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Introdução ao

pensamento de
Feyerabend
a partir da obra
" contra o metodo"

Lucas T.

Introdução

O presente artigo tem o encargo de apresentar


alguns conceitos de um filosofo da ciência
chamado Paul Karl Feyerabend (1924 - 1994),
contidos na sua obra ‘Contra o Método’. Cabe
dizer ao leitor que o livro ‘Contra o Método’
não é um tratado, mas uma carta cheia de
ironias, com o intento de suscitar um debate
com outro filosofo, Lakatos, que viria a
escrever uma resposta se não tivesse falecido
antes. Todo o artigo deve ser lido com o
entendimento de que Feyerabend vai ser seu
próprio critico na posterior obra, o ‘Adeus à
Razão’, apesar de permanecer com sua base
teorética.

1
Anarquismo Teorético

- Falseabilidade

Para entendermos a filosofia de Feyerabend

devemos entender primeiramente a sua critica ao

movimento logico-positivista muito em alta no

seu tempo; seu maior expositor foi Popper, e

ouvindo suas aulas e acompanhando seus escritos

Feyerabend formula muitas criticas. Desse modo,

passemos a observar a critica ao falsificacionismo.

O falsificacionismo afirma que uma teoria

cientifica depois de ser refutada deve ser

abandonada imediatamente, pois que um fato

verdadeiro não pode ser refutado, que a ciência

não pode levar em consideração uma tese que foi

refutada com fatos e com a teoria, ou mesmo que

não se ajustem a teorias aceitas anteriormente -

como a relação da teoria de galileu e Aristóteles,

relação esta que é muito recorrente e base do

“Contra o Método”- dando fim a todas as teses

que transgredirem esses requisitos.

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O grande problema desse falsificacionismo,

sacado e atacado pelo filosofo, está na sua ideia

de objetividade; seu conceito de refutação e

consequentemente de falsificação, está baseado

em uma apreensão objetiva dos fatos; essa pureza

no receber o mundo e interpreta-lo é ingênua e/ou

descabidamente autoritária, uma vez que

determina a realidade de uma forma unilateral e

nega o lugar de outras relações com a

objetividade, engessando uma ideia anteposta de

sujeito e objeto. A tradição é inerente à todo tipo

de pensamento interpretativo do mundo segundo

Feyerabend; a ciência estando incluída nessa

categoria:

“Não conhece fatos nus, pois os fatos de que tomamos

conhecimento já são vistos sob certo ângulo, sendo (a

objetividade dos fatos), em consequência, essencialmente

ideativos” pág. 20 CM

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O falsificacionismo se imbui de uma ferramenta

dogmática para refutar e invalidar uma teoria:

os padrões, preconceitos, particularidades

condicionadas pelo tempo e cultura em que

foram afirmados os critérios para a

refutabilidade. Partindo desse entendimento do

“falsear” podemos apontar muitos exemplos de

refutações feitas no passado mas que, tomando

como base os critérios de falseabilidade hoje,

não se enquadram e não vingam. Os objetivistas

não se atentando a isso se isolam em uma

espécie de solipsismo; são em relação às suas

tradições como os peixes em relação ao mar.

Essa bolha cépticas se manifesta em uma ideia

de “neutralidade cientifica”, pois:

Para eles a ciência é uma estrutura neutra,

encerrando conhecimento positivo, que é

independente de cultura, ideologia ou

preconceito. Pag. 457 CM

Portanto, é de se notar que a ciencia que se dizem

detentores os "homens da tradição", é uma ciencia

ideativa, que não se encontra no mundo, e que

nem poderia vir a existir, uma vez que saber

nenhum é neutro, quando vem a tona é

indissociavelmente correlatado a uma certa

perspectiva.

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- Revolução cientifica

Ao observar as revoluções cientificas e o modo

como a ciência evoluía, o filosofo percebeu uma

valorização da mesma quando entravam em conflito

com teorias de instancias diferentes e relações com a

realidade diferentes, contraditórias e refutáveis entre

si. Esse conflito foi exemplificado justamente com o

pensamento de Galileu e seu método contrario a uma

teoria já aceita (de Aristóteles), contrario a fatos

observados (a estagnação da terra), e à instituições

dogmáticas (a igreja); Galileu nadou contra a maré

de seu tempo e por meio de uma serie de jogos de

convencimento “venceu” a batalha epistemológica.

