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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

FACULDADE DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL


MESTRADO ACADÊMICO INTERDISCIPLINAR EM HISTÓRIA E LETRAS

FRANCISCO ERIK WASHINGTON MARQUES DA SILVA

RACISMO EPISTÊMICO: UMA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA DA


POLÍTICA DE SILENCIAMENTO DA FILOSOFIA AFRICANA NO DISCURSO
ARISTOTÉLICO

QUIXADÁ-CEARÁ
2022
FRANCISCO ERIK WASHINGTON MARQUES DA SILVA

RACISMO EPISTÊMICO: UMA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA DA


POLÍTICA DE SILENCIAMENTO DA FILOSOFIA AFRICANA NO DISCURSO
ARISTOTÉLICO

Dissertação apresentada ao Mestrado


Interdisciplinar em História e Letras – MIHL
da Universidade Estadual do Ceará (UECE),
como requisito para a obtenção de
qualificação. Área de concentração: Cultura,
Memória, Ensino e Linguagens. Linha de
Pesquisa: Gênero, Raça e Identidades.

Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio Lima do


Bonfim

QUIXADÁ-CEARÁ
2022
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Sistema de Bibliotecas

Silva, Francisco Erik Washington Marques da.


RACISMO EPISTÊMICO: Uma Análise de Discurso Crítica
da Política de Silenciamento da Filosofia Africana no Discurso
Aristotélico [recurso eletrônico] / Francisco Erik Washington
Marques daSilva. - 2022.
100 f. : il.

Dissertação (MESTRADO ACADÊMICO) -


Universidade Estadual do Ceará, Faculdade deEducação
Ciências e Letras do Sertão Central,Curso de Mestrado
Acadêmico InterdisciplinarHistória E Letras, Quixadá, 2022.
Orientação: Prof. Pós-Dr. Marco Antônio Limado Bonfim.
1. Filosofia. 2. Análise de Discurso Crítica.
3. Racismo Epistêmico. 4. Silenciamentodiscursivo..
I. Título.
FRANCISCO ERIK WASHINGTON MARQUES DA SILVA

RACISMO EPISTÊMICO: UMA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA DA


POLÍTICA DE SILENCIAMENTO DA FILOSOFIA AFRICANA NO DISCURSO
ARISTOTÉLICO

Dissertação apresentada ao Mestrado


Interdisciplinar em História e Letras – MIHL
da Universidade Estadual do Ceará (UECE),
como requisito para a obtenção de
qualificação. Área de concentração: Cultura,
Memória, Ensino e Linguagens. Linha de
Pesquisa: Gênero, Raça e Identidades

Aprovada em: 20 de maio de 2022.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Prof. Dr. Marco Antonio Lima do Bonfim ( Orientador)


Universidade Estadual do Ceará (UFPE/ UECE - MIHL)

__________________________________________________________

Prof. Dr. Luís Tomás Domingos (Coorientador)


Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (PPGA/ UNILAB)

________________________________________________________________

Prof. Dr. Emanuel Ricardo Germano Nunes (Membro Externo)


Universidade Federal do Ceará (UFC/ PPF)

___________________________________________________
Prof. Dra. Ana Maria Pereira Lima (Membro Interno)
Universidade Estadual do Ceará (UECE/MIHL)
AGRADECIMENTOS

Neste momento, no final deste ciclo, gostaria de dedicar e agradecer, primeiramente, à minha
mãe, Eurilêda Gomes Marques, quem sonhou este sonho comigo desde o início. Infelizmente
ela não pôde estar presente neste plano para ver esta nossa realização, mas acredito que ela
participou de todo o processo. Dedico ao meu pai, Francisco Evando, que sempre esteve ao
meu lado e continuou, apesar da distância. Ao meu irmão, Leandro Marques, que sempre me
apoiou nas horas a fio de conversa. Às minhas tias-mães, Silvany Pereira e Eurani Gomes,
que sempre cuidaram de mim e em todos os momentos difíceis estiveram comigo. Ao meu
avô, seu Tarcísio, quem todas as vezes em que eu voltava para o interior me tratava como seu
filho e me dava forças para continuar nesta caminhada. Este infelizmente não está mais entre
nós, mas dedico-lhe e o agradeço pela força que é na minha vida. À minha família que se
encontra no Rio de Janeiro: tio, tias, primos e minha avó, que sempre me apoiaram e me
ajudaram de todos os modos que puderam. À minha melhor amiga e esposa, Conceição
Soares, com quem dividi todos os momentos de sofrimento, angústias e felicidades na escrita
desta dissertação. Que me ajudou, brigou e orientou. Obrigado por ser minha companheira na
dificuldade e no sorriso. À minha cunhada, Michele Soares, que me aturou em todos os
momentos e, como uma família, me ajudou a enfrentar as dúvidas e fraquezas que tive no
processo. Ao meu melhor amigo e pai de santo, Ryan Alef, que me acolheu, cuidou de mim,
brigou e orientou. Obrigado por me aturar em horas de conversa sobre a academia e em tudo
que me custou e como me orientou para continuar nesta jornada. Obrigado por me mostrar
que a espiritualidade é a base fundamental de nossa existência. Ao meu orientador, prof. Dr.
Marco Bonfim, que dedicou horas para me explicar o que é a ADC e a sua paciência para me
orientar. Obrigado pela sua orientação, que, de fato, me orientou.
Ao meu co-orientador, prof. Dr. Luís Tomás Domingos (UNILAB), que me ajudou muito nas
reflexões filosóficas e no aparato filosófico do texto.
À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de
mestrado que possibilitou recursos e investimentos na minha caminhada acadêmica.
Por fim, agradeço a Oxalá, aos meus guias e à espiritualidade, que sempre me ajudaram e
escutaram em todo o processo de escrita. Sem ela nada disso seria possível.
Exu tu que és o senhor dos caminhos da
libertação do teu povo sabes daqueles que
empunharam teus ferros em brasa contra a
injustiça e a opressão.

(Abdias do Nascimento).
RESUMO

Esta dissertação de mestrado, inserida dentro do campo interdisciplinar composto por


Filosofia e Análise de Discurso Crítica, teve como objetivo geral analisar a manifestação do
racismo epistêmico em trechos da obra Metafísica escrita por Aristóteles por meio das
maneiras como a prática filosófica aristotélica produz um silenciamento discursivo da
filosofia kemética. Para tanto, fundamentamos por um lado na filosofia produzida por
filósofos (as) negros (as) (NOGUERA, 2014; JAMES, 1954; CARNEIRO, 2005; OBENGA,
2004) e, por outro, na abordagem dialético-racional da Análise de Discurso Crítica
(FAIRCLOUGH, 2001; 2003) combinando-a com os conceitos de silenciamento discursivo
(ORLANDI, 2007) e os modos de operacionalização da ideologia (THOMPSON, 2011). Em
termos de metodologia, a pesquisa foi qualitativa, de tipo interpretativa-documental utilizando
a categoria do significado representacional por meio das noções de interdiscursividade e
intertextualidade para analisar os excertos da obra Metafísica. Concluímos que o modo como
Aristóteles representa a filosofia em seu discurso, bem como sua definição do conhecimento
elaboram um silenciamento discursivo de outras possibilidades filosóficas. Este silenciamento
ocorre por meio da utilização das estratégias de racionalização, universalização e
narrativização (THOMPSON, 2011), instituindo um modo de representar o discurso filosófico
de Aristóteles, fundando assim uma forma de apresentar os conhecimentos keméticos como
não tendo legitimidade. Concluímos também que a relação entre racismo epistêmico e
silenciamento discursivo causa um silenciamento da história e dos sujeitos negros/as como
produtores de conhecimento, reverberando assim a consequências sociorraciais que
observamos nos dias atuais.

Palavras-chave: Filosofia; Análise de Discurso Crítica; Racismo Epistêmico;Silenciamento


discursivo.
ABSTRACT

This master’s dissertation, inserted in the interdisciplinary field composed of Philosophy and
Critical Discourse Analysis, aims to analyze the manifestation of epistemic racism in the work
Metaphysics written by Aristotle through the ways in which Aristotelian philosophical
practice produces the discursive silencing of Kemetic philosophy. For this purpose, on the
one hand, we are based on the philosophy produced by black philosophers (NOGUERA,
2014; JAMES, 1954; CARNEIRO,2005; OBENGA, 2004) and, on the other hand, on the
dialectical-rational approach of Critical Discourse Analysis (FAIRCLOUGH, 2001; 2003)
combining it with the concepts of discursive silencing (ORLANDI, 1992) and the ways of
ideology operationalization (THOMPSON, 2011). In terms of methodology the research is
qualitative, of an interpretive-documentary type, using the category of representational
meaning through the notions of interdiscursivity and intertextuality to analyze excerpts from
the work Metaphysics. In the analysis, we show how Aristotle represents philosophy in his
discourse, as well as his definition of knowledge elaborate a discursive silencing of other
philosophical possibilities. This silencing occurs through the use of strategies of
rationalization, universalization and narrativization (THOMPSON, 2011), establishing a way
of representing Aristotle represents philosophical discourse, thus grounding a way of
regarding Kemetic knowledge as not having legitimacy. We also conclude that the
relationship between epistemic racism and discursive silencing causes the silencing of black
subjects and their history as producers of knowledge, thus reverberating in socio-racial
consequences that we observe today.

Keywords: Philosophy; Critical Discourse Analysis; Epistemic Racism; Discursive silencing


LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Síntese da Análise ............................................................................................... 74

Quadro 2- Esquema da Análise ............................................................................................. 80


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 1

2 FILOSOFIA AFRICANA: LEGITIMAÇÃO E NOVOS RUMO PARA A


FILOSOFIA .................................................................................................................... 6

2.1 A Filosofia Africana: desenvolvimento e possibilidades epistemológicas.. ................... 6

2.2 A origem africana da filosofia....................................................................................... 13

2.3 A Filosofia Africana (antiga) no Brasil: legitimidade e consolidação .......................... 22

2.4 A filosofia grega: sistematização de um não grego....................................................... 26

2.5 Racismo Epistêmico e epistemicídio: dois lados da mesma moeda ............................. 31

3 DISCURSO, POLÍTICA DO SILÊNCIO E AS FORMAS DE OPERAÇÃO DA


IDEOLOGIA ................................................................................................................. 37

3.1 Análise de Discurso Crítica: a perspectiva dialético-relacional .................................. 37

3.1.1 Discurso, poder e ideologia: conceitos essenciais ............................................................ 39

3.2 Norman Fairclough e o método tridimensional do discurso ....................................... 43

3.2.1 A reformulação da ADC faircloughiana: o discurso como ação, representação emodos de


ser ................................................................................................................................... 44

3.2.2 O significado representacional: o discurso como modos de representar ........................... 46

3.3 A política do silêncio e as estratégias de operação da ideologia ................................... 48

3.3.1 Pôr em silêncio: a política do silenciamento .................................................................... 49

3.3.2 O conceito de ideologia: modos de operacionalização e estratégias ................................. 53


4 O RACISMO EPISTÊMICO NA PRÁTICA FILOSÓFICA ARISTOTÉLICA: UMA
ANÁLISE LINGUÍSTICO-DISCURSIVA DO SILENCIAMENTO DA FILOSOFIA
KEMÉTICA .................................................................................................................. 60

4.1 Metodologia ................................................................................................................... 60

4.1.1 Categorias de Análise ..................................................................................................... 62

4.1.2 Corpus de Análise ........................................................................................................... 63

4.2 Análise linguístico-discursiva do silenciamento discursivo da filosofia kemética ...... 65

4.2.1 O significado representacional: o discurso como modo de representar e aoperacionalização


da ideologia ..................................................................................................................... 65

4.2.2 Análise dos discursos: A definição e caracterização da Filosofia ..................................... 66

4.2.3 O estabelecimento da hierarquia entre os saberes: silenciamento discursivo e racismo


epistêmico ....................................................................................................................... 74

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 80

REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 84
1

1 INTRODUÇÃO

Minha paixão pela filosofia começa muito cedo, desde o ensino médio, quando eu
já me interessava por aquelas reflexões avulsas que eu pouco entendia. As aulas eram curtas e
o professor sequer era formado na área, mas o que passei a viver a partir das indagações - os
temas, a escuta pela primeira vez da frase socrática “Só sei que nada sei” e as horas refletindo
sobre esta frase tão simples que diz muita coisa sobre o conhecimento, ou seja, uma questão
de sempre conhecer os limites de nossa capacidade de conhecer - me instigaram. Tudo isso
fez parte do ímpeto de um jovem negro do interior do Ceará por procurar, por mais que não
fosse convencional, visto que o comum era querer fazer outro curso, a filosofia e de ser
professor de Filosofia.

Ao entrar no curso de Filosofia, um ano após ter terminado o ensino médio, me


deparei com uma realidade muito complexa, mas foi lá que me reconheci enquanto negro e
vivenciei inúmeras situações que comprovaram isso. Após me reconhecer enquanto este corpo
que sofre constantes violências simbólicas e físicas comecei a me questionar sobre a presença
do racismo na filosofia e sobre a ausência de filósofos e filósofas negras no componente
curricular e em como isso não incomodava ninguém, pois estava naturalizado que todo
filósofo era branco, homem e europeu.

Deste modo, pensar a construção da filosofia sobre outras perspectivas que não a
eurocêntrica coloca-nos em outros patamares de discussão sobre produção filosófica e até
mesmo sobre o que seria a própria filosofia. Mexer com a filosofia é mexer com o “bichinho
de pelúcia do Ocidente”1, visto que é algo quase intocável em termos de mudar o centro da
produção filosófica em que há bastante tempo a Europa vem se colocando enquanto tal, para
outro centro de produção, no caso a África e a América do Sul. Tais ponderações me
perseguiram em quase todos os meus quatro anos de graduação em Filosofia.

Em uma aula de Filosofia me deparei com um professor que comentou que seria
impossível haver filosofia africana, pois os negros nunca produziram filosofia alguma. No
mesmo instante pensei o que estava fazendo naquele curso, já que sou negro e estou

1
Título dado a entrevista concedida a Revista O Globo em fevereiro de 2015 pelo prof. Dr. Renato Noguera, que
expõe a problematização do nascimento da filosofia na Grécia. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/renato-noguera-professor-pensador-filosofia-o-bichi
nho-de-pelucia-do-ocidente-15415321.
2

estudando justamente o que aquele professor disse que eu nunca conseguiria produzir. Fiquei
em vários dilemas até conhecer, por meio da exímia professora do curso de Pedagogia da
Universidade Federal do Ceará, Dra. Sandra Petit, na disciplina de Cosmovisão Africana, a
Filosofia Africana. Nessa caminhada, acabei conhecendo a obra O Legado Roubado:
Filosofia Grega é Filosofia Egípcia Roubada (1954) do filósofo negro e estadunidense
George James.

Em primeiro momento, estranhei toda a discussão feita pelo autor e


principalmente pelo subtítulo “Filosofia Grega é Filosofia Egípcia Roubada”. Já que isso
contrariava tudo aquilo que eu tinha estudado durante a minha graduação sobre os gregos: “o
milagre grego”, o nascimento da Filosofia na Grécia. Demorei um tempo para lê-lo, pois não
me sentia preparado para a discussão suscitada pelo filósofo. Contudo, no momento em que li
a referida obra, abriu-se uma nova forma de enxergar e ver a filosofia como eu nunca tinha
compreendido, e muitos dos dogmas que eu acreditava caíram, como o principal: “de que a
filosofia é grega”. Então, comecei a entender como havia uma miríade de possibilidades
filosóficas que me eram negadas e uma delas é a africana/egípcia.

Instigado pelos questionamentos de James e pelos caminhos que foram abertos


para mim pela filosofia africana, decidi que iria me aprofundar e que queria demonstrar, de
modo acadêmico, como a tese de James tinha (tem) fundamento e pode ser comprovada.
Infelizmente me era inviável fazer isso pelos programas de pós-graduação em Filosofia do
Ceará, visto que, embora tenhamos em nosso país várias/os filósofas/os habilitados neste
campo, aqui no Estado do Ceará isso ainda não é uma realidade; o que me restava eram
apenas programas que não eram na área da Filosofia como Letras, História ou Pedagogia.
Depois de tantas buscas encontrei o Mestrado Interdisciplinar em Histórias e Letras da UECE,
campus Quixadá, no qual contém a linha de pesquisa em Gênero, Raça e Identidades,
inclusive, uma das poucas pós-graduações do Ceará que dispõem de uma linha de pesquisa
com esses temas e que se propõem interdisciplinar.

Além disso, o MIHL me proporcionou a oportunidade de participar do Grupo de


Estudos Discurso, Identidades, Raça e Gênero (GERDIG/UECE/UFPE) coordenado pelo
Prof. Dr. Marco Antônio Lima do Bonfim, meu orientador, vinculado à linha 2 e que tem
como projeto de pesquisa “Por uma Linguística Aplicada negro-diaspórico e interseccional: a
perspectiva decolonial nos estudos da linguagem”. No GEDIRG, foi onde pude compreender
mais sobre a relação entre linguagem, racismo e gênero, bem como aprofundar minhas
3

indagações e construir relações que permanecerão para além da pós. Dentro do grupo me foi
propiciado, além da produção do conhecimento, a solidariedade e a responsabilidade coletiva
de construir um grupo tão sério como o GEDIRG, que, mesmo em tempos de pandemia2,
produzimos bastante.

Deste modo, o MIHL se tornou o lugar onde consegui encaixar minha pesquisa e
estudos, mesmo diante da pandemia que impossibilitou a experiência presencial do mestrado.
Foram enriquecedoras as experiências e os debates/reflexões nas disciplinas sempre muito
bem alinhadas a ajudar nas pesquisas dos mestrandos. Demorou um pouco para me encontrar
na pesquisa que começou de uma forma e está “finalizando” de um modo totalmente diferente
do que havia pensado, no sentido de método, objeto e objetivos, mas não em seu foco
principal: a denúncia do racismo epistêmico que é fundamentado desde os tempos antigos da
filosofia, ou melhor, a denúncia do racismo antinegro, por meio da via do conhecimento
dentro da filosofia.

Diante do exposto, esta dissertação pretende elucidar as seguintes problemáticas:


De que modo o racismo epistêmico relativo ao silenciamento da filosofia africana atua no
discurso filosófico produzido por Aristóteles? Quais os modos de operação da e as suas
estratégias de funcionamento no que se refere às formas de silenciar a filosofia africana
enquanto um saber filosófico legítimo? E por último: Por que esse modo de representar a
filosofia africana constitui uma política do silêncio?

Através dessas problemáticas, esta pesquisa teve como objetivo geral: analisar
discursivamente a manifestação do racismo epistêmico na obra Metafísica escrita por
Aristóteles por meio das maneiras como a prática filosófica aristotélica produz um
silenciamento discursivo da filosofia kemética. Para o alcance do objetivo geral, foram
determinados os seguintes objetivos específicos: a) identificar, no discurso filosófico
aristotélico, qual (quais) o (s) modo (s) de operação da ideologia bem como sua(s)
estratégia(s) de funcionamento no que se refere às formas de silenciar a filosofia africana
enquanto um saber filosófico legítimo; b) analisar, no discurso filosófico aristotélico, os
modos de representação da filosofia a partir do significado representacional postulado pela
análise de discurso crítica; c) Demonstrar a importância da perspectiva interdisciplinar para a
desnaturalização do discurso que reproduz o racismo epistêmico relativo à filosofia africana.

2
A pandemia do COVID-19, também conhecida como pandemia de coronavírus, foi (é) uma pandemia causada
pela doença do vírus conhecido como Cronavírus e que teve início em 2019. O coronavírus é uma doença que
ataca diretamente o sistema respiratório.
4

Seguindo as problemáticas e objetivos, esta dissertação investigou a obra de


Aristóteles por ser considerado um dos principais sistematizadores da filosofia. Focalizamos a
obra “Metafísica”, já que o principal objeto da obra é o conhecimento e a definição de uma
ciência unificadora, efetuamos3 uma análise de discurso crítica do discurso filosófico de
Aristóteles.

Quando se trata da análise do discurso filosófico encontramos poucas pesquisas


sobre o assunto. A partir de consulta na internet, chegamos a dois estudos que realizam uma
análise do discurso filosófico. O primeiro foi a tese de doutorado escrita por Williane Viriato
Rolim intitulada “Análise do Discurso Filosófica: um caso de autoconstituição discursiva”
(2007), que investiga através do conceito de Discurso Constitutivo da Teoria de Enunciação
de Dominique Maingueneau e Frédérick Cossutta, como a filosofia se constitui
discursivamente como um tipo de conhecimento específico que é a base constitutiva para
outros discursos. A autora tem como corpus de análise o diálogo Eutidemo de Platão, diálogo
no qual Platão satiriza as falácias discursivas utilizadas pelos sofistas por meio do método
dialético. Rolim conclui, então, por meio dos jogos da dialética, que os procedimentos
discursivos utilizados por Platão na organização dos diálogos e, mais especificamente, do
Eutidemo, estão a serviço de um propósito mais amplo de estabelecimento de um gênero
discursivo específico.

O segundo estudo foi o primeiro capítulo do livro “Discurso e Cultura” (2018),


especificamente o volume 2, organizado por Jarbas Vargas Nascimento (um dos autores do
capítulo) e Anderson Ferreira. O capítulo em questão é escrito por Jarbas Vargas Nascimento
e Marcel Fernandes Gugoni, intitulado “A autoconstituição do discurso filosófico sobre a
verdade em tempos de pós-verdade” que tem como objetivo investigar por meio da Análise do
Discurso de linha francesa, o modo como o discurso filosófico encena a verdade nas
condições atuais da pós-verdade. O corpus é o recorte do discurso “Verdade e política”
produzido por Arendt e publicado em “Entre o passado e o futuro” que discute a relação entre
a verdade e a política fundamentada por uma abordagem da Filosofia Política.

3
O uso da primeira pessoa do plural se deu neste momento do texto e continuará ao longo da dissertação pelo
fato que ela foi pensada e articulada entre duas mentes e até mais. Por isso, a maioria do texto, tirando os
primeiros parágrafos desta introdução, está escrito na primeira pessoa do plural, pois não foi apenas “eu” que
pensei e articulei tudo aqui contido, mas “nós”, eu, meu orientador, minha família, minha comunidade, etc.
Entendemos o texto não apenas como um objeto individual, mas coletivo, como demonstraremos várias vezes
nesta dissertação.
5

Suas conclusões são que, por meio da análise do discurso de Arendt, as estratégias
linguístico-discursivas evidenciam uma contradição entre a verdade racional, fruto da razão e
da própria construção do saber e a verdade factual, sujeita à disputa política por força da
opinião, sendo essa a que melhor contrapõe à condição de pós-verdade e ao tematizar a
relação da verdade com a pós-verdade, em uma perspectiva discursiva, refletiram também
sobre o modo como os enunciados enunciam a realidade e como, em uma era de pós-verdade,
muitos enunciados visam a subverter a verdade.

O que podemos notar nas duas investigações apresentadas, é que são


propriamente análises do discurso filosófico, mas, não análises críticas do discurso filosófico.
Em nossas pesquisas bibliográficas não encontramos tal análise, apenas análises do discurso
filosófico e ainda em pouco número. Diante do exposto, a relevância desta pesquisa reside
em: a) realizar uma análise de discurso crítica do discurso filosófico aristotélico, tendo em
vista que quase não há pesquisas no campo da ADC com foco no discurso filosófico como
objeto de pesquisa; b) demonstrar, através da articulação entre os Estudos Críticos da
Linguagem e Filosofia, o silenciamento discursivo da filosofia africana; c) o fato deste estudo
ser uma pesquisa interdisciplinar entre filosofia e análise do discurso crítica.

A dissertação está estruturada em seções. A começar com esta seção


introdutória, no qual apresentamos a contextualização do problema, os objetivos e a
justificativa da pesquisa. Na seção dois, apresentamos a contextualização e discussão sobre a
Filosofia Africana, sua legitimidade e princípios, bem como sua recente adesão no Brasil.
Além disso, explanamos acerca da filosofia grega através de um não-grego, isto é, Aristóteles,
e os conceitos de racismo epistêmico e epistemicídio e sua relação com a filosofia ocidental.
Na terceira seção, nos debruçamos sobre a Análise de Discurso Crítica, sua origem, principais
conceitos e categorias. Nesta seção, articulamos os conceitos de ideologia segundo Thompson
(2011) e o de política do silenciamento de acordo com Orlandi (2007) juntamente com os
propósitos da ADC para finalizarmos o capítulo com a abordagem que seguimos na análise, a
abordagem de Norman Fairclough (2001; 2003). Na quarta seção, apresentamos a
metodologia, a composição do corpus e as categorias de análise, bem como efetuamos a
análise discursiva do racismo epistêmico. E por fim, na última seção, discutimos sobre os
resultados da análise e possíveis considerações finais.
6

2. FILOSOFIA AFRICANA: LEGITIMAÇÃO E NOVOS RUMO PARA A


FILOSOFIA

Nesta seção, apresentamos uma das partes da fundamentação teórica que alicerça
esta dissertação, isto é, a Filosofia Africana. A outra parte seguirá depois desta enquanto uma
seção sobre Análise do Discurso Crítica. Iniciaremos explanando sobre a filosofia africana,
compreendendo assim seus desenvolvimentos e possibilidades epistemológicas, Okura
(2002), Outlaw Jr. (2004) e Towa (2015) são essenciais no início deste capítulo, além de
James (1954), Obenga (2004) e Diop (1974) que são utilizados para fundamentar a
problematização da origem da filosofia na Grécia. Neste capítulo, também discutimos sobre a
filosofia africana, elaborando um levantamento teórico da produção brasileira sobre o assunto.
Depois, tratamos sobre a filosofia grega segundo Aristóteles e, por fim, expomos os conceitos
de epistemicídio com Sueli Carneiro (2005) e de racismo epistêmico de acordo com Noguera
(2014), Grosfoguel (2011; 2016) e Ocoró (2020; 2021).

