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QUIXADÁ-CEARÁ
2022
FRANCISCO ERIK WASHINGTON MARQUES DA SILVA
QUIXADÁ-CEARÁ
2022
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Sistema de Bibliotecas
BANCA EXAMINADORA
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Prof. Dra. Ana Maria Pereira Lima (Membro Interno)
Universidade Estadual do Ceará (UECE/MIHL)
AGRADECIMENTOS
Neste momento, no final deste ciclo, gostaria de dedicar e agradecer, primeiramente, à minha
mãe, Eurilêda Gomes Marques, quem sonhou este sonho comigo desde o início. Infelizmente
ela não pôde estar presente neste plano para ver esta nossa realização, mas acredito que ela
participou de todo o processo. Dedico ao meu pai, Francisco Evando, que sempre esteve ao
meu lado e continuou, apesar da distância. Ao meu irmão, Leandro Marques, que sempre me
apoiou nas horas a fio de conversa. Às minhas tias-mães, Silvany Pereira e Eurani Gomes,
que sempre cuidaram de mim e em todos os momentos difíceis estiveram comigo. Ao meu
avô, seu Tarcísio, quem todas as vezes em que eu voltava para o interior me tratava como seu
filho e me dava forças para continuar nesta caminhada. Este infelizmente não está mais entre
nós, mas dedico-lhe e o agradeço pela força que é na minha vida. À minha família que se
encontra no Rio de Janeiro: tio, tias, primos e minha avó, que sempre me apoiaram e me
ajudaram de todos os modos que puderam. À minha melhor amiga e esposa, Conceição
Soares, com quem dividi todos os momentos de sofrimento, angústias e felicidades na escrita
desta dissertação. Que me ajudou, brigou e orientou. Obrigado por ser minha companheira na
dificuldade e no sorriso. À minha cunhada, Michele Soares, que me aturou em todos os
momentos e, como uma família, me ajudou a enfrentar as dúvidas e fraquezas que tive no
processo. Ao meu melhor amigo e pai de santo, Ryan Alef, que me acolheu, cuidou de mim,
brigou e orientou. Obrigado por me aturar em horas de conversa sobre a academia e em tudo
que me custou e como me orientou para continuar nesta jornada. Obrigado por me mostrar
que a espiritualidade é a base fundamental de nossa existência. Ao meu orientador, prof. Dr.
Marco Bonfim, que dedicou horas para me explicar o que é a ADC e a sua paciência para me
orientar. Obrigado pela sua orientação, que, de fato, me orientou.
Ao meu co-orientador, prof. Dr. Luís Tomás Domingos (UNILAB), que me ajudou muito nas
reflexões filosóficas e no aparato filosófico do texto.
À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de
mestrado que possibilitou recursos e investimentos na minha caminhada acadêmica.
Por fim, agradeço a Oxalá, aos meus guias e à espiritualidade, que sempre me ajudaram e
escutaram em todo o processo de escrita. Sem ela nada disso seria possível.
Exu tu que és o senhor dos caminhos da
libertação do teu povo sabes daqueles que
empunharam teus ferros em brasa contra a
injustiça e a opressão.
(Abdias do Nascimento).
RESUMO
This master’s dissertation, inserted in the interdisciplinary field composed of Philosophy and
Critical Discourse Analysis, aims to analyze the manifestation of epistemic racism in the work
Metaphysics written by Aristotle through the ways in which Aristotelian philosophical
practice produces the discursive silencing of Kemetic philosophy. For this purpose, on the
one hand, we are based on the philosophy produced by black philosophers (NOGUERA,
2014; JAMES, 1954; CARNEIRO,2005; OBENGA, 2004) and, on the other hand, on the
dialectical-rational approach of Critical Discourse Analysis (FAIRCLOUGH, 2001; 2003)
combining it with the concepts of discursive silencing (ORLANDI, 1992) and the ways of
ideology operationalization (THOMPSON, 2011). In terms of methodology the research is
qualitative, of an interpretive-documentary type, using the category of representational
meaning through the notions of interdiscursivity and intertextuality to analyze excerpts from
the work Metaphysics. In the analysis, we show how Aristotle represents philosophy in his
discourse, as well as his definition of knowledge elaborate a discursive silencing of other
philosophical possibilities. This silencing occurs through the use of strategies of
rationalization, universalization and narrativization (THOMPSON, 2011), establishing a way
of representing Aristotle represents philosophical discourse, thus grounding a way of
regarding Kemetic knowledge as not having legitimacy. We also conclude that the
relationship between epistemic racism and discursive silencing causes the silencing of black
subjects and their history as producers of knowledge, thus reverberating in socio-racial
consequences that we observe today.
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 1
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 84
1
1 INTRODUÇÃO
Minha paixão pela filosofia começa muito cedo, desde o ensino médio, quando eu
já me interessava por aquelas reflexões avulsas que eu pouco entendia. As aulas eram curtas e
o professor sequer era formado na área, mas o que passei a viver a partir das indagações - os
temas, a escuta pela primeira vez da frase socrática “Só sei que nada sei” e as horas refletindo
sobre esta frase tão simples que diz muita coisa sobre o conhecimento, ou seja, uma questão
de sempre conhecer os limites de nossa capacidade de conhecer - me instigaram. Tudo isso
fez parte do ímpeto de um jovem negro do interior do Ceará por procurar, por mais que não
fosse convencional, visto que o comum era querer fazer outro curso, a filosofia e de ser
professor de Filosofia.
Deste modo, pensar a construção da filosofia sobre outras perspectivas que não a
eurocêntrica coloca-nos em outros patamares de discussão sobre produção filosófica e até
mesmo sobre o que seria a própria filosofia. Mexer com a filosofia é mexer com o “bichinho
de pelúcia do Ocidente”1, visto que é algo quase intocável em termos de mudar o centro da
produção filosófica em que há bastante tempo a Europa vem se colocando enquanto tal, para
outro centro de produção, no caso a África e a América do Sul. Tais ponderações me
perseguiram em quase todos os meus quatro anos de graduação em Filosofia.
Em uma aula de Filosofia me deparei com um professor que comentou que seria
impossível haver filosofia africana, pois os negros nunca produziram filosofia alguma. No
mesmo instante pensei o que estava fazendo naquele curso, já que sou negro e estou
1
Título dado a entrevista concedida a Revista O Globo em fevereiro de 2015 pelo prof. Dr. Renato Noguera, que
expõe a problematização do nascimento da filosofia na Grécia. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/renato-noguera-professor-pensador-filosofia-o-bichi
nho-de-pelucia-do-ocidente-15415321.
2
estudando justamente o que aquele professor disse que eu nunca conseguiria produzir. Fiquei
em vários dilemas até conhecer, por meio da exímia professora do curso de Pedagogia da
Universidade Federal do Ceará, Dra. Sandra Petit, na disciplina de Cosmovisão Africana, a
Filosofia Africana. Nessa caminhada, acabei conhecendo a obra O Legado Roubado:
Filosofia Grega é Filosofia Egípcia Roubada (1954) do filósofo negro e estadunidense
George James.
indagações e construir relações que permanecerão para além da pós. Dentro do grupo me foi
propiciado, além da produção do conhecimento, a solidariedade e a responsabilidade coletiva
de construir um grupo tão sério como o GEDIRG, que, mesmo em tempos de pandemia2,
produzimos bastante.
Deste modo, o MIHL se tornou o lugar onde consegui encaixar minha pesquisa e
estudos, mesmo diante da pandemia que impossibilitou a experiência presencial do mestrado.
Foram enriquecedoras as experiências e os debates/reflexões nas disciplinas sempre muito
bem alinhadas a ajudar nas pesquisas dos mestrandos. Demorou um pouco para me encontrar
na pesquisa que começou de uma forma e está “finalizando” de um modo totalmente diferente
do que havia pensado, no sentido de método, objeto e objetivos, mas não em seu foco
principal: a denúncia do racismo epistêmico que é fundamentado desde os tempos antigos da
filosofia, ou melhor, a denúncia do racismo antinegro, por meio da via do conhecimento
dentro da filosofia.
Através dessas problemáticas, esta pesquisa teve como objetivo geral: analisar
discursivamente a manifestação do racismo epistêmico na obra Metafísica escrita por
Aristóteles por meio das maneiras como a prática filosófica aristotélica produz um
silenciamento discursivo da filosofia kemética. Para o alcance do objetivo geral, foram
determinados os seguintes objetivos específicos: a) identificar, no discurso filosófico
aristotélico, qual (quais) o (s) modo (s) de operação da ideologia bem como sua(s)
estratégia(s) de funcionamento no que se refere às formas de silenciar a filosofia africana
enquanto um saber filosófico legítimo; b) analisar, no discurso filosófico aristotélico, os
modos de representação da filosofia a partir do significado representacional postulado pela
análise de discurso crítica; c) Demonstrar a importância da perspectiva interdisciplinar para a
desnaturalização do discurso que reproduz o racismo epistêmico relativo à filosofia africana.
2
A pandemia do COVID-19, também conhecida como pandemia de coronavírus, foi (é) uma pandemia causada
pela doença do vírus conhecido como Cronavírus e que teve início em 2019. O coronavírus é uma doença que
ataca diretamente o sistema respiratório.
4
3
O uso da primeira pessoa do plural se deu neste momento do texto e continuará ao longo da dissertação pelo
fato que ela foi pensada e articulada entre duas mentes e até mais. Por isso, a maioria do texto, tirando os
primeiros parágrafos desta introdução, está escrito na primeira pessoa do plural, pois não foi apenas “eu” que
pensei e articulei tudo aqui contido, mas “nós”, eu, meu orientador, minha família, minha comunidade, etc.
Entendemos o texto não apenas como um objeto individual, mas coletivo, como demonstraremos várias vezes
nesta dissertação.
5
Suas conclusões são que, por meio da análise do discurso de Arendt, as estratégias
linguístico-discursivas evidenciam uma contradição entre a verdade racional, fruto da razão e
da própria construção do saber e a verdade factual, sujeita à disputa política por força da
opinião, sendo essa a que melhor contrapõe à condição de pós-verdade e ao tematizar a
relação da verdade com a pós-verdade, em uma perspectiva discursiva, refletiram também
sobre o modo como os enunciados enunciam a realidade e como, em uma era de pós-verdade,
muitos enunciados visam a subverter a verdade.
