen, Cttnther Ncske. 1990 ^ p. 46.
8. "Na palavra 'existência' (cxisletitia) i> ser, como a realidade do real, exprime
o seu mais usual nome metafísico. 'Realidade', 'wer-aí" {'Dascin'} e 'existência'
exprimem a mesma coisa na língua da metafísica": M . Hrir)['r;i:i'R, Nietzsche,
vol I I , Pfullini;en, Günttier Neske, 1961, p. 400,
9. AKIS[OIT-;[.LS. Mctaphysica, Z 1, 102H b 2 s.

10. Cf. ]. BrAurkin, " O poema de Parmênides", in: Os Pensadores: os prc'-socrdticos,


São Paulo, Nova Cultural, 1989, p, 118,
11. Cf. M . HiiiihccrR, Nietzsche, viil. 11, p, 404,
12. Cf. Idem, Vortriige und Aufsàize. p. 47.
13. Cf. Ibidem.
14. Cf- Idem, Nielzsche, vol, I I , p. 405.
15. Cf. Ihidem, p. 399.
16. Cf. Ibidem, p. 400.
17. Cf. Ibidem, p. 407.
18. Cf. Idem. Vortrá-.^e und Aufsdtze. p. 23.
19. Cf. Idem, Nielzsche, vol. 11, p. 222.
20. Cf. Ibidem. p. 225.
21. Cf. Idem, Introdução à metafísica. Trad. de E. Carneiro Leão, líio de Janeiro.
Tempo Brasileiro, 1987, p p . 200-203.
22. Cf. Idem, Sein und Zeil, p. 32.

Endereço do iiulor:
Rua Professor Teles de Menezes, 2311/04
41910-190 — Salvador — BA

Sintene Nova Fane. Belo Horizonie. v. 22. n. €8. 1995 135

Você também pode gostar