Feyerabend comenta algumas manobras utilizadas

por Galileu em seu método: sua propaganda teve de

ser muito elucidativa e sua retorica e eloquência

também vieram a calhar. Pesquisas com um novo

meio de experiência (o telescópio) foram feitos

exaustivamente e num movimento ad hoc. Uma

nova linguagem foi criada para que a nova teoria

fosse pautada por uma linguagem que a favorecesse;

apesar de criar todo um padrão diferente do de

Aristóteles, desenvolveu contra argumentos dentro

da teoria aristotélica, etc. Todas essas formas nada

“cientificas” segundo os positivistas que o autor

critica, foram de extrema importância para o

advento da teoria heliocêntrica.


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Perceba ainda que essa teoria já havia sido

evidenciada por filósofos da antiguidade, mas com a

resposta totalitarista de Aristóteles, acabou por ser

solidificado na cultura ocidental o geocentrismo até

então.

Em Feyerabend a historia tem papel importante; por

meio dela seus apontamentos e criticas ao olhar

positivista serão corroborados. Os passos mais

revolucionários da ciência foram dados a partir de

ações transgressoras ao método vigente e a ciência

vigente, o contra-indutivismo está dentro delas. As

medidas que prendem a criatividade e as

possibilidades à pensamentos passados, como uma

coerência com ditames aceitos, são empecilhos para o

desenvolvimento da ciência e não permitem que

possíveis analises validas sejam feitas.

6
"Condições de coerência com teorias aceitas preservam

a teoria mais antiga e não a melhor " Ibid. pág. 45

Para que a ciência tenha um processo

engrandecedor , deve haver segundo Feyerabend

uma repercussão do anarquismo epistemológico,

pois que a partir dele, as pesquisas cientificas não

estariam fadadas a seguir um método regente único

e totalitário, nem aceitar ideias já aceitas ou em

voga, e sim expandir até as fronteiras de onde se

perde o que chamam de razão, passando pela “sem-

razão”, numa procura intensa da realidade como

deve ser interpretada.

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A ciência só pode viver satisfazendo sua potencia

por meio de uma relação anárquica e pluralista para

com a interação das teorias.

O processo de revolução cientifica se dá em um

determinado momento que temos uma concepção

da realidade, seguido de uma linguagem para

interpreta-la; essa concepção limita a fronteira da

razão e do que é a ignorância; há uma estagnação e

comodidade nessa primeira concepção. Logo

depois uma nova interpretação e concepção da

realidade é cunhada; por ir contra a razão admitida

pela primeira concepção, a segunda entra no

conjunto de teorias sem-razão. E o embate é feito

até que dessa relação saia uma interpretação outra,

superada, num movimento dialético, fortalecida

pela interação de interpretações, que vai ser a nova

concepção regente e virá a ser transgredida logo

mais a frente. Esse é o processo de mudança

exemplar da ciência e que seria ainda mais rico se

o momento de estagnação não fosse tão totalitário

e dogmático, mas sim, que tivesse a um mesmo

tempo, vontade de verdade própria e consciência

de pluralidade interpretativa. Essa consciência é

atribuída ao anarquismo, e o lema tudo vale o

afirma.

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- Tudo vale

O tudo vale como é dito pelo autor no seu livro

posterior ao contra o método -Adeus à Razão-, não

serve, como muitos pensam, como um facilitador,

na verdade ele dificulta no primeiro momento o

nosso raciocínio de perspectiva, tanto em relação à

própria interpretação quanto a do outro. Implica

um estudo mais abrangente e uma reflexão de

perspectivas aguçada. Ele não pode ser entendido

como um aval supremo de ordem maior que

possibilita as mais absurdas teorias e desumanos

atos; não, pois seu vale tudo tem base em um

conceito chave de sua filosofia, a democracia,

segundo a qual é valido todo aquele método que

for aceito por um grupo e para ser aplicado no

próprio grupo; não poderia então uma teoria

ocidental qualquer, decidir ser aplicada invadindo,

com o consenso de seu grupo, uma cultura oriental

com padrões diferentes e implementa-las sem o

consentimento dos últimos.