Nesta seção, apresentamos uma das partes da fundamentação teórica que alicerça
esta dissertação, isto é, a Filosofia Africana. A outra parte seguirá depois desta enquanto uma
seção sobre Análise do Discurso Crítica. Iniciaremos explanando sobre a filosofia africana,
compreendendo assim seus desenvolvimentos e possibilidades epistemológicas, Okura
(2002), Outlaw Jr. (2004) e Towa (2015) são essenciais no início deste capítulo, além de
James (1954), Obenga (2004) e Diop (1974) que são utilizados para fundamentar a
problematização da origem da filosofia na Grécia. Neste capítulo, também discutimos sobre a
filosofia africana, elaborando um levantamento teórico da produção brasileira sobre o assunto.
Depois, tratamos sobre a filosofia grega segundo Aristóteles e, por fim, expomos os conceitos
de epistemicídio com Sueli Carneiro (2005) e de racismo epistêmico de acordo com Noguera
(2014), Grosfoguel (2011; 2016) e Ocoró (2020; 2021).
Para se ter uma ideia da natureza da filosofia, é necessário partir das obras ditas
filosóficas, interrogá-las e interrogar também as disciplinas que têm o nome de
filosofia. Ora, essas obras são europeias, esse nome é europeu e é, antes de mais
nada, nas universidades europeias que a disciplina chamada filosofia é ensinada há
alguns séculos. Fazer essas constatações não significa afirmar que a filosofia é
exclusivamente europeia, significa, menos ainda, se pronunciar sobre a oportunidade
de adotar ou de rejeitar a filosofia europeia. É simplesmente procurar descobrir a
realidade designada pela palavra ‘filosofia'. Somente quando a realidade que os
europeus designam pela palavra "filosofia” for bem apreendida é que se tornará
possível pronunciar-se sobre sua extensão e sobre seu valor (TOWA, 2015, p. 26)
Por que não poderia vir do continente africano a origem desta palavra? Ainda na
guisa de Asante (2004), a palavra “filosofia”, como ela chegou até nós a partir do grego
"Philo", que significa amigo ou amante, e "Sophia", que significa sabedoria ou sábio. Deste
modo, o filósofo é chamado de "amante da sabedoria". A etimologia da palavra "Sophia" está
evidente na língua africana Mdu Ntr, a língua do antigo Egito, onde a palavra "Seba", que
significa "o sábio", aparece pela primeira vez em 2052 a.C., no túmulo de Antef I, muito antes
da existência da Grécia ou do grego. A palavra tornou-se "Sebo” em copta e "Sophia" em
grego.
Pensando por esses termos, nós mudamos todo o centro da produção filosófica e
até mesmo da compreensão de filosofia. Ora, não é à toa que Theóphile Obenga (2004)
discorre que a filosofia africana precisa ser entendida como um fato histórico e que deve ser
compreendida por meio de recorte histórico. Neste caso, a origem, evolução e
desenvolvimento da filosofia Africana seguem os fluxos e correntes da história Africana. De
acordo com Obenga (2004), a filosofia africana não é um problema contemporâneo, mas já se
localizava principalmente no vale do Nilo, isto é, em Kemet ou antigo Egito, e em Kush
(Napata-Meroe). Deste modo, a filosofia floresceu no Egito de aproximadamente 3400 a.E.C.
a 343 a.E.C. e em Kush (também conhecida como Núbia ou Etiópia pelos gregos) de
aproximadamente de 1000 a.E.C. à 625 a.E.C.
Seguindo a linha de Obenga (2004) e Asante (2004), Yoporeka Somet (2016), que
Tales não seguiu lições de nenhum mestre se não no Egito onde ele frequentou os templos e
9
aprendeu dos egípcios a geometria, filosofia, astronomia, e, como sabemos, ele é dito como o
primeiro filósofo grego ao afirmar que a água é a origem de tudo. Além de Tales e Pitágoras,
outros precursores gregos no pensamento e nas ciências efetuaram a viagem do Egito ou, ao
menos, foram alimentados pelos conhecimentos egípcios.
Henry Odera Oruka foi um dos primeiros filósofos africanos que tentou
sistematizar a filosofia africana, em que até hoje seu modelo é utilizado como uma forma de
caracterizar as áreas de discussão da filosofia africana, ou melhor, as tendências da filosofia
africana. Em seu texto intitulado “Quatro tendências da atual filosofia africana” (2002), o
filósofo identifica que existem duas formas de definir a filosofia africana;
discorrem sobre uma filosofia africana própria, mas que em nenhum momento é
exclusivamente mística, extra-racionalista ou basicamente intuitiva.
Entretanto, além desses dois sentidos, segundo Okura (2002), existe um terceiro
sentido, que seria a articulação dos dois, mas que ainda não é muito claro e coerente. No
entanto, mesmo diante dessa miríade de significados e definições da filosofia africana,
existem quatro tendências que muito a definem: etnofilosofia, filosofia da sagacidade,
filosofia nacionalista-ideológica e filosofia profissional.
Deste modo, as obras escritas por tais antropólogos, como P. Tempels, por
exemplo, seriam tratados de antropologia e não de filosofia, além de nem serem textos
escritos por africanos, mas por europeus. Mas como não se pode excluir de algum modo esta
contribuição – ou não –, é melhor caracterizá-la de alguma forma. No entanto, a etnofilosofia
provocou críticas de círculos filosóficos rigorosos e produziu debates sobre a questão da
"filosofia africana". Na medida em que tais críticas e debates são fundamentais para inspirar e
11
Para Okura (2002), diante dessas duas questões, a filosofia da sagacidade é apenas
o pensamento crítico e reflexivo de tais sábios. Difere fundamentalmente da etnofilosofia, na
medida em que é individualista e dialética. É um pensamento ou reflexão de vários
pensadores individuais conhecidos ou nomeados, não uma filosofia popular e, ao contrário do
último, é rigoroso e filosófico no sentido estrito.
ela não assume ou implica que o pensamento ou a filosofia europeia são radicalmente
diferentes ou irrelevantes para o pensamento africano e, em segundo lugar, os autores não dão
a impressão de que a filosofia que eles estão expondo não é deles, mas de toda a comunidade
ou do continente africanos.
Partindo disso, uma das críticas feita contra a filosofia profissional é que ela é
ocidental ou europeia e não africana. Argumenta-se que um aluno moderno ou um professor
de filosofia na África, por razões históricas, foi educado na lógica e filosofia ocidentais e não
aprendeu praticamente nada sobre a filosofia africana (OKURA, 2002). Deste modo, isso não
quer dizer que pelo fato de ser africano e ter estudado filosofia, necessariamente será um
adepto da filosofia africana.
Okura (2002) demonstra que existiram duas respostas bastante diferentes a essa
crítica. A primeira vem dos filósofos que tentam argumentar e oferecer provas históricas de
que o pensamento filosófico ocidental, tal como o conhecemos hoje, se originou do antigo
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Egito, tais como Diop (1974), Asante (2004; 2006), Obenga (2004), e ainda que os
pensamentos do antigo Egito são a herança dos negros africanos. A segunda resposta vem
daqueles que argumentam que o conhecimento e os princípios intelectuais nunca são um
monopólio de qualquer raça ou cultura. É uma lei histórica do desenvolvimento intelectual
desde a qual as contribuições intelectuais em uma dada cultura são apropriadas e cultivadas
em outras culturas.
Mas será mesmo que foi apenas um empréstimo? O pagamento desse empréstimo
ocorreu em algum momento? Sabemos, se ao lermos qualquer filósofo grego da antiguidade,
que nenhum tomará ou exemplificará os sacerdotes egípcios como sendo os precursores de
suas elucubrações filosóficas. Diante dessas quatro tendências nomeadas por Odera Okura
(2002), que são de extrema importância sistemática, esta dissertação se enquadra na quarta
tendência, por ser uma pesquisa de cunho acadêmico e profissional e tem como proposta dar
continuidade às discussões sobre a origem da filosofia no Egito iniciadas por Diop (1974) e
principalmente pelo filósofo estadunidense George James (1954), que na época não pensavam
em categorizar uma filosofia africana, mas provar que a própria filosofia é em sua realidade
histórica e cultural: africana.
acadêmicos/as do mundo todo. Observamos em Giovanni Reale (1990), um dos autores mais
consagrados sobre história da filosofia, que a filosofia “seja como termo ou como conceito é
considerada pela quase totalidade dos estudiosos como uma criação própria do gênio grego”
(REALE, 1990, p.11). Até hoje as obras de Giovanni Reale, assim como suas teses são
utilizadas sem nenhum questionamento ou reflexão, porque apenas se constatou que a
superioridade dos gregos em relação aos outros povos do mundo está em ter concebido a
filosofia (REALE, 1990).
Ele reconhece que os egípcios formularam alguns conhecimentos matemático-
geométricos e que por causa disso desenvolveram uma razão, mas apenas com os gregos esses
cálculos atingiram um alto grau e foram sistematizados. Tais argumentos perduram nos dias
atuais dentro das universidades e das escolas e são poucos os que questionam ou filosofam
sobre o assunto. Diante dessa realidade, que não é nova, pois desde 1954, tanto Cheik Anta
Diop com sua obra a A Unidade Cultural da África Negra e George James com sua obra O
Legado Roubado, ambas lançadas no mesmo ano, discorrem sobre o fato de o Egito,
civilização ovacionada e glorificada pelo Ocidente, ser uma civilização exclusivamente negra
e que é base epistemológica de toda a ciência ocidental. Mesmo tal asserção sendo oriunda
desde Marcus Garvey, que teve uma obra organizada por sua esposa, Emy Garvey, em 1924,
intitulada Philosophy and Opinions of Marcus Garvey (Filosofia e Opiniões de Marcus
Garvey), na qual o pensador expõe que:
Mas, quando passamos a considerar a história do homem, não era o negro uma
potência, não era ele grande uma vez? Sim, estudantes honestos de história podem se
lembrar do dia em que Egito, Etiópia e Timbuktu elevavam-se em suas civilizações,
elevavam-se acima da Europa, elevavam-se acima da Ásia. Quando a Europa foi
habitada por uma raça de canibais, uma raça de selvagens, homens nus, pagãos e
pagãos, a África era povoado por uma raça de negros cultos, mestres em arte, ciência
e literatura; homens que eram cultos e refinados; homens que, dizia-se, eram como
os deuses (GARVEY, 2009, p. 48, tradução nossa, grifo nosso).