2.1 A Filosofia Africana: desenvolvimento e possibilidades epistemológicas

A discussão sobre a existência ou não da filosofia africana é um debate que vem


se consolidando cada vez mais. Não é o objetivo deste trabalho aprofundar ou dar
continuidade a esta questão, no entanto, é necessário que passemos ao menos por essa
encruzilhada para adentrarmos no que de fato nos importa. Como discorre Outlaw Jr. (2004),
a concepção “Africana Philosophy” é uma conceitualização recente e é uma noção que sugere
e acena para diversas orientações e empenhos filosóficos profissionais, ou não, que estão
dedicados a problemas pertinentes aos povos e indivíduos africanos e em diáspora. Em suas
palavras: “Africana Philosophy, então, destina-se a facilitar a organização do passado,
presente e futuro de articulações e práticas ‘filosóficas’ por descendentes de africanos e a
partir de seus interesses” (OUTLAW, JR., 2004, p. 90).
7

Assim, a definição da Filosofia Africana se instaura como uma utilidade sob a


coleta e organização de elaborações filosóficas, como escritos, discursos, etc e práticas de
africanos e de descendentes de africanos. Deste modo, a orientação inicial desta noção é,
então, ocupar-se com o discurso filosófico de pessoas etnicamente identificadas,
especificamente, com pessoas de ascendência africana. Por essa razão, Outlaw Jr. dialoga com
Marien Towa (2015), pois o problema da existência da filosofia não tem uma relação de
legitimidade a partir de outros povos, ou seja, não precisa da aprovação dos Europeus, pois a
única resposta possível para o problema é “que aqueles que a apresentam estejam, antes de
tudo, de acordo com o que eles entendem por filosofia” (TOWA, 2015, p.17).

Entretanto, o problema sobre a legitimidade da filosofia africana sempre perpassa


e retoma ao problema “o que é filosofia?”, uma pergunta perigosa e que muitas vezes é
evitada por diversos filósofos, mas que não pode ser evitada, visto que é ela que fundamenta o
problema da existência de uma filosofia africana. De acordo com o filósofo camaronês, citado
anteriormente, Marcien Towa:

Para se ter uma ideia da natureza da filosofia, é necessário partir das obras ditas
filosóficas, interrogá-las e interrogar também as disciplinas que têm o nome de
filosofia. Ora, essas obras são europeias, esse nome é europeu e é, antes de mais
nada, nas universidades europeias que a disciplina chamada filosofia é ensinada há
alguns séculos. Fazer essas constatações não significa afirmar que a filosofia é
exclusivamente europeia, significa, menos ainda, se pronunciar sobre a oportunidade
de adotar ou de rejeitar a filosofia europeia. É simplesmente procurar descobrir a
realidade designada pela palavra ‘filosofia'. Somente quando a realidade que os
europeus designam pela palavra "filosofia” for bem apreendida é que se tornará
possível pronunciar-se sobre sua extensão e sobre seu valor (TOWA, 2015, p. 26)

O interessante da reflexão proposta pelo filósofo é que para conseguirmos


designar e reconhecer a filosofia africana é necessário que procuremos descobrir a realidade
da palavra “filosofia”, que é tomada como sendo propriamente europeia. Mas será mesmo se
é? Segundo o filósofo estadunidense Molefi Kete Asante (2004) no seu breve texto intitulado
“An African Origin of Philosophy: Myth or Reality?”:

A premissa é falsa na medida em que os estudiosos revelaram que a origem da


palavra “filosofia” não está na língua grega, embora venha do grego para o inglês.
De acordo com dicionários de etimologia grega, a origem dessa palavra é
desconhecida. Mas isso é assim se você está procurando pela origem na Europa. A
maioria dos europeus que escrevem livros sobre etimologia não consideram as
línguas zulu, xhosa, yorubá ou amárico, quando chegam a uma conclusão sobre se a
origem da palavra é conhecida ou desconhecida. Eles nunca pensam que um termo
usado por uma língua europeia pode ter vindo da África (ASANTE, 2004, p.1).
8

Por que não poderia vir do continente africano a origem desta palavra? Ainda na
guisa de Asante (2004), a palavra “filosofia”, como ela chegou até nós a partir do grego
"Philo", que significa amigo ou amante, e "Sophia", que significa sabedoria ou sábio. Deste
modo, o filósofo é chamado de "amante da sabedoria". A etimologia da palavra "Sophia" está
evidente na língua africana Mdu Ntr, a língua do antigo Egito, onde a palavra "Seba", que
significa "o sábio", aparece pela primeira vez em 2052 a.C., no túmulo de Antef I, muito antes
da existência da Grécia ou do grego. A palavra tornou-se "Sebo” em copta e "Sophia" em
grego.

Desta forma, o amante da sabedoria, é precisamente aquilo que se entende por


"Seba", o Sábio, em escritos antigos de túmulos egípcios (ASANTE, 2004). Essa colocação é
totalmente coerente com o fato de os mitos gregos terem aprendido filosofia no Egito, pois na
época não havia Alemanha, França, Inglaterra ou mesmo o continente europeu como
entendemos hoje, para os gregos irem lá estudar. Eles foram beber de outras fontes.

Dito isso, responde-se em breve palavras a colocação de Towa (2015) sobre a


definição da palavra filosofia. Marcien Towa (2015, p. 26) pondera ainda que “por que seguir
o caminho da palavra europeia “filosofia’ e de suas obras europeias de filosofia para descobrir
(ou redescobrir) a realidade da filosofia”? Não poderíamos, também, partir de uma palavra
africana (…)?” Como já demonstramos, a palavra filosofia pode ser oriunda do Egito e não da
Europa como muitos pensam.

Pensando por esses termos, nós mudamos todo o centro da produção filosófica e
até mesmo da compreensão de filosofia. Ora, não é à toa que Theóphile Obenga (2004)
discorre que a filosofia africana precisa ser entendida como um fato histórico e que deve ser
compreendida por meio de recorte histórico. Neste caso, a origem, evolução e
desenvolvimento da filosofia Africana seguem os fluxos e correntes da história Africana. De
acordo com Obenga (2004), a filosofia africana não é um problema contemporâneo, mas já se
localizava principalmente no vale do Nilo, isto é, em Kemet ou antigo Egito, e em Kush
(Napata-Meroe). Deste modo, a filosofia floresceu no Egito de aproximadamente 3400 a.E.C.
a 343 a.E.C. e em Kush (também conhecida como Núbia ou Etiópia pelos gregos) de
aproximadamente de 1000 a.E.C. à 625 a.E.C.

Seguindo a linha de Obenga (2004) e Asante (2004), Yoporeka Somet (2016), que
Tales não seguiu lições de nenhum mestre se não no Egito onde ele frequentou os templos e
9

aprendeu dos egípcios a geometria, filosofia, astronomia, e, como sabemos, ele é dito como o
primeiro filósofo grego ao afirmar que a água é a origem de tudo. Além de Tales e Pitágoras,
outros precursores gregos no pensamento e nas ciências efetuaram a viagem do Egito ou, ao
menos, foram alimentados pelos conhecimentos egípcios.

Até o momento, estamos tentando traçar uma definição da filosofia africana


partindo desde sua própria origem, algo ainda muito complicado e difícil de sistematizar, pois
a disputa sobre a origem ou origens da filosofia é um terreno muito arenoso, seco, mas ao
mesmo tempo fértil, filosoficamente falando. À vista disso, é relevante que seja apresentado,
antes de adentrarmos ainda mais na discussão sobre a origem da filosofia africana, o que se
tem defendido como sua maior sistematização, isto é, a caracterização da filosofia africana
enquanto moderna/contemporânea.

Henry Odera Oruka foi um dos primeiros filósofos africanos que tentou
sistematizar a filosofia africana, em que até hoje seu modelo é utilizado como uma forma de
caracterizar as áreas de discussão da filosofia africana, ou melhor, as tendências da filosofia
africana. Em seu texto intitulado “Quatro tendências da atual filosofia africana” (2002), o
filósofo identifica que existem duas formas de definir a filosofia africana;

Em um sentido, a filosofia africana é explicada ou definida em oposição à filosofia


em outros continentes, mas em particular à filosofia ocidental ou europeia. Assume-
se que existe uma maneira de pensar ou um quadro conceitual que é exclusivamente
africano e que é ao mesmo tempo radicalmente não europeu. Portanto, a filosofia
africana é concebida como um corpo de pensamentos e crenças produzidos por essa
maneira única de pensar. Na medida em que a filosofia europeia é conhecida por
manifestar análise crítica e rigorosa, e explicação lógica e síntese, a filosofia
africana é considerada ingênua com relação a tais características. Ela é considerada
basicamente intuitiva, mística e contrária ou extra-racionalista. No outro sentido, a
filosofia em geral é vista como uma atividade ou disciplina universal. E, portanto, o
seu significado (se não o conteúdo) é considerado independente de limites e
especialidades raciais ou regionais. A filosofia é tomada como uma disciplina que,
em sentido estrito, emprega o método de investigação crítica, reflexiva e lógica. Não
é esperado, então, que a filosofia africana seja uma exceção a esse significado da
filosofia (OKURA, 2002, p.1).

O que o filósofo identifica são duas formas ou até mesmo correntes de


compreender o que é a filosofia africana. Se analisarmos o que foi escrito até agora,
encontraremos um pouco de extensão das duas, claro que não da mesma forma, pois enquanto
Towa (2015) de fato defende uma filosofia universal, Obenga (2004) e Asante (2004)
10

discorrem sobre uma filosofia africana própria, mas que em nenhum momento é
exclusivamente mística, extra-racionalista ou basicamente intuitiva.

Entretanto, além desses dois sentidos, segundo Okura (2002), existe um terceiro
sentido, que seria a articulação dos dois, mas que ainda não é muito claro e coerente. No
entanto, mesmo diante dessa miríade de significados e definições da filosofia africana,
existem quatro tendências que muito a definem: etnofilosofia, filosofia da sagacidade,
filosofia nacionalista-ideológica e filosofia profissional.

A etnofilosofia trata do aspecto da filosofia africana enquanto sendo,


naturalmente, diferente de outros, principalmente em comparação com os europeus. A lógica
e individualidade são duas características que definiriam os povos africanos como sendo
completamente diferentes dos povos europeus. Um grande exemplo de um filósofo dessa
tendência é Léopold Senghor, poeta, escritor e político senegalês, que argumentou que a
lógica é grega, assim como a emoção é africana.

É a lógica/razão em oposição a intuição/emoção, bem como a individualidade em


contraposição a coletividade, estes seriam os princípios fundamentais da filosofia africana.
Um dos seus primeiros expoentes nem africano era, o padre belga P.Tempels, que em sua
catequização (colonização) de alguns povos bantus do continente africano, detectou que
haveria a possibilidade de uma filosofia dos povos bantus e coloca em sua mítica filosófica
banta que a sabedoria dos bantos era baseada na filosofia da força vital e não na racionalidade.

Segundo Okura (2002), essa caracterização da filosofia africana a partir de


crenças, rituais, tabus, práticas coletivas e compreensões culturais de povos africanos sobre o
mundo, não seria estritamente uma filosofia, mas apenas "etnofilosofia”, pois a maioria das
obras ou livros (e a maioria deles são obras de antropólogos ou teólogos) que pretendem
descrever uma visão mundial ou sistema de pensamento de uma determinada comunidade
africana ou de toda a África, pertencem à etnofilosofia.

Deste modo, as obras escritas por tais antropólogos, como P. Tempels, por
exemplo, seriam tratados de antropologia e não de filosofia, além de nem serem textos
escritos por africanos, mas por europeus. Mas como não se pode excluir de algum modo esta
contribuição – ou não –, é melhor caracterizá-la de alguma forma. No entanto, a etnofilosofia
provocou críticas de círculos filosóficos rigorosos e produziu debates sobre a questão da
"filosofia africana". Na medida em que tais críticas e debates são fundamentais para inspirar e
11

moldar o desenvolvimento do pensamento filosófico na África, a etnofilosofia pode não ser


destituída de um papel útil na história filosófica de África (OKURA, 2002).

A filosofia da sagacidade, diferente da etnofilosofia, compreende a possibilidade


de se buscar na própria tradição africana aspectos que sejam da investigação lógica e dialética,
ela se centra na figura do homem ou da mulher sábios, focos de riqueza e sabedoria de
qualquer comunidade africana tradicional. De acordo com Okura (2002), a maioria desses
homens e mulheres são pensadores críticos independentes que orientam seus pensamentos e
julgamentos pelo poder da razão e da percepção inata, e não pela autoridade do consenso
comum. Eles são capazes de tomar um problema ou um conceito e oferecer uma análise
filosófica rigorosa deste, tornando claro, racionalmente, onde eles aceitam ou rejeitam o
julgamento comum ou estabelecido sobre o assunto.

Diante disso, a filosofia da sagacidade encontra duas questões relevantes; 1. que a


sagacidade, mesmo que envolva uma percepção e um raciocínio do tipo encontrado na
filosofia, não é ela própria uma filosofia no sentido apropriado, e; 2. que o recurso à
sagacidade é um regresso à etnofilosofia.

Para Okura (2002), diante dessas duas questões, a filosofia da sagacidade é apenas
o pensamento crítico e reflexivo de tais sábios. Difere fundamentalmente da etnofilosofia, na
medida em que é individualista e dialética. É um pensamento ou reflexão de vários
pensadores individuais conhecidos ou nomeados, não uma filosofia popular e, ao contrário do
último, é rigoroso e filosófico no sentido estrito.

Até o momento, nas tendências apresentadas, vemos uma preocupação com o


aspecto conceitual e estrutural da filosofia, não seu aspecto político ou ético, isto é, a
liberdade e a autonomia enquanto um continente livre das amarras da colonização europeia.
Entretanto, na terceira tendência identificada por Okura (2002), filosofia naciolista-
ideológica, estes dois aspectos são centrais para sua definição, pois a natureza exata e a
existência da filosofia africana permaneceriam obscuras, a menos que as buscássemos numa
base de teoria social clara para independência e para a criação de uma ordem social humanista
genuína.

A maioria das contribuições para essa tendência da literatura filosófica africana


até agora foram de políticos ou estadistas. Alguns dos trabalhos dessa tendência não são, no
sentido estrito, realmente filosóficos, mas diferem da etnofilosofia. Segundo Okura (2002),
12

ela não assume ou implica que o pensamento ou a filosofia europeia são radicalmente
diferentes ou irrelevantes para o pensamento africano e, em segundo lugar, os autores não dão
a impressão de que a filosofia que eles estão expondo não é deles, mas de toda a comunidade
ou do continente africanos.

A filosofia nacionalista-ideológica se difere também da etnofilosofia porque seu


objetivo é prático e possui problemas explícitos para resolver, nomeadamente os da liberdade
nacional e individual, enquanto a etnofilosofia aparece como uma metafísica apolítica,
segundo Okura (2002). Os grandes expoentes dessa filosofia são Marcus Garvey, Kwane
Nkrumah e Kwane Ture, que defendiam a necessidade de um programa filosófico que se
alinhasse aos interesses políticos, econômicos e culturais para a liberdade total do continente
africano.

Por último, temos a quarta tendência, filosofia profissional, que consiste em


trabalhos e debates de estudantes profissionalmente treinados e professores de filosofia na
África. A maioria deles rejeita os pressupostos da etnofilosofia. Para esses acadêmicos, a
filosofia é concebida como uma disciplina ou uma atividade cujo significado não pode
depender apenas de uma criação racial ou regional.

Nesta tendência, a filosofia é tomada no sentido estrito no qual envolve


investigação crítica, reflexiva e lógica. Ainda assim, é sustentado que deve haver uma
diferença significativa (não radical) entre a filosofia africana e, por exemplo, a filosofia
européia ou ocidental. Tal diferença ocorre por fatores culturais. Estas diferenças podem
causar disparidades quanto à metodologia filosófica, mas não no significado próprio de
filosofia.

Partindo disso, uma das críticas feita contra a filosofia profissional é que ela é
ocidental ou europeia e não africana. Argumenta-se que um aluno moderno ou um professor
de filosofia na África, por razões históricas, foi educado na lógica e filosofia ocidentais e não
aprendeu praticamente nada sobre a filosofia africana (OKURA, 2002). Deste modo, isso não
quer dizer que pelo fato de ser africano e ter estudado filosofia, necessariamente será um
adepto da filosofia africana.

Okura (2002) demonstra que existiram duas respostas bastante diferentes a essa
crítica. A primeira vem dos filósofos que tentam argumentar e oferecer provas históricas de
que o pensamento filosófico ocidental, tal como o conhecemos hoje, se originou do antigo
13

Egito, tais como Diop (1974), Asante (2004; 2006), Obenga (2004), e ainda que os
pensamentos do antigo Egito são a herança dos negros africanos. A segunda resposta vem
daqueles que argumentam que o conhecimento e os princípios intelectuais nunca são um
monopólio de qualquer raça ou cultura. É uma lei histórica do desenvolvimento intelectual
desde a qual as contribuições intelectuais em uma dada cultura são apropriadas e cultivadas
em outras culturas.

Assim, os gregos teriam tomado emprestado e transformado as ideias do antigo


Egito. O norte da Europa e os Estados Unidos fizeram o mesmo com as contribuições da
Grécia e por isso, não é aceito nessa resposta que os pensadores africanos só possam fazer sua
apropriação atual e iminente das contribuições filosóficas europeias relevantes e nativas, se as
ideias do antigo Egito forem uma herança dos africanos ou dos negros (OKURA, 2002).

Mas será mesmo que foi apenas um empréstimo? O pagamento desse empréstimo
ocorreu em algum momento? Sabemos, se ao lermos qualquer filósofo grego da antiguidade,
que nenhum tomará ou exemplificará os sacerdotes egípcios como sendo os precursores de
suas elucubrações filosóficas. Diante dessas quatro tendências nomeadas por Odera Okura
(2002), que são de extrema importância sistemática, esta dissertação se enquadra na quarta
tendência, por ser uma pesquisa de cunho acadêmico e profissional e tem como proposta dar
continuidade às discussões sobre a origem da filosofia no Egito iniciadas por Diop (1974) e
principalmente pelo filósofo estadunidense George James (1954), que na época não pensavam
em categorizar uma filosofia africana, mas provar que a própria filosofia é em sua realidade
histórica e cultural: africana.

Para tanto, é significativo que adentremos de modo mais aprofundado na


discussão sobre a origem da filosofia no Egito, bem como caracterizá-la enquanto um debate
sobre filosofia antiga (africana) e não apenas uma filosofia egípcia, visto que nomeá-la desta
forma acolhe ao trabalho do filósofo e historiador Théophile Obenga (2004).

2.2 A origem africana da filosofia

O problema sobre a origem da filosofia é um dos debates mais acentuados dentro


da filosofia por filósofos e filósofas negros/as. A ideia de que a filosofia nasceu na Grécia se
tornou uma doutrina inquestionável e inalienável construída pelos filósofos e filósofas
14

acadêmicos/as do mundo todo. Observamos em Giovanni Reale (1990), um dos autores mais
consagrados sobre história da filosofia, que a filosofia “seja como termo ou como conceito é
considerada pela quase totalidade dos estudiosos como uma criação própria do gênio grego”
(REALE, 1990, p.11). Até hoje as obras de Giovanni Reale, assim como suas teses são
utilizadas sem nenhum questionamento ou reflexão, porque apenas se constatou que a
superioridade dos gregos em relação aos outros povos do mundo está em ter concebido a
filosofia (REALE, 1990).
Ele reconhece que os egípcios formularam alguns conhecimentos matemático-
geométricos e que por causa disso desenvolveram uma razão, mas apenas com os gregos esses
cálculos atingiram um alto grau e foram sistematizados. Tais argumentos perduram nos dias
atuais dentro das universidades e das escolas e são poucos os que questionam ou filosofam
sobre o assunto. Diante dessa realidade, que não é nova, pois desde 1954, tanto Cheik Anta
Diop com sua obra a A Unidade Cultural da África Negra e George James com sua obra O
Legado Roubado, ambas lançadas no mesmo ano, discorrem sobre o fato de o Egito,
civilização ovacionada e glorificada pelo Ocidente, ser uma civilização exclusivamente negra
e que é base epistemológica de toda a ciência ocidental. Mesmo tal asserção sendo oriunda
desde Marcus Garvey, que teve uma obra organizada por sua esposa, Emy Garvey, em 1924,
intitulada Philosophy and Opinions of Marcus Garvey (Filosofia e Opiniões de Marcus
Garvey), na qual o pensador expõe que:

Mas, quando passamos a considerar a história do homem, não era o negro uma
potência, não era ele grande uma vez? Sim, estudantes honestos de história podem se
lembrar do dia em que Egito, Etiópia e Timbuktu elevavam-se em suas civilizações,
elevavam-se acima da Europa, elevavam-se acima da Ásia. Quando a Europa foi
habitada por uma raça de canibais, uma raça de selvagens, homens nus, pagãos e
pagãos, a África era povoado por uma raça de negros cultos, mestres em arte, ciência
e literatura; homens que eram cultos e refinados; homens que, dizia-se, eram como
os deuses (GARVEY, 2009, p. 48, tradução nossa, grifo nosso).

Não iremos entrar na discussão de quem iniciou tais reflexões sobre o povo negro,
mas sim mostrar como tal debate já era latente desde o início do século XX. O que Garvey
discorre é a tese fundamental de Diop desenvolvida em seu livro que causou tanta polêmica
como os outros, A Origem Africana da Civilização (1974), na qual o intelectual apresenta que
“Ocidente não tem sido calmo o suficiente e objetivo o suficiente para nos ensinar
corretamente a nossa história sem falsificações grosseiras” (DIO, 1974, p,16). Por esse
motivo, a tese principal e que nunca deve ser deixada de lado é a de que o Antigo Egito foi
uma civilização Negra. A história da África Preta permanecerá suspensa no ar e não pode ser
15

escrita corretamente até que historiadores Africanos se atrevam a conectá-la com a história do
Egito” (DIOP, 1974, p. 16).
Além disso, Diop (1974) defende que o pesquisador africano que evita o problema
do Egito não é nem modesto nem objetivo, ele é ignorante, covarde, e neurótico. À guisa de
Diop, podemos afirmar o mesmo sobre o filósofo dito africano, que evitar o problema do
Egito com relação a história da filosofia é um grande ato de covardia e por esse motivo não
iremos evitar este problema, mas adentrarmos.
Podemos afirmar tal postura, pois o próprio intelectual nos adverte que em vez de
apresentar-se a história como um devedor falido, o mundo dos egípcios é o próprio iniciador
da civilização "ocidental" ostentada diante de nossos olhos hoje:

A Matemática de Pitágoras, a teoria dos quatro elementos de Tales de Mileto, o


materialismo epicurista, o idealismo Platônico, o Judaísmo, o Islamismo, e a ciência
moderna estão enraizados na cosmologia e ciência Egípcia. É preciso apenas meditar
sobre Osíris, o deus-redentor, que se sacrifica, morre e é ressuscitado para salvar a
humanidade, uma figura essencialmente identificável com Cristo (DIOP, 1974, p.
17).

Em outras palavras, a dita filosofia grega tem suas raízes no Egito, bem como a
própria espiritualidade ocidental. Como ignorar este fato? Como silenciar estes dados? De
todo modo, o objetivo central de Cheik Anta Diop, é restaurar a consciência histórica dos
povos africanos (DIOP, 1974). Para começar com os próprios “egípcios”, já que não era este o
nome pelo qual os habitantes do nilo se identificavam. Tal denominação tem raiz na Grécia, é
como que um nome grego, nação que se civilizou e se unificou milênios depois da civilização
do Nilo, e que detêm o poder de nomear povos muito mais antigos que os seus. Os povos do
nilo chamavam sua terra de Kemit, isto é, terra preta e sempre que os Egípcios usam o termo
"pretos" (khem), é para designar a si mesmos ou seu país, Kemit, terra dos Pretos (DIOP,
1974).
Os Keméticos, então, são a base civilizacional do mundo e é impossível enfatizar
tudo o que o mundo, particularmente o mundo Helênico, deveu e deve aos keméticos. Os
Gregos apenas continuaram e desenvolveram, por vezes parcialmente, o que os Egípcios
tinham inventado. De acordo com Diop (1974), em virtude de suas tendências materialistas,
os Gregos despojaram essas invenções da couraça religiosa, idealista, em que os Egípcios lhes
tinham envolvido e isso não é de modo integral, pois muitos dos filósofos gregos carregam
consigo ideias religiosas, como Pitágoras e Parmênides, por exemplo.
16

Os conhecimentos ensinados em Kemit não eram conhecimentos que deveriam


ser publicados e expostos ao grande público, eles eram ensinados para poucos, como afirma
Diop (1974, p. 465);

o ensino científico, filosófico, era dispensado por leigos que se distinguiam das
pessoas comuns apenas pelo seu nível intelectual ou status social. Nenhum halo
santo os envolvia. Em "Ísis e Osíris", Plutarco relatou que, de acordo com o
testemunho de todos os estudiosos e filósofos Gregos ensinados pelos Egípcios,
estes últimos eram cuidadosos sobre secularizar seus conhecimentos. Sólon, Tales+,
Platão, Licurgo, Pitágoras encontraram dificuldade antes de serem aceitos como
alunos pelos Egípcios. Ainda de acordo com Plutarco, os Egípcios preferiram
Pitágoras por causa de seu temperamento místico. Reciprocamente, Pitágoras foi um
dos Gregos que mais reverenciou os Egípcios.