Aqui podemos observar uma instancia do

pensamento prático do Feyerabend, e uma

referencia a atos no mundo de acordo com um

principio de tolerância, de coexistência com

culturas, métodos, padrões e ciências diferentes.

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Os ditames da ciência que se coloca em um

pedestal e a corja de “cachorros adestrados” (como

ele, para ilustrar melhor, chama os positivistas

lógicos que endeusavam a ordem, a lei,

empregados na ciência, para uma identidade com a

razão) são os mais criticados pelo filosofo. A

ordem que eles anunciam com suas exigências são

ascéticas e estéreis. Ora, como posso descobrir algo

novo se estou preso a um método e uma ciência

que só me propicia uma interpretação e relação

com o mundo, que já foi amplamente observado?

Desse solo pobre de nutriente, pois muito fora

consumidos, poucos frutos advirão. O pluralismo

de sua filosofia proporciona solos incontáveis para

o florescimento das mais diversas espécies de

frutos.

A ideia de que a ciência deve ser elaborada com

obediência a regras fixas e universais é quimérica

e perniciosa.(...) pois leva a ignorar as complexas

condições físicas e históricas que exercem

influencia sobre a evolução cientifica. Torna a

ciência menos plástica e mais dogmática. Pág. 449

CM

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Alguns críticos compreendem que ao observar que

todo método, por não serem objetivos, tem seus

limites e negam outros saberes, afirmam que

Feyerabend nega qualquer método em seu cerne e

qualquer proposta de conhecimento, invalidando

todos os métodos, sendo por isso totalitário e

absoluto em sua afirmação.

"o anarquista epistemológico ‘não apenas não tem


programa [como é] contra todos os programas’” ibid
pag 293

Pelo contrario, sua proposta é validar todo tipo de

método e resguardar um lugar nas possibilidades à

todos eles. Nenhum método é totalmente

verdadeiro, mas qualquer um é valido e deve ser

considerado e respeitado enquanto tal, não mais

que isso. Nenhum programa cientifico, com uma

perspectiva relativista, detém a verdade em sua

totalidade, nem a ignorância em sua totalidade. Se

nada, nem a refutação, me garante a invalidade de

uma teoria, tudo vale.

“não há concepção ‘absurda’ ou ‘imoral’ que ele [o

anarquista epistemológico] se recuse a examinar ou

acompanhar, e método algum é visto como

indispensável” ibid pag 293

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Em Feyerabend todo conceito está estritamente

ligado à outro; percebemos suas posições em

conjunto enquanto uma especifica é tratada. Um

conceito ousado que fora investigado em Contra o

Método que afirma e fortalece o tudo vale e de seu

anarquismo epistemológico como um todo, é a

incomensurabilidade; será exposta no próximo

ponto.

O tudo vale, bem como a observação das

revoluções cientificas e a critica ao

falsificacionismo esboçam em ‘Contra o Método’ o

fato de que a “ciência está sempre cheia de lacunas

e de contradições, que a ignorância, a teimosia, a

aceitação de preconceitos, a mentira, longe de

impedirem a marcha do conhecimento, são seus

pressupostos essenciais e que as tradicionais

virtudes da precisão, de coerência, da

‘honestidade’, do respeito pelos fatos, do

conhecimento máximo, se praticadas com

determinação, levarão, em certas circunstancias, a

ciência à estagnação.” (Ibid.pág. 387 )

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Para aproveitar dessa ciência ao máximo, levando

em consideração os seus problemas, é relevante o

anarquismo epistemológico de Feyerabend; este se

aproveitará de todos os segmentos e concepções da

ciência e dos outros entendimentos de relação com

a realidade, como o tratamento com ervas

medicinais feito por muitas tribos, rituais e

feitiçarias, crenças em entidades benfeitoras bem

como todo o arcabouço metafisico que se relaciona

com a matéria, com a vida do ser humano. O

anarquismo epistemológico é sobre tudo uma

analise antropológica, por isso revela em seus

preceitos uma relatividade, que abarca a pluralidade

e diferenças de todos os níveis manifestados pelo

ser humano.

Incomensurabilidade

- Interpretações naturais

Tomaremos esse ponto a partir de alguns elementos

que o constitui e que lhe são essenciais. O elemento

que Feyerabend faz menção para introduzir a

incomensurabilidade são as interpretações naturais.