Não iremos entrar na discussão de quem iniciou tais reflexões sobre o povo negro,
mas sim mostrar como tal debate já era latente desde o início do século XX. O que Garvey
discorre é a tese fundamental de Diop desenvolvida em seu livro que causou tanta polêmica
como os outros, A Origem Africana da Civilização (1974), na qual o intelectual apresenta que
“Ocidente não tem sido calmo o suficiente e objetivo o suficiente para nos ensinar
corretamente a nossa história sem falsificações grosseiras” (DIO, 1974, p,16). Por esse
motivo, a tese principal e que nunca deve ser deixada de lado é a de que o Antigo Egito foi
uma civilização Negra. A história da África Preta permanecerá suspensa no ar e não pode ser
15
escrita corretamente até que historiadores Africanos se atrevam a conectá-la com a história do
Egito” (DIOP, 1974, p. 16).
Além disso, Diop (1974) defende que o pesquisador africano que evita o problema
do Egito não é nem modesto nem objetivo, ele é ignorante, covarde, e neurótico. À guisa de
Diop, podemos afirmar o mesmo sobre o filósofo dito africano, que evitar o problema do
Egito com relação a história da filosofia é um grande ato de covardia e por esse motivo não
iremos evitar este problema, mas adentrarmos.
Podemos afirmar tal postura, pois o próprio intelectual nos adverte que em vez de
apresentar-se a história como um devedor falido, o mundo dos egípcios é o próprio iniciador
da civilização "ocidental" ostentada diante de nossos olhos hoje:
Em outras palavras, a dita filosofia grega tem suas raízes no Egito, bem como a
própria espiritualidade ocidental. Como ignorar este fato? Como silenciar estes dados? De
todo modo, o objetivo central de Cheik Anta Diop, é restaurar a consciência histórica dos
povos africanos (DIOP, 1974). Para começar com os próprios “egípcios”, já que não era este o
nome pelo qual os habitantes do nilo se identificavam. Tal denominação tem raiz na Grécia, é
como que um nome grego, nação que se civilizou e se unificou milênios depois da civilização
do Nilo, e que detêm o poder de nomear povos muito mais antigos que os seus. Os povos do
nilo chamavam sua terra de Kemit, isto é, terra preta e sempre que os Egípcios usam o termo
"pretos" (khem), é para designar a si mesmos ou seu país, Kemit, terra dos Pretos (DIOP,
1974).
Os Keméticos, então, são a base civilizacional do mundo e é impossível enfatizar
tudo o que o mundo, particularmente o mundo Helênico, deveu e deve aos keméticos. Os
Gregos apenas continuaram e desenvolveram, por vezes parcialmente, o que os Egípcios
tinham inventado. De acordo com Diop (1974), em virtude de suas tendências materialistas,
os Gregos despojaram essas invenções da couraça religiosa, idealista, em que os Egípcios lhes
tinham envolvido e isso não é de modo integral, pois muitos dos filósofos gregos carregam
consigo ideias religiosas, como Pitágoras e Parmênides, por exemplo.
16
o ensino científico, filosófico, era dispensado por leigos que se distinguiam das
pessoas comuns apenas pelo seu nível intelectual ou status social. Nenhum halo
santo os envolvia. Em "Ísis e Osíris", Plutarco relatou que, de acordo com o
testemunho de todos os estudiosos e filósofos Gregos ensinados pelos Egípcios,
estes últimos eram cuidadosos sobre secularizar seus conhecimentos. Sólon, Tales+,
Platão, Licurgo, Pitágoras encontraram dificuldade antes de serem aceitos como
alunos pelos Egípcios. Ainda de acordo com Plutarco, os Egípcios preferiram
Pitágoras por causa de seu temperamento místico. Reciprocamente, Pitágoras foi um
dos Gregos que mais reverenciou os Egípcios.
Observamos então que o Egito era de fato a terra clássica onde dois terços dos
estudiosos gregos foram para lá estudar. Na realidade, pode-se dizer que, durante a época
Helenística, Alexandria era o centro intelectual do mundo. Reunidos lá, estavam todos os
estudiosos gregos de quem falamos hoje. O fato de que eles foram treinados fora da Grécia,
no Egito, nunca pode ser subestimado e nem silenciado, pois suas teorias têm origem em seus
aprendizados com os sacerdotes keméticos.
No entanto, fica uma questão: uma vez que a origem Egípcia da civilização e os
extensivos empréstimos tomados pelos Gregos a partir dos Egípcios são historicamente
evidentes, por que a maioria dos acadêmicos salientam apenas o papel desempenhado pela
Grécia, enquanto subestimam aquele do Egito? Segundo Cheik Anta Diop, (1974), a razão
para esta atitude pode ser detectada meramente recordando-se a raiz da questão, ou seja, como
o Egito é um país negro, com uma civilização criada por pessoas negras, qualquer tese
tendendo a provar o contrário não teria futuro. Os protagonistas de tais teorias são conscientes
disso. Por isso, é mais sábio e mais seguro retirar o Egito, de forma simples e mais
discretamente, de todas as suas criações em favor de uma nação realmente branca, ou seja, os
helenos.
Toda essa problematização levantada por Diop (1974) e a preocupação para que,
principalmente, os negros africanos tenham consciência de seu status histórico e contribuição
para a civilização, não foi apenas uma busca por reconhecimento, mas comprovar, a partir dos
próprios métodos dos povos ocidentais, a prova de que a maior civilização antiga que já
existiu era negra.
Tal caminho não foi percorrido apenas por ele, que é um dos mais lidos dentro da
academia ocidental e que ainda não tem a sua grandiosidade reconhecida como deveria ter.
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George James, filósofo negro dos Estados Unidos, foi o primeiro a pontuar não só a origem da
civilização africana no Egito, mas também da própria filosofia.
James é quem insere de forma detalhada e específica, a discussão sobre a origem
africana da filosofia e a consequência social da tese: “a filosofia é grega”, pois negar que os
egípcios produziram filosofia é negar a humanidade dos negros africanos e essa ideia seria
uma das grandes influenciadoras do racismo ocidental (JAMES, 1954).
Deste modo, a obra de James, Legado Roubado: Os Gregos Não Foram Os
Autores da Filosofia Grega, Mas as Pessoas do Norte de África, Comumente Chamados de
Egípcios de 1954 é, para este trabalho, uma das principais bases teóricas. A ideia de roubo
trazida por James é intrigante e pertinente, já que o autor se preocupa em expor como
conceitos/ideias egípcios foram roubados pelos gregos nas suas viagens ao Egito e em
nenhum momento houve o reconhecimento destas, ou seja, os gregos utilizaram essas ideias e
não creditaram nada aos egípcios, fazendo-nos acreditar que todos os conceitos filosóficos
utilizados por eles brotaram de suas cabeças.
A ideia de roubo ainda é infundada, no entanto, instiga-nos considerar a
possibilidade deste acontecimento como sendo uma das maneiras de praticar o racismo. De
fato, James promove uma argumentação incisiva ao afirmar que nunca houve filosofia grega;
“O termo filosofia Grega, para começar, é um equívoco, pois não há tal filosofia em
existência” (JAMES, 1954, p.2). No entanto, há inúmeros registros de filósofos ocidentais que
defenderam ideias extremamente absurdas, tais como: racismo, nazismo, machismo, entre
outras e mesmo assim não foram descreditados como James foi.
Há uma diferença de James para autores de sua época que estavam reivindicando
um Egito Negro e que assentaram as bases da civilização no Egito, George James teve a
audácia de inferir que os gregos usurparam e plagiaram a filosofia egípcia. Essa audácia, de
forma nenhuma foi aceita pela academia, gerando um esquecimento e a negação de sua obra,
ainda mais latente do que de outros intelectuais, como Diop (1954; 1974) e Obenga (2004).
Assim como Cheik Anta Diop (1974), o filósofo acreditava que deveria haver
uma mudança de mentalidade do povo negro, principalmente quando compreendessem que a
filosofia era oriunda do Egito e não da Grécia, assim ocorreria uma transformação do modo
como elas se veem e foram incutidas a verem, ou seja, como inferiores. Colocaria assim, os
povos negros em igualdade com todos os outros grandes povos do mundo que construíram
grandes civilizações. Em suas palavras: “com esta mudança na mentalidade do povo Preto e
Branco, grandes mudanças também são esperadas em suas respectivas atitudes em relação ao
outro, e na sociedade como um todo” (JAMES, 1954, p. 232).
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Outro ponto de interesse considerável para ser contabilizado foi a atitude do governo
Ateniense para esta então chamada Filosofia Grega, a qual era considerada de
origem estrangeira e tratada em conformidade. Apenas um breve estudo da história é
necessário mostrar que os filósofos Gregos eram cidadãos indesejáveis, que durante
todo o período de suas investigações foram vítimas de perseguição implacável, nas
mãos do governo Ateniense. Anaxágoras foi preso e exilado; Sócrates foi executado;
Platão foi vendido como escravo e Aristóteles foi indiciado e exilado; enquanto o
mais antigo de todos, Pitágoras, foi expulso de Crotona na Itália (JAMES, 1954,
p.16).
Os filósofos que são hoje em dia consagrados pela filosofia ocidental, eram
pessoas indesejáveis para o seu próprio estado, pois ensinavam ou transmitiam ensinamentos
estranhos, inóspitos, com deuses estrangeiros e que corrompiam a juventude. Além desse fato,
há outro que denota também certa curiosidade, pois, basicamente, toda a filosofia grega é a
continuação das discussões iniciadas por Pitágoras, filósofo que passou anos no Egito e foi
educado pelos sacerdotes egípcios, pois encontramos incluídas no sistema Pitagórico as
doutrinas dos opostos (masculino e feminino; impar e par), harmonia (equilíbrio entre os
opostos) e a própria mente como uma força cosmológica, além da imortalidade da alma, ideia
fortemente defendida por Platão.