Observamos então que o Egito era de fato a terra clássica onde dois terços dos
estudiosos gregos foram para lá estudar. Na realidade, pode-se dizer que, durante a época
Helenística, Alexandria era o centro intelectual do mundo. Reunidos lá, estavam todos os
estudiosos gregos de quem falamos hoje. O fato de que eles foram treinados fora da Grécia,
no Egito, nunca pode ser subestimado e nem silenciado, pois suas teorias têm origem em seus
aprendizados com os sacerdotes keméticos.
No entanto, fica uma questão: uma vez que a origem Egípcia da civilização e os
extensivos empréstimos tomados pelos Gregos a partir dos Egípcios são historicamente
evidentes, por que a maioria dos acadêmicos salientam apenas o papel desempenhado pela
Grécia, enquanto subestimam aquele do Egito? Segundo Cheik Anta Diop, (1974), a razão
para esta atitude pode ser detectada meramente recordando-se a raiz da questão, ou seja, como
o Egito é um país negro, com uma civilização criada por pessoas negras, qualquer tese
tendendo a provar o contrário não teria futuro. Os protagonistas de tais teorias são conscientes
disso. Por isso, é mais sábio e mais seguro retirar o Egito, de forma simples e mais
discretamente, de todas as suas criações em favor de uma nação realmente branca, ou seja, os
helenos.
Toda essa problematização levantada por Diop (1974) e a preocupação para que,
principalmente, os negros africanos tenham consciência de seu status histórico e contribuição
para a civilização, não foi apenas uma busca por reconhecimento, mas comprovar, a partir dos
próprios métodos dos povos ocidentais, a prova de que a maior civilização antiga que já
existiu era negra.
Tal caminho não foi percorrido apenas por ele, que é um dos mais lidos dentro da
academia ocidental e que ainda não tem a sua grandiosidade reconhecida como deveria ter.
17

George James, filósofo negro dos Estados Unidos, foi o primeiro a pontuar não só a origem da
civilização africana no Egito, mas também da própria filosofia.
James é quem insere de forma detalhada e específica, a discussão sobre a origem
africana da filosofia e a consequência social da tese: “a filosofia é grega”, pois negar que os
egípcios produziram filosofia é negar a humanidade dos negros africanos e essa ideia seria
uma das grandes influenciadoras do racismo ocidental (JAMES, 1954).
Deste modo, a obra de James, Legado Roubado: Os Gregos Não Foram Os
Autores da Filosofia Grega, Mas as Pessoas do Norte de África, Comumente Chamados de
Egípcios de 1954 é, para este trabalho, uma das principais bases teóricas. A ideia de roubo
trazida por James é intrigante e pertinente, já que o autor se preocupa em expor como
conceitos/ideias egípcios foram roubados pelos gregos nas suas viagens ao Egito e em
nenhum momento houve o reconhecimento destas, ou seja, os gregos utilizaram essas ideias e
não creditaram nada aos egípcios, fazendo-nos acreditar que todos os conceitos filosóficos
utilizados por eles brotaram de suas cabeças.
A ideia de roubo ainda é infundada, no entanto, instiga-nos considerar a
possibilidade deste acontecimento como sendo uma das maneiras de praticar o racismo. De
fato, James promove uma argumentação incisiva ao afirmar que nunca houve filosofia grega;
“O termo filosofia Grega, para começar, é um equívoco, pois não há tal filosofia em
existência” (JAMES, 1954, p.2). No entanto, há inúmeros registros de filósofos ocidentais que
defenderam ideias extremamente absurdas, tais como: racismo, nazismo, machismo, entre
outras e mesmo assim não foram descreditados como James foi.
Há uma diferença de James para autores de sua época que estavam reivindicando
um Egito Negro e que assentaram as bases da civilização no Egito, George James teve a
audácia de inferir que os gregos usurparam e plagiaram a filosofia egípcia. Essa audácia, de
forma nenhuma foi aceita pela academia, gerando um esquecimento e a negação de sua obra,
ainda mais latente do que de outros intelectuais, como Diop (1954; 1974) e Obenga (2004).
Assim como Cheik Anta Diop (1974), o filósofo acreditava que deveria haver
uma mudança de mentalidade do povo negro, principalmente quando compreendessem que a
filosofia era oriunda do Egito e não da Grécia, assim ocorreria uma transformação do modo
como elas se veem e foram incutidas a verem, ou seja, como inferiores. Colocaria assim, os
povos negros em igualdade com todos os outros grandes povos do mundo que construíram
grandes civilizações. Em suas palavras: “com esta mudança na mentalidade do povo Preto e
Branco, grandes mudanças também são esperadas em suas respectivas atitudes em relação ao
outro, e na sociedade como um todo” (JAMES, 1954, p. 232).
18

No tocante à filosofia, uma das argumentações iniciais de James, como já dito,


que a própria filosofia grega não era grega, é justamente o fato de a filosofia ser uma prática
estranha aos próprios gregos, algo que os estados e muitos atenienses abominavam;

Outro ponto de interesse considerável para ser contabilizado foi a atitude do governo
Ateniense para esta então chamada Filosofia Grega, a qual era considerada de
origem estrangeira e tratada em conformidade. Apenas um breve estudo da história é
necessário mostrar que os filósofos Gregos eram cidadãos indesejáveis, que durante
todo o período de suas investigações foram vítimas de perseguição implacável, nas
mãos do governo Ateniense. Anaxágoras foi preso e exilado; Sócrates foi executado;
Platão foi vendido como escravo e Aristóteles foi indiciado e exilado; enquanto o
mais antigo de todos, Pitágoras, foi expulso de Crotona na Itália (JAMES, 1954,
p.16).

Os filósofos que são hoje em dia consagrados pela filosofia ocidental, eram
pessoas indesejáveis para o seu próprio estado, pois ensinavam ou transmitiam ensinamentos
estranhos, inóspitos, com deuses estrangeiros e que corrompiam a juventude. Além desse fato,
há outro que denota também certa curiosidade, pois, basicamente, toda a filosofia grega é a
continuação das discussões iniciadas por Pitágoras, filósofo que passou anos no Egito e foi
educado pelos sacerdotes egípcios, pois encontramos incluídas no sistema Pitagórico as
doutrinas dos opostos (masculino e feminino; impar e par), harmonia (equilíbrio entre os
opostos) e a própria mente como uma força cosmológica, além da imortalidade da alma, ideia
fortemente defendida por Platão.
Um exemplo claro da concepção dos opostos é demonstrada pela história da
criação Egípcia, na qual a Ordem saiu do Caos e que foi representada por quatro pares de
opostos ou seja, Deuses do masculinos e femininos; (a) Nun e Naunet: matéria primordial e
Espaço; (b) Huk e Hauket: Ilimitável e o Ilimitado; (c) Huh e Hauhet: Escuridão e
Obscuridade. Assim, é evidente que a doutrina dos opostos era uma filosofia básica dos
Egípcios, estando conectada não só com os Deuses de seus dramas de Mistério, mas com a
sua Cosmologia, e uma vez que esta conexão faz da doutrina uma das primeiras no
desenvolvimento do pensamento Egípcio, que antecede o reinado de Menes, e significa que os
egípcios estavam familiarizados com ela antes de 3000 A.C (JAMES, 1954).
Desta maneira, James, sendo contemporâneo de Diop e não tendo muita ligação
ou qualquer relação acadêmica ou pessoal com o intelectual chega a conclusões e urgências
semelhantes ao pensador senegalês e vice-versa. Cheik Anta Diop e George James foram os
primeiros a se atreverem em escrever obras inteiras argumentando sobre o fato de o Egito ser
uma civilização negra e, além disso, de ser a base de toda a civilização ocidental, seja
intelectual ou cultural. Apresentar que os egípcios são negros é admitir que os habitantes do
19

Nilo educaram e civilizaram o glorioso paraíso intelectual de todo/a filósofo/a ocidental, ou


seja, a Grécia.
Dando continuidades aos argumentos sobre o surgimento da filosofia no Egito, ou
melhor, as origens da filosofia no Nilo, outro filósofo, um dos poucos, que anda nos caminhos
de James (1954) e Diop (1974), é o filósofo e historiador congolês Theóphile Obenga. Tem
importantes obras que sistematizam as discussões sobre filosofia egípcia e da história do
antigo Kemet, como, African Philosophy – The Pharaonic Period: 2780-330 BC (Filosofia
Africana – O período faraônico: 27800-330 BC) de 2004 e L’Égypte, la Grèce et l’école
d’Alexandrie – Histoire interculturelle dans l’Antiquité – Aux sources égyptiennes de la
philosophie grecque (Egito, Grécia e a Escola de Alexandria – História Intercultural na
Antiguidade – Fontes Egípcias da Filosofia Grega) de 2005. Duas obras que não têm
tradução no Brasil.
Obenga (2004) defende, assim como Diop (1974) e James (1954), a existência da
filosofia no Egito antigo, visto que “é um mero preconceito acreditar que a época filosófica da
humanidade começa primeiro entre os gregos no quinto século a.E.C” (OBENGA, 2004, p.1).
É um desvio histórico e até mesmo filosófico dizer que os povos antigos não se detiveram no
pensamento especulativo e que não foram capazes de sistematizar suas experiências em
reflexões além da própria experiência. Por isso, Obenga (2004), define filosofia como sendo
um pensamento reflexivo e sistemático sobre a vida.
Diferente dos dois intelectuais supracitados, Obenga (2004), não apenas alega a
existência da filosofia no Egito antigo, mas que a filosofia sempre lida com o conhecimento
humano e a elevação da mente, logo ela é uma qualidade da natureza humana e,
consequentemente, existiu (existe) em todas as civilizações. Por isso, a futura filosofia do
mundo deve então considerar os grandes sistemas especulativos de toda a humanidade, não só
de apenas um povo.
O que estamos tratando, então, a guisa de Obenga (2004), não é sobre a história
da filosofia ocidental ou da filosofia mundial, mas, especificamente, da filosofia africana que,
assim como as outras filosofias, segue os fluxos e correntes da própria história do continente
africano. A história da filosofia africana demonstrou relações com outros continentes,
principalmente com a Europa, desde o mundo greco-romano.
Partindo disso, Obenga (2004), alega que a filosofia africana, e não filosofia de
modo geral, surgiu e localizava-se principalmente no vale do Nilo, isto é, em Kemet ou antigo
Egito, e em Kush (Napata-Meroe). A filosofia floresceu no Egito de aproximadamente 3.400
a.E.C. a 343 a.E.C. e em Kush (também conhecida como Núbia ou Etiópia pelos gregos) de
20

aproximadamente de 1.000 a.E.C. a 625 a.E.C (OBENGA, 2004). Já existia filosofia na


África muito antes que na Europa ou em outras partes do mundo, mas isso não quer dizer que
ela tenha surgido, primordialmente, no Egito. A filosofia egípcia pode ter servido de base para
outras filosofias e civilizações, como foi de fato.
Obenga (2004) considera, então, a filosofia egípcia um dos mais antigos sistemas
filosóficos já existentes, senão, um dos primeiros, pois há dois mil anos, os antigos egípcios
significavam por rekh ou sai um “ser humano sábio” ou “filósofo”. A “inscrição de Antef”
deu a primeira declaração clara e distinta, apresentando o significado fundamental de um
“filósofo”. Esse é um fato demonstrável:

O egiptólogo alemão Hellmut Brunner traduz a “inscrição de Antef”, que dá a


definição de “filósofo”, como segue: [Ele é o único] cujo coração é informado sobre
essas coisas que seriam de outra forma ignoradas, aquele que é perspicaz quando
está profundamente envolvido em um problema, aquele que é moderado em suas
ações, que penetra escritos antigos, cujo conselho é [procurado] para desvendar
complicações, que é realmente sábio, que instruiu seu próprio coração, que fica
acordado à noite enquanto procura os caminhos certos, que supera o que ele realizou
ontem, que é mais sábio que um sábio, que se trouxe para sabedoria, que pede
conselhos e cuida para que lhe peçam conselhos. (Inscrição de Antef, 12ª Dinastia,
1991–1782 a.E.C.) (OBENGA, 2004, p. 7).

Lembra-nos muito a figura do pensador que a maioria dos filósofos ocidentais


criaram para si mesmo. Assim, o filósofo era considerado alguém que podia penetrar em
escritos antigos e se valer das instruções nele disponíveis. Essas obras constituíam uma
tradição filosófica, isto é, um conjunto de ensinamentos vistos como um corpo coerente de
precedentes que influenciam o presente. Deste modo, a história da filosofia já era, portanto,
um sistema de filosofia. Imhotep, Hor-Djed-Ef, Kagemni e Ptah-Hotep no Reino Antigo
(2686-2181 a.E.C.) construíram a primeira tradição filosófica na história do mundo
(OBENGA, 2004).
Obenga (2004) nos ajuda a compreender, de modo ainda mais amplo, a relevância
do estudo da filosofia africana, principalmente, as suas expressões mais antigas, pois seu
estudo sério e cuidadoso nos revela que a filosofia Africana tem um alcance muito amplo e
que todas as principais questões que chamaram a atenção de filósofos na Ásia, Europa,
América, etc. podem ser encontradas na filosofia Africana. Tais questões já foram discutidas
através de muitos séculos no antigo Egito, durante os grandes reinos da África Ocidental,
Central e do Sul, nos tempos modernos e na contemporaneidade. É estudando filosofia
africana antiga que cada vez mais entenderemos a complexidade do estudo da filosofia e sua
relevância para o mundo.
21

Para finalizarmos este tópico e nosso aporte teórico quanto à filosofia africana e
adentrarmos na demonstração sobre seu estudo no Brasil, um caso necessário, é relevante
apresentarmos uma das obras que mais influenciou a filosofia africana no Brasil. Estamos nos
referindo à obra pouca difundida, de José Nunes Carreira, Filosofia Antes dos Gregos (1994).
Esta obra é um amálgama de discussões e obras já consagradas no estudo sobre a história e
filosofia no Egito antigo, principalmente, aquelas já supracitadas aqui.
José Nunes Carreira não é nem africano e nem muito menos negro. É branco e
português, mas muito estudioso da história do Egito e de seus sistemas de pensamento e que
muito contribuiu para a filosofia africana com sua obra polêmica. É polêmica, pois já inicia
defendendo que “ninguém como os sábios da Antiguidade Oriental pode arrogar-se do papel e
título de precursores da filosofia grega” (CARREIRA, 1994, p.11). Nesta breve citação, já
vemos Nunes Carreira concordando com George James (1954), que argumentava que a
filosofia grega não era grega. O interessante é que o pensador português nem mesmo cita o
filósofo estadunidense.
Para Carreira (1994), a filosofia egípcia se caracteriza pelos seus escritos
sapienciais e é o que desde os Gregos se convencionou chamar “filosofia”. Deixando a
definição rigorosa aos profissionais para os acadêmicos, o pensador espera compreensão para
sua definição;

É que: a) “filosofia” e “sabedoria” são terminologicamente idênticas; b) centrada no


homem e no mundo, a sabedoria superou barreiras de língua, cultura e religião – e
como poderia ser de outro modo, se o homem é radicalmente o mesmo em toda a
parte e em todos os tempos!; c) os sábios do Oriente antigo exercitaram-se desde
cedo no domínio intelectual do universo e da sociedade, submetendo o caos dos
eventos à ordenação das listas e à inteligibilidade pragmática das sentenças,
incorporando o comportamento humano numa ordem social e mundias mais vasta;
d) sem abdicar das crenças, os sábios procuraram o conhecimento racional das
coisas, caminhando a passos largos para uma certa autonomia da razão
(CARREIRA, 1994, p,34).

Deste modo, sua definição de filosofia se torna ampla e se confunde totalmente


com a definição de sabedoria, flertando assim com uma das correntes da filosofia africana, a
filosofia da sagacidade. O trabalho de Carreira (1994) nos auxilia a fundamentar ainda mais a
existência da filosofia africana, não apenas na contemporaneidade, mas, principalmente, na
antiguidade. A legitimidade de sua existência se torna uma demanda filosófica que aos poucos
vem ganhando espaço no Brasil, mesmo com muita dificuldade e poucos riscos ainda.
22

2.3 A Filosofia Africana (antiga) no Brasil: legitimidade e consolidação

A legitimidade do estudo da filosofia africana no Brasil inicia com a influência,


como já dito no tópico anterior, da obra Filosofia Antes dos Gregos do intelectual português
José Nunes Correia que problematiza o nascimento da filosofia como patente dos gregos –
discussão já elaborada por James, mas pouco creditada a ele. O livro foi lançado em 1994 e
nessa época havia uma ínfima expressividade do estudo de negras e negros na filosofia. 4O
que faz com que a filosofia africana seja pesquisada, estudada e exigida é justamente a
entrada de negras e negros na universidade por meio das Políticas de Ações Afirmativas 5.

De 2012 até recentemente, o aumento foi expressivo em pesquisas com temática


racial nos programas de pós-graduação em filosofia (MOREIRA, 2019). O estudo O que é
filosofia Africana? Investigações Epistemológicas na construção de sua legitimidade (2013)
da filósofa Katiuscia Ribeiro, é a primeira monografia com tema em filosofia africana
defendida em um curso de filosofia no Brasil, na qual a filósofa discute as bases da filosofia
africana e a sua legitimidade enquanto filosofia. Posteriormente na sua dissertação de
mestrado Kemet, escolas e arcádeas: a importância da filosofia africana no combate ao
racismo epistêmico e a lei 10639/03, a referida filósofa expõe, de forma exímia, um
arcabouço de discussão sobre a filosofia Kemética e a lei 10.639/03. Trata-se de uma pesquisa
com grande relevância para os estudos de filosofia africana.

No mesmo ano, 2014, temos também a dissertação da filósofa cearense Adilbênia


Machado, intitulada Ancestralidade e encantamento como inspirações formativas: filosofia
africana mediando a história e cultura africana e afro-brasileira. Mesmo não sendo uma
dissertação estritamente de filosofia, mas mais de cunho pedagógico, nos traz reflexões e

4
Ver o artigo Estudos filosóficos sobre o negro no Brasil: Um levantamento de teses e dissertações em temáticas
negras nos programas de pós-graduação da área de filosofia do autor Fernando de Sá Moreira.
5
As ações afirmativas, de acordo com Arabela Oliven, “referem-se a um conjunto de políticas públicas para
proteger minorias e grupos que, em uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado”
(OLIVEN, 2007, p.30). As ações afirmativas têm como principal objetivo remover barreiras, formais e
informais, que impeçam o acesso dos grupos oprimidos ao mercado de trabalho e universidades. No Brasil, as
Ações Afirmativas ganham mais repercussão com e após a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em 2001, em Durban, África do Sul, em que
o Brasil se posiciona a favor de políticas públicas que venham a favorecer grupos historicamente discriminados.
Uma das ações afirmativas é a criação de cotas raciais para entrada de negras/negros e indígenas em
universidades públicas, que depois de muitos debates acalorados foi sancionada em 2012 com o número de Lei
12.711. A lei não entrou apenas como cota racial, mas também como cota social e definiu que as Instituições de
Ensino Superior vinculadas ao Ministério da Educação e as instituições federais de ensino técnico de nível médio
devem reservar 50% de suas vagas para as cotas.
23

sistematizações importantes para a consolidação do estudo da filosofia africana no Brasil.


Infelizmente esse ainda é um caráter muito comum dentre daqueles que pesquisam filosofia
africana; entrar em outros programas de pós-graduação, que não seja de filosofia, para
conseguir falar sobre filosofia africana. Nossos programas de pós-graduação ainda são muito
engessados e racistas quando o assunto é filosofia africana.
Em consonância com as dissertações de Katiuscia Ribeiro (2014) e Adilbênia
Machado (2014), Rodrigo de Almeida Santos, nos presenteia com sua dissertação
Baraperspectivismo contra Logocentrismo ou o Trágico no Prelúdio de uma Filosofia da
Diáspora Africana (2014). O objetivo de sua dissertação é apresentar o conceito de
baraperspectivismo, mostrando como sua criação está necessariamente vinculada aos
dispositivos do pensamento trágico que se engendram, por um lado, com a filosofia de
Nietzsche e que, por outro lado, brotam a partir da “experiência metafísica” proporcionada
pelo “ritual trágico yorùbá”. O trabalho feito por Rodrigo é interessante, pois o filósofo cunha
um conceito filosófico a partir das concepções epistemológicas de Friedrich Nietzsche, ou
seja, o perspectivismo, juntamente com o conceito yorubá “bara”, isto é, corpo. Uma
empreitada corajosa e que tenta dialogar com o melhor da filosofia ocidental, não excluindo a
possibilidade de diálogo.
O ano de 2014 é um ano cheio de produções e de consolidação dos estudos da
filosofia africana no Brasil, ainda mais pela sua discussão relacionada à educação e utilização
de um currículo que obedeça a lei 10.639/03. É em 2014 que o filósofo Renato Noguera, um
dos maiores pesquisadores de filosofia africana no Brasil, publica o livro O ensino de filosofia
e a lei 10.639, livro que propõe um currículo para o ensino de filosofia africana, tanto nas
universidades quanto nas escolas e demonstra de modo didático e aprofundado a legitimidade
da filosofia africana no Brasil.
No Brasil, é difícil falar de filosofia africana sem passar pela educação, pois a
discussão sobre filosofia africana está assentada no problema da própria ausência desta nos
currículos das universidades e das escolas, por isso, temos muitas pesquisas que focam na
relação entre filosofia e educação e poucas que focam na própria história, desenvolvimento,
conceitos e autores da filosofia africana. Encontraremos mais artigos ou ensaios neste porte,
mas dissertações, teses ou livros, é algo mais difícil.
Na mesma linha da discussão de filosofia e educação, temos a tese de doutorado
de Ricardo Matheus Benedicto, cujo título é Afrocentricidade, Educação e Poder: Uma
Crítica Afrocêntrica ao Eurocentrismo no Pensamento Educacional Brasileiro (2016).
Ricardo se utiliza do arcabouço teórico da perspectiva afrocêntrica da filosofia, isto é, a
24

filosofia centrada no povo africano, como Abdias do Nascimento, Molefi Kete Asante,
Marimba Ani e pelos trabalhos de Cheikh Anta Diop, para realizar uma crítica afrocentrada
do pensamento educacional de Rui Barbosa, José Veríssimo, Fernando de Azevedo, Anísio
Teixeira, Paulo Freire. Não é exatamente um trabalho de filosofia africana, mas contribui para
a discussão sobre a perspectiva afrocêntrica da filosofia africana no Brasil.
Diferente da tese de Benedicto (2016), a tese de doutorado de Luis Thiago Freire
Dantas, é um dos trabalhos mais recentes sobre filosofia africana, intitula-se Filosofia desde
África: perspectivas decoloniais (2018). Uma tese que resume quase todas discussões já feitas
sobre a filosofia africana e que se enquadra enquanto um aporte de história da filosofia
africana feita no Brasil, tem como objetivo apresentar a filosofia africana e como ela propicia
a descolonização epistêmica da atividade filosófica. A principal questão é: Como a
descolonização seria um exercício inevitável para estabelecer uma filosofia desde África? Sua
tese, ainda pouco lida, é um exercício inevitável para aqueles e aquelas que pretendem
produzir filosofia africana ou adentrar neste caminho. Por isso, nos perguntamos: por que
tanta produção sobre filosofia e educação e pouca sobre história da filosofia, principalmente,
antiga?
Não que estejamos desmerecendo a discussão relacionada à educação, que é
importantíssima, mas nos perguntamos apenas para compreender a ausência dessa discussão
no Brasil comparado a filosofia ocidental, o que torna ainda mais complicada a sua
legitimidade acadêmica, visto a negação da existência de qualquer tipo de filosofia antes dos
gregos.
No Brasil, dispomos de alguns, como a dissertação de Katiuscia Riberio (2014),
que não aprofunda tanto a sua discussão sobre o Kemet, mas que ao propor a problemática
sobre o nascimento da filosofia na Grécia já se torna uma referência relevante. Quem insere a
discussão sobre a filosofia africana antiga ou de modo mais focado (egípcia) é o intelectual
George James, que até mesmo entre os filósofos negros é invisibilizado. Além de Katiuscia, a
dissertação de Ellen Aparecida de Araújo Rosa intitulada Rekhet- a filosofia antes da Grécia:
colonialidade, exercícios e o pensamento filosófico africano na antiguidade (2017), discute,
diferente de Katiuscia (2014), de modo aprofundado as práticas filosóficas-espirituais dos
egípcios antigos e problematiza as perspectivas eurocêntricas sobre o Egito Antigo e a
filosofia e, também nos traz uma apresentação, nunca feita na academia brasileira, do filósofo
egípcio Ptahotep.
A dissertação de Ellen é muito significativa, pois além de ter sido defendida num
programa de pós-graduação em filosofia, discute diretamente conceitos da filosofia egípcia e
25

se propõe a demonstrar como a rekhet era uma atividade filosófica praticada pelos egípcios
anterior ao período helenístico. Traz citações diretas das máximas/instruções de Ptahotep,
fazendo assim, de modo teórico, uma descolonização epistêmica da própria filosofia. Ellen
(2017) é uma das primeiras a fazer um breve resgate da obra de James (1954), mas são apenas
poucas páginas sobre o filósofo.
Ademais dessas dissertações que focalizam a filosofia egípcia antiga, contemos
também a dissertação de Giselle Marques Camara, MAAT: O PRINCÍPIO ORDENADOR DO
COSMO EGÍPCIO Uma reflexão sobre os princípios encerrados pela deusa no Reino Antigo
(2686-2181 a.C.) e no Reino Médio (2055-1650 a.C.) (2011). Citamos a dissertação de Giselle
(2011), pois, mesmo não sendo um trabalho de filosofia, mas da história, elabora um
desenvolvimento histórico-filosófico do conceito de Maat. Um dos conceitos mais
importantes da filosofia egípcia, Maat é “o real”, “a realidade”, ou seja, aquilo que é genuíno
e autêntico, em oposição ao artificial ou contingente. Maat é a realidade como um todo, isto é,
a totalidade de todas as coisas que possuem realidade, existência ou essência. Ela é a pedra
angular da filosofia egípcia (OBENGA, 2004).
O trabalho de Giselle, mesmo não sendo da Filosofia, tem um grande peso
filosófico, visto que centra e desenvolve toda uma problematização do conceito de Maat,
apresentando e o definindo. Além dessas dissertações e teses, os artigos do filósofo Renato
Noguera (2013;2016) que tratam sobre a filosofia antiga em uma perspectiva africana, andam
como as breves discussões que abrem caminho para tais dissertações e teses citadas aqui.
Até aqui, demonstramos uma breve linha da produção de filosofia africana no
Brasil, e como a diáspora, ela se espalha por vários programas de pós-graduação, e isso
porque não estamos citando as que não são acadêmicas, que são extremamente relevantes para
a continuidade desses saberes. Vemos que poucas são as que se direcionam à filosofia antiga e
ainda ínfimas as que citam George James (1954). Para darmos continuidade aos nossos
caminhos, é significativo que transitemos na/sobre a filosofia grega e seu sistematizador, pois
os ditos pré-socráticos e os socráticos, os que viveram antes e na época do filósofo ateniense
Sócrates, não se denominavam filósofos gregos, já que em sua época não o que hoje
entendemos por Grécia era um conglomerado de estados-nação.
Quem realiza a empreitada de sistematizar a dita filosofia helenística ou grega, é o
filósofo Aristóteles, que não era ateniense, mas macedônico e que tenta definir o que seria a
filosofia a partir de sua compreensão. Por isso, para não nos prolongarmos na longa
apresentação da filosofia grega, focaremos apenas em Aristóteles.
26

2.4 A filosofia grega: sistematização de um não grego

Toda vez que se discute sobre a suposta filosofia grega, digo suposta porque essa
não é a acepção correta para esses pensadores, pois nenhum deles “sequer chamou a si próprio
de grego, visto que esta é uma designação romana – heleno era o termo de amplo significado
aplicado a eólios, dórios, aqueus e jônios” (SODRÉ, 2017, p.9), percorremos toda uma
tradição que defendeu e defende a ferro e fogo a certidão de nascimento da filosofia na
Grécia, mesmo esse espaço sendo uma efabulação 6, uma construção imagética para dar valor
de objetividade epistemológica a essa imaginação, pois como já discorremos “nenhum deles
sequer chamou a si próprio de grego”, nem mesmo o seu grande sistematizador, Aristóteles,
era “grego” ou heleno. Aristóteles nasceu em Estagira, antiga cidade da Macedônia.