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A ciência tem a ingênua pretensão de apartar-se de

todas as interpretações naturais, de cunho particular

e caráter empobrecedor de seus projetos universais e

objetivos; mas Feyerabend mostra que seu erro

incorre desde o inicio de sua investigação pois

“afastemos todas as interpretações naturais e teremos

também eliminado a capacidade de pensar e de

perceber.” (Ibid. pág. 111)

Ele não relaciona os preconceitos interpretativos

apenas às sensações, mas também ao pensamento.

“Se uma pessoa é colocada diante de um campo de

percepção, sem dispor de uma interpretação natural,

estaria completamente desorientada”, de modo que

não se saberia por onde começar o empreendimento

da ciência. Segue-se portanto que é inconcebível

começar uma analise da estaca zero. A relação com

essa interpretação humana determina também o

conteúdo de um conceito, seja ele qual for.

Como poderíamos analisar o próprio repertorio de

interpretação natural sem cairmos em um circulo

vicioso dado as interpretações naturais da analise ?

Feyerabend usa uma medida externa de

comparação; essa medida vai ser constituída de

parâmetros, tradição, maneiras de relacionar

conceitos e dados perceptivos diferentes; o resultado

da relação dessas visões dispares é uma consciência

dos padrões que cercam ambas.

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Essa consciência se manifesta em uma estranheza.

“a impressão de estranheza revela que as

interpretações naturais estão operando, e constitui um

primeiro passo no sentido de que venham a ser

descobertas.” IBID 112

Ou seja, as ideologias inerentes ao nosso

conhecimento são descobertos a partir de teorias por

elas refutadas, são descobertas contra-indutivamente.

Perceba que ao revelar as interpretações naturais

por meio de outra, suscitamos a

incomensurabilidade, pois que as duas

concepções são diversas e não intercambiáveis;

suas qualidades, elementos, relações de

identidade e entidade, suas relações de

interpretação da realidade e linguagem são

diferentes e não existem concomitantemente, por

isso são incomensuráveis. O exemplo que

Feyerabend estabelece para mostrar essa relação

de incomensurabilidade é o da civilização grega

dos séculos IX ao VII antes da era comum.

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Ele afirma que a sociedade grega anterior ao

século VII a.C. é incomensurável em relação a sua

sequencia; na primeira o homem é jogo de

energias exteriores e não tem a responsabilidade

dos próprios atos em sua totalidade, seu corpo é

considerado como um conjunto de pedaços, como

um boneco, o mundo visto é verdadeiro, entre

outras características; enquanto que a segunda tem

a noção de responsabilidade dos próprios atos e

vontade intrínseca, assim como a consciência de

um corpo órgão completo, inteiro, o mundo

contendo aparências não reais ou verdadeiras,

entre outras diferenças (podem elas serem

observadas a partir dos resquícios dessas

civilizações, como construções, artesanatos, modo

de agricultura, crenças escritas, etc.).

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Essas características não são apenas “ideias

teoréticas , mas fato de observação. O homem

não é apenas descrito dessa maneira; é retratado

dessa maneira e dessa maneira sente ser

constituído.” Dessa forma nos encontramos em

mais um problema; como podemos fazer

asserções do tipo, ‘essa concepção de mundo está

correta e mais próxima do fato do que outra’, se

ambas podem ser incomensuráveis e por isso, têm

a necessidade de serem interpeladas de acordo

com padrões diferentes, que portanto não atestam

a veracidade de uma em detrimento da outra, mas

a veracidade de ambas em relação a suas

estruturas de tradição; “em uma palavra, a

investigação teria de ser antropológica” para

abarcar esses contrassensos, partícipes da

organização Pessoal. Começamos a nos referir ao

relativismo, que em seu termo irá negar a

autoridade da logica e se aproximará da sem

razão, da irracionalidade, para a afirmação do

conhecimento humano.

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Relativismo

Feyerabend relativiza o conhecimento ao dar

crédito à incomensurabilidade e afirma-la mesmo

na construção individual do pensamento ( existem

esquemas de pensamento - ação, percepção -

incomensuráveis entre si); os períodos de transição

entre uma e outra interação com o conhecimento

são dados a partir de alguns termos usuais, absurdos

e irracionais, que refletem a contradição e o choque

de visões incomensuráveis até que uma se enraíze

de vez, tornando sólido um novo principio de

verdade, justiça, honestidade, realidade, etc.