Um exemplo claro da concepção dos opostos é demonstrada pela história da
criação Egípcia, na qual a Ordem saiu do Caos e que foi representada por quatro pares de
opostos ou seja, Deuses do masculinos e femininos; (a) Nun e Naunet: matéria primordial e
Espaço; (b) Huk e Hauket: Ilimitável e o Ilimitado; (c) Huh e Hauhet: Escuridão e
Obscuridade. Assim, é evidente que a doutrina dos opostos era uma filosofia básica dos
Egípcios, estando conectada não só com os Deuses de seus dramas de Mistério, mas com a
sua Cosmologia, e uma vez que esta conexão faz da doutrina uma das primeiras no
desenvolvimento do pensamento Egípcio, que antecede o reinado de Menes, e significa que os
egípcios estavam familiarizados com ela antes de 3000 A.C (JAMES, 1954).
Desta maneira, James, sendo contemporâneo de Diop e não tendo muita ligação
ou qualquer relação acadêmica ou pessoal com o intelectual chega a conclusões e urgências
semelhantes ao pensador senegalês e vice-versa. Cheik Anta Diop e George James foram os
primeiros a se atreverem em escrever obras inteiras argumentando sobre o fato de o Egito ser
uma civilização negra e, além disso, de ser a base de toda a civilização ocidental, seja
intelectual ou cultural. Apresentar que os egípcios são negros é admitir que os habitantes do
19
Para finalizarmos este tópico e nosso aporte teórico quanto à filosofia africana e
adentrarmos na demonstração sobre seu estudo no Brasil, um caso necessário, é relevante
apresentarmos uma das obras que mais influenciou a filosofia africana no Brasil. Estamos nos
referindo à obra pouca difundida, de José Nunes Carreira, Filosofia Antes dos Gregos (1994).
Esta obra é um amálgama de discussões e obras já consagradas no estudo sobre a história e
filosofia no Egito antigo, principalmente, aquelas já supracitadas aqui.
José Nunes Carreira não é nem africano e nem muito menos negro. É branco e
português, mas muito estudioso da história do Egito e de seus sistemas de pensamento e que
muito contribuiu para a filosofia africana com sua obra polêmica. É polêmica, pois já inicia
defendendo que “ninguém como os sábios da Antiguidade Oriental pode arrogar-se do papel e
título de precursores da filosofia grega” (CARREIRA, 1994, p.11). Nesta breve citação, já
vemos Nunes Carreira concordando com George James (1954), que argumentava que a
filosofia grega não era grega. O interessante é que o pensador português nem mesmo cita o
filósofo estadunidense.
Para Carreira (1994), a filosofia egípcia se caracteriza pelos seus escritos
sapienciais e é o que desde os Gregos se convencionou chamar “filosofia”. Deixando a
definição rigorosa aos profissionais para os acadêmicos, o pensador espera compreensão para
sua definição;
4
Ver o artigo Estudos filosóficos sobre o negro no Brasil: Um levantamento de teses e dissertações em temáticas
negras nos programas de pós-graduação da área de filosofia do autor Fernando de Sá Moreira.
5
As ações afirmativas, de acordo com Arabela Oliven, “referem-se a um conjunto de políticas públicas para
proteger minorias e grupos que, em uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado”
(OLIVEN, 2007, p.30). As ações afirmativas têm como principal objetivo remover barreiras, formais e
informais, que impeçam o acesso dos grupos oprimidos ao mercado de trabalho e universidades. No Brasil, as
Ações Afirmativas ganham mais repercussão com e após a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em 2001, em Durban, África do Sul, em que
o Brasil se posiciona a favor de políticas públicas que venham a favorecer grupos historicamente discriminados.
Uma das ações afirmativas é a criação de cotas raciais para entrada de negras/negros e indígenas em
universidades públicas, que depois de muitos debates acalorados foi sancionada em 2012 com o número de Lei
12.711. A lei não entrou apenas como cota racial, mas também como cota social e definiu que as Instituições de
Ensino Superior vinculadas ao Ministério da Educação e as instituições federais de ensino técnico de nível médio
devem reservar 50% de suas vagas para as cotas.
23
filosofia centrada no povo africano, como Abdias do Nascimento, Molefi Kete Asante,
Marimba Ani e pelos trabalhos de Cheikh Anta Diop, para realizar uma crítica afrocentrada
do pensamento educacional de Rui Barbosa, José Veríssimo, Fernando de Azevedo, Anísio
Teixeira, Paulo Freire. Não é exatamente um trabalho de filosofia africana, mas contribui para
a discussão sobre a perspectiva afrocêntrica da filosofia africana no Brasil.
Diferente da tese de Benedicto (2016), a tese de doutorado de Luis Thiago Freire
Dantas, é um dos trabalhos mais recentes sobre filosofia africana, intitula-se Filosofia desde
África: perspectivas decoloniais (2018). Uma tese que resume quase todas discussões já feitas
sobre a filosofia africana e que se enquadra enquanto um aporte de história da filosofia
africana feita no Brasil, tem como objetivo apresentar a filosofia africana e como ela propicia
a descolonização epistêmica da atividade filosófica. A principal questão é: Como a
descolonização seria um exercício inevitável para estabelecer uma filosofia desde África? Sua
tese, ainda pouco lida, é um exercício inevitável para aqueles e aquelas que pretendem
produzir filosofia africana ou adentrar neste caminho. Por isso, nos perguntamos: por que
tanta produção sobre filosofia e educação e pouca sobre história da filosofia, principalmente,
antiga?
Não que estejamos desmerecendo a discussão relacionada à educação, que é
importantíssima, mas nos perguntamos apenas para compreender a ausência dessa discussão
no Brasil comparado a filosofia ocidental, o que torna ainda mais complicada a sua
legitimidade acadêmica, visto a negação da existência de qualquer tipo de filosofia antes dos
gregos.
No Brasil, dispomos de alguns, como a dissertação de Katiuscia Riberio (2014),
que não aprofunda tanto a sua discussão sobre o Kemet, mas que ao propor a problemática
sobre o nascimento da filosofia na Grécia já se torna uma referência relevante. Quem insere a
discussão sobre a filosofia africana antiga ou de modo mais focado (egípcia) é o intelectual
George James, que até mesmo entre os filósofos negros é invisibilizado. Além de Katiuscia, a
dissertação de Ellen Aparecida de Araújo Rosa intitulada Rekhet- a filosofia antes da Grécia:
colonialidade, exercícios e o pensamento filosófico africano na antiguidade (2017), discute,
diferente de Katiuscia (2014), de modo aprofundado as práticas filosóficas-espirituais dos
egípcios antigos e problematiza as perspectivas eurocêntricas sobre o Egito Antigo e a
filosofia e, também nos traz uma apresentação, nunca feita na academia brasileira, do filósofo
egípcio Ptahotep.
A dissertação de Ellen é muito significativa, pois além de ter sido defendida num
programa de pós-graduação em filosofia, discute diretamente conceitos da filosofia egípcia e
25
se propõe a demonstrar como a rekhet era uma atividade filosófica praticada pelos egípcios
anterior ao período helenístico. Traz citações diretas das máximas/instruções de Ptahotep,
fazendo assim, de modo teórico, uma descolonização epistêmica da própria filosofia. Ellen
(2017) é uma das primeiras a fazer um breve resgate da obra de James (1954), mas são apenas
poucas páginas sobre o filósofo.
Ademais dessas dissertações que focalizam a filosofia egípcia antiga, contemos
também a dissertação de Giselle Marques Camara, MAAT: O PRINCÍPIO ORDENADOR DO
COSMO EGÍPCIO Uma reflexão sobre os princípios encerrados pela deusa no Reino Antigo
(2686-2181 a.C.) e no Reino Médio (2055-1650 a.C.) (2011). Citamos a dissertação de Giselle
(2011), pois, mesmo não sendo um trabalho de filosofia, mas da história, elabora um
desenvolvimento histórico-filosófico do conceito de Maat. Um dos conceitos mais
importantes da filosofia egípcia, Maat é “o real”, “a realidade”, ou seja, aquilo que é genuíno
e autêntico, em oposição ao artificial ou contingente. Maat é a realidade como um todo, isto é,
a totalidade de todas as coisas que possuem realidade, existência ou essência. Ela é a pedra
angular da filosofia egípcia (OBENGA, 2004).
O trabalho de Giselle, mesmo não sendo da Filosofia, tem um grande peso
filosófico, visto que centra e desenvolve toda uma problematização do conceito de Maat,
apresentando e o definindo. Além dessas dissertações e teses, os artigos do filósofo Renato
Noguera (2013;2016) que tratam sobre a filosofia antiga em uma perspectiva africana, andam
como as breves discussões que abrem caminho para tais dissertações e teses citadas aqui.
Até aqui, demonstramos uma breve linha da produção de filosofia africana no
Brasil, e como a diáspora, ela se espalha por vários programas de pós-graduação, e isso
porque não estamos citando as que não são acadêmicas, que são extremamente relevantes para
a continuidade desses saberes. Vemos que poucas são as que se direcionam à filosofia antiga e
ainda ínfimas as que citam George James (1954). Para darmos continuidade aos nossos
caminhos, é significativo que transitemos na/sobre a filosofia grega e seu sistematizador, pois
os ditos pré-socráticos e os socráticos, os que viveram antes e na época do filósofo ateniense
Sócrates, não se denominavam filósofos gregos, já que em sua época não o que hoje
entendemos por Grécia era um conglomerado de estados-nação.
Quem realiza a empreitada de sistematizar a dita filosofia helenística ou grega, é o
filósofo Aristóteles, que não era ateniense, mas macedônico e que tenta definir o que seria a
filosofia a partir de sua compreensão. Por isso, para não nos prolongarmos na longa
apresentação da filosofia grega, focaremos apenas em Aristóteles.