A origem da filosofia é creditada, como sabemos, a Tales de Mileto, considerado


o primeiro filósofo. Essa ideia foi elaborada pelo próprio Aristóteles (2012). Logo, a filosofia
teria surgido na região conhecida como Jônia e Tales, teria sido o fundador da Escola Jônica.
Segundo George James (1954, p. 25); “os Jônicos não eram cidadãos Gregos, mas a princípio
subordinados Egípcios e posteriores subordinados Persas”. Se eram subordinados egípcios,
como poderiam ser gregos? Inclusive, como poderiam ser gregos se a Grécia nem existia?

Assim, se utilizando do conceito de Achille Mbembe (2014), há uma efabulação


para o argumento da filosofia ser genuinamente grega. Por meio dessa digressão
terminológica é possível observar os discursos hegemônicos ou universalistas sendo
construídos para o estabelecimento de uma ideologia dentro da filosofia sobre os gregos, mas
também não isentaremos os supostos gregos de suas pretensões universalistas. Um exemplo
dessa pretensão é quando Aristóteles, em suas breves considerações sobre os primeiros
filósofos, incorre em uma obliteração dos filósofos egípcios, pois para ele; “A maioria dos
primeiros filósofos concebeu apenas princípios matemáticos para todas as coisas”
(ARISTÓTELES, 2012, 983 b5, p. 47), e porque os egípcios não entram em seus exemplos de
filósofos sendo que o autor discorre no início do Livro I que “As ciências matemáticas
nasceram nas vizinhanças do Egito, porque aí a casta sacerdotal podia desfrutar de lazer”
(ARISTÓTELES, 2012, 981 b25, p.43)?
6
Segundo Mbembe (2014) é que o branco ao apresentar como “reais, certos ou exatos, fatos muitas vezes
inventados, foi-lhe escapando a coisa que tentava apreender, mantendo com esta uma relação fundamentalmente
imaginária, mesmo quando a sua pretensão era desenvolver um conhecimento destinado a dá-la a conhecer
objetivamente” (MBEMBE, 2014, p. 29). É uma construção imaginária que tenta elaborar fatos objetivos para dá
objetividade a sua imaginação, ou melhor, delírio
27

Dito isso, não é errônea e nem prepotente a ideia de James quanto ao fato da
filosofia grega não ser grega. Toda a composição da filosofia enquanto filosofia grega é
desenvolvida por autores como Hegel (1999), Wener Jaeger (1994) e Giovanni Reale (1990).
Os cânones da história da filosofia ou do gênio Grego deturparam a própria filosofia para que
ela viesse a se encaixar em suas ideologias e intenções políticas, religiosas e afins, assim
como fizeram os romanos ao terem contato com a filosofia grega e, os gregos, ao terem
contato com a filosofia egípcia. Um exemplo que articula a ideia da negação da possibilidade
de filosofia em outros lugares além da Grécia é a suposta Impossibilidade da derivação da
filosofia do oriente, título de uma seção de História da filosofia I (1990) de Giovanni Reale;

Está historicamente demonstrado que os povos orientais, com os quais os gregos


tiveram contato, possuíam de fato uma forma de "sabedoria" feita de convicções
religiosas, mitos teologicos e "cosmognicos", mas não uma ciência filosófica
baseada na razão pura (no logos, como dizem os gregos (REALE, 1990, p. 4)

Interessante que se observarmos os argumentos dessa seção, não há uma citação


sobre o “historicamente demonstrado” que Giovanni Reale diz existir. Reale, assim como
muitos filósofos ocidentais, desconhece profundamente quaisquer aspectos do pensamento e
da história dos povos orientais e o pouco que deve ‘conhecer’, é por meio da citação da
citação. O argumento de Reale é um dos dogmas mais utilizados dentro dos cursos de
filosofia no Brasil e no mundo e, se você questionar esses (as) ditos filósofos (as) acadêmicos
sobre qualquer aspecto da história da China ou até mesmo do Egito, eles não saberão
responder nem o que são os períodos intermediários do Egito. Giovanni Reale é somente um
exemplo da suposta rigorosidade científica que o ocidente se gaba e Aristóteles, o escolhido
para representar o sumo gênio do intelecto ocidental, já iniciava a presumida rigorosidade.

Aristóteles, o não grego que sistematizou a filosofia grega, inaugura a construção


da filosofia de forma sistematizada, coisa que até então nenhum pensador havia pretendido,
nem mesmo Platão, pois “a compilação da História da Filosofia Grega foi o plano de
Aristóteles” (JAMES, 1954, p.34). De acordo com Reale, Aristóteles faz parte do “momento
das grandes sínteses, que coincide com o século IV a.C caracterizando-se sobretudo pela
descoberta do supra-sensível e pela explicação e formulação orgânica de vários problemas
filosóficos” (REALE, 1990, p. 26).
28

Os escritos de Aristóteles dividem-se em dois grupos; os exotéricos – compostos


em sua maioria de modo dialógico e destinados ao grande público - e os esotéricos, isto é,
destinados apenas para os seus discípulos e, diferente dos escritos exotéricos que são em
diálogos imitando o estilo platônico de escrita, os escritos esotéricos foram escritos em
pequenos tratados, muitos dos quais reunidos sob um título comum (como é o caso da Física).
A organização desses tratados de forma a constituir as séries que integram o conjunto das
obras de Aristóteles — o corpus aristotelicum —, remonta a Andrônico de Rodes, que dirigiu
a escola peripatética no século I a.C. Segundo Reale (1990);

No seu ordenamento atual, o Corpus Aristotelicum abre-se com Organon, título com
o qual, mais tarde, foi designado o conjunto dos tratados de lógica, que são:
Categorias, De Interpretatione, Analíticos primeiro, Analíticos segundo, Tópicos e
refutações sofísticas. Seguem-se as obras de filosofia natural, isto é, a Física, o Céu,
A geração e a corrupção e a Meteorologia. Ligadas a elas, encontram-se as obras de
psicologia, constituídas do tratado Sobre a Alma e por um grupo de opúsculos
reunidos sobre o título de Parva Naturalia. A obra mais famosa é constituída pelos
catorze livros da Metafísica. Vem depois os tratados de filosofia moral e política: a
Ética a Nicômaco, a Grande Ética, a Ética a Eudêmio e a Política. Por fim, devem-
se recordar a Poética e a Retórica. Entre as obras relativas às ciência naturais,
podemos recordar a importante História dos animais, As partes dos animais, O
movimento dos animais e a A geração dos animais (REALE, 1990, p.175-176).

Dentre todo o corpus, a obra mais famosa e conhecida de Aristóteles, como


colocado pelo autor, é a “Metafísica” - obra que iremos analisar. A Metafísica é composta de
quatorze livros ou capítulos e tem como objetivo sistematizar o conhecimento filosófico
propondo seu mais alto grau de reflexão, ou seja, a filosofia primeira. A filosofia primeira é a
filosofia do “ser enquanto ser” (ARISTÓTELES, 2012, 1003 a25, p. 105), é a proposta da
filosofia além da física, ou seja, da filosofia pura.

Metafísica não é propriamente o nome de fato do conjunto de tratados escritos por


Aristóteles, “talvez tenha sido cunhado pelos peripatéticos, se não houver nascido por ocasião
da edição das obras de Aristóteles realizada por Andrônio de Rodes no século I” (REALE,
1990, p.179). Não se tem uma definição certa do porquê do nome, mas é o termo que é aceito
pela maioria dos/das filósofos e filósofas acadêmicos. Para Souza (2016, p. 37); “o termo
metafísica foi cunhado pela ‘autoridade’ da tradição, e maior parte dos estudiosos entendeu
essa terminologia correspondente ao que o próprio autor pretendia ao estabelecer a ciência do
‘ser enquanto ser’”. A própria tradição filosófica ocidental foi determinando o
estabelecimento do termo como sendo adequado às finalidades de Aristóteles e dentro da
29

filosofia acadêmica, a Metafísica é o grande compêndio da filosofia antiga e por essa razão
ela nos interessa para análise.

O tratado da Metafísica é considerado um dos primeiros registros que tem o


intento de realizar um estudo minucioso e detalhado sobre o conhecimento e que entende o ser
humano como sendo aquele que detém o conhecimento de forma inata e que deseja tê-lo,
estabelecendo as diferenças entre os outros animais e os humanos; Assim, os outros animais
(além do ser humano) vivem com base em impressões e lembranças, contando apenas com
uma modesta parcela de experiência; a raça humana, entretanto, vive também com base na
arte do raciocínio (ARISTÓTELES, 2012, 980 b25, p. 41).

A obra utiliza o método platônico, a dialética, que é o “reconhecimento da


diferença entre o filósofo e os outros gêneros produtores de discurso” (RACHID, 2008, p. 9).
Ela é estruturada através de embates discursivos que Aristóteles aprendeu com Platão e, ao
mesmo tempo, o método da endoxa, isto é, “opiniões reputáveis” (OWEN, 1961, p. 85-86), ou
melhor, as opiniões compartilhadas pela maioria do povo, de um grupo, sábios ou filósofos. A
tese da endoxa é apresentada pelo filósofo G.E.L Owen (1961) como uma possibilidade
metodológica da obra de Aristóteles, pois o filósofo, no início de seus tratados, sempre
começa apresentando as opiniões gerais para depois refutá-las. O argumento da
imputabilidade, tem seu valor na “autoridade que não se dá pelo fato de serem opiniões
renomadas, mas sim por seu valor epistemológico, como opiniões que correspondem à
realidade observada” (OLIVEIRA, 2018, p. 39). Assim, ele inicia sua investigação retomando
ideias de seus predecessores e analisando se conseguiram resolver as aporias
(dilemas/problemas) ou se deram soluções.

Seguindo Reale (1990), a metafísica pode ser definida em quatro definições: “a) a
metafísica indaga as causas e os princípios supremos; b) a metafísica indaga o ser enquanto
ser; c) a metafísica indaga a substância; d) a metafísica indaga Deus e a substância
suprassensível” (REALE, 1990, p. 179). Toda a obra é organizada por meio dessas
indagações, determinações e categorias – termo cunhado por Aristóteles que é utilizado muito
na pesquisa científica. Essas definições seguem toda uma discussão já iniciada pela tradição
filosófica grega e que Aristóteles retoma para aprofundá-las.

De acordo com Reale (1990, p. 179), uma leva a outra, pois “quem busca as e os
princípios primeiros necessariamente deve encontrar Deus, porque Deus é a causa e o
princípio primeiro por excelência”. A metafísica então não é uma ciência voltada para o
30

empírico, mas para o teórico ou “espiritual” como insinua Reale (1990, p. 180) “a metafísica
não responde a necessidades materiais, mas sim espirituais, ou seja, àquela necessidade que
nasce quando as necessidades físicas estão satisfeitas”. Em conformidade com este pensador,
podemos pensar, então, que não há muita diferença desta para a proposta filosófica egípcia,
pois “filosofar é um exercício de julgamento, sopesar, detalhar e apresentar num exercício
rigoroso com a palavra o objeto que é retratado, tomado como fonte, ponto de partida e linha
de chegada ao mesmo tempo” (NOGUERA, 2013, p. 147). Por exemplo, segundo Rosa
(2017, p. 51):

A composição do ser em torno dos 14 atributos do ka(u), bem como a investigação


acerca da natureza das coisas, ou sua causalidade e a relação que estas ideias
estabelecem com a religiosidade nos remetem àquela que Aristóteles chamou de
uma filosofia primeira (ARISTÓTELES, 1998): a metafísica. Lançando um olhar
um tanto mais minucioso acerca do apanhado de escritos que hoje denominamos
Metafísica aristotélica, podemos perceber que há certa familiaridade na abordagem
da filosofia.

Na elaboração de nossa análise, retomaremos algumas das propostas filosóficas de


Aristóteles para compreendermos melhor como se realiza a operacionalização da ideologia
por meio da legitimação, efetuando assim o silenciamento da filosofia egípcia. Deste modo, a
escolha de analisarmos a obra Metafísica não ocorreu à toa, ela é a primeira obra que elabora
e sistematiza o que é conhecimento, influenciando diversos filósofos na discussão sobre o que
hoje chamamos de epistemologia. Epistemologia essa que incorre nos mesmos desvios
aristotélicos de obliterar a contribuição de diversos povos, por exemplo, os negros africanos,
da produção de conhecimento.

Por esse motivo, não podemos nos furtar em examinar a colaboração da filosofia
estruturada por Aristóteles para o racismo epistêmico dos povos negros africanos. Suas
viagens ao Egito e a sua tutoria a Alexandre Magno, que dominou e estraçalhou os egípcios,
não são mera coincidência.

Destarte, para compreendermos a constituição do racismo epistêmico em


“Metafísica” é necessário dialogarmos com a filósofa contemporânea Sueli Carneiro (2005) e
a abrangência de suas considerações sobre o conceito de epistemicídio proposto inicialmente
por Boaventura de Sousa Santos (1999), considerando assim sua relação com as reflexões
sobre racismo epistêmico de Grosfoguel (2011; 2016) e Noguera (2014).
31

2.5 Racismo Epistêmico e epistemicídio: dois lados da mesma moeda

Neste momento nos debruçamos na tese de doutorado da filósofa negra brasileira


Sueli Carneiro intitulada A construção do outro como não-ser como fundamento do ser
(2005), na qual a filósofa discorre sobre o epistemicídio a partir do sociólogo Boaventura de
Sousa Santos (1994). Para Boaventura (1999, p.282), “o velho paradigma da ciência produz
apenas uma forma de conhecimento válido”. Esse conhecimento se define a partir de seus
paradigmas quanto a o que é e o que não é ciência; o que é e o que não é válido, paradigmas
estes que seguem padrões estabelecidos por uma comunidade científica na qual a maioria dos
atores é branca e masculina. Assim, Boaventura Santos pontua que “o genocídio que pontou
tantas vezes a expansão europeia foi também um epistemicídio” (SANTOS, 1999, p. 283).
Esse epistemicídio eliminou povos diferentes porque tinham formas de conhecimento
diferentes.

Boaventura (1999, p. 283) defende que “o epistemicídio foi ainda muito mais
vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subjugar,
marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais”. Por conseguinte, o novo paradigma
epistemológico deve considerar o epistemicídio um crime contra a humanidade, que além de
ser um crime epistemológico, inflige de modo prático – social, política, cultural e econômico
– a todos os povos que sofreram com essa violência.

A guisa de Boaventura Santos, Sueli Carneiro abrange o conceito elaborado pelo


sociólogo;

o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos


povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela
negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da
inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro
como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade
cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos
processos de discriminação correntes no processo educativo (CARNEIRO, 2015,
p.97).

O epistemicídio é um projeto/sistema que causa todo um processo de


inferiorização dos povos africanos por considerar que seus conhecimentos são meras
crendices ou feitiços e não haveria nada de científico em seus saberes. Essa concepção
32

dialoga com nossa proposta e intento de realizar uma análise de como essa dinâmica ocorre
dentro do discurso filosófico. Sueli Carneiro é incisiva: “É uma forma de sequestro da razão
em duplo sentido: pela negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que
em outros casos lhe é imposta” (CARNEIRO, 2015, p.97). Sueli Carneiro, expande os
horizontes de discussão sobre o conceito de epistemicídio, tanto que ela confere a ele a
construção de uma “identidade negativa atribuída ao Outro particularmente no que respeita à
sua incapacidade de elevar-se à condição de sujeito de conhecimento (...) ou de ser portador
de conhecimentos relevantes do ponto vista” (CARNEIRO, 2015, p.277).

Essa identidade negativa gera uma internalização da imagem negativa,


socialmente concedida que conduz à autonegação ou adesão e submissão aos valores da
cultura dominante, visto que o epistemicídio carrega consigo aquilo que o filósofo Achille
Mbembe (2014) denomina de alterocídio, ou seja, a constituição do “Outro não como
semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso
proteger-se, desfazer-se, ou que, simplesmente, é preciso destruir (...)” (MBEMBE, 2014,
p.26). Esse sujeito estranhado não é o Eu, mas Outro, ou melhor, “a zona de não-ser, uma
região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada” (FANON,
2008, p.26).

O epistemicídio contra a população negra está fundamentado em um ódio do


outro, ao “Negro, em particular, o exemplo total deste ser-outro, fortemente trabalhado pelo
vazio, e cujo negativo acabava por penetrar todos os momentos da existência - a morte do
dia, a destruição e a inominável noite do mundo” (MBEMBE, 2014, p. 28). Negro acaba
por significar no imaginário ou efabulação das pessoas brancas o signo de uma alteridade
impossível de assimilar, a própria transgressão do sentido, uma alegre histeria, um sujeito
desumanizado e sem identidade.

Essa desumanização sabemos que não é algo apenas moderno, mas que vem
ocorrendo desde a dita e pura antiguidade. Em um tratado atribuído a Aristóteles, intitulado
Physiognomonica (Fisionomia) do século IV a.c encontramos um trecho explicitamente
racista: “Aqueles que são muito morenos são covardes; isso se aplica a egípcios e etíopes”
(ARISTÓTELES, 1995, p. 127, tradução nossa). Não se sabe exatamente se esse tratado é de
autoria de Aristóteles ou não, mas durante muito tempo foi atribuído a ele. De qualquer
forma não invalida nossa premissa de que as concepções raciais já existiam na antiguidade e
que o epistemicídio não é um projeto de agora, ele vem sendo fundamentado e praticado há
33

muito tempo e não é só uma questão de inferiorização de saberes, mas de um projeto político
de silenciamento destes saberes

Diante disso, elaboraremos um diálogo entre o conceito de epistemicídio e


racismo epistêmico, já que este é o “privilégio epistêmico de definir o que é verdade, o que é
a realidade e o que é melhor para os demais” (GROSFOGUEL, 2016, p. 25). Essa relação é
colocada pelo próprio Ramon Grosfoguel:

E, conforme os casos anteriores delineados, o epistemicídio foi inerente ao


genocídio. Nas Américas os africanos eram proibidos de pensar, rezar ou de praticar
suas cosmologias, conhecimentos e visão de mundo. Estavam submetidos e um
regime de racismo epistêmico que proibia a produção autônoma de conhecimento. A
inferioridade epistêmica foi um argumento crucial, utilizado para proclamar uma
inferioridade social biológica, abaixo da linha da humanidade. A ideia racista
preponderante no século XVI era a de “falta de inteligência” dos negros, expressa no
século XX como “os negros apresentam o mais baixo coeficiente de inteligência”
(GROSFOGUEL, 2016, p. 40).

O racismo epistêmico é a “forma fundamental e a história mais antiga do racismo


na medida em que a inferioridade dos "não ocidentais" é definida com base em sua
proximidade com a animalidade e na sua suposta inteligência inferior” (GROSFOGUEL,
2011, p.243, tradução nossa). A relação entre racismo e epistemicídio é tão intrínseca que
um é fundamento do outro e sua história se desenvolve juntamente com a colonização e até
mesmo de sua anterioridade, já que a colonização seguiu todo um processo antes de sua
efetivação.

Entretanto, mesmo entrelaçado ao epistemicídio e sendo de extrema violência, o


“racismo epistêmico é um dos racismos mais invisibilizados” (GROSFOGUEL. 2016, p.32).
Ele é ignorado e silenciado pelos produtores de conhecimentos ocidentais, visto que
descredibiliza suas produções e coloca-as em um patamar de questionáveis. O produto do
racismo epistêmico é justamente produzir formas de considerar os conhecimentos não-
ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais para desautorizar vozes/discursos e
sujeitos que não estão dentro dos padrões epistemológicos exigidos pelo ocidente.

Assim, observamos que existe um projeto de privilégio epistêmico que anda em


curso e seu objetivo é desqualificar essas epistemologias outras para inferiorizá-las,
subalternizá-las e desautorizá-las e, desse modo, construir um mundo de “pensamento
34

único” que não permite pensar “outros” mundos possíveis mais para além do ocidente
branco patriarcal. Na guisa de Grosfoguel (2016), Ocoró (2020, p. 174), discorre que:

O racismo epistêmico impõe a superioridade de uma cultura sobre outra, a ponto de


assimilar, negar ou suprimir. Esse racismo está relacionado à primazia monocultural,
hegemônica ocidental, eurocêntrica e científica, na qual certos conhecimentos
tradicionais e culturas foram invisíveis ou inferiorizados.

A invisibilização, ou melhor, silenciamento epistêmico destes saberes são frutos


de uma forma de pensar que se quer universal, se universaliza em um modo de operar o
conhecimento e impõe a ferro e fogo. Tal prática tem suas raízes desde a Grécia Antiga,
como iremos demonstrar na análise.

Admitindo então a operacionalização do racismo epistêmico, vemos então que a


racialização do conhecimento deve ser lida de modo intrínseco à realidade social, uma vez
que não é produzida apenas por indivíduos ou grupos que assumem as formas de
conhecimento dos outros como inferiores, mas é constitutiva da tradição do pensamento
ocidental. Precisamente, o Ocidente é considerado a única tradição legítima de pensamento
para produzir conhecimento e a única com acesso à ‘universalidade’, ‘racionalidade’ e
‘verdade’ (OCORÓ, 2020), critérios construídos pelo próprio Aristóteles e que perduram até
os dias de hoje.

Dentro da filosofia, o racismo epistêmico não atuaria diferente, já que a história


das ideias ou da filosofia é a razão de muitos infortúnios da população negra. De acordo com
Mbembe (2014), “tais construções especulativas são uma herança direta da etnologia
ocidental e das filosofias da história que dominaram a segunda metade do século XX”
(MBEMBE, 2014, p.81). Essa herança constituiu a ideia “que existem duas sociedades
humanas - as sociedades primitivas, regidas pela ‘mentalidade selvagem’, e as sociedades
civilizadas, governadas pela razão e dotadas (...) do poder conferido pela escrita”
(MBEMBE, 2014, p.81). Tal ideia é uma das concepções geradas pelo racismo epistêmico
que conforme Grosfoguel (2011, p.243):

funciona através do privilégio de uma política essencialista ("identidade") das elites


masculinas "ocidentais", isto é, a tradição hegemônica de pensamento da filosofia
35

ocidental e teoria social que raramente inclui mulheres 'ocidentais' e nunca inclui /
filósofos, filosofias e cientistas sociais "não ocidentais".

Assim, dentro do pensamento filosófico, o racismo filosófico é latente e


fundamentou (fundamenta) uma gama de pré-concepções e dogmas racistas que passam
despercebidos, ou não, pelos olhos mais apurados dos filósofos mais renomados do mundo e
do Brasil. O racismo epistêmico reserva para os africanos uma situação de falta de liberdade
e opressão racial, descartando-os como autores ou protagonistas em seu próprio mundo
(RIBEIRO, 2017).

Para entendermos melhor como atua o racismo epistêmico dentro da filosofia,


Renato Noguera (2014) nos auxilia a detectar tal atuação. Como a dificuldade, por exemplo,
de problematizar o nascimento da filosofia;

Por que carga de razões a Filosofia deixaria de problematizar e desnaturalizar sua


certidão de nascimento? Em outras palavras, a recusa do eurocentrismo é
fundamental para darmos curso a algumas das reivindicações mais caras à Filosofia,
não se prender às ideias sem examiná-las, ainda que o custo seja reconhecer
inconsistências em nosso modo de pensar. Neste sentido, suponho que uma das
grandes questões da Filosofia seja o reconhecimento de que os argumentos mais
tradicionais acerca do seu nascimento são invariavelmente problemáticos porque são
marcados pelo racismo epistêmico (NOGUERA, 2011, p. 24).

Esse racismo epistêmico fecha os olhos para problemas que podem parecer tão
simples, como o nascimento da filosofia, mas que se tornam tão caros para nós negros e
negras na diáspora, visto que essa ideia acarreta consequências sociais que até hoje não
temos dimensão. Tais consequências são um “o profundo silenciamento e subalternização do
pensamento negro-africano, reflete a justificada exclusão da superioridade dos europeus
sobre a raça negra, estabelecendo relações incessantes de dominação colonial” (MATOS DA
ROCHA, 2014, p. 9). Relações de poder e violências físicas justificadas e legitimadas de
modo discursivo e que continuam sendo naturalizadas.