Criticas lhe foram feitas sobre essa posição, elas

afirmam que dessa forma não seria possível negar

uma intervenção, seja ela qual for, no mundo, como

o nazismo, pois que ele está certo de acordo com

seus padrões e noções de certo; mas Feyerabend

assegura que dentro dessa mesma cultura pode-se

ataca-la, por isso ele tanto bate na tecla da

antropologia e de uma vivencia dos padrões que são

referidos. Não se pode dizer e julgar uma cultura, ou

ato dentro de uma cultura, estando fora de suas

perspectivas; o estudo deve ser feito com base em

seus ditames e criticados a partir deles. Contudo,

essa posição especifica do pluralismo será colocada

de lado pelo próprio filosofo em escritos posteriores

ao Contra o Método.
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As comparações de visões incomensuráveis, como

já foi dito, são engrandecedoras se observadas de

uma perspectiva relativista; elas sempre tomaram

parte de uma das visões e só assim podem ser

concebidas. A logica aqui se faz desinteressante,

isso “deve-se ao fato de lidarmos com fenômenos

externos a seu domínio.”

Tendo todas essas observações em vista,

Feyerabend entende que por ter o dogmatismo

como ponto essencial, fica impossível fazer ciência

sem dogmas.

“A ciência não está preparada para fazer do pluralismo

teorético o fundamento da pesquisa” CM pág. 452

Então como conciliar as mais variadas

concepções de realidade, para que o ser humano

não fique empobrecido e limitado, se nossas

regras cientificas de conhecimento são

medíocres ? A essa questão Feyerabend dá uma

solução a partir de uma construção de um novo

sistema de conhecimento, um sistema que

abarque a “sem-razão”, o pluralismo, a

contradição e o relativismo; a separação entre

Estado e Ciência.

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Liberdade à “sem-razão”

- Ciência ou mito moderno?

Quando a questão da ciência é encarada com a

ótica perspectivista e relativista de Feyerabend,

percebemos a grande empreitada da mesma de

convencer as pessoas com argumentos, ou o que se

pretendia ser um argumento, dos mais

“trapaceiros”, para alcançar um lugar ao sol, um

lugar de estabilidade no altar cientifico, exato,

coerente, etc. Mas o filosofo ainda afirma que nem

sempre a empresa é tão pacifica assim; “A ciência

dominou pela força, não por argumentos” (Ibid.

pág. 450), na historia podemos observar a guerra

da ciência colonizadora e “civilizadora”, que elege

seus ditames para retirar pessoas, que viviam com

seus saberes próprio, da "ignorância". Apesar do

fato de que “tanto a ciência quanto o mito

recobrem o senso comum de uma superestrutura

teorética”, não foi dada a escolha de qual sistema

interpretativo essas civilizações prefeririam, e fica

nítido que, assim como nossa sociedade não

abriria a mão da magna ciência em prol de algum

mito, aquelas não recusariam os próprios mitos em

prol de uma ciência castradora.

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“O mito está muito mais próximo da ciência do que

se poderia esperar”, assim como o mito se funda em

‘elaborações secundarias’ a ciência se constrói por

meio de series de hipóteses ad hoc. Ambas são

construções teoréticas que tentam se aproximar dos

fatos e são variadas em sua essência, incorrendo se

correlatas, mitos com mitos, ciências com ciências,

em contradições , são incomensuráveis entre si e

não resguardam verdade certeira alguma.

Apesar dessas considerações, da ciência ser

comparativa em sua validade epistemológica com o

mito, a religião, a magia, feitiçaria, e outras ideias

que os racionalistas, lógicos e cientistas adorariam

afastar das possibilidades pessoais,

“a ciência continua a reinar soberana, pois seus

praticantes são incapazes de compreender e não se

dispõem a tolerar ideologias diferentes, por que têm

força para impor seus desejos e porque usam essa

força como seus ancestrais usaram a força de que

eles dispunham para impor o cristianismo aos povos

que iam encontrando em suas conquistas.” Ibid.