26
Toda vez que se discute sobre a suposta filosofia grega, digo suposta porque essa
não é a acepção correta para esses pensadores, pois nenhum deles “sequer chamou a si próprio
de grego, visto que esta é uma designação romana – heleno era o termo de amplo significado
aplicado a eólios, dórios, aqueus e jônios” (SODRÉ, 2017, p.9), percorremos toda uma
tradição que defendeu e defende a ferro e fogo a certidão de nascimento da filosofia na
Grécia, mesmo esse espaço sendo uma efabulação 6, uma construção imagética para dar valor
de objetividade epistemológica a essa imaginação, pois como já discorremos “nenhum deles
sequer chamou a si próprio de grego”, nem mesmo o seu grande sistematizador, Aristóteles,
era “grego” ou heleno. Aristóteles nasceu em Estagira, antiga cidade da Macedônia.
Dito isso, não é errônea e nem prepotente a ideia de James quanto ao fato da
filosofia grega não ser grega. Toda a composição da filosofia enquanto filosofia grega é
desenvolvida por autores como Hegel (1999), Wener Jaeger (1994) e Giovanni Reale (1990).
Os cânones da história da filosofia ou do gênio Grego deturparam a própria filosofia para que
ela viesse a se encaixar em suas ideologias e intenções políticas, religiosas e afins, assim
como fizeram os romanos ao terem contato com a filosofia grega e, os gregos, ao terem
contato com a filosofia egípcia. Um exemplo que articula a ideia da negação da possibilidade
de filosofia em outros lugares além da Grécia é a suposta Impossibilidade da derivação da
filosofia do oriente, título de uma seção de História da filosofia I (1990) de Giovanni Reale;
No seu ordenamento atual, o Corpus Aristotelicum abre-se com Organon, título com
o qual, mais tarde, foi designado o conjunto dos tratados de lógica, que são:
Categorias, De Interpretatione, Analíticos primeiro, Analíticos segundo, Tópicos e
refutações sofísticas. Seguem-se as obras de filosofia natural, isto é, a Física, o Céu,
A geração e a corrupção e a Meteorologia. Ligadas a elas, encontram-se as obras de
psicologia, constituídas do tratado Sobre a Alma e por um grupo de opúsculos
reunidos sobre o título de Parva Naturalia. A obra mais famosa é constituída pelos
catorze livros da Metafísica. Vem depois os tratados de filosofia moral e política: a
Ética a Nicômaco, a Grande Ética, a Ética a Eudêmio e a Política. Por fim, devem-
se recordar a Poética e a Retórica. Entre as obras relativas às ciência naturais,
podemos recordar a importante História dos animais, As partes dos animais, O
movimento dos animais e a A geração dos animais (REALE, 1990, p.175-176).
filosofia acadêmica, a Metafísica é o grande compêndio da filosofia antiga e por essa razão
ela nos interessa para análise.
Seguindo Reale (1990), a metafísica pode ser definida em quatro definições: “a) a
metafísica indaga as causas e os princípios supremos; b) a metafísica indaga o ser enquanto
ser; c) a metafísica indaga a substância; d) a metafísica indaga Deus e a substância
suprassensível” (REALE, 1990, p. 179). Toda a obra é organizada por meio dessas
indagações, determinações e categorias – termo cunhado por Aristóteles que é utilizado muito
na pesquisa científica. Essas definições seguem toda uma discussão já iniciada pela tradição
filosófica grega e que Aristóteles retoma para aprofundá-las.
De acordo com Reale (1990, p. 179), uma leva a outra, pois “quem busca as e os
princípios primeiros necessariamente deve encontrar Deus, porque Deus é a causa e o
princípio primeiro por excelência”. A metafísica então não é uma ciência voltada para o
30
empírico, mas para o teórico ou “espiritual” como insinua Reale (1990, p. 180) “a metafísica
não responde a necessidades materiais, mas sim espirituais, ou seja, àquela necessidade que
nasce quando as necessidades físicas estão satisfeitas”. Em conformidade com este pensador,
podemos pensar, então, que não há muita diferença desta para a proposta filosófica egípcia,
pois “filosofar é um exercício de julgamento, sopesar, detalhar e apresentar num exercício
rigoroso com a palavra o objeto que é retratado, tomado como fonte, ponto de partida e linha
de chegada ao mesmo tempo” (NOGUERA, 2013, p. 147). Por exemplo, segundo Rosa
(2017, p. 51):
Por esse motivo, não podemos nos furtar em examinar a colaboração da filosofia
estruturada por Aristóteles para o racismo epistêmico dos povos negros africanos. Suas
viagens ao Egito e a sua tutoria a Alexandre Magno, que dominou e estraçalhou os egípcios,
não são mera coincidência.
Boaventura (1999, p. 283) defende que “o epistemicídio foi ainda muito mais
vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subjugar,
marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais”. Por conseguinte, o novo paradigma
epistemológico deve considerar o epistemicídio um crime contra a humanidade, que além de
ser um crime epistemológico, inflige de modo prático – social, política, cultural e econômico
– a todos os povos que sofreram com essa violência.
dialoga com nossa proposta e intento de realizar uma análise de como essa dinâmica ocorre
dentro do discurso filosófico. Sueli Carneiro é incisiva: “É uma forma de sequestro da razão
em duplo sentido: pela negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que
em outros casos lhe é imposta” (CARNEIRO, 2015, p.97). Sueli Carneiro, expande os
horizontes de discussão sobre o conceito de epistemicídio, tanto que ela confere a ele a
construção de uma “identidade negativa atribuída ao Outro particularmente no que respeita à
sua incapacidade de elevar-se à condição de sujeito de conhecimento (...) ou de ser portador
de conhecimentos relevantes do ponto vista” (CARNEIRO, 2015, p.277).
Essa desumanização sabemos que não é algo apenas moderno, mas que vem
ocorrendo desde a dita e pura antiguidade. Em um tratado atribuído a Aristóteles, intitulado
Physiognomonica (Fisionomia) do século IV a.c encontramos um trecho explicitamente
racista: “Aqueles que são muito morenos são covardes; isso se aplica a egípcios e etíopes”
(ARISTÓTELES, 1995, p. 127, tradução nossa). Não se sabe exatamente se esse tratado é de
autoria de Aristóteles ou não, mas durante muito tempo foi atribuído a ele. De qualquer
forma não invalida nossa premissa de que as concepções raciais já existiam na antiguidade e
que o epistemicídio não é um projeto de agora, ele vem sendo fundamentado e praticado há
33
muito tempo e não é só uma questão de inferiorização de saberes, mas de um projeto político
de silenciamento destes saberes
único” que não permite pensar “outros” mundos possíveis mais para além do ocidente
branco patriarcal. Na guisa de Grosfoguel (2016), Ocoró (2020, p. 174), discorre que:
ocidental e teoria social que raramente inclui mulheres 'ocidentais' e nunca inclui /
filósofos, filosofias e cientistas sociais "não ocidentais".
Esse racismo epistêmico fecha os olhos para problemas que podem parecer tão
simples, como o nascimento da filosofia, mas que se tornam tão caros para nós negros e
negras na diáspora, visto que essa ideia acarreta consequências sociais que até hoje não
temos dimensão. Tais consequências são um “o profundo silenciamento e subalternização do
pensamento negro-africano, reflete a justificada exclusão da superioridade dos europeus
sobre a raça negra, estabelecendo relações incessantes de dominação colonial” (MATOS DA
ROCHA, 2014, p. 9). Relações de poder e violências físicas justificadas e legitimadas de
modo discursivo e que continuam sendo naturalizadas.
Segundo Iran Melo (2018, p. 29), “cada membro do simpósio trilhou caminhos
específicos, dependo das conexões teóricas estabelecidas. Mas sua diversidade, como as peças
de um quebra-cabeça, gerou a unidade pelo compartilhamento da proposta”. A intenção em
comum dos teóricos presentes era um compromisso ético-político de lutar pela transformação
social. Por isso, é necessário entendermos que, desde o princípio, a ADC se demonstrou
transdisciplinar e esse seu princípio é implementado por suas/seus teóricas(os) que fizeram
dela uma área diversificada.
Sua diversidade se dá tanto por um amálgama de conceitos e teorias que não são
propriamente sendo da linguagem, e foram utilizadas para compreendê-la. De acordo com
Iran Melo (2018, p. 30), em conformidade com Wodak e Meyer (2009), “a ADC se divide em
alguns enfoques”, dentre esses, há três mais conhecidos; o primeiro é a abordagem
38
sociocognitiva, que tem como expoente o linguista Teun Van Dijk e está centrada na
reprodução ideológica por meio do discurso e principalmente nos meios de comunicação.
Nesta perspectiva, são utilizados os princípios da psicologia social e da teoria das
representações sociais;
Deste modo, através da ADC, começa-se a entender de forma mais latente que a
linguagem é uma forma de ação social que, por um lado, constitui a realidade e, por outro, é
constituída por essa mesma realidade. Essa ideia é um aprimoramento das concepções já
defendidas por Mikhail Bakhtin/ Valentin Volochinov (1999) que defendeu “o fenômeno
social da interação verbal como realidade fundamental da língua, aquilo que constitui a
verdadeira substância da língua” (BAKTHIN/ VOLOCHINOV, 1999, p. 123).
De acordo com Fairclough (2001), a ADC diz respeito a uma perspectiva dos
estudos da língua que associa a análise textual com uma teoria social do funcionamento da
7
A Escola de Frankfurt foi uma corrente filosófica do século XX que tinha como objetivo apresentar uma nova
forma de se elaborar pensamento filosófico rompendo assim com a filosofia tradicional (concepção de filosofia
pura sem relação com o social). Tal proposta, de influência Marxista e Psicanalítica, se propunha a pensar a
filosofia com viés social e de transformação social. Os principais teóricos eram Theodor Adorno, Marx
Horkheimer, Walter Benjamin e Herbert Marcuse. O “crítico” de Análise do Discurso Crítica tem relação com a
proposta de criticidade ou de pensamento crítico proposto pela Escola de Frankfurt.
39
Por meio das palavras de Fairclough, compreendemos que discurso é uma prática
social e não apenas uma abstração e por isso é entendida enquanto prática discursiva, pois “a
prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional como criativa e contribui para
reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e
crença), mas também contribui para transformá-la” (FAIRCLOUGH, 2001, p.92). Por essa
razão é importante que se acentue a relação dialética entre discurso e estrutura social, visto
que assim como o discurso constitui a prática social, ele também é capaz de mudá-la.