O racismo epistêmico dentro da filosofia é fundamento por meio de um privilégio


epistêmico que favorece a forma de enunciar, ver o mundo e interpretá-lo dos grupos
detentores de poder nos espaços de produção e difusão do conhecimento, como as
universidades (OCORÓ, 2021). Segundo Ocoró (2021), uma das intelectuais mais assíduas
em criticar o racismo epistêmico;
36

O racismo epistêmico nega a capacidade de agência histórica da população negra e


contribui para reproduzir a dominação e desvalorização dos conhecimentos que eles
produzem, de forma que reforça o silenciamento e o apagamento da produção
científica e cultural do povo negro. Ao negar a história dos grupos subalternos,
também ajuda a sustentar as práticas que permitem manter uma estrutura desigual no
acesso ao poder, e contribui para reproduzir, nas relações cotidianas, práticas e
estruturas de pensamento que legitimam a desigualdade entre as pessoas (OCORÓ,
2021, p.427).

Deste modo, o racismo epistêmico opera através de um silenciamento histórico


das produções epistemológicos dos povos negros africanos, silenciando não só os
conhecimentos, mas os próprios sujeitos. Por esse motivo é necessário recuperar a filosofia
como instrumento de desnaturalização das hierarquias raciais, por meio das quais vemos o
mundo e que condicionam nossas práticas e o modo como vivemos.

Romper com o silenciamento da filosofia africana é necessário para romper com o


privilégio epistêmico. É tão importante rememorá-la quanto determinar o motivo pelo qual e
sob que circunstâncias foram esquecidas. O racismo epistêmico opera assim: silenciando
nossa história. Daí a necessidade de contribuir para revelar como se fez e como se faz, para
desnaturalizá-lo e para que, quando as portas se abram, apareça o rosto da nossa filosofia.

Por meio disso, analisaremos discursivamente como o racismo epistêmico ocorre


na obra aristotélica e suas consequências sociorraciais para o povo negro, e para
compreendermos como esse racismo opera, necessitamos ter como base uma teoria social do
discurso (FAIRCLOUGH, 2001) investigando o racimos epistêmico não apenas no sentido
sociocultural (hierarquização racial) , mas principalmente o seu aspecto epistêmico.

A análise discursiva que intencionamos dar-se-á dentro de uma relação


interdisciplinar, considerando que muitas teorizações filosóficas só foram possíveis por meio
da relação com outras áreas do conhecimento, como a matemática, letras, arte, cultura e
linguagem. No nosso caso, a Análise do Discurso Crítica se encaixa como um caminho para a
nossa investigação.
37

3. DISCURSO, POLÍTICA DO SILÊNCIO E AS FORMAS DE OPERAÇÃO DA


IDEOLOGIA.

Nesta seção, segunda parte de nossa discussão teórica, apresentamos a Análise do


Discurso Crítica e sua abordagem teórico-metodológica através de Fairclough (2001) e Melo
(2018), assim como a abordagem da ADC adotada nesta dissertação, ou seja, de Fairclough
(2003). No final do capítulo, demonstramos os conceitos de silenciamento (ORLANDI, 2007)
e operacionalização da ideologia (THOMPSON, 2011) em articulação teórica e analítica com
a ADC para investigarmos o racismo epistêmico.

3.1 Análise de Discurso Crítica: a perspectiva dialético-relacional

A Análise do Discurso Crítica (ADC) é uma abordagem teórico-metodológica


recente, e seu desenvolvimento não deixou de cessar até os dias atuais. Sua consolidação se
deu no início da década 1990 em um simpósio realizado no mês de janeiro de 1991, em
Amsterdam, quando os linguistas Teun Van Djik, Gunther Kress, Ruth Wodak, Theo Van
Leeuwen e Norman Fairclough se reuniram para discutirem os “aspectos linguísticos-
discursivos que ajudam no desvelamento de importantes elementos da vida social” (MELO,
2018, p. 29).

Segundo Iran Melo (2018, p. 29), “cada membro do simpósio trilhou caminhos
específicos, dependo das conexões teóricas estabelecidas. Mas sua diversidade, como as peças
de um quebra-cabeça, gerou a unidade pelo compartilhamento da proposta”. A intenção em
comum dos teóricos presentes era um compromisso ético-político de lutar pela transformação
social. Por isso, é necessário entendermos que, desde o princípio, a ADC se demonstrou
transdisciplinar e esse seu princípio é implementado por suas/seus teóricas(os) que fizeram
dela uma área diversificada.

Sua diversidade se dá tanto por um amálgama de conceitos e teorias que não são
propriamente sendo da linguagem, e foram utilizadas para compreendê-la. De acordo com
Iran Melo (2018, p. 30), em conformidade com Wodak e Meyer (2009), “a ADC se divide em
alguns enfoques”, dentre esses, há três mais conhecidos; o primeiro é a abordagem
38

sociocognitiva, que tem como expoente o linguista Teun Van Dijk e está centrada na
reprodução ideológica por meio do discurso e principalmente nos meios de comunicação.
Nesta perspectiva, são utilizados os princípios da psicologia social e da teoria das
representações sociais;

O segundo é a Gramática do Desing Visual, cujos os seus principais teóricos são


Gunther Kress e Theo van Leeuwen, que se apropriaram da Semiótica Social enfocando o
caráter multissemiótico em textos da sociedade contemporânea; e o terceiro enfoque é a
abordagem histórica-discursiva, representada pelos trabalhos de Ruth Wodak e de Martin
Resigl e tem como objetivo pesquisar discursos institucionais racistas, antissemitas, entre
outros, numa perspectiva sociolinguística e histórico-discursiva.

Há ainda a abordagem elaborada por Norman Fairclough, na qual o autor constrói,


principalmente sobre a guisa de Michel Foucault e Mikhail Bakhtin, a Teoria Social do
Discurso, que não foi citada pelos autores acima, mas que iremos discorrer mais à frente, visto
que nossa análise do discurso filosófico terá por base a ADC faircloughana.

Essas três abordagens demonstradas acima são as mais conhecidas e espalhadas


pelas universidades europeias e americanas. A ADC surge em um contexto de reviravolta dos
estudos dentro da Linguística e especificamente da Análise do Discurso, visto que seu “C’ de
crítico, tomado pela influência da Escola de Frankfurt 7, institui um caráter de posicionamento
denunciativo, engajado e pedagógico em suas análises (MELO, 2018).

Deste modo, através da ADC, começa-se a entender de forma mais latente que a
linguagem é uma forma de ação social que, por um lado, constitui a realidade e, por outro, é
constituída por essa mesma realidade. Essa ideia é um aprimoramento das concepções já
defendidas por Mikhail Bakhtin/ Valentin Volochinov (1999) que defendeu “o fenômeno
social da interação verbal como realidade fundamental da língua, aquilo que constitui a
verdadeira substância da língua” (BAKTHIN/ VOLOCHINOV, 1999, p. 123).
De acordo com Fairclough (2001), a ADC diz respeito a uma perspectiva dos
estudos da língua que associa a análise textual com uma teoria social do funcionamento da

7
A Escola de Frankfurt foi uma corrente filosófica do século XX que tinha como objetivo apresentar uma nova
forma de se elaborar pensamento filosófico rompendo assim com a filosofia tradicional (concepção de filosofia
pura sem relação com o social). Tal proposta, de influência Marxista e Psicanalítica, se propunha a pensar a
filosofia com viés social e de transformação social. Os principais teóricos eram Theodor Adorno, Marx
Horkheimer, Walter Benjamin e Herbert Marcuse. O “crítico” de Análise do Discurso Crítica tem relação com a
proposta de criticidade ou de pensamento crítico proposto pela Escola de Frankfurt.
39

língua em processos ideológicos e políticos. Deste modo, os analistas críticos do discurso


acreditam que a desconstrução ideológica de textos que integram as práticas sociais pode
intervir de algum modo na sociedade a fim de desnaturalizar as relações de dominação
(RAMALHO, 2005). Esta ideia de transformação por meio do desvelamento das
desigualdades sociais está presente desde o simpósio de 1991 e permeia as/os teóricas/os da
ADC.
A partir desse ponto de vista, a ADC é vista, então, enquanto teoria e
metodologia, pois não apenas propõe uma reflexão teórica acerca do funcionamento da
linguagem nas práticas sociais como também propõe métodos para análise de textos. Essa
definição de ADC considera a relação dialética entre discurso e sociedade. A Análise do
Discurso Crítica concentra sua atenção nessa relação porque está interessada em analisar
relações estruturais de discriminação, de poder e de controle manifestadas no e por meio do
discurso (VIEIRA; MACEDO, 2018).

3.1.1 Discurso, poder e ideologia: conceitos essenciais

Partindo do histórico exposto, é necessário tecermos algumas considerações sobre


alguns conceitos e concepções principais presentes na Análise de Discurso Crítica
faircloughana. Iniciamos com a definição de discurso. Em ADC, o discurso é entendido
enquanto linguagem expressando assim a prática social e não como atividade puramente
individual ou reflexo de variáveis situacionais. De acordo com Fairclough (2001), há algumas
implicações no discurso; “primeiro ele implica um modo de ação, uma forma que as pessoas
podem agir sobre o mundo e sobre outras pessoas, como um modo de representação; e
segundo implica uma relação dialética entre discurso e estrutura social” (FAIRCLOUGH,
2001, p. 91).
A relação dialética entre discurso e estrutura social implica que o discurso é
moldado pela estrutura social por meio das relações sociais (classe, raça, gênero, instituições)
fazendo com que o discurso seja então socialmente constituído. No entanto, não é uma relação
na qual apenas um lado constitui o outro, mas que há ambos se constituem. Segundo
Fairclough (2001):

O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social


que, direta ou indiretamente, o moldam e que restringem: suas próprias normas e
convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são
40

subjacentes. O discurso é uma pratica, não apenas de representação do mundo, mas


de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado
(FAIRCLOUGH, 2001, p.91).

Por meio das palavras de Fairclough, compreendemos que discurso é uma prática
social e não apenas uma abstração e por isso é entendida enquanto prática discursiva, pois “a
prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional como criativa e contribui para
reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e
crença), mas também contribui para transformá-la” (FAIRCLOUGH, 2001, p.92). Por essa
razão é importante que se acentue a relação dialética entre discurso e estrutura social, visto
que assim como o discurso constitui a prática social, ele também é capaz de mudá-la.
Dentro dessa consideração sobre discurso, a linguagem passa a ser apreendida
enquanto uma prática social historicamente situada e constituída socialmente. A noção de
discurso adotada pela ADC exige das/dos suas/seus analistas uma não neutralidade em suas
análises, já que o discurso – unidade de análise – não é neutro, a/o pesquisadora/o também
não será. Compartilhamos, em nossa pesquisa, com este princípio, visto que não nos
inclinamos a nenhuma neutralidade epistemológica.
Nessa compreensão sobre discurso, acrescenta-se a outro conceito de suma
relevância para nossas análises; a ordem do discurso. Fairclough (2001) discorre que “as
ordens de discurso podem ser consideradas como facetas discursivas das ordens sociais, cuja
articulação e rearticulação interna têm a mesma natureza” (FAIRCLOUGH, 2001, p.99). A
ordem do discurso encerra dentro dela diversos discursos que expressam práticas sociais,
como economia, política, ética, etc. Discursos esses que estruturam e formam certas bases
discursivas da estrutura social. Por isso, ela representa um movimento dialético entre
estrutura e ação ganhando materialidade a partir do instante em que é incorporada às práticas
sociais diversas. Deste modo, a ordem de discurso estabelece-se a partir de uma permanente
relação com os elementos não discursivos das práticas sociais.
Outros dois conceitos centrais em ADC são poder e ideologia. Segundo Josenes
Vieira e Denise Silva Macedo (2018, p. 58); “é importante investigar esse conceito de poder
porque em sua base está a concepção de dominação. Assim, o poder não emana de um sujeito,
mas do conjunto de relações que permeiam o corpo social”.
Em ADC, o conceito de poder está atrelado ao de hegemonia, já que a análise
deve se preocupar com os efeitos ideológicos que os textos possam ter sobre as relações
sociais em favor de projetos de dominação. O poder para a Análise do Discurso Crítica é visto
como instável, as relações desiguais de poder podem ser transformadas, invertidas, superadas
41

por conta da concepção dialética entre linguagem e sociedade. Nessa relação com a
hegemonia, o poder se entrelaça com o discurso e mantêm as relações de dominação ou
também pode superá-las:

Esse de conceito de poder como hegemonia, muitas vezes alcançada e mantida pelo
discurso de algumas poucas pessoas em detrimento do de outras. Não é por outro
motivo que há constantes lutas sociais em torno de pontos de maior instabilidade de
hegemonia entre classes. Esse aspecto dinâmico e instável da assimetria se coaduna
com o princípio dialético entre linguagem e sociedade e com o de instabilidade nas
relações de poder (VIEIRA; MACEDO, 2018, p.58).

Não há só uma instabilidade nas relações de classes, mas também uma


instabilidade nas relações raciais e de gênero, visto que a dominação ocorre em vários âmbitos
da sociedade e por isso, de um ponto de vista discursivo, a luta hegemônica pode ser vista
como disputa pela sustentação de um status universal para determinadas representações
particulares do mundo material, mental e social. De acordo com Fairclough (2001, p. 122),
“hegemonia é um foco de constante luta sobre pontos de maior instabilidade entre classes e
blocos para construir, manter ou romper alianças e relações de dominação/subordinação, que
assume formas econômicas, políticas e ideológicas”.
O conceito de hegemonia, então, enfatiza a importância da ideologia no
estabelecimento e na manutenção da dominação. A hegemonia faz parte de uma da faceta
discursiva da ordem do discurso, pois “a articulação e a rearticulação de ordens de discurso
são, consequentemente, um marco delimitador na luta hegemônica” (FAIRCLOUGH, 2001, p.
123). O discurso assim se sustenta na luta hegemônica e suas ações dentro de instituições e
organizações na sociedade, nas palavras de Norman Fairclough (2001):

O conceito de hegemonia nos auxilia nessa tarefa, fornecendo para o discurso tanto
uma matriz - uma forma de analisar a pratica social a qual pertence o discurso em
termos de relações de poder, isto é, se essas relações de poder reproduzem,
reestruturam ou desafiam as hegemonias existentes — como um modelo — uma
forma de analisar a própria pratica discursiva como um modo de luta hegemônica,
que reproduz, reestrutura ou desafia as ordens de discurso existentes. Isso fortalece o
conceito de investimento político das práticas discursivas e, já que as hegemonias
têm dimensões ideológicas, e uma forma de avaliar o investimento ideológico das
práticas discursivas. Compreendido essa relação, de que as ideologias têm existência
material nas práticas discursivas, é necessário também investigar as ideologias
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 126).

Importante ressaltarmos que as análises de Fairclough sobre poder e hegemonia


têm como ponto de partida as reflexões feitas por Antonio Gramsci, filósofo marxista do
século XX que teorizou sobre esse conceito numa perspectiva de lutas de classes e a
42

manutenção da superestrutura. A noção de hegemonia é utilizada em ADC porque harmoniza-


se com a concepção de discurso da ADC e porque “fornece um modo de teorização da
mudança em relação à evolução das relações de poder que permite um foco particular sobre a
mudança discursiva” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 122). O teórico aprofunda um pouco mais as
considerações de Gramsci, assim como faz com o conceito de ideologia pensado por
Althusser.
Conforme Fairclough (2001) há três asserções importantes sobre ideologia:

Primeiro, a asserção de que ela tem existência material nas práticas das instituições,
que abre o caminho para investigar as práticas discursivas como formas materiais de
ideologia. Segundo, a asserção de que a ideologia 'interpela os sujeitos', que conduz
a concepção de que um dos mais significativos 'efeitos ideológicos' (...) e a
constituição dos sujeitos. Terceiro, a asserção de que os 'aparelhos ideológicos de
estado' (instituições tais como a educação ou a mídia) são ambos locais e marcos
delimitadores na luta de classe que apontam para a luta no discurso e subjacente a
ele como foco para uma análise de discurso orientada ideologicamente
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 116).

Essas três asserções são as bases teóricas que Fairclough vê como o conceito de
ideologia é expressado. De acordo com Norman Fairclough (2001), não podemos limitar o
debate sobre ideologia às considerações feitas por Althusser, pois a visão unilateral da
imposição da ideologia e sua insistência nesse conceito como sendo a base social universal,
limita uma compreensão mais abrangente sobre ideologia. Por isso o autor propõe que
vejamos as ideologias como “significações e construções da realidade (...) que são construídas
em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a
produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação” (FAIRCLOUGH,
2001, p. 117).
Assim como a hegemonia faz parte das ordens do discurso, as ideologias estão
localizadas tanto nas estruturas (ordens do discurso) que constituem o resultado de eventos
passados, quanto nas condições para os eventos atuais. Elas são uma orientação acumulada e
naturalizada que é construída nas normas e nas convenções, como também um trabalho atual
de naturalização e desnaturalização de tais orientações nos eventos discursivos
(FAIRCLOUGH, 2001). Por esse motivo, já que as ideologias são convenções naturalizadas,
dificilmente as pessoas têm consciência ou acham que suas práticas normais cotidianas têm
investimento ideológico sendo que, na realidade, elas estão sim posicionadas
ideologicamente, mas elas também “são capazes de agir criativamente no sentido de realizar
suas próprias conexões entre as diversas práticas e ideologias a que é exposto e de reestruturar
as práticas e as estruturas posicionadoras” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 121).
43

Por essa razão, em ADC a representação discursiva não é apenas uma questão
gramatical, mas também um processo ideológico. Analisar textos significa considerar quais
vozes são representadas e quais são omitidas nesta representação, assim a ideologia estabelece
e sustenta relações de dominação.
A concepção mais utilizada em ADC de ideologia é a concepção de Thompson
(2002), pois esta trabalha com categorias de análise de interação e de identificação em
determinadas práticas sociais. Elas evitam que as pesquisas fiquem somente na sociologia da
linguagem e abranja mais a discussão. Segundo Ramalho e Resende (2006):

A importância dessa abordagem para a pesquisa em Análise de Discurso é a


constituição de um arcabouço para análise de construções simbólicas ideológicas no
discurso. Em outras palavras, a abordagem de ideologia de Thompson, aliada ao
arcabouço da ADC, fornece ferramentas para se analisar, linguisticamente,
construções discursivas revestidas de ideologia (RAMALHO; RESENDE, 2006, p.
52-53).

Apontamos a importância destes dois conceitos em análise do discurso crítica por


serem os mais utilizados em análises e estarem como a base conceitual da ADC. No entanto, o
conceito que utilizaremos para nossa análise será apenas o de ideologia, visto que se alia mais
a proposta da investigação.
O conceito de ideologia é central para esta análise e apresentaremos de modo mais
detalhado no final deste capítulo próximo tópico. Nele apresentamos a perspectiva de
ideologia que orienta este trabalho, ou seja, a de Thompson (2011), bem como seu
alinhamento com a análise que será feita. A seguir, expomos a abordagem da ADC que
fundamenta este trabalho.

3.2 Norman Fairclough e o método tridimensional do discurso

Na sua obra Discurso e Mudança Social (2001), Fairclough, busca reunir a análise
de discurso linguisticamente orientada e a teoria social na composição de um quadro teórico
adequado para o estudo das mudanças sociais. É nesta obra em que observamos a proposição
do primeiro enquadre metodológico da ADC. Método este que entende o discurso em três
dimensões de análise: como prática social, prática discursiva e texto (FAIRCLOUGH, 2001).
De acordo com Viviane Ramalho (2005), essas três dimensões de análise reúnem três
tradições analíticas que vinham sendo trabalhadas de maneira discreta:
44

1.a tradição interpretativa ou microssociológica, que considera a prática social como


aquilo que as pessoas produzem ativamente e entendem com base em sensos comuns
compartilhados (relacionada à dimensão do discurso como prática social); 2. a
tradição macrossociológica de análise da prática social em relação às estruturas
sociais ( como prática discursiva); e 3. a tradição das análises textual e linguística
de detalhada (como texto) (RAMALHO, 2005, p.24. grifo nosso).

O discurso enquanto prática social relaciona-se com dois conceitos já


apresentados; ideologia e poder. Nesse sentido, o discurso como prática estabelece, mantém e
transforma as relações de poder e as entidades coletivas entre as quais existem relações de
poder. O discurso como prática ideológica (significados gerados em relação de poder como
dimensão do exercício do poder e da luta pelo poder) constitui, naturaliza, mantém e
transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder
(FAIRCLOUGH, 2001).
A prática discursiva envolve processos de produção, distribuição e consumo
textual. Os textos são produzidos de forma particulares em contextos sociais específicos e são
consumidos em contextos sociais diversos. Nesse sentido, o discurso filosófico, por exemplo,
é produzido e difundido dentro do núcleo acadêmico filosófico da Universidade e depois
difundido por editoras que têm especificamente, ou não, apenas o público da universidade,
fazendo com que pessoas diversas possam consumir o texto.
Tomar o discurso como texto para a ADC é entender que os signos são
socialmente motivados e há razões sociais para suas combinações tanto no significante quanto
no significado e a relação entre o significado potencial de um texto (que é heterogêneo,
múltiplo, diverso e complexo) com o sentido particular que o intérprete dá ao texto um
posicionamento que depende da interpretação. Segundo o autor, a análise textual pode ser
organizada em quatro itens de análise:

vocabulário (nomeação, formas de nomear os outros); 2. gramática (palavras


combinadas em orações e frases); 3. Coesão (ligação entre orações e frases); e
4. estrutura textual (propriedades organizacionais em larga escala do texto)
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 123).

3.2.1 A reformulação da ADC faircloughiana: o discurso como ação, representação e modos de


ser
45

A reformulação do quadro teórico-metodológico já era apontada em Discurso e


Mudança Social devido a relação existente entre ADC e a Linguística Sistêmica Funcional
(LSF)8, no entanto, é na obra Analysing Discourse: textual analysis for social research (2003)
que Fairclough cumpre a tarefa de ampliação do diálogo teórico entre as duas aprofundando
também a articulação entre ADC e pesquisa social.
Para tanto, Fairclough (2003) considera que:

As perspectivas de análise de discurso crítica e LSF não coincidem integralmente,


devido à diferença entre as perspectivas dessas escolas (...). Há a necessidade de
desenvolver abordagens de análise de texto por meio de um diálogo transdisciplinar
com perspectivas sobre linguagem e discurso imersos na teoria e pesquisa social
para desenvolvermos nossa capacidade de analisar textos como elementos do
processo social (FAIRCLOUGH, 2003, p. 6).

Por essa razão, o autor vai reformular as noções da LSD que afirma que “os textos
têm simultaneamente as funções 'ideacional', 'interpessoal' e 'textual'. Isto é, os textos
simultaneamente representam aspectos do mundo (o mundo físico, o social e o mental)”
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 17), retirando a concepção de funções para significado: “no
entanto, prefiro falar sobre três principais tipos de significações e não de funções”
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 17). Tais significados são: o significado acional, o significado
representacional e o significado identificacional (FAIRCLOUGH, 2003). De acordo com
Ramalho e Resende (2006, p.59):

Fairclough operou essa articulação tendo como ponto de partida não as


macrofunções tal como postuladas por Halliday (as funções ideacional, interpessoal
e textual), mas a sua própria modificação anterior da teoria, ou seja, as funções
relacional, ideacional e identitária (RAMOLHO; RESENDE, 2006, p. 59).

Os três significados podem ser encontrados no texto simultaneamente e cada um


passa a figurar uma forma na prática social: o acional como modos de agir (gêneros
discursivos), o representacional como modos de representar (discurso) e o identificacional
como modos de identificar (estilo). Mesmo com os três significados sendo encontrados no
texto concomitantemente, isso não significa dizer que na análise é necessário utilizar os três
significados. Na nossa análise, será utilizado apenas o significado representacional, visto que

8
A Linguista Sistêmica Funcional é uma teoria linguística e um conjunto de métodos analíticos cunhados pelo
linguista britânico Michael Halliday. De acordo com Fairclough (2003, p.5), a LSF “está profundamente
preocupada com a relação entre a língua e outros elementos e aspectos de vida social, e seu ponto de vista a
respeito da análise linguística de textos sempre é orientada ao caráter social dos textos”. Por esse motivo a LSF é
um valioso recurso para ADC.
46

o que nos interessa na análise é detectar o modo como Aristóteles, em seu discurso, representa
a filosofia africana kemética.

3.2.2 O significado representacional: o discurso como modos de representar

Diferente do significado acional, o significado representacional enfatiza a


representação de aspectos do mundo - físico, mental, social - em textos, aproximando-se da
função ideacional, e o significado identificacional, por sua vez, refere-se à construção e à
negociação de identidades no discurso, relacionando-se à função identitária (RAMALHO;
RESENDE, 2006). Assim, Fairclough (2003) vê os discursos “como modos de representar
aspectos do mundo – os processos, relações e estruturas do mundo material, o “mundo
mental” dos pensamentos, sentimentos, crenças, e assim por diante, e o mundo social”
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 96). O discurso está relacionado com sujeito e por conseguinte
com a identidade construída por meio do sujeito discursivo, pois o discurso representa uma
perspectiva de mundo e diferentes discursos significam diferentes perspectivas do mundo e
essas perspectivas: (...) estão associadas às diferentes relações que as pessoas têm com o
mundo, que, por seu turno, dependem de suas posições no mundo, suas identidades sociais e
pessoais, e das relações sociais com outras pessoas (FAIRCLOUGH, 2003, p. 96).
Deste modo, o discurso é o modo como as pessoas se posicionam no mundo,
como elas se portam e como expressam seus pensamentos sobre o mundo em que vivem,
mesmo que negando que se posicionam, isso não deixa de ser um posicionamento por meio
do discurso. É por meio dele que nós nos relacionamos uns com os outros – dominando ou
cooperando.
No significado representacional o discurso se manifesta na representação do
mundo material, de outras práticas sociais ou em representações autorreflexivas da própria
prática particular. Produtores de textos podem estabelecer relações polêmicas ou de afinidade
entre o seu próprio discurso e discursos alheios.
Essas relações estabelecidas entre diferentes discursos podem ser de vários tipos e
é a partir disso que vemos a relação entre o significado representacional e a categoria de
interdiscurso, categoria crucial para nossa análise, pois os discursos que são representados em
textos estão inseridos em outros discursos ou se embasam por meio deles. Por exemplo, em
um discurso filosófico encontramos outros discursos que fundamentam o enunciado. De
acordo com Ramalho e Resende:
47

A análise interdiscursiva de um texto relaciona-se à identificação dos discursos


articulados e da maneira como são articulados. A identificação de um discurso em
um texto cumpre duas etapas: a identificação de que partes do mundo são
representadas (os "temas" centrais) e a identificação da perspectiva particular pela
qual são representadas. As maneiras particulares de representação de aspectos do
mundo podem ser especificadas por meio de traços linguísticos, que podem ser
vistos como "realizando" um discurso (RAMALHO; RESENDE, 2006, p. 72).