Pag. 453

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Para assegurar a liberdade individual foi efetuada

uma separação entre Estado e Igreja, de modo que

nossos filhos podem seguir, por meio de suas

escolhas, a religião que for de seu agrado, ou se

for o caso, religião nenhuma. Não ensinam

religião alguma que seja obrigatória para nossas

crianças por não enxergarem em nenhuma delas

uma autoridade de envergadura universal e

verdadeira. Aqui vemos um ideal de pluralismo na

nossa sociedade, mas o problema não é haver

“separação entre Estado e igreja, [mas o fato de

que] não existe separação entre Estado e Ciência.”

- Emancipação Estado-Ciência e

Educação

A ligação entre Estado e ciência parece ser

irremediável na nossa sociedade pois o advento

tecnológico-cientifico alcança todas as instancias

da mesma, de modo que até as relações humanas

são infectadas com essa doença moderna e são

tratadas de maneira cientifica. Os gastos no

desenvolvimento de ideias cientificas que o Estado

tem é demasiado grande e toma lugar de

investimentos outros que ficam por apresentar

necessidade da intervenção da esfera civil para

uma atenção mínima.

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Alguns afirmam que a sociedade baseada na

ciência é mais crítica que outras; mas isso não se

faz real no mundo. As pessoas são ensinadas que

as ciências são progressistas, assim, as concepções

de realidade que a ciência afirma na atualidade são

aceitas sem maiores reflexões; não falamos que

algumas pessoas pensam que a terra gira, mas que

ela gira! A autoridade que imbuem à ciência é

totalitária. “Aceitamos a cosmologia cientifica tão

acriticamente quanto, no passado, se aceitou a

cosmologia de bispos e cardeais”.

Os pais de uma criança podem decidir se ela vai ter

ou não uma educação religiosa e que espécie será

ela se for o caso, mas os assuntos científicos são

matéria obrigatória em nossas escolas, de modo que

Física, Biologia, Historia devem ser estudadas e não

podem ser substituídas, eventualmente, por

intermédio da vontade dos pais ou do próprio aluno,

por estudos de lendas, astrologia, magica, entre

outros repertórios de conhecimento que são

desmerecidos pelo positivismo cientifico.

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“Contudo, a ciência não tem autoridade maior que a de

qualquer outra forma de vida. Seus objetivos não são ,

por certo, mais importantes que os propósitos

orientadores de uma comunidade religiosa ou de uma

tribo que se mantem unida graças a um mito. De

qualquer modo, não há por que esses objetivos possam

restringir as vidas, os pensamentos, a educação dos

integrantes de uma sociedade livre, onde cada qual deve

ter a possibilidade de decidir por si próprio e de viver de

acordo com as crenças sociais que tenha por mais

aceitáveis. A separação entre Estado e Igreja deve,

portanto, ser completada pela separação entre Estado e

Ciência.” Ibid. Pag. 454

Num Estado assim, os cientistas participariam

ainda das decisões governamentais, mas sem uma

autoridade dominante, seus votos (na democracia

que Feyerabend anuncia) teria o mesmo peso dos

demais. Assim como os mais variados segmentos

ideológicos são representados nas democracias a

ciência com seus interesses seria mais um desses.

O problema da ciência conectada ao Estado

também se dá na sorte que em uma democracia as

leis são explicadas com esforço para que os

partícipes tenham um entendimento do processo

que os envolve, enquanto que os cientistas “ou

escondem ou distorcem o processo [os critérios e

empreitadas cientificas], para que ele se amolde a

seus sectários interesses.”

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Essa ciência, evidenciada em suas rudimentares

estruturas em todo o presente artigo, é ideologia

que deve ser separada do Estado e dos processos de

educação. Escolher conscientemente entre as tantas

interpretações de conhecimento é muito mais digno

do ser humano do que ser devorado e dominado

por uma interpretação especifica, sem a efetiva

escolha. Em uma educação desse modelo em prol

da vontade se segue que o aluno teria um panorama

dos “principais propagandistas de todos os

campos”; estudaria as “ideologias mais importantes

em termos de fenômenos históricos”, ou seja, a

ciência seria mais uma ideologia estudada como

fenômeno histórico, como contos de fadas, mitos,

rituais, entre outras, e não como “único e sensato

meio de se enfrentar problemas”. Todas essas

informações corroborariam para uma decisão livre

da parte da pessoa.