Dentro dessa consideração sobre discurso, a linguagem passa a ser apreendida
enquanto uma prática social historicamente situada e constituída socialmente. A noção de
discurso adotada pela ADC exige das/dos suas/seus analistas uma não neutralidade em suas
análises, já que o discurso – unidade de análise – não é neutro, a/o pesquisadora/o também
não será. Compartilhamos, em nossa pesquisa, com este princípio, visto que não nos
inclinamos a nenhuma neutralidade epistemológica.
Nessa compreensão sobre discurso, acrescenta-se a outro conceito de suma
relevância para nossas análises; a ordem do discurso. Fairclough (2001) discorre que “as
ordens de discurso podem ser consideradas como facetas discursivas das ordens sociais, cuja
articulação e rearticulação interna têm a mesma natureza” (FAIRCLOUGH, 2001, p.99). A
ordem do discurso encerra dentro dela diversos discursos que expressam práticas sociais,
como economia, política, ética, etc. Discursos esses que estruturam e formam certas bases
discursivas da estrutura social. Por isso, ela representa um movimento dialético entre
estrutura e ação ganhando materialidade a partir do instante em que é incorporada às práticas
sociais diversas. Deste modo, a ordem de discurso estabelece-se a partir de uma permanente
relação com os elementos não discursivos das práticas sociais.
Outros dois conceitos centrais em ADC são poder e ideologia. Segundo Josenes
Vieira e Denise Silva Macedo (2018, p. 58); “é importante investigar esse conceito de poder
porque em sua base está a concepção de dominação. Assim, o poder não emana de um sujeito,
mas do conjunto de relações que permeiam o corpo social”.
Em ADC, o conceito de poder está atrelado ao de hegemonia, já que a análise
deve se preocupar com os efeitos ideológicos que os textos possam ter sobre as relações
sociais em favor de projetos de dominação. O poder para a Análise do Discurso Crítica é visto
como instável, as relações desiguais de poder podem ser transformadas, invertidas, superadas
41
por conta da concepção dialética entre linguagem e sociedade. Nessa relação com a
hegemonia, o poder se entrelaça com o discurso e mantêm as relações de dominação ou
também pode superá-las:
Esse de conceito de poder como hegemonia, muitas vezes alcançada e mantida pelo
discurso de algumas poucas pessoas em detrimento do de outras. Não é por outro
motivo que há constantes lutas sociais em torno de pontos de maior instabilidade de
hegemonia entre classes. Esse aspecto dinâmico e instável da assimetria se coaduna
com o princípio dialético entre linguagem e sociedade e com o de instabilidade nas
relações de poder (VIEIRA; MACEDO, 2018, p.58).
O conceito de hegemonia nos auxilia nessa tarefa, fornecendo para o discurso tanto
uma matriz - uma forma de analisar a pratica social a qual pertence o discurso em
termos de relações de poder, isto é, se essas relações de poder reproduzem,
reestruturam ou desafiam as hegemonias existentes — como um modelo — uma
forma de analisar a própria pratica discursiva como um modo de luta hegemônica,
que reproduz, reestrutura ou desafia as ordens de discurso existentes. Isso fortalece o
conceito de investimento político das práticas discursivas e, já que as hegemonias
têm dimensões ideológicas, e uma forma de avaliar o investimento ideológico das
práticas discursivas. Compreendido essa relação, de que as ideologias têm existência
material nas práticas discursivas, é necessário também investigar as ideologias
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 126).
Primeiro, a asserção de que ela tem existência material nas práticas das instituições,
que abre o caminho para investigar as práticas discursivas como formas materiais de
ideologia. Segundo, a asserção de que a ideologia 'interpela os sujeitos', que conduz
a concepção de que um dos mais significativos 'efeitos ideológicos' (...) e a
constituição dos sujeitos. Terceiro, a asserção de que os 'aparelhos ideológicos de
estado' (instituições tais como a educação ou a mídia) são ambos locais e marcos
delimitadores na luta de classe que apontam para a luta no discurso e subjacente a
ele como foco para uma análise de discurso orientada ideologicamente
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 116).
Essas três asserções são as bases teóricas que Fairclough vê como o conceito de
ideologia é expressado. De acordo com Norman Fairclough (2001), não podemos limitar o
debate sobre ideologia às considerações feitas por Althusser, pois a visão unilateral da
imposição da ideologia e sua insistência nesse conceito como sendo a base social universal,
limita uma compreensão mais abrangente sobre ideologia. Por isso o autor propõe que
vejamos as ideologias como “significações e construções da realidade (...) que são construídas
em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a
produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação” (FAIRCLOUGH,
2001, p. 117).
Assim como a hegemonia faz parte das ordens do discurso, as ideologias estão
localizadas tanto nas estruturas (ordens do discurso) que constituem o resultado de eventos
passados, quanto nas condições para os eventos atuais. Elas são uma orientação acumulada e
naturalizada que é construída nas normas e nas convenções, como também um trabalho atual
de naturalização e desnaturalização de tais orientações nos eventos discursivos
(FAIRCLOUGH, 2001). Por esse motivo, já que as ideologias são convenções naturalizadas,
dificilmente as pessoas têm consciência ou acham que suas práticas normais cotidianas têm
investimento ideológico sendo que, na realidade, elas estão sim posicionadas
ideologicamente, mas elas também “são capazes de agir criativamente no sentido de realizar
suas próprias conexões entre as diversas práticas e ideologias a que é exposto e de reestruturar
as práticas e as estruturas posicionadoras” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 121).
43
Por essa razão, em ADC a representação discursiva não é apenas uma questão
gramatical, mas também um processo ideológico. Analisar textos significa considerar quais
vozes são representadas e quais são omitidas nesta representação, assim a ideologia estabelece
e sustenta relações de dominação.
A concepção mais utilizada em ADC de ideologia é a concepção de Thompson
(2002), pois esta trabalha com categorias de análise de interação e de identificação em
determinadas práticas sociais. Elas evitam que as pesquisas fiquem somente na sociologia da
linguagem e abranja mais a discussão. Segundo Ramalho e Resende (2006):
Na sua obra Discurso e Mudança Social (2001), Fairclough, busca reunir a análise
de discurso linguisticamente orientada e a teoria social na composição de um quadro teórico
adequado para o estudo das mudanças sociais. É nesta obra em que observamos a proposição
do primeiro enquadre metodológico da ADC. Método este que entende o discurso em três
dimensões de análise: como prática social, prática discursiva e texto (FAIRCLOUGH, 2001).
De acordo com Viviane Ramalho (2005), essas três dimensões de análise reúnem três
tradições analíticas que vinham sendo trabalhadas de maneira discreta:
44
Por essa razão, o autor vai reformular as noções da LSD que afirma que “os textos
têm simultaneamente as funções 'ideacional', 'interpessoal' e 'textual'. Isto é, os textos
simultaneamente representam aspectos do mundo (o mundo físico, o social e o mental)”
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 17), retirando a concepção de funções para significado: “no
entanto, prefiro falar sobre três principais tipos de significações e não de funções”
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 17). Tais significados são: o significado acional, o significado
representacional e o significado identificacional (FAIRCLOUGH, 2003). De acordo com
Ramalho e Resende (2006, p.59):
8
A Linguista Sistêmica Funcional é uma teoria linguística e um conjunto de métodos analíticos cunhados pelo
linguista britânico Michael Halliday. De acordo com Fairclough (2003, p.5), a LSF “está profundamente
preocupada com a relação entre a língua e outros elementos e aspectos de vida social, e seu ponto de vista a
respeito da análise linguística de textos sempre é orientada ao caráter social dos textos”. Por esse motivo a LSF é
um valioso recurso para ADC.
46
o que nos interessa na análise é detectar o modo como Aristóteles, em seu discurso, representa
a filosofia africana kemética.
palavras. Um tipo de lexicalização que torna esse processo particularmente claro é o processo
de nominalização; criação de novos nomes para determinadas situações, contextos ou objetos,
que carregam certos significados simbólicos e até mesmo ideológicos, como, por exemplo, a
denominação dos povos keméticos como egípcios e não pela sua própria nomeação. Iremos
nos ater mais a esse detalhe na análise.
Outra categoria de análise que nos servirá será a intertextualidade. De acordo
com Fairclough (2003), a categoria de intertextualidade é bastante ampla, mas de forma
resumida ela é “na acepção mais comum do termo, intertextualidade é a presença material de
outros textos dentro de um texto – citações” (FAIRCLOUGH, 2003, p.28). Dentro do discurso
filosófico e no seu modo de representar, a intertextualidade é uma categoria muito presente,
visto que o texto filosófico tem como característica sempre retomar a tradição filosófica,
mesmo que seja para louvá-la ou romper com ela.
No entanto, existem muitas maneiras de incorporar elementos de outros textos
dentro de um texto:
O conceito de silêncio é uma noção essencial para este trabalho, visto que se trata
de uma análise sobre o modo como a filosofia egípcia foi recebida e reproduzida pelos
filósofos gregos, no caso, Aristóteles. Para esta análise do silêncio e de sua utilização, nos
detivemos na obra da linguista brasileira Eni Orlandi intitulada As Formas do Silêncio (2007).
O silêncio fundante é uma das formas sobre a qual o silêncio se expressa e é por
meio dele que o dito é dito e que as palavras têm sentido.
A dimensão política do silêncio não está apenas em calar, mas em fazer dizer
‘uma’ coisa, para não deixar dizer ‘outros’, ou seja, o silêncio recorta o dizer (ORLANDI,
2007). Esse recorte se faz presente na escolha de léxico que fazemos ao falarmos, ao
escrevermos, as palavras que escolhemos representam o modo como pensamos e somos.