Dessa maneira, a categoria de interdiscurso é operada para acessar os significados


representacionais presentes em um discurso e nos auxilia a compreender como os sujeitos
representam suas ideologias dentro de um texto ou como são representados. Além disso, a
análise interdiscursiva de textos auxilia na identificação dos discursos articulados e da
maneira como são articulados, pois discursos podem ser distinguidos pelas maneiras de
designar, uma vez que "lexicalizam" o mundo de maneiras particulares que podem ou não
pretender a universalização. Quanto ao conceito de lexicalização, conceito que será operado
na análise, entende-se quanto a adoção de um determinado termo pelo léxico de uma língua,
como uma formação usual, constitucionalizada.
Esse conceito é utilizado dentro da categoria de significado de palavras, que é
mais uma categoria de análise pertinente para o significado representacional e para esta
análise. Dentro da categoria de significados de palavras, as palavras são entendidas,
obviamente, como tendo vários significados e estes são 'lexicalizados' tipicamente de várias
maneiras. Isso significa que como produtores de palavras e de léxicos, estamos diante de
escolhas sobre como usar uma palavra e como expressar um significado por meio de palavras
(FAIRCLOUGH, 2001).
Essas escolhas e decisões não são de natureza individual, visto que os
significados das palavras e a lexicalização dos significados são questões variáveis socialmente
e de faceta sociocultural. Assim, a mudança de uma palavra e seu significado passam por
variáveis sociais e legitimação coletiva, não é apenas a decisão de um indivíduo, pois as
palavras são analisadas a partir de sua relação com o texto, enfocando o aspecto discursivo.
Deste modo, a análise seguirá determinadas palavras que se destacam socialmente
tornando-se relevante para a pesquisa social (FAIRCLOUGH, 2001). Além disso, o sucesso
da aceitação de certos significados particulares de palavras, como veremos na análise, é sem
dúvida uma forma de legitimação de uma ideologia que procura manter relações de
dominação.
Dentro do significado de palavras, observamos também a criação de palavras e
nessa criação são gerados novos itens lexicais, ou seja, novos sentidos e significados de
48

palavras. Um tipo de lexicalização que torna esse processo particularmente claro é o processo
de nominalização; criação de novos nomes para determinadas situações, contextos ou objetos,
que carregam certos significados simbólicos e até mesmo ideológicos, como, por exemplo, a
denominação dos povos keméticos como egípcios e não pela sua própria nomeação. Iremos
nos ater mais a esse detalhe na análise.
Outra categoria de análise que nos servirá será a intertextualidade. De acordo
com Fairclough (2003), a categoria de intertextualidade é bastante ampla, mas de forma
resumida ela é “na acepção mais comum do termo, intertextualidade é a presença material de
outros textos dentro de um texto – citações” (FAIRCLOUGH, 2003, p.28). Dentro do discurso
filosófico e no seu modo de representar, a intertextualidade é uma categoria muito presente,
visto que o texto filosófico tem como característica sempre retomar a tradição filosófica,
mesmo que seja para louvá-la ou romper com ela.
No entanto, existem muitas maneiras de incorporar elementos de outros textos
dentro de um texto:

Por exemplo, se pensamos em um discurso relatado, escrito ou pensado, é possível


não só citar o que já havia sido dito ou escrito em outros textos, mas também
resumi-lo. Essa é a diferença entre o que tem sido chamado ‘discurso direto’ (que
deve fazer citações do que foi escrito e acarreta pensamentos, como também a fala –
ex. ‘Ela disse: “Eu me atrasarei”) e formas do ‘discurso indireto’ (ex. ‘Ela disse que
se atrasaria’) (FAIRCLOUGH, 2003, p.28)

Veremos, na análise, como esse processo se dá no discurso filosófico e que muitas


citações são quase imperceptíveis se não tivermos um conhecimento da tradição filosófica
ocidental, pois não está explícito no discurso filosófico aristotélico o racismo epistêmico e
será necessário operarmos com mais outros dois conceitos para detectarmos este racismo
dentro do discurso do filósofo. Por isso, adiante, discutiremos sobre a política do
silenciamento (ORLANDI, 2007) e a operacionalização da ideologia (THOMPSON, 2011),
dois conceitos basilares para a análise de silenciar outros sujeitos de conhecimento. Por essa
razão os questionamentos de Fairclough auxiliarão em nossa análise: “quais textos e vozes
são incluídos, quais são excluídos, e que ausências significantes há? ” (FAIRCLOUGH, 2003,
p.35).

3.3 A política do silêncio e as estratégias de operação da ideologia


49

3.3.1. Pôr em silêncio: a política do silenciamento

O conceito de silêncio é uma noção essencial para este trabalho, visto que se trata
de uma análise sobre o modo como a filosofia egípcia foi recebida e reproduzida pelos
filósofos gregos, no caso, Aristóteles. Para esta análise do silêncio e de sua utilização, nos
detivemos na obra da linguista brasileira Eni Orlandi intitulada As Formas do Silêncio (2007).

Na obra em questão, a autora busca categorizar e conceitualizar o que ela


denomina de as formas do silêncio, ou melhor, os sentidos do silêncio (ORLANDI, 2007).
Para tanto, é necessário que se entenda o silêncio não carregado dos clichês que estamos
habituados; silêncio = calado. De acordo com Orlandi (2007, p.27) “quando o homem
percebeu o silêncio como significação criou a linguagem para retê-lo”, por esse motivo;

O ato de falar é o de separar, distinguir e, paradoxalmente, vislumbrar o silêncio e


evitá-lo. Esse gesto disciplina o significar, pois já é um projeto de sedentarização dos
sentidos. No silêncio, ao contrário, sentido e sujeito se movem largamente. Em
suma: quando o homem individualizou (institui) o silêncio como algo
significativamente discernível, ele estabeleceu o espaço da linguagem (ORLANDI,
2007, p.27).

A linguagem vem e domina/significa o silêncio em seu espaço amplo dos


sentidos, ou seja, onde há linguagem há o adestramento do silêncio, ou pelo menos sua
tentativa, pois o ser humano busca de todas as formas significar o mundo que lhe rodeia, não
suportando o silêncio existente. Por essa razão, a autora concebe o silêncio de um modo que,
em suas palavras, “é extremamente incômoda para os que trabalham com linguagem”
(ORLANDI, 2007, p.28), isto é, o silêncio é fundante, em outras palavras, o silêncio é
matéria significante do real. Ele fundamenta e significa o mundo da linguagem e como a
nossa condição de ser humano é sempre significar, ele está irremediavelmente constituído
pela sua relação com o simbólico.

No primeiro momento é complexo e silenciosamente confuso compreender o


silêncio como fundante, pois estamos imersos no imaginário social que coloca o silêncio
numa posição de subalternidade e compulsivamente procuramos preencher qualquer espaço
de silêncio que existe, temos pânico ao silêncio, sendo que o silêncio é a própria condição da
produção de sentido (ORLANDI, 2007). É através do silêncio que o sentido é produzido, ou
50

melhor, antes de se produzir um significado se passa pelo silêncio. O conceito de silêncio de


que a autora fala não é o físico, o ato de calar-se, não-audível, mas sim o silêncio histórico,
como matéria que significa e que é condição de possibilidade para significação.

O silêncio fundante é uma das formas sobre a qual o silêncio se expressa e é por
meio dele que o dito é dito e que as palavras têm sentido.

O silêncio do sentido torna presente não só a iminência do não-dito que se pode


dizer mas o indizível da presença: do sujeito e do sentido. Há injunção dos sentidos
da linguagem em estar nos sentidos, sejam estes ‘feitos’ de palavras ou de silêncio.
Não se pode não significar. Para o sujeito de linguagem, o sentido já está sempre lá.
Considerando sua relação com a significação, o sujeito tem assim uma necessária
relação com o sentido. Com efeito, a linguagem é passagem incessante das palavras
ao silêncio e do silêncio às palavras (ORLANDI, 2007, p. 70).

Partindo do entendimento de que o silêncio é fundante, a autora concebe uma


outra forma de categorizar o silêncio; a política do silêncio, ou melhor, silenciamento. Essa
categorização do silêncio é o que nos interessa para os fins desta pesquisa. A política do
silêncio parte da compreensão de que o sentido é sempre produzido por meio de uma posição
do sujeito, que ao dizer algo, ele estará, necessariamente, não dizendo “outros sentidos”
(ORLANDI, 2007, p.53). Por exemplo, quando digo que a “filosofia nasceu na Grécia”,
necessariamente, estou dizendo que ela não nasceu em outros lugares e automaticamente
excluo essa possibilidade. No entanto, este é um aspecto normal do discurso, o problema é
quando tal discurso se torna excludente, ou seja, quando se exclui a possibilidade histórica da
existência desta outra perspectiva filosófica.

A dimensão política do silêncio não está apenas em calar, mas em fazer dizer
‘uma’ coisa, para não deixar dizer ‘outros’, ou seja, o silêncio recorta o dizer (ORLANDI,
2007). Esse recorte se faz presente na escolha de léxico que fazemos ao falarmos, ao
escrevermos, as palavras que escolhemos representam o modo como pensamos e somos.
Além disso, a política do silêncio se divide em duas formas: o silêncio constitutivo e o
silêncio local. O silêncio constitutivo trabalha com os limites das formações discursivas, ele é
o mecanismo que põe em funcionamento o conjunto do que é preciso não dizer para poder
dizer (ORLANDI, 2007). A autora dá um exemplo sobre a forma de atuação desse silêncio:
“Um exemplo dessa forma de silêncio é a denominação “Nova República”, no Brasil,
atribuída ao regime que seguiu a ditadura militar. Ao nomear-se assim esse período,
51

apagava-se o fato de que o que tínhamos antes era uma ditadura” (ORLANDI, 2007, p. 74
apud ORLANDI, 1987). Este processo de denominação será analisado em nossa análise.

O exemplo que a autora dá demonstra então que toda nomeação apaga outros
sentidos possíveis e condições simbólicas também, ao nomear fecho um significado e
enclausuro dentro de um significante, por exemplo: ao dizer que os povos que habitavam o
nilo são “egípcios” e não “keméticos”, encerro uma perspectiva que não é próprio destes
povos, mas grega.

Ao lado do silêncio constitutivo está o silêncio local que basicamente se resume à


interdição do dizer. Um exemplo de como atua o silêncio local é a partir da censura. Dessa
forma, esta expressão “trata-se da produção do silêncio de forma fraca, isto é, uma estratégia
política circunstanciada em relação à política dos sentidos: é a produção do interdito, do
proibido” (ORLANDI, 2007, p. 74). Nessa perspectiva, a censura é um modo de
silenciamento que impede que os sentidos circulem, que se produzam e reproduzam de modo
além daqueles que são instituídos.

Assim, o silenciamento ocasiona uma migração dos sentidos, pois estancados em


uma situação de censura, por exemplo, eles se deslocam para qualquer outro objeto simbólico
e se instauram em formas de estereótipos que são construídos pela censura. Não iremos nos
prolongar na análise que a autora faz sobre a censura, pois não interessa a análise, apenas o
silêncio constitutivo enquanto política do silenciamento.

A política do silenciamento se dá justamente quando dizemos "x" para não deixar


dizer "y", não se trata apenas de não dizer ou referências, mas de construir simbologicamente
um silêncio sobre determinado assunto, sujeito ou povos. Esse silenciamento já não é
silêncio, em seu sentido fundante, mas um “pôr em silêncio”, que nos mostra que há um
processo de produção de sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensão do não-dito
pouco explorada (ORLANDI, 2007). O terreno do desterramento epistemológico da filosofia
africana, desde Kemet, é um terreno pouco explorado e que poucos procuram compreender
porque mal conhecemos sobre esta filosofia em específico.

Esse silenciamento calou e cala as vozes de inúmeros/as pensadores/as do Kemet


Antigo, ou do Egito Antigo, por meio de escolhas lexicais e processos discursivos que iremos
demonstrar na análise. Deste modo, não podemos considerar que a língua seja considerada
apenas um código, um sistema, pois, segundo Orlandi (2007), ela só funciona através da
52

ideologia; é na sua relação com a ideologia que a língua faz parte do mundo social. E um dos
modos pelos quais a ideologia opera na língua é através do processo de não-citar:

Esse mecanismo de não-citar produz o lugar (da falta) do dizer como lugar possível
quando, na realidade, esse lugar já está realizado (cheio), caracterizando-se assim
como uma forma de desconhecimento. É pois uma das formas ideológicas de
apagamento da materialidade histórica do dizer. Nega a memória”. (ORLANDI,
2007, p. 142-143).

Através de um dos modos de operacionalização da ideologia, a legitimação,


iremos examinar no discurso aristotélico como o fato dele não-citar os filósofos keméticos,
resulta em um silenciamento destes filósofos, de suas memórias e histórias. O mecanismo de
não-citar pode ser visto, então, de modo violento e, consequentemente, contribui para o
racismo epistêmico.

Essa dinâmica produz vozes silenciadas que causam uma negação da filiação
histórica, individualizam a memória ao ponto de perdemos a capacidade de retomar, deslocar
(ORLANDI, 2007). A retomada e o reconhecimento são aspectos que a política de
silenciamento quer longe, quer desconsiderado. Por isso, nosso intento neste trabalho é algo
pouco visto dentro da academia e muito menos elaborado.

Desta forma, Orlandi, já quase no final do tópico nos provoca; “Se ao falar
sempre afastamos sentidos não-desejados, para compreender um discurso devemos perguntar
sistematicamente o que ele ‘cala’”(ORLANDI, 2007, p. 152). Então, assim nos perguntamos,
o que o discurso aristotélico cala? O que ele põe em silêncio? Ao dizermos filosofia grega,
que discursos calamos a partir disso? Iremos aprofundar de modo mais detido estas
indagações na análise, contudo, antes disso, é indispensável que tratemos sobre o conceito de
ideologia e sua relação com o silenciamento, já que todo processo de silenciamento tem um
viés ideológico, mas nem toda ideologia é silenciadora.

Valeremos das reflexões de Thompson (2011), compreendendo a ideologia e sua


relação com o sentido (significado) e em que, circunstâncias particulares, serve para
estabelecer e sustentar relações de poder que são sistematicamente assimétricas, isto
é,relações de dominação. Deste modo, o conceito de silenciamento aliado a operacionalização
da ideologia de Thompson, que apresentaremos a seguir, auxiliará para detectarmos a
presença do racismo epistêmico dentro do discurso filosófico aristotélico
53

3.3.2 O conceito de ideologia: modos de operacionalização e estratégias

Partindo da concepção de Jhon B. Thompson, em seu livro Ideologia e Cultura


Moderna (2011) o conceito de ideologia tem uma história longa e complicada devido ao seu
surgimento e sua recepção por alguns teóricos e políticos. Por essa razão, o autor procura
reformular a trajetória deste conceito, bem como suas próprias formulações, tentando
compreender onde ainda se encaixa a sua utilização como categoria de análise social.

Para tanto, ele elabora em sua obra um breve levantamento histórico do conceito
de ideologia que não iremos expor de modo detalhado, visto que não é objetivo deste trabalho
se ater aos detalhes históricos deste conceito. O conceito de ideologia foi utilizado pela
primeira vez no século XVIII, mais especificamente em 1796, pelo filósofo francês Destutt de
Tracy. Destutt de Tracy formula este conceito para demonstrar o seu projeto de uma nova
ciência que estaria interessada na análise sistemática das ideias e sensações (THOMPSON,
2011). No entanto, por causa de Napoleão Bonaparte e seu posicionamento desfavorável ao
conceito e seu idealizador, o conceito acaba por assumir um sentido negativo e começa a ser
associado a ‘ideias abstratas e ilusórias’.

Partindo dessa posição de Napoleão é que Karl Marx irá se posicionar e formular
sua concepção de ideologia em sua expressão negativa. Assim, Marx preserva o sentido
negativo do conceito de ideologia. Esse sentido negativo foi redirecionado de diferentes
maneiras nos trabalhos de Karl Marx, contudo, o sentido negativo sempre permanece. Depois
de Marx há a concepção de Mannheim que estava familiarizado com o trabalho dos marxistas.

Mannheim se aproxima do projeto original de Destutt de Tracy de uma ciência das


ideias que fundamente toda possibilidade de conhecimento objetivo. Concebe então uma
noção de ideologia de modo particular e coletivo, isto é, a ideologia pode ser expressa
particular, por exemplo, ao falarmos do estoicismo estamos expressando uma concepção de
ideias de modo particular, a concepção total de ideologia emerge quando focamos nas
características de uma estrutura mental global de uma época ou um grupo sócio-histórico
(THOMPSON, 2011).

Por meio dessa breve contextualização histórica do conceito de ideologia,


Thompson propõe uma leitura esquemática das concepções feitas por esses autores da
ideologia. Deste modo, existem duas concepções de ideologia: a concepção neutra e a
54

concepção crítica. Segundo Thopmson (2011), as noções desenvolvidas por Destutt de Tracy
e Mannheim – que foram as apresentadas aqui, compartilham entre si uma característica
comum, elas são concepções neutras, no sentido em que não possuem um sentido negativo e
não expressam a ideologia como um fenômeno que deve ser combatido. (THOMPSON,
2011).

Nesse sentido, as concepções contrárias a essas, como a de Napoleão Bonaparte e


Karl Marx são noções críticas, pois compreendem a ideologia de forma negativa e supõem
que os fenômenos caracterizados como ideologia são estão sujeitos à crítica e devem ser
criticados e combatidos. Com toda essa explanação resumida, que é bem mais longa na obra
de Thompson (2011), o que pretendemos é apresentar o que o autor discorre sobre sua
posição:

Ao desenvolver um enfoque alternativo na análise da ideologia, meu objetivo será


bem diferente. Procurarei combater o que descrevi como a neutralização do conceito
de ideologia. Tentarei formular uma concepção crítica de ideologia, apoiando-me em
alguns dos temas implícitos nas concepções anteriores e abandonar outros (…)
(THOMPSON, 2011, p. 75).

Vemos então que o autor não se desvincula de uma noção de ideologia que visa à
crítica da própria ideologia, mas que, ao mesmo tempo, não será totalmente adepto de todas as
ideias desenvolvidas pelos críticos da ideologia. Deste modo, sua concepção está interessada
em compreender como as formas simbólicas se entrecruzam com as relações de poder e de
que forma ela está interessada no modo como o sentido é mobilizado no mundo social para
reforçar pessoas e grupos que ocupam posições de poder, pois “estudar a ideologia é estudar
as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação”
(THOMPSON, 2011, p. 76).

Diferente de Marx e de outros teóricos de posição crítica, Thompson, não defende


que tudo seja ideológico e que todo fenômeno ideológico seja um fenômeno suscetível à
crítica, o autor defende que os fenômenos ideológicos são fenômenos simbólicos, mas isso
não quer dizer que todo fenômeno simbólico seja ideológico. Os fenômenos simbólicos são
ideológicos na medida em que sirvam, em circunstâncias sócio-históricas específicas, para
manter relações de dominação (THOMPSON, 2011).
55

Ao formular a ideologia deste modo ele está de acordo com a noção de Marx, no
entanto, ele mantém de uma forma modificada;

estou mantendo, de uma forma modificada, apenas um critério de negatividade,


como característica definidora de ideologia: isto é, o critério de sustentação das
relações de dominação. Não é essencial que as formas simbólicas sejam errôneas e
ilusórias para que elas sejam ideológicas. Elas podem ser errôneas e ilusórias. De
fato, em alguns casos, a ideologia pode operar através do ocultamento e do
mascaramento das relações sociais, através do obscurecimento ou da falsa
interpretação das situações; mas essas possibilidades são contingentes, e não
características necessárias da ideologia como tal. Ao tratar o erro e a ilusão como
uma possibilidade contingente, ao invés de como uma característica necessária da
ideologia, nós podemos aliviar a análise da ideologia de parte do peso
epistemológico colocado sobre ela desde Napoleão (THOMPSON, 2011, p. 76).

Partindo disso dessa formulação é que podemos entender que não se trata de
analisar a verdade e a falsidade das formas simbólicas, mas sim em como elas são utilizadas
para manter as relações de poder. Entretanto, este não é o único ponto em que o autor discorda
do agraciado filósofo alemão, visto que o critério de sustentação das relações de dominação
em Marx se aplicava apenas a categoria de classe e que as relações de dominação e
subordinação de classe é o que constitui os eixos principais da desigualdade e exploração nas
sociedades humanas em geral, Thompson (2011) enfatiza que as relações de classe são apenas
uma forma de dominação e subordinação e constituem apenas um eixo da desigualdade e
exploração, “elas não são de modo algum a única forma de dominação e subordinação”
(THOMPSON, 2011, p. 77).

Por isso, citamos uma argumentação essencial para esta pesquisa;

Embora Marx estivesse correto em enfatizar a importância das relações de classe


como uma base da desigualdade e exploração, ele pareceu negligenciar, ou
menosprezar, a importância das relações entre os sexos, entre os grupos étnicos,
entre os indivíduos e o estado, entre estado-nação e blocos de estado-nação, ele
tendeu a pressupor que relações de classe formam o eixo estrutural das sociedades
modernas e que sua transformação era a chave para um futuro livre de toda
dominação. Essas ênfases e pressupostos não podem, hoje, ser aceitos como
autoevidentes (THOMPSON, 2011, p. 78).

Acreditamos que Thompson ainda foi um tanto complacente quando diz que
“pareceu negligenciar”, pois é explícito que Marx e tantos outros teóricos não deram a
56

mínima para os outros grupos que sofrem constantemente com a opressão e violência
sistemática causada por uma sociedade baseada nas relações de dominação, seja ela simbólica
e física.

Em função disso, ao analisarmos o conceito de ideologia não podemos nos


enveredar apenas na maneira como o sentido mantém as relações de dominação de classe, mas
também investigarmos os outros tipos de dominação, tais como as relações sociais
estruturadas entre homens e mulheres, entre um grupo étnico e outro, ou entre estados-nação
hegemônicos. Nesta pesquisa, o que nos interessa é analisar por meio desse conceito de
ideologia, os sentidos gerados e organizados pelas relações raciais.

Falamos tanto de formas simbólicas, mas não descrevemos em que termos


Thompson entende o que são formas simbólicas, pois ao estudar as maneiras como o sentido
serve para estabelecer e sustentar relações de dominação, o sentido no qual ele discorre são os
das formas simbólicas;

Por “formas simbólicas”, eu entendo um amplo espectro de ações e falas, imagens e


textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como
construtos significativos. Falas linguísticas e expressões, sejam elas faladas ou
escritas, são cruciais a esse respeito. Mas formas simbólicas podem também ser não
linguísticas ou quase linguísticas em sua natureza (por exemplo, uma imagem visual
ou um construto que combina imagens e palavras) (THOMPSON, 2011, p. 79).

Essas formas simbólicas podem ou não ser revestida de aspectos ideológicos e é


nesse sentido que devemos procurar analisar, pois, por exemplo, em nossa análise nos
interesse compreender em que momento, situação ou circunstância um discurso pode servir
para manter uma relação de dominação ou até mesmo constituir relações de poder e em que
sentido o discurso que afirma que a filosofia nasceu na Grécia constitui uma relação de
dominação.

Para concebermos melhor essas questões, há uma indagação proposta por


Thompson que auxilia na análise; “de que maneira pode o sentido servir para estabelecer e
sustentar relações de poder?” (THOMPSON, 2011, p. 80). Para o autor, existem inúmeros
modos em que o sentido pode servir para manter as relações de dominação, assim, Thompson.
distinguiu cinco modos gerais, através dos quais a ideologia pode operar e tais são de suma
relevância para a análise, estas apresentaremos logo a seguir.
57

Os cinco modos apresentados por Thompson são: legitimação, dissimulação,


unificação, fragmentação e reificação. Cada modo destes opera a partir de estratégias e
construções simbólicas que funcionam atravessando sua forma de realização. A legitimação
ocorre quando as relações de dominação são estabelecidas e sustentadas por meio de
representações das relações de dominação que são legítimas. Uma estratégia utilizada nesse
modo de operação da ideologia é a racionalização, na qual o produtor de uma forma
simbólica constrói uma cadeia de raciocínio que procura defender e justificar um conjunto de
relações e instituições sociais de convencer um público ou um grupo de aquilo que defende é
legítimo. Outra estratégia é a universalização, ou seja, acordos institucionais que servem aos
interesses de alguns indivíduos são apresentados como servindo aos interesses de todos. A
universalização é uma estratégia muito utilizada dentro da filosofia ocidental, inclusive é seu
caráter mais fundamental. A estratégia denominada de narrativização é outra que opera para
manter as histórias do passado e tratam o presente como parte de uma tradição eterna e
aceitável. Tais tradições são, muitas vezes, inventadas a fim de criar um sentido de pertença a
uma comunidade e uma história que transcenda a experiência do conflito.

Essa estratégia nos interessa pelo fato de manter histórias, como a “filosofia é
grega”, por exemplo, para justificar o exercício de poder por aqueles que o possuem e
servindo para justificar uma narrativa que silencia outras narrativas. Pergunte a qualquer
professor universitário de filosofia se a filosofia não teria nascido em outro lugar e veja sua
reação.