“Não há que se temer que essa maneira de dispor a

sociedade conduza a resultados indesejáveis. A

própria ciência recorre ao método da discussão e do

voto, embora sem claro domínio de seu mecanismo e

utilizando-o de maneira fortemente tendenciosa. E a

racionalidade de nossas crenças se verá

consideravelmente acentuada.” Ibid. Pag. 466

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- Adeus à razão

A razão, segundo Feyerabend, é o tipo de coisa

que restringe a liberdade do ser humano,

liberdade de recorrer ao seu viés pluralista, de

relacionar as contradições que reinam dentro de

si e se manifestam em seu ser imediato e

presentificado, pois que esta limita as

possibilidades de interação com o mundo e com

o conhecimento em um cerco de fatos, tornando

monótona e simplista a visão de mundo do ser

humano.

As conquistas cientificas, por mais pautadas na

razão que elas pretendam ser, como visto nos

pontos anteriores, são conseguidas por intermédio

de:

“meios irracionais, como a propaganda, a emoção, as

hipóteses ad hoc e os preconceitos de todas as

espécies. Tornam-se necessários esses ‘meios

irracionais’ para dar apoio àquilo que não passa de fé

cega, até que disponhamos das ciências auxiliares, de

fatos, de argumentos que transformam a fé em

‘conhecimento’ bem fundado.”

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Se admitirmos que esses processos irracionais ,

acontecem e sempre aconteceram em nosso meio

cientifico, não precisaríamos mais do que tomar

consciência da importância da relação da razão

com a sem-razão e pratica-la com mais

frequência, ou ao menos aceita-la em nosso meio

como forma de superação e evolução. Ora, assim

como as interpretações naturais são manifestadas

a partir de suas interpretações correlacionadas e

contraditórias, também a razão é manifestada e

correlacionada a partir da interação com a sem-

razão

Se o entendimento do que é a irracionalidade for

concebido como entendimento contrario ao que é

tido como razão atual, razão vigente, então

poderemos ver a contradição, pois todos os outros

momentos da ciência foram sem-razão, mesmo os

segmentos da ciencia atual seriam contra o

conhecimento vigente e a maioria das outras

tradições também (possibilitando a perpetuação do

processo colonizador).

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Feyerabend desbanca muitos lógicos positivistas ao

descrever a realidade irracional da ciência

endeusada. O engrandecimento da ciência depende

do embate de razão e sem-razão. A sem-razão só

pode ser concebida em relação com uma tradição

que tem sua razão diversa da primeira, pois que

não se pode taxar uma teoria de sem-razão sem ter

o conhecimento de outra. A sem-razão se manifesta

como momento da razão, e vice versa

Conclusão

O anarquismo teorético é uma interessante solução

para alguns problemas encontrados na

epistemologia e filosofia da ciência. Sua validade se

encontra de maneira exposta na narrativa da historia

que afirma sua presença em todos os momentos da

ciência, mesmo esta não aceitando isso, nesses

termos. O lema ‘tudo-vale’, que se refere aos

métodos para alcançar o conhecimento, representa

na filosofia de Feyerabend a liberdade do ser

humano sendo respeitada e efetivada, representa

uma ruptura com a estrutura tirânica de sujeição de

outros saberes. É um afirmativo dos saberes.

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A relatividade de Feyerabend afirma-se na

humanidade, pluralista como é, e revela tanto a

incomensurabilidade de visões especificas da

realidade presente na gama de interpretações da

realidade do ser humano (o que exige um

cuidado muito maior na analise de diferentes

culturas e um perspectivismo rigoroso), quanto a

presença da sem-razão, dada a relatividade da

razão, em todas as interações com o mundo.

A ciência, instituição altamente dogmática, não se

exime da razão como unidade e expressa em si um

totalitarismo sufocante. Tomando como base as

considerações passadas desembocamos na

necessidade de separar essa ciência do Estado, para

que ela [a ciência] tenha a sua liberdade de

existência, mas outros saberes também,

concomitantemente; “tal separação será, talvez, a

única forma de alcançarmos a humanidade de que

somos capazes, mas que jamais concretizamos.”

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