Além disso, a política do silêncio se divide em duas formas: o silêncio constitutivo e o
silêncio local. O silêncio constitutivo trabalha com os limites das formações discursivas, ele é
o mecanismo que põe em funcionamento o conjunto do que é preciso não dizer para poder
dizer (ORLANDI, 2007). A autora dá um exemplo sobre a forma de atuação desse silêncio:
“Um exemplo dessa forma de silêncio é a denominação “Nova República”, no Brasil,
atribuída ao regime que seguiu a ditadura militar. Ao nomear-se assim esse período,
51
apagava-se o fato de que o que tínhamos antes era uma ditadura” (ORLANDI, 2007, p. 74
apud ORLANDI, 1987). Este processo de denominação será analisado em nossa análise.
O exemplo que a autora dá demonstra então que toda nomeação apaga outros
sentidos possíveis e condições simbólicas também, ao nomear fecho um significado e
enclausuro dentro de um significante, por exemplo: ao dizer que os povos que habitavam o
nilo são “egípcios” e não “keméticos”, encerro uma perspectiva que não é próprio destes
povos, mas grega.
ideologia; é na sua relação com a ideologia que a língua faz parte do mundo social. E um dos
modos pelos quais a ideologia opera na língua é através do processo de não-citar:
Esse mecanismo de não-citar produz o lugar (da falta) do dizer como lugar possível
quando, na realidade, esse lugar já está realizado (cheio), caracterizando-se assim
como uma forma de desconhecimento. É pois uma das formas ideológicas de
apagamento da materialidade histórica do dizer. Nega a memória”. (ORLANDI,
2007, p. 142-143).
Essa dinâmica produz vozes silenciadas que causam uma negação da filiação
histórica, individualizam a memória ao ponto de perdemos a capacidade de retomar, deslocar
(ORLANDI, 2007). A retomada e o reconhecimento são aspectos que a política de
silenciamento quer longe, quer desconsiderado. Por isso, nosso intento neste trabalho é algo
pouco visto dentro da academia e muito menos elaborado.
Desta forma, Orlandi, já quase no final do tópico nos provoca; “Se ao falar
sempre afastamos sentidos não-desejados, para compreender um discurso devemos perguntar
sistematicamente o que ele ‘cala’”(ORLANDI, 2007, p. 152). Então, assim nos perguntamos,
o que o discurso aristotélico cala? O que ele põe em silêncio? Ao dizermos filosofia grega,
que discursos calamos a partir disso? Iremos aprofundar de modo mais detido estas
indagações na análise, contudo, antes disso, é indispensável que tratemos sobre o conceito de
ideologia e sua relação com o silenciamento, já que todo processo de silenciamento tem um
viés ideológico, mas nem toda ideologia é silenciadora.
Para tanto, ele elabora em sua obra um breve levantamento histórico do conceito
de ideologia que não iremos expor de modo detalhado, visto que não é objetivo deste trabalho
se ater aos detalhes históricos deste conceito. O conceito de ideologia foi utilizado pela
primeira vez no século XVIII, mais especificamente em 1796, pelo filósofo francês Destutt de
Tracy. Destutt de Tracy formula este conceito para demonstrar o seu projeto de uma nova
ciência que estaria interessada na análise sistemática das ideias e sensações (THOMPSON,
2011). No entanto, por causa de Napoleão Bonaparte e seu posicionamento desfavorável ao
conceito e seu idealizador, o conceito acaba por assumir um sentido negativo e começa a ser
associado a ‘ideias abstratas e ilusórias’.
Partindo dessa posição de Napoleão é que Karl Marx irá se posicionar e formular
sua concepção de ideologia em sua expressão negativa. Assim, Marx preserva o sentido
negativo do conceito de ideologia. Esse sentido negativo foi redirecionado de diferentes
maneiras nos trabalhos de Karl Marx, contudo, o sentido negativo sempre permanece. Depois
de Marx há a concepção de Mannheim que estava familiarizado com o trabalho dos marxistas.
concepção crítica. Segundo Thopmson (2011), as noções desenvolvidas por Destutt de Tracy
e Mannheim – que foram as apresentadas aqui, compartilham entre si uma característica
comum, elas são concepções neutras, no sentido em que não possuem um sentido negativo e
não expressam a ideologia como um fenômeno que deve ser combatido. (THOMPSON,
2011).
Vemos então que o autor não se desvincula de uma noção de ideologia que visa à
crítica da própria ideologia, mas que, ao mesmo tempo, não será totalmente adepto de todas as
ideias desenvolvidas pelos críticos da ideologia. Deste modo, sua concepção está interessada
em compreender como as formas simbólicas se entrecruzam com as relações de poder e de
que forma ela está interessada no modo como o sentido é mobilizado no mundo social para
reforçar pessoas e grupos que ocupam posições de poder, pois “estudar a ideologia é estudar
as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação”
(THOMPSON, 2011, p. 76).
Ao formular a ideologia deste modo ele está de acordo com a noção de Marx, no
entanto, ele mantém de uma forma modificada;
Partindo disso dessa formulação é que podemos entender que não se trata de
analisar a verdade e a falsidade das formas simbólicas, mas sim em como elas são utilizadas
para manter as relações de poder. Entretanto, este não é o único ponto em que o autor discorda
do agraciado filósofo alemão, visto que o critério de sustentação das relações de dominação
em Marx se aplicava apenas a categoria de classe e que as relações de dominação e
subordinação de classe é o que constitui os eixos principais da desigualdade e exploração nas
sociedades humanas em geral, Thompson (2011) enfatiza que as relações de classe são apenas
uma forma de dominação e subordinação e constituem apenas um eixo da desigualdade e
exploração, “elas não são de modo algum a única forma de dominação e subordinação”
(THOMPSON, 2011, p. 77).
Acreditamos que Thompson ainda foi um tanto complacente quando diz que
“pareceu negligenciar”, pois é explícito que Marx e tantos outros teóricos não deram a
56
mínima para os outros grupos que sofrem constantemente com a opressão e violência
sistemática causada por uma sociedade baseada nas relações de dominação, seja ela simbólica
e física.
Essa estratégia nos interessa pelo fato de manter histórias, como a “filosofia é
grega”, por exemplo, para justificar o exercício de poder por aqueles que o possuem e
servindo para justificar uma narrativa que silencia outras narrativas. Pergunte a qualquer
professor universitário de filosofia se a filosofia não teria nascido em outro lugar e veja sua
reação.
linguagem, ou melhor, das formas simbólicas. Esta estratégia se efetua de três modos: o
primeiro é a sinédoque, que é a união de sentido entre uma parte e o todo – o termo genérico
‘os africanos’ pode se referir a um grupo dentro de um estado-nação; o segundo é a
metonímia, que utiliza um termo para referir-se a determinada coisa (sem correspondência
necessária); e o terceiro é a metáfora, quando um objeto ou ação é designado por um termo,
ou frase, que não deve ser compreendido/a de forma literal.
4.1 Metodologia
como Aristóteles constrói ideologias e silenciamentos dentro da Metafísica. Além disso, é por
meio do interdiscurso que observamos como Aristóteles mobiliza outros discursos da tradição
filosófica para legitimar por meio da racionalização, universalização e narrativização os seus
argumentos e propostas filosóficas.
Outra categoria utilizada que contribui nesse mesmo sentido é a categoria de
intertextualidade, já que é por meio dela que Aristóteles movimenta citações diretas e
implícitas a ideias de outros filósofos para compor seu modo de enxergar a filosofia e o
conhecimento científico. A intertextualidade é uma categoria mobilizada dentro da análise
para demonstrar que através da presença material de outros textos, Aristóteles silencia outras
possibilidades filosóficas além das que ele descreve.
Aliada a essas duas categorias, para detectarmos o modo como Aristóteles
representa aspectos de sua visão da filosofia e do conhecimento por meio do discurso, os
significados de palavras e o processo de lexicalização são significantes, pois é por meio das
palavras e do léxico que estamos diante de escolhas sobre como usar uma palavra e como
expressar um significado por meio de palavra (FAIRCLOUGH, 2001).
No caso de Aristóteles, nos interessa as escolhas e decisões que são feitas para
legitimar seus argumentos e que tais escolhas são embasadas, não de modo individual, mas
validadas de modo social e filosófico. Desta forma, a análise seguiu determinadas palavras
que se destacaram no discurso aristotélico tornando-se relevante para a pesquisa
(FAIRCLOUGH, 2001), bem como na adesão coletiva, ou seja, da própria academia filosófica
até os dias atuais, de certos significados particulares de palavras, como veremos na análise.
Por fim, os resultados são explorados na busca por expressar como o discurso
filosófico presente na obra aristotélica produz o racismo epistêmico contribuindo para o
silenciamento dos conhecimentos da filosofia africana.
questões pensadas por Aristóteles são retomadas e aprofundadas durante toda a história da
filosofia.
Quanto à obra Metafísica, sua designação se dá por se adequar propriamente
com nossa proposta de análise do silenciamento epistemológico da filosofia africana, visto
que a principal questão da obra é estabelecer as bases do conhecimento, ou melhor, “um
estudo minucioso e apurado sobre a capacidade de conhecer” (SOUZA, 2016, p.29). A
capacidade de conhecer que segundo Aristóteles (2012) “todo o ser humano naturalmente
tem” (ARISTÓTELES, 2012, 980 a22, p.41) é o que nos questionamos e investigamos se de
acordo com o filósofo todos realmente são capazes de atingir a filosofia primeira.
Filosofia primeira é o nome de fato da obra Metafísica, pois o conceito Metafísica
(o que está além da física) não é um conceito aristotélico, “talvez tenha sido cunhado pelos
peripatéticos, se não houver nascido por ocasião da edição das obras de Aristóteles realizada
por Andrônio de Rodes no século I” (REALE, 1990, p.179). A expressão de fato utilizada por
Aristóteles era Filosofia Primeira em oposição à Filosofia Segunda (física).
De acordo com Reale (1990, p. 179), “o termo metafísica foi sentido como mais
significativo pela posteridade, tornando-se preferido. Com efeito, a filosofia primeira é
precisamente a ciência que se ocupa das realidades que estão acima da física”. É significativo
a escolha da obra Metafísica já que ela se preocupa com nossas principais questões, o
conhecimento e principalmente o silenciamento de sua produção aos povos negros. Nossa
análise da Metafísica se instiga, principalmente, com as declarações feitas por George James
(1954, p. 19), de que “a Filosofia Grega é uma espécie de drama, cujos atores principais
foram Alexandre o Grande, Aristóteles e seus sucessores (...)”. Esse drama perpetuado pelo
ator Aristóteles e as consequências de seu discurso filosófico é o que exploramos.