O segundo modo de operação da ideologia é a dissimulação, na qual se define


pelas relações de dominação que são sustentadas e estabelecidas pelo fato de serem ocultadas,
negadas ou obscurecidas, ou pelo fato de serem representadas de uma maneira que desvia
nossa atenção, ou passa por cima de relações e processos existentes. Uma estratégia utilizada
pela dissimulação é o deslocamento que é utilizado para se referir a um determinado objeto ou
pessoa e com isso se elaboram significados positivos ou negativos.

Outra estratégia operada pela dissimulação é a eufemização, isto é, ações,


instituições ou relações sociais são descritas ou “redescristas” de modo a despertar uma
valoração positiva. Um dos exemplos que o autor dá é o uso da violência para conter um
protesto e isso pode ser relatado como um ‘restabelecimento da ordem’. Assim, a ideologia
como dissimulação não opera apenas por essas duas estratégias, a terceira estratégia é tão
sagaz quanto as outras, seu rótulo geral é designado como tropo, isto é, o uso figurativo da
58

linguagem, ou melhor, das formas simbólicas. Esta estratégia se efetua de três modos: o
primeiro é a sinédoque, que é a união de sentido entre uma parte e o todo – o termo genérico
‘os africanos’ pode se referir a um grupo dentro de um estado-nação; o segundo é a
metonímia, que utiliza um termo para referir-se a determinada coisa (sem correspondência
necessária); e o terceiro é a metáfora, quando um objeto ou ação é designado por um termo,
ou frase, que não deve ser compreendido/a de forma literal.

O terceiro modo é a unificação. Neste caso, as relações de dominação podem ser


estabelecidas e sustentadas através da construção, no nível simbólico, de um modo de unidade
que interliga indivíduos numa identidade coletiva. Ela pode operar através da estratégia da
padronização, formas simbólicas são adaptadas a um referencial padrão. Essa estratégia
ocorre muito, como exemplifica Thompson (2011), quando autoridades de Estado procuram
desenvolver uma linguagem nacional em um contexto de grupos diversos e linguisticamente
diferenciados, algo que ocorreu violentamente no Brasil com os povos indígenas e africanos.
A unificação também pode realizar-se através da simbolização da unidade, isto é, a construção
de símbolos de unidade, de identidade e identificação coletivas, que são difundidas por meio
dos grupos. Os exemplos são inúmeros; bandeiras, hinos nacionais, emblemas, canções
nacionais e etc. As duas estratégias presentes na dissimulação podem ser encontradas no
estabelecimento ou padronização do que se entende por filosofia ou até mesmo na instituição
da linguagem filosófica, que exclui outras possibilidades de se compreender filosofia por
conta de uma unificação que não aceita muitas diferenciações, claro, se estas não lhe são
favoráveis.

A fragmentação é colocada como sendo a quarta forma de operação da ideologia.


Na fragmentação, as relações de dominação são mantidas não unificando os sujeitos em uma
coletividade, mas separando-os dos grupos que possibilitam transformações do modus
operandi que favorece os grupos dominantes. Uma estratégia de construção simbólica é a
diferenciação, ou seja, construir formas simbólicas que denotam as distinções, diferenças e
divisões entre pessoas e grupos, apoiando as características que os desunem que os impedem
de realizar qualquer mudança. Junto a essa estratégia, pode atuar também a estratégia de
expurgo do outro, estratégia que envolve na construção de um inimigo retrato como mau,
perigoso e ameaçador contra o qual os indivíduos são chamados a expurgá-lo. Não vemos
outro exemplo melhor que a construção simbólica de que a população negra, seja ela africana
ou na diáspora, seja um perigo iminente que deve ser contido a qualquer momento. Será por
isso que sua filosofia não é aceita?
59

O quinto modo é a reificação, relações de dominação que são sustentadas pela


retratação de uma situação transitória, histórica, como se essa situação fosse permanente,
natural e atemporal. Uma das estratégias em que atua a reificação é a naturalização, na qual os
processos recebem um caráter de ‘natural’, como por exemplo a pouca presença de negros e
negras na produção filosófica brasileira sendo justificada com base na diferença
racial/intelectual entre negros e brancos. Outra estratégia é a eternização que retrata o que é
histórico numa espécie de contínuo permanente e imutável, inúmeros instituições elaboram a
construção de seus símbolos como inquestionáveis ou indubitáveis, melhor exemplo é a
trindade do cânone filosófico, Platão, Sócrates e Aristóteles. A nominalização e a
passivização, é um tipo de estratégia em que ocorre uma supressão da agência, isto é, o
apagamento daqueles indivíduos ou grupos que praticam determinada ação ou processo que
são transformados em nomes, por exemplo, ‘a interrupção do protesto’ em vez de ‘o protesto
foi interrompido pela polícia’. No caso da voz passiva, os agentes são omitidos, por exemplo:
‘os líderes do protesto foram presos’ em vez de ‘a polícia prendeu os líderes do protesto’. Esta
estratégia será melhor analisada no momento da análise.

Os modos de operação da ideologia apresentados por Thompson (2011) são


apenas algumas formas de construção simbólica, com as quais eles podem ser associados e
através das quais podem ser expressadas. O modo como Thompson conceitualiza ideologia
nos interessa para analisar as formas simbólicas construídas e perpetuadas por Aristóteles em
sua obra Metafísica.

Diante disso, utilizaremos um dos modos de operacionalização da ideologia para


analisarmos de que modo o discurso aristotélico constrói, sustenta e mantém relações de
poder que silencia a filosofia africana. Empregaremos na análise a operacionalização da
ideologia através da legitimação e de suas estratégias; racionalização, universalização,
narrativização. Dentre os cinco modos apresentados, a legitimação se encaixa aos nossos
propósitos, isto é, apresentar o silenciamento da filosofia egípcia através de estratégias
discursivas que operam o racismo epistêmico. Assim, é relevante para esta pesquisa as formas
de produção, distribuição e recepção dessa obra tão importante para a filosofia ocidental. Nos
valeremos desse conceito porque ele é crucial para a análise do discurso crítica e é
identificado como “um dos efeitos causais dos textos” (FAIRCLOUGH, 2003, p.9).

Partindo dessa relação entre ADC e conceito de ideologia elaborada por


Thompson (2011), examinaremos o modo como a legitimação opera nas representações
60

discursivas expressas no texto aristotélico que estão a serviço de estabelecer e sustentar


relações de dominação através do silenciamento discursivo (ORLANDI, 2007) da filosofia
egípcia. Deste modo, a relação entre ADC e o conceito de ideologia é complementar, visto
que a representação discursiva, não é apenas uma questão gramatical, mas também um
processo ideológico. Assim, examinar textos significa considerar quais vozes são
representadas e quais são silenciadas e a não citação e não-representação filosófica dos
egípcios como filósofos será nosso ponto de partida.

4. O RACISMO EPISTÊMICO NA PRÁTICA FILOSÓFICA ARISTOTÉLICA: UMA


ANÁLISE LINGUÍSTICO-DISCURSIVA DO SILENCIAMENTO DA FILOSOFIA
KEMÉTICA

Esta seção é composta por duas seções, na primeira seção apresentamos a


metodologia, tipo de pesquisa, as categorias de análise escolhidas e o corpus propriamente
dito. Na segunda seção, efetuamos a análise linguístico-discursiva do silenciamento da
filosofia kemética compreendendo, através do significado representacional, o modo como o
discurso aristotélico representa os filósofos keméticos e as estratégias ideológicas utilizadas
para legitimar o seu discurso filosófico.

4.1 Metodologia

Para a realização desta pesquisa utilizamos a abordagem qualitativa de tipo


interpretativa-documental, para investigarmos a obra Metafísica de Aristóteles, identificando
de que modo este filósofo constrói a filosofia, o conhecimento e silenciamento da episteme
egípcia por meio do racismo epistêmico. Analisamos alguns trechos previamente selecionados
que seguem assuntos relevantes para a análise, como; a definição e caracterização da filosofia
e a construção de uma hierarquia de saberes que estabelece uma definição do próprio
conhecimento.

Focalizamos nossa análise em como é constituído o racismo epistêmico dentro da


obra aristotélica através do discurso, no qual examinamos o silenciamento através da
61

operacionalização da ideologia e suas consequências para as/os negras/os africanas/os e na


diáspora. Diante disso, escolhemos a abordagem teórico-metodológica da ADC, visto que é a
que mais se encaixa em nossas investigações, pois visamos a mudança social e da consciência
acerca da filosofia egípcia e dos povos negros através da análise textual.

A Análise do Discurso Crítica, conforme Fairclough (2005) é uma teoria e método


de análise da linguagem como prática social. Trata-se de uma perspectiva teórica sobre a
língua e, de uma maneira mais geral, sobre a semiose. A ADC se propõe como uma
perspectiva que tem uma relação dialógica com outras teorias e métodos sociais, com eles
engajando-se não apenas de maneira interdisciplinar, mas transdisciplinar, suscitando avanços
teóricos e metodológicos que perpassam as fronteiras das várias teorias e métodos
(FAIRCLOUGH, 2000).
Nesse sentido, é relevante para nossa pesquisa o aspecto de que a ACD é uma
forma de ciência social crítica projetada para mostrar problemas enfrentados pelas pessoas em
razão das formas particulares de vida social, fornecendo recursos para que se chegue a uma
solução (FAIRCLOUGH, 2005). Para tal, a ADC acaba nos fornecendo um percurso teórico-
metodológico que auxilia nas resoluções de problemas sociais.
Dito isso, o enquadre metodológico que iremos dispor será o de Chouliaraki e
Fairclough (1999), que posteriormente é retomado e reformulado em Fairclough (2003).
Nesse enquadre, as três dimensões do discurso apresentadas na obra Discurso e Mudança
Social (2001), são mantidas, no entanto, de modo mais fragmentada na análise e com uma
centralidade na análise da prática social, que passou a ser mais privilegiada. Segundo Resende
e Ramalho (2006, p.29) “a centralidade do discurso como foco dominante da análise passou a
ser questionada, e o discurso passou a ser visto como um momento das práticas sociais”.
Deste modo, esse modelo acaba por se tornar mais complexo por causa de sua
ampliação de análise e de caráter ainda mais interdisciplinar, ou melhor, transdisciplinar. De
acordo com Fairclough (2003, p. 6); uma abordagem transdisciplinar à teoria ou ao método
analítico é uma questão de trabalhar com categorias e lógica ou, por exemplo, com teorias
sociológicas para desenvolver uma teoria do discurso e métodos para analisar textos.

Nossa análise seguirá o quadro de análise apresentado por Chouliaraki e


Fairclough (1999) e que Fairclough retorna em Analysing Discourse: Textual Analysis for
Social Research (2003). O quadro mostra um enquadre esquemático como uma forma de
linguagem crítica:
1. Focalizar um problema social que tem um aspecto semiótico.
62

2. Identificar os obstáculos a serem atacados, por intermédio da análise:


(a) da rede de práticas dentro da qual está localizada;
(b) da conexão da semiose com outros elementos dentro da (s) prática (s)
particular(es) concernente(s),
(c) do discurso (a semiose) por si:
I – análise estrutural: a ordem do discurso
II – análise interacional/textual – tanto a análise interdiscursiva e a análise linguística (a
semiótica). O objetivo aqui é entender como o problema se apresenta e como isso é
radicado no modo em que a vida social está organizada, pela focalização dos obstáculos
para sua resolução – nas marcas mais ou menos intratáveis.
3. Considerar se a ordem social (rede de práticas) “necessita” do problema. O ponto
aqui é para perguntar se aqueles que se beneficiam do modo de vida social em que está
agora organizada têm um interesse em o problema não ser resolvido.
4. Identificar possíveis modos passados dos obstáculos. Este estágio na estrutura é
um complemento crucial para o estágio 2 – isto procura até agora possibilidades não-
realizadas de trocar o meio da vida social em que está atualmente organizada.
5. Refletir criticamente a análise. Mas isto é uma importante adição que requer do
analista a reflexão de onde ele/ela vem, como ele/ela por si mesmo(a) é socialmente
posicionada (FAIRCLOUGH, 2003, p. 166-167).

Seguindo o proposto no quadro acima, o problema é; 1) analisar o racismo


epistêmico presente na obra de Aristóteles, 2) observar/analisar em quais práticas estão
inseridas dentro da obra elaborando uma análise da conjuntura da qual o discurso filosófico de
aristotélico é uma parte. 3) observar o modo como ideologias presentes no discurso de
Aristóteles não são questionadas por interesse da manutenção da naturalização de ordens do
discurso hegemônicas, como por exemplo do nascimento da filosofia na Grécia. Por fim, a
própria reflexão da análise, o meu posicionamento, como pesquisador negro, acerca do
problema apresentado e analisado.

4.1.1 Categorias de Análise

Investigamos o discurso filosófico aristotélico por meio do significado


representacional do discurso proposto pela ADC faircloughana, isto é, os modos de
representar discursivamente o outro silenciado. Desta forma, partindo do significado
representacional, utilizamos as categorias de discurso e interdiscurso; examinamos o discurso
enquanto discurso filosófico e seus modos de representar aspectos do mundo – os processos,
relações e estruturas do mundo material, o “mundo mental” dos pensamentos, sentimentos,
crenças, e assim por diante, e o mundo social na obra aristotélica observando o interdiscurso
presente.
A categoria de interdiscurso é mobilizada para acessarmos os significados
representacionais presentes no discurso filosófico de Aristóteles e nos auxilia a compreender
63

como Aristóteles constrói ideologias e silenciamentos dentro da Metafísica. Além disso, é por
meio do interdiscurso que observamos como Aristóteles mobiliza outros discursos da tradição
filosófica para legitimar por meio da racionalização, universalização e narrativização os seus
argumentos e propostas filosóficas.
Outra categoria utilizada que contribui nesse mesmo sentido é a categoria de
intertextualidade, já que é por meio dela que Aristóteles movimenta citações diretas e
implícitas a ideias de outros filósofos para compor seu modo de enxergar a filosofia e o
conhecimento científico. A intertextualidade é uma categoria mobilizada dentro da análise
para demonstrar que através da presença material de outros textos, Aristóteles silencia outras
possibilidades filosóficas além das que ele descreve.
Aliada a essas duas categorias, para detectarmos o modo como Aristóteles
representa aspectos de sua visão da filosofia e do conhecimento por meio do discurso, os
significados de palavras e o processo de lexicalização são significantes, pois é por meio das
palavras e do léxico que estamos diante de escolhas sobre como usar uma palavra e como
expressar um significado por meio de palavra (FAIRCLOUGH, 2001).
No caso de Aristóteles, nos interessa as escolhas e decisões que são feitas para
legitimar seus argumentos e que tais escolhas são embasadas, não de modo individual, mas
validadas de modo social e filosófico. Desta forma, a análise seguiu determinadas palavras
que se destacaram no discurso aristotélico tornando-se relevante para a pesquisa
(FAIRCLOUGH, 2001), bem como na adesão coletiva, ou seja, da própria academia filosófica
até os dias atuais, de certos significados particulares de palavras, como veremos na análise.
Por fim, os resultados são explorados na busca por expressar como o discurso
filosófico presente na obra aristotélica produz o racismo epistêmico contribuindo para o
silenciamento dos conhecimentos da filosofia africana.

4.1.2 Corpus de Análise

Nosso corpus é composto pela obra Metafísica do filósofo macedônio Aristóteles.


De antemão, é necessário que entendamos a escolha do filósofo e da obra. A preferência por
Aristóteles se dá por seu caráter clássico e por ser considerado o primeiro a realizar a
“primeira sistematização ocidental do saber” (REALE, 1990, p. 171). Então, nada mais
relevante para nossa análise discursiva do que um autor que encarne toda uma tradição
filosófica anterior e influencie, de forma massiva, uma tradição filosófica posterior. Todas as
64

questões pensadas por Aristóteles são retomadas e aprofundadas durante toda a história da
filosofia.
Quanto à obra Metafísica, sua designação se dá por se adequar propriamente
com nossa proposta de análise do silenciamento epistemológico da filosofia africana, visto
que a principal questão da obra é estabelecer as bases do conhecimento, ou melhor, “um
estudo minucioso e apurado sobre a capacidade de conhecer” (SOUZA, 2016, p.29). A
capacidade de conhecer que segundo Aristóteles (2012) “todo o ser humano naturalmente
tem” (ARISTÓTELES, 2012, 980 a22, p.41) é o que nos questionamos e investigamos se de
acordo com o filósofo todos realmente são capazes de atingir a filosofia primeira.
Filosofia primeira é o nome de fato da obra Metafísica, pois o conceito Metafísica
(o que está além da física) não é um conceito aristotélico, “talvez tenha sido cunhado pelos
peripatéticos, se não houver nascido por ocasião da edição das obras de Aristóteles realizada
por Andrônio de Rodes no século I” (REALE, 1990, p.179). A expressão de fato utilizada por
Aristóteles era Filosofia Primeira em oposição à Filosofia Segunda (física).
De acordo com Reale (1990, p. 179), “o termo metafísica foi sentido como mais
significativo pela posteridade, tornando-se preferido. Com efeito, a filosofia primeira é
precisamente a ciência que se ocupa das realidades que estão acima da física”. É significativo
a escolha da obra Metafísica já que ela se preocupa com nossas principais questões, o
conhecimento e principalmente o silenciamento de sua produção aos povos negros. Nossa
análise da Metafísica se instiga, principalmente, com as declarações feitas por George James
(1954, p. 19), de que “a Filosofia Grega é uma espécie de drama, cujos atores principais
foram Alexandre o Grande, Aristóteles e seus sucessores (...)”. Esse drama perpetuado pelo
ator Aristóteles e as consequências de seu discurso filosófico é o que exploramos.
Para a elaboração da análise crítica do discurso filosófico de Aristóteles,
empregamos alguns critérios para a escolha dos trechos discursivos que compõem o corpus,
são eles: a) excertos discursivos que tematizam e se relacionam com a definição e
caracterização da filosofia, elaborando assim uma definição que silencia outras formas de se
pensar e fazer filosofia; b) Que constituem uma hierarquização do conhecimento que indica e
constitui um régua epistêmica operando através da legitimação do racismo epistêmico da
filosofia kemética. Esses critérios serviram como temas e bússola na escolha dos trechos
examinados, é através deles que observamos como o silenciamento atua na efetivação do
racismo epistêmico.
65

Na próxima seção, nos deteremos na análise da obra aristotélica seguindo os


critérios aqui apresentados.

4.2 Análise linguístico-discursiva do silenciamento discursivo da filosofia kemética

Apresentamos, nesta seção, a análise dos trechos, previamente selecionados, da


obra Metafísica de Aristóteles. Os trechos estão divididos em dois temas: A definição e
caracterização da Filosofia segundo os termos de Aristóteles e o Estabelecimento da
hierarquia dos saberes. Os trechos selecionados seguem os dois temas que nos interessam para
a análise e neles examinamos, por meio do significado representacional, a operacionalização
da ideologia e como esta propicia o silenciamento discursivo da filosofia kemética e,
consequentemente, promove racismo epistêmico por meio do discurso filosófico aristotélico.

4.2.1 O significado representacional: o discurso como modo de representar e a

operacionalização da ideologia

O significado representacional é compreendido enquanto representação de


aspectos do mundo físico, mental e social em textos (FAIRCLOUGH, 2003). Deste modo, o
discurso enquanto texto está relacionado com o sujeito e como este se posiciona no mundo, se
porta e expressa seus pensamentos sobre o que vive. Entendendo então que o discurso produz
e reproduz sentidos, retomemos a concepção de Thompson (2011) para analisar os efeitos da
ideologia presente no discurso aristotélico, visto que nos indagamos; “de que maneira pode o
sentido servir para estabelecer e sustentar relações de poder?” (THOMPSON, 2011, p. 80).

À guisa de Thompson (2011), no modo como os sentidos servem para manter as


relações de dominação, utilizaremos um dos cinco descritos pelo autor – como já foi
demonstrado, isto é, o modo de operacionalização da ideologia a partir da legitimação. Como
cada modo opera a partir de estratégias e construções simbólicas, as estratégias da legitimação
são; racionalização, universalização e narrativização. Por meio dessas estratégias veremos
como o silenciamento discursivo da filosofia kemética ocorre no discurso aristotélico e, deste
modo, se instaura o racismo epistêmico.
66

4.2.2 Análise dos discursos: A definição e caracterização da Filosofia

Nesta subseção, efetuamos a análise dos excertos selecionados que se enquadram


dentro da tipificação que adotamos, isto é, da definição e caracterização da filosofia segundo
os termos aristotélicos. Nos interessa a definição de Aristóteles, pois ela estabelece os termos
do que é filosofia até os dias de hoje e sistematiza toda a história da filosofia que vemos
presente em toda a academia filosófica, principalmente, no Brasil.

Deste modo, iniciamos com um trecho no qual Aristóteles vai definir o que é
exatamente o fenômeno do filosofar ou melhor, do maravilhar-se:

Excerto 1: É por força de seu maravilhamento que os seres humanos começam


agora a filosofar e, originalmente, começaram a filosofar; maravilhando-se
primeira ante perplexidade óbvias e, em seguida, por um progresso gradual,
levantando questões também acerca das grandes matérias, por exemplo, a respeito
das mutações da lua e do sol, a respeito dos astros e a respeito da origem do universo
(ARISTÓTELES, 982 b10-15, 2012, p.45, grifo nosso).

O substantivo “maravilhamento” é utilizado para denotar um ato filosófico, isto é,


o ato de espantar-se diante de algo que não se compreende, mas quer se compreender, ou seja,
reflete o desejo de conhecer. Para Aristóteles, ele seria a primeira força, vontade, que leva os
seres humanos a filosofar, é por ele que todos começam. Como em uma escala de
entendimento, iniciamos das questões mais banais às mais complexas. Em nenhum outro
filósofo, dito Grego, encontramos tal definição de ato filosófico, é uma construção nominal de
um termo empregado na filosofia até os dias atuais para se discutir “por que filosofamos?”
A nominalização é um recurso para generalização, para uma abstração de eventos
específicos e séries ou conjuntos de eventos, sendo assim um recurso irredutível no discurso
técnico e no científico (FAIRCLOUGH, 2003). Por esse motivo, vemos este recurso tão
presente no discurso aristotélico, já que o filósofo pretende estabelecer um critério para a
filosofia. Maravilhar-se, logo, é colocada como o primeiro ato de definição da postura
filosófica para Aristóteles, ela se instaura com bases universais, já que, para o estagirita, não
haveria outra postura diante da incompreensão do cosmos do que “maravilhar-se”. É por meio
67

dela que os primeiros seres humanos, que surgiram no continente Africano, filosofaram. É
interessante denotarmos como o recurso da universalização é perceptível no texto aristotélico.

Nesse primeiro excerto observa-se que tais recursos se inserem para construir,
argumentativamente, as arguições do filósofo, bem como o silenciamento discursivo de outras
possibilidades de posturas filosóficas que não se “maravilham”, além de universalizar uma
visão que não se fundamenta historicamente. Denotamos, então, no segundo excerto, assim
como no primeiro, as bases universais de onde se inicia a filosofia e como esta se funda.
Através da categoria analítica de intertextualidade, nas escolhas lexicais, examinamos como a
representação discursiva da filosofia passa por certos princípios e como esta não inclui a
filosofia kemética;

Excerto 2: Tales, fundador dessa escola de filosofia, afirma que esse princípio
permanente é a água (razão pela qual ele igualmente propôs que a terra flutua na
água). É presumível que tenha chegado a essa hipótese a partir da observação de
que o nutriente de tudo é úmido, e que o próprio calor é gerado pela umidade (…)
(ARISTÓTELES, 983b20, 2012 p 48, grifo nosso).

Ao citar Tales de Mileto, pensador no qual a tradição filosófica atribui o começo


da filosofia e é considerado o primeiro a afirmar um “princípio filosófico” para o cosmos
(REALE, 1990), para fundamentar as primeiras conceitualizações da filosofia, Aristóteles
utiliza o recurso da intertextualidade, isto é, “a presença material de outros textos dentro de
um texto ” (FAIRCLOUGH, 2003, p.28) a fim de estabelecer as bases argumentativas e
racionais para o seu discurso. Neste caso, a intertextualidade opera transformando o que se
compreende por Tales, gerando uma nova compreensão sobre este filósofo, visto que
Aristóteles o caracteriza como “fundador” de uma escola de filosofia e afirma que o pensador
incumbiu a realidade de um “princípio permanente”, termos, muito provavelmente, não
utilizados por Tales, mas que se consagraram dentro da tradição filosófica.

O verbo “fundador” e o substantivo “princípio” são dois termos muito utilizados


por Aristóteles e, consequentemente, no discurso filosófico, visto que constroem,
simbolicamente, raciocínios que dão legitimidade ao seu argumento e convencem quem lê de
sua autoridade científica ou filosófica. Neste caso, podemos observar não só a
intertextualidade operando para construir novas compreensões textuais, mas também a
estratégia de racionalização, já que Aristóteles procura justificar seu discurso com a utilização
de termos que não só buscam nos convencer, mas também legitimam um modo de produzir o
discurso filosófico.
68

Através da estratégia da racionalização, na escolha lexical, de iniciar por Tales e


não por qualquer outro pensador, Aristóteles instaura um silêncio fundante, ou seja, um
silêncio que constrói um sentido (ORLANDI, 2007), neste caso, a sua posição de não
mencionar ou iniciar por outros pensadores, por exemplo os keméticos, silencia
discursivamente outras possibilidades filosóficas além da que ele instaurou no momento que
opta pelo nome “Tales” e não “ImHotep”9. Nem mesmo citar que o próprio Tales, antes de
incorrer em suas considerações filosóficas sobre o cosmos, viajou inúmeras vezes para o
Kemet a fim de estudar com os sacerdotes keméticos as doutrinas secretas (JAMES, 1954).
Assim, não é necessária uma análise pormenorizada da história da filosofia no Ocidente para
entendermos as consequências desta representação discursiva, pois em nenhum manual de
filosofia encontramos “ImHotep, fundador da escola…” e nem muito menos que Tales viajou
para o Egito e lá aprendeu sobre filosofia.

Seguindo tais apreciações e suas consequências discursivas através da filosofia


Aristotélica, o filósofo afirmará a necessidade de se investigar e reconhecer a relevância dos
filósofos que vieram antes, como Tales por exemplo, para a constituição de uma filosofia
primeira:

Excerto 3: Entretanto, recorramos à evidência daqueles que antes de nós


empreenderam a investigação da realidade e filosofaram acerca da verdade,
pois claramente também eles reconhecem certos princípios e causa, de modo que
representará alguma ajuda para nossa presente investigação estudarmos seu
ensinamento (…) (ARISTÓTELES, 983b5, 2012, p. 47, grifo nosso).

No excerto acima é nítido a presença da categoria de interdiscurso, pois o grupo


nominal “filosofaram acerca da verdade” remete aos filósofos que, segundo Aristóteles,
elaboraram categorias de investigação para chegarem na verdade ou causa primeira da
realidade, já que as principais questões dos primeiros filósofos eram “Como surgiu o cosmos?
Quais são as fases e os momentos de sua geração? Quais são as forças originárias que agem
no processo?” (REALE, 1990, p. 24). Deste modo, cada filósofo dava uma resposta diferente
para cada questionamento, como Tales, por exemplo, que acredita que a força que rege e deu
origem ao cosmos era a água.

9
Imhotep, filho de Khreduankh e do deus Ptah, mestre-de-obras do reino chamado Kanefer, viveu durante o
Antigo Império Egípcio, entre os anos de 2686 – 2613 a.C. Mais conhecido por seus trabalhos na medicina e em
máximas éticas e mortais. Para saber mais, ler: “Uma Origem Africana da Filosofia: Mito ou Realidade” do Dr.
Molefi Kete Asante.
69

Aristóteles recorre a investigação destes filósofos para examinar quais causas 10


estes alcançaram e como definiram a realidade, para que assim, o filósofo possa traçar uma
arguição que fundamente suas propostas. Deste modo, a categoria de interdiscurso opera
como uma base para a efetivação da racionalização discursiva de Aristóteles, pois esta
constrói uma cadeia de raciocínio que defende e justifica seus argumentos. Deste modo,
Aristóteles legitima seu discurso demonstrando como a tradição filosófica operou suas
categorias e estes se encaixam ou não na sua definição da filosofia.

No excerto 4 vemos com mais ênfase certas caracterizações e nomeações que


aparecem para dar continuidade a sua cadeia argumentativa:

Excerto 4: maioria dos primeiros filósofos concebeu apenas princípios materiais


para todas as coisas. Aquilo de que todas as coisas consistem, de que procedem
primordialmente e para o quê, por ocasião de sua destruição, são dissolvidas em
última instância, permanecendo a essência, ainda que modificada por suas afecções
– isso, dizem, é um elemento e princípio das coisas existentes (ARISTÓTELES,
983b5-10, 2012, p. 47-48, grifo nosso).

No excerto 4, podemos denotar que a escolha de certas palavras mostram como


Aristóteles representa seu entendimento da filosofia e suas características, ou seja, ao
argumentar que a “maioria dos primeiros filósofos” há a construção de uma expressão e
compreensão que não havia antes de Aristóteles, ou seja, dos “primeiros filósofos”. Esse
grupo nominal expressa um tipo de lexicalização já descrita, isto é, a nominalização. A
nominalização é o processo de criação de novos itens lexicais que permite conceber
perspectivas particulares dos domínios da experiência segundo uma visão teórica, científica,
cultural ou ideológica mais abrangente (FAIRCLOUGH, 2001). Em casos como o de
Aristóteles, ela gera novas categorias filosoficamente e culturalmente importantes.

Deste modo, a nominalização cunhada pelo filósofo estagirita estabelece um novo


olhar sobre a filosofia, entendo-a não apenas por aqueles que estudaram na academia de
Platão, mas numa perspectiva que vai antes de Platão, engendrando assim uma narrativa sobre

10
As causas são o fundamento da realidade e são limitadas, pois se fossem ilimitadas não seria possível conhecer
a própria realidade. Aristóteles definiu a existência de quatro causas e estas caracterizam a realidade: “Ora, há
quatro tipos reconhecidos de causas. Destes, afirmamos que um deles é a essência ou natureza essencial da coisa
(uma vez que o “porquê” de uma coisa é, em última instância, reduzível à sua fórmula, e o “porquê” em última
instância é uma causa e princípio); um outro é a matéria ou substrato; o terceiro [tipo de causa] é o princípio do
movimento; e o quatro é causa que se opõe a isso, nomeadamente, a finalidade ou “bem” (visto ser isso o fim de
todo processo gerador e motriz) (ARISTÓTELES, 983a20-30, 2012, p.47).
70

ela e definindo seus padrões, visto que antes de Aristóteles não havia tal expressão carregada
de simbolismo histórico, como se já houvesse uma tradição filosófica estabelecida. Por essa
razão, Reale (1990) nomeia o pensamento aristotélico como sendo “a primeira sistematização
ocidental do saber” (REALE, 1990 p.171). Assim, o grupo nominal analisado segue então
uma expressão universalizante da própria filosofia, pois nomear “os primeiros filósofos”
universaliza uma forma de compreender a filosofia, ou seja, primeiros filósofos serão aqueles
que Aristóteles venha a representar como pertencente a este grupo.

A universalização funciona como um modo de instaurar uma representação de que


houve primeiros filósofos e que eles são aqueles citados pelo autor em seu discurso, aqueles
que não são encontrados em sua exposição dos primeiros filósofos, logo, não entram dentro
dessa identificação, isto é, não são representados e, portanto, não existem. Dentro disso,
quando Aristóteles universaliza esses primeiros filósofos ele recorta o dizer, ele silencia, pois
o silêncio não está em calar, mas de fazer dizer ‘uma’ coisa, para não deixar dizer ‘outros’
(ORLANDI, 2007). Quando Aristóteles enuncia “primeiros filósofos” e não menciona outros
filósofos além de Tales e muito antes dele, como já foi demonstrado na segunda seção,
concebe um novo sentido para a filosofia e sua definição.

Além da nominalização, ao utilizar termos como “princípios” e “essência” das


coisas, observamos então, um interdiscurso presente na legitimação do discurso aristotélico, já
que o autor recorre a ideias já utilizadas pela tradição filosófica, como Sócrates e Platão, para
compor uma outra forma de compreender o léxico filosófico. Filosofia então, seria mais sobre
princípios e essência, do que outros termos. Tal conceitualização corrobora para a elaboração
de uma narrativização, pois pretende manter histórias do passado e tratam o presente como
parte de uma tradição eterna e aceitável.

No excerto 5 observamos a efetivação dessa estratégia:

Excerto 5: Assim, evidencia-se, inclusive com base nas afirmações dos filósofos
mais antigos, que toda investigação aparentemente é dirigida para as causas
descritas na Física e que não podemos sugerir qualquer outra causa além dessa. Elas
foram, todavia, apenas conceituadas imprecisamente e, embora num sentido tenham
sido todas indicadas antes, num outro não haviam sido indicadas de modo algum,
isto porque a filosofia mais antiga é, por assim dizer, como alguém que balbucia
em todos os assuntos, já que era nova em sua infância (ARISTÓTELES, a15-20,
2012, p. 71, grifo nosso).

Nesse excerto, o discurso sobre “filósofos mais antigos” fundamenta uma noção
de uma tradição filosófica já existente e que segue um modo de fazer filosofia, por mais que
71

seja válido, pois segue os termos aristotélicos de busca das causas primeiras da realidade. No
enunciado “filósofos mais antigos”, estabelece-se então a construção discursiva de uma
tradição filosófica que perdura até os dias de Aristóteles, mas que é necessário que seja
mudada, pois não atende mais os requisitos da filosofia primeira aristotélica. Tal
procedimento é aliceçardo na categoria de interdiscurso que se instaura de modo a validar o
discurso de Aristóteles, visto que ele se utiliza dos conhecimentos dos filosófos antigos para
fundamentar a própria construção de tradição, uma tradição que muda porque é inventada uma
nova tradição a fim de criar outro sentido que legitime as argumentações de Aristóteles.

Esse novo sentido inclui princípios e critérios que caracterizam a filosofia


primeira e a “filosofia mais antiga” apenas como imaturas diante dela, seus filósofos são
como soldados destreinados numa batalha, que se precipitam para todos os lados, e com
frequência, desferem bons golpes, mas sem critério científico (ARISTÓTELES, 2012). Ao
instituir esta tradição, Aristóteles silencia outras formas de filosofia, outras formas de dizer
filosofia e fazer filosofia causando assim um apagamento da materialidade histórica do dizer
(ORLANDI, 2007).

Além da narrativização, verificamos também a racionalização que opera para


legitimar tais critérios das causas, como podemos atestar no excerto 6: “Está claro que
precisamos obter conhecimento das causas primeiras porque é quando pensamos
compreender sua causa primeira que reivindicamos conhecer cada coisa particular”
(ARISTÓTELES, 983a20-30, 2012, p.47, grifo nosso), ou seja, o conhecimento da filosofia é
conhecimento das causas e é por meio delas, das quatro causas (essencial, material, formal e
final) que compreendemos a realidade.

Por meio do enunciado “precisamos obter conhecimento das causas primeiras”,


Aristóteles indica o procedimento filosófico que deve ser feito para se fundamentar a filosofia
e como esta se apresenta para o filósofo. Aqui denotamos não só a estratégia de
racionalização como, principalmente, de universalização, visto que institui um modo
universal de fazer filosofia e elenca toda possibilidade de definição a partir desta. Este é o
modo como Aristóteles representa a filosofia, uma definição de causas. A partir das escolhas
dos verbos “precisamos” e “obter” visualizamos uma representação de um sentimento e
crença de um sujeito que quer instituir e representar algo como sendo legítimo, no caso, a
filosofia das causas primeiras.

Esta filosofia proposta por Aristóteles nos remete uma indagação proposta por
Orlandi (2007, p. 152), pois se “ao falar sempre afastamos sentidos não-desejados, para
compreendermos um discurso devemos perguntar sistematicamente o que ele ‘cala’”. Deste
72

modo, o que (ou quem) o discurso aristotélico cala? Como constatamos nos excertos
analisados, ele /silencia outras formas de filosofia, no caso, a filosofia kemética e seus
pensadores; filosofia esta que o próprio autor chegou a ter acesso e foi até Kemet para estudá-
la (JAMES, 1954; DIOP, 1974; OBENGA, 2004).

Por meio do silenciamento discursivo da filosofia kemética, Aristóteles promove


um racismo epistêmico que se faz presente na filosofia até os dias atuais, pois a definição dos
critérios e causas do que caracterizam a filosofia silenciam outras formas de filosofia através
do privilégio epistêmico de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para
os demais (GROSFOGUEL, 2016).

Esse racismo epistêmico, então, é a forma fundamental e a história mais antiga do


racismo na medida em que a inferioridade dos "não ocidentais" é definida com base em sua
não proximidade com a inteligência ocidental (GROSFOGUEL, 2011). Para melhor
exemplificarmos essa situação, nada melhor que demonstrar o que o grande filósofo da era
moderna, Immanuel Kant, tem a dizer sobre o assunto:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve
acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo
em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que
foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em
liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte
ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente
arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo
prestígio, por força de dons excelentes. tão essencial é a diferença entre essas duas
raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto
à diferença de cores. [...] os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e
tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas (KANT, 1990, pp. 75-76).

Na citação acima vemos explicitamente a efetivação daquilo que Aristóteles


inicia em suas argumentações. Há nesse argumento de Kant, pensador moderno muito
influenciado pelos pensadores gregos, a certeza de que os negros africanos são inferiores e
que por isso, e muita razões, devem ser escravizados, ou seja; há uma justificação da
desumanização dos sujeitos negros não só por meio de ideias religiosas, como já estamos
acostumados a saber, mas pela própria filosofia. Colocamos essa citação kantiana, que assim
como Aristóteles é conhecido como sistematizado da filosofia, para exemplificar como o
discurso aristotélico funda as bases do racismo moderno através da filosofia e do
estabelecimento de uma hierarquia de saberes que veremos no próximo subtópico de análise.
73

Antes de passarmos para a próxima temática de análise, observemos o quadro a


seguir para compreendermos de modo resumido quais categorias foram utilizadas e quais
estratégias de legitimação foram operacionalizadas na análise dos excertos, o silenciamento
discursivo incorre sempre alinhado as três estratégias de legitimação (racionalização,
universalização e narrativização).

Quadro 1 - Síntese da Análise

EXCERTOS ANALISADOS CATEGORIAS (ADC) ESTRATÉGIAS DE


LEGITIMAÇÃO
Excerto 1: maravilhamento Nominalização Universalização
(...) começar a filosofar (p. 67)
Excerto 2: Tales, fundador Intertextualidade Racionalização
dessa escola (...) princípio
permanente (p.68)
Excerto 3: à evidência Interdiscurso Racionalização
daqueles que antes de nós
empreenderam a investigação
da realidade e filosofaram
acerca da verdade (...) (p. 69)

Excerto 4: a maioria dos Nominalização Narrativização


primeiros filósofos (...) Interdiscurso
princípios (p. 74). Racionalização

Excerto 5: filósofos mais Interdiscurso Narrativização


antigos (...) a filosofia mais Racionalização
antiga é, por assim dizer,
como alguém que balbucia em
todos os assuntos (...) (p. 71)

Excerto 6: precisamos obter Vocabulário Racionalização


(p. 72) Universalização
Fonte: Autor

No quadro acima verificamos que a categoria de análise mais utilizada é a


categoria de nominalização, principalmente pelo fato de Aristóteles se propor a elencar as
bases e critérios da filosofia, constituindo assim nomes para ideias e significações antes não
construídas. Outra categoria bastante operada é a do interdiscurso, pois o filósofo sempre
retoma ideias da tradição filosófica para fundamentar seus argumentos, e é neste ponto onde
as estratégias de legitimação mais se aplicam, principalmente a de racionalização e
narritivação.
74

Além disso, o vocabulário, um recurso essencial da análise aparece no excerto 6


de modo a apresentar como a utilização de uma palavra para constitiuir uma forma de
pensamento universalizante, pode causar um silenciamento discursivo. Partindo disso, este
quadro serve apenas para ilustrar, de modo resumido, o que foi analisado até ntão. Passemos
para o outro subtópico de análise.

4.2.3 O estabelecimento da hierarquia entre os saberes: silenciamento discursivo eracismo

epistêmico

Nesta subseção, continuamos a análise acerca do silenciamento discursivo da


filosofia kemética na obra Aristotélica. A escolha do tema se dá, como já dito, pela
articulação teórica de uma construção simbólica e discursiva efetuada por Aristóteles a
respeito do conhecimento que silencia outras formas de conhecimento e, por meio da
nomeação, representa e elabora representações sobre o povo kemético.
Observamos isso no excerto 7: “as ciências matemáticas nasceram nas
vizinhanças do Egito, porque aí a casta sacerdotal podia desfrutar do lazer” (ARISTÓTELES,
981 b20, 2012, p 43, grifo nosso). Focalizemos neste fragmento a denominação que
Aristóteles faz dos povos keméticos. Mesmo conhecendo-os, visto que se autoriza a discorrer
que “as ciências matemáticas” nasceram em Kemet, ele não utiliza da nomeação Kemet, mas
Egito – nome grego.
Aristóteles, ao invés de nomear os povos keméticos pela maneira como eles se
autonomeavam, prefere adotar uma designação estranha a esses povos. A escolha da forma
como nomeamos sujeitos e lugares é ideológica (FAIRCLOUGH, 2001). Assim, ao optar por
“Egito” e não “Kemet” ele institui uma forma de olhar/representar a civilização do Nilo, ou
seja, sob uma perspectiva grega.
Partindo disto, Aristóteles universaliza uma perspectiva de nominalização dos
povos keméticos, pois através da estratégia de universalização se instaura um modo não só de
dizer, mas de significar os povos keméticos como egípcios, ou seja, retira sua particularidade
e universaliza em uma visão grega (helênica), visto que quando se troca a palavra também se
troca o significado (FAIRCLOUGH, 2001). O interessante é que Kemet significa "Preto". A
interpretação segundo a qual Kemet designava o solo preto do Egito, preferencialmente ao
homem preto e, por extensão, a raça preta do país dos Pretos, decorre mais de uma distorção
gratuita por mentes conscientes do que uma interpretação exata desta palavra faria implicar
(DIOP, 1974).
Desta forma, Aristóteles não silencia apenas a visão dos povos keméticos sobre si
75
mesmos, mas também o próprio sujeito preto do norte da África, silencia sua humanização.
A estratégia de universalização comparece não só na nominalização dos povos keméticos,
mas, principalmente, na construção de uma régua epistêmica, na qual, o conhecimento
universal é o mais elevado, como denota-se no excerto 8: o conhecimento de todas as coisas
tem, necessariamente, que pertencer àquele que, no mais elevado grau, possui conhecimento
do universal, porque ele conhece, num certo sentido, todos os particulares compreendidos no
universal (ARISTÓTELES, 982 a 20, 2012, grifo nosso).
No excerto 8, há a definição clara do modo que o filósofo estagirita enxerga o
conhecimento e como este é representado através de certos princípios: “todas as coisas”,
“elevado grau” e “universal”. Se um saber segue tais princípios, podemos considerá-la um
conhecimento válido. Na realidade, o adjetivo “universal” é o atributo que melhor significa o
substantivo “conhecimento” e o que este simboliza. Conhecimento, para Aristóteles, é
universalizante, por esse motivo as estratégias de racionalização e universalização são as mais
operadas no excerto 8, visto que ao relacionar conhecimento com “todas as coisas”, “elevado
grau” e universal”, ele estabelece um modo universal de constituir o que é conhecimento.
Assim, a hierarquia do conhecimento é instituída por meio de critérios universais
que, consequentemente, silenciam outros modos de produção de conhecimento. Tal hierarquia
constatamos no excerto 9:

Excerto 9: Além disso, entre as ciências, consideramos que a ciência desejável em


si mesma e em função do conhecimento está mais próxima da sabedoria do que
aquela é desejável por seus resultados, e que a ciência superior está mais próxima
da sabedoria do que a subsidiária, pois o sábio deve dar ordens e não as receber.;
nem, tampouco, deve ele obedecer a outros, devendo sim o menos sábio obedecê-lo.
(ARISTÓTELES, 982 a19-15, 2012, p. 44-45, grifo nosso).

Por meio da hierarquia entre “ciência desejável em si mesma” e “sabedoria que


deseja os resultados”, infere-se que “ciência superior” está mais próxima daquela que não
procura resultados. Pela maneira como a expressão linguística “ciência superior” significa no
discurso aristotélico detectamos a universalização operando enquanto constituinte e
fundamental para instaurar uma noção de conhecimento que elenca qual é o conhecimento
“superior” e qual é “inferior”.
Na escolha lexical do adjetivo “superior” relacionado a “ciência”, Aristóteles,
funda uma noção que servirá como régua para definir o que é conhecimento ou não. Ao
discorrer acerca da existência de um saber que se eleva a todos os outros por seus critérios
superiores, ele destitui outras formas de saber, silencia discursivamente outros caminhos
epistemológicos que não são nem mencionados. Esse silêncio, como já sabemos, significa, e
constitui uma base de interpretações acerca desse significado instituindo uma balança
76

filosófica que será utilizada ao longo da história da filosofia para instituir o que será tido
como conhecimento ou não.
A escolha do adjetivo “superior” para qualificar um conhecimento elevado não só
silencia, como, consequentemente, fornece uma base para o racismo epistêmicos, já que
delimita, discursivamente, a existência de uma inferioridade epistêmica, argumento crucial,
utilizado para proclamar uma inferioridade social/biológica relacionado aos povos africanos.
A ideia racista preponderante no século XVI de “falta de inteligência” dos negros já era
defendida por Aristóteles, de forma silenciosa na Metafísica e de modo explícito na obra
Physiognomonica (Fisionomia), como podemos ver neste excerto: “Aqueles que são muito
morenos são covardes; isso se aplica aos egípcios e etíopes” (ARISTÓTELES, 1995, p. 127,
tradução nossa). Não nos cabe aqui analisar este trecho, no entanto, ele exemplifica o que
estamos demonstrando nesta análise discursiva.
A instituição de um conhecimento superior e um inferior dá margem para toda
uma cadeia de justificação de uma hierarquia não só de saberes, mas de humanidade. Uma
régua epistêmica que mede humanidade por meio de padrões universalizantes e
racionalizantes que intitula uns de humanos e outros não, construindo assim um discurso
filosófico que legitima violências.
Apenas neste excerto analisado, vemos o racismo epistêmico presente de modo a
constituir bases ideológicas de operacionalização que estabelecem uma hierarquia “os
conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais”
(GROSFOGUEL, 2012, p. 54). No excerto seguinte, Aristóteles segue sua hierarquização dos
saberes através da definição dos sujeitos destes saberes:

Excerto 10: homem da experiência é mais sábio do que os meros detentores de


qualquer faculdade sensorial, o artista mais do que o homem da experiência, o
mestre mais do que artesão e as ciências especulativas mais ligadas ao saber do
que as produtivas (ARISTÓTELES, 982 a1, 2012, p. 44, grifo nosso).

As ciências especulativas são mais próximas do saber do que as outras


consideradas práticas ou produtivas. No enunciado “as ciências especulativas mais ligadas ao
saber” notamos como, interdiscursivamente, Aristóteles reproduz a ideia de Platão sobre o
conhecimento mais elevado ou as ideias mais elevadas estarem ligadas ao saber verdadeiro
(PLATÃO, 2003). Por meio da interdiscursividade, Aristóteles, transforma as concepções de
Platão sobre o saber e institui a hierarquia do conhecimento de maneira convencional e
77

normativa de modo a naturalizar esta noção de ciências especulativas ligada ao saber


verdadeiro.

Aristóteles, então, naturaliza uma noção de saber oriunda desde Parmênides, na


qual Parmênides elabora sua concepção de saber através da distinção entre saber verdadeiro e
saber desviante, errático ou até mesmo não-saber (TRINDADE, 2012). Essa hierarquia
sustentada por Aristóteles já está presente na filosofia grega desde seu aparecimento em Eleia,
designando assim a presença da interdiscursividade neste trecho. O estagirita utiliza-se destes
discursos para fundamentar e naturalizar sua ideia de conhecimento elevado operando através
da estratégia de narrativização para manter uma narrativa do passado (Parmênides e Platão),
tratando no seu presente como uma tradição eterna e aceitável.

Por este motivo, Aristóteles é conhecido como sistematizador da filosofia grega,


por seu caráter intertextual e interdiscursivo resgata/apropria-se de textos e discursos da
tradição filosófica grega sistematizando-os em seus escritos, dando-os critérios científicos,
como vimos no subtópico anterior. Nesse sentido, nos perguntamos como Fairclough (2003,
p. 35): “quais textos e vozes são incluídos, quais são excluídos, e que ausências significantes
há?” Nessa hierarquização feita por Aristóteles há um constante silenciamento de outros
modo de saber, pois ao traçar o que é o conhecimento mais elevado, ou seja, aquele ligado às
causas primeiras e desinteressado, ele estrutura uma forma de conhecimento que exclui outras
vozes e sujeitos epistêmicos.

O silenciamento causado por Aristóteles cala inúmeras formas de conceber


conhecimento que não se enquadram em suas categorizações e nesse processo de calar ele
afasta sentidos não-desejados (ORLANDI, 2007), delineando novos sentidos por meio de uma
tradição que define o que é conhecimento através das bases aristotélicas. Esta tradição
provocou e provoca o racismo epistêmico, ou seja, atribui a produção de teoria aos sujeitos
ocidentais brancos enquanto os não-brancos produzem folclore, mitologia e cultura, mas não
conhecimento de igual para igual com o ocidente (GROSFOGUEL, 2006; SILVA; SANTOS,
BONFIM, 2021).

Por este motivo, devemos reconhecer outras formas de filosofia além das
europeias, para não cair em um purismo filosófico que já observamos desde a Grécia Antiga.
Para conseguirmos, quem sabe algum dia, mudar essa realidade do racismo epistêmico
presente dentro da ciência que conhecemos hoje, é necessário que mudemos sua base
78

filosófica, redirecionando o centro de produção do conhecimento para além do Ocidente


(SILVA, 2021).

Se não reconhecermos a violência da não legitimação da filosofia egípcia,


continuaremos disseminando a ideia de que os negros africanos e o continente africano nunca
seriam capazes de produzir nenhum conhecimento filosófico, e, para tanto, não basta apenas
mudarmos certas concepções filosóficas, mas o que compreendemos sobre ciência e seu
critérios (SILVA, 2021).

Para visualizarmos os efeitos dessa tradição é só observarmos o conjunto de


pensadores que se valem das disciplinas acadêmicas, é possível constatarmos que a maioria
das disciplinas privilegiam os pensadores e teorias ocidentais, sobretudo aquelas dos homens
europeus e/ou euro-norte-americanos. Essa tradição se institui de modo universal
naturalizando um discurso de objetividade e “neutralidade” do “conhecimento” que considera
outras formas de saber como sendo “senso comum” e não científico. Tal tradição é inaugurada
por Aristóteles, como demonstramos por meio do seu discurso filosófico que opera um
silenciamento discursivo de outras formas de conhecimento, principalmente, da Africana, ou,
mais especificamente, dos povos keméticos.

Constatamos isso, pois, o contato que Aristóteles tinha com os povos do Nilo era
de se considerar relevante para ao menos elencar seus principais pensadores. É uma dívida
epistêmica que se estende até os dias de hoje, ainda mais quando sabemos que “é impossível
enfatizar tudo o que o mundo, particularmente o mundo Helênico, deveu aos egípcios. Os
Gregos apenas continuaram e desenvolveram, por vezes parcialmente, o que os Egípcios
tinham inventado” (DIOP, 1974, p. 461).

Diante das considerações finais deste subtópico, podemos observar no quadro


abaixo um esquema com os trechos discutidos e as categorias operadas na análise para melhor
visualizarmos o que foi examinado.

Quadro 2- Esquema da Análise


79
EXCERTOS ANALISADOS CATEGORIAS (ADC) ESTRATÉGIAS DE