Para a elaboração da análise crítica do discurso filosófico de Aristóteles,
empregamos alguns critérios para a escolha dos trechos discursivos que compõem o corpus,
são eles: a) excertos discursivos que tematizam e se relacionam com a definição e
caracterização da filosofia, elaborando assim uma definição que silencia outras formas de se
pensar e fazer filosofia; b) Que constituem uma hierarquização do conhecimento que indica e
constitui um régua epistêmica operando através da legitimação do racismo epistêmico da
filosofia kemética. Esses critérios serviram como temas e bússola na escolha dos trechos
examinados, é através deles que observamos como o silenciamento atua na efetivação do
racismo epistêmico.
65
operacionalização da ideologia
Deste modo, iniciamos com um trecho no qual Aristóteles vai definir o que é
exatamente o fenômeno do filosofar ou melhor, do maravilhar-se:
dela que os primeiros seres humanos, que surgiram no continente Africano, filosofaram. É
interessante denotarmos como o recurso da universalização é perceptível no texto aristotélico.
Nesse primeiro excerto observa-se que tais recursos se inserem para construir,
argumentativamente, as arguições do filósofo, bem como o silenciamento discursivo de outras
possibilidades de posturas filosóficas que não se “maravilham”, além de universalizar uma
visão que não se fundamenta historicamente. Denotamos, então, no segundo excerto, assim
como no primeiro, as bases universais de onde se inicia a filosofia e como esta se funda.
Através da categoria analítica de intertextualidade, nas escolhas lexicais, examinamos como a
representação discursiva da filosofia passa por certos princípios e como esta não inclui a
filosofia kemética;
Excerto 2: Tales, fundador dessa escola de filosofia, afirma que esse princípio
permanente é a água (razão pela qual ele igualmente propôs que a terra flutua na
água). É presumível que tenha chegado a essa hipótese a partir da observação de
que o nutriente de tudo é úmido, e que o próprio calor é gerado pela umidade (…)
(ARISTÓTELES, 983b20, 2012 p 48, grifo nosso).
9
Imhotep, filho de Khreduankh e do deus Ptah, mestre-de-obras do reino chamado Kanefer, viveu durante o
Antigo Império Egípcio, entre os anos de 2686 – 2613 a.C. Mais conhecido por seus trabalhos na medicina e em
máximas éticas e mortais. Para saber mais, ler: “Uma Origem Africana da Filosofia: Mito ou Realidade” do Dr.
Molefi Kete Asante.
69
10
As causas são o fundamento da realidade e são limitadas, pois se fossem ilimitadas não seria possível conhecer
a própria realidade. Aristóteles definiu a existência de quatro causas e estas caracterizam a realidade: “Ora, há
quatro tipos reconhecidos de causas. Destes, afirmamos que um deles é a essência ou natureza essencial da coisa
(uma vez que o “porquê” de uma coisa é, em última instância, reduzível à sua fórmula, e o “porquê” em última
instância é uma causa e princípio); um outro é a matéria ou substrato; o terceiro [tipo de causa] é o princípio do
movimento; e o quatro é causa que se opõe a isso, nomeadamente, a finalidade ou “bem” (visto ser isso o fim de
todo processo gerador e motriz) (ARISTÓTELES, 983a20-30, 2012, p.47).
70
ela e definindo seus padrões, visto que antes de Aristóteles não havia tal expressão carregada
de simbolismo histórico, como se já houvesse uma tradição filosófica estabelecida. Por essa
razão, Reale (1990) nomeia o pensamento aristotélico como sendo “a primeira sistematização
ocidental do saber” (REALE, 1990 p.171). Assim, o grupo nominal analisado segue então
uma expressão universalizante da própria filosofia, pois nomear “os primeiros filósofos”
universaliza uma forma de compreender a filosofia, ou seja, primeiros filósofos serão aqueles
que Aristóteles venha a representar como pertencente a este grupo.
Excerto 5: Assim, evidencia-se, inclusive com base nas afirmações dos filósofos
mais antigos, que toda investigação aparentemente é dirigida para as causas
descritas na Física e que não podemos sugerir qualquer outra causa além dessa. Elas
foram, todavia, apenas conceituadas imprecisamente e, embora num sentido tenham
sido todas indicadas antes, num outro não haviam sido indicadas de modo algum,
isto porque a filosofia mais antiga é, por assim dizer, como alguém que balbucia
em todos os assuntos, já que era nova em sua infância (ARISTÓTELES, a15-20,
2012, p. 71, grifo nosso).
Nesse excerto, o discurso sobre “filósofos mais antigos” fundamenta uma noção
de uma tradição filosófica já existente e que segue um modo de fazer filosofia, por mais que
71
seja válido, pois segue os termos aristotélicos de busca das causas primeiras da realidade. No
enunciado “filósofos mais antigos”, estabelece-se então a construção discursiva de uma
tradição filosófica que perdura até os dias de Aristóteles, mas que é necessário que seja
mudada, pois não atende mais os requisitos da filosofia primeira aristotélica. Tal
procedimento é aliceçardo na categoria de interdiscurso que se instaura de modo a validar o
discurso de Aristóteles, visto que ele se utiliza dos conhecimentos dos filosófos antigos para
fundamentar a própria construção de tradição, uma tradição que muda porque é inventada uma
nova tradição a fim de criar outro sentido que legitime as argumentações de Aristóteles.
Esta filosofia proposta por Aristóteles nos remete uma indagação proposta por
Orlandi (2007, p. 152), pois se “ao falar sempre afastamos sentidos não-desejados, para
compreendermos um discurso devemos perguntar sistematicamente o que ele ‘cala’”. Deste
72
modo, o que (ou quem) o discurso aristotélico cala? Como constatamos nos excertos
analisados, ele /silencia outras formas de filosofia, no caso, a filosofia kemética e seus
pensadores; filosofia esta que o próprio autor chegou a ter acesso e foi até Kemet para estudá-
la (JAMES, 1954; DIOP, 1974; OBENGA, 2004).
Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve
acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo
em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que
foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em
liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte
ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente
arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo
prestígio, por força de dons excelentes. tão essencial é a diferença entre essas duas
raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto
à diferença de cores. [...] os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e
tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas (KANT, 1990, pp. 75-76).
epistêmico
filosófica que será utilizada ao longo da história da filosofia para instituir o que será tido
como conhecimento ou não.
A escolha do adjetivo “superior” para qualificar um conhecimento elevado não só
silencia, como, consequentemente, fornece uma base para o racismo epistêmicos, já que
delimita, discursivamente, a existência de uma inferioridade epistêmica, argumento crucial,
utilizado para proclamar uma inferioridade social/biológica relacionado aos povos africanos.
A ideia racista preponderante no século XVI de “falta de inteligência” dos negros já era
defendida por Aristóteles, de forma silenciosa na Metafísica e de modo explícito na obra
Physiognomonica (Fisionomia), como podemos ver neste excerto: “Aqueles que são muito
morenos são covardes; isso se aplica aos egípcios e etíopes” (ARISTÓTELES, 1995, p. 127,
tradução nossa). Não nos cabe aqui analisar este trecho, no entanto, ele exemplifica o que
estamos demonstrando nesta análise discursiva.
A instituição de um conhecimento superior e um inferior dá margem para toda
uma cadeia de justificação de uma hierarquia não só de saberes, mas de humanidade. Uma
régua epistêmica que mede humanidade por meio de padrões universalizantes e
racionalizantes que intitula uns de humanos e outros não, construindo assim um discurso
filosófico que legitima violências.
Apenas neste excerto analisado, vemos o racismo epistêmico presente de modo a
constituir bases ideológicas de operacionalização que estabelecem uma hierarquia “os
conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais”
(GROSFOGUEL, 2012, p. 54). No excerto seguinte, Aristóteles segue sua hierarquização dos
saberes através da definição dos sujeitos destes saberes:
Por este motivo, devemos reconhecer outras formas de filosofia além das
europeias, para não cair em um purismo filosófico que já observamos desde a Grécia Antiga.
Para conseguirmos, quem sabe algum dia, mudar essa realidade do racismo epistêmico
presente dentro da ciência que conhecemos hoje, é necessário que mudemos sua base
78
Constatamos isso, pois, o contato que Aristóteles tinha com os povos do Nilo era
de se considerar relevante para ao menos elencar seus principais pensadores. É uma dívida
epistêmica que se estende até os dias de hoje, ainda mais quando sabemos que “é impossível
enfatizar tudo o que o mundo, particularmente o mundo Helênico, deveu aos egípcios. Os
Gregos apenas continuaram e desenvolveram, por vezes parcialmente, o que os Egípcios
tinham inventado” (DIOP, 1974, p. 461).
Fonte: Autor
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante disso, nos deparamos com uma filosofia que representa a filosofia africana
não como filosofia e menos enquanto um saber, já que ela não é mencionada no texto
aristotélico nem enquanto uma das formas de saber apresentadas pelo filósofo. As poucas
linhas que encontramos sobre o Egito são apenas uma menção sobre o nascimento das
ciências matemáticas na região perto do Egito. Além disso, nada mais. Esse silêncio, significa
e produz sentido constituindo um silenciamento discursivo que perpassa o não-dizer e,
principalmente, o não-citar, pois que ao dizer algo ou deixar de dizer, estará, necessariamente,
não dizendo outros sentidos ou construindo outros sentidos (ORLANDI, 2007).
Por fim, que esta pesquisa possa contribuir para combater o projeto de extermínio
da população negra por meio da crítica da base filosófica de ideias/argumentos que
fundamentam e legitimam tremenda violência. Além do que, sirva de recurso teórico para
todos/as pesquisadores/as negros/as em sua luta diária para descolonizar o conhecimento em
83
todas as áreas, desde Humanas a Exatas, fortalecendo cada vez mais a relevância de termos
frentes de pesquisas que combatam o racismo epistêmico, como a ABPN – ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE PESQUISADORES/AS NEGROS/AS, que contribui com pesquisas
contra-coloniais.
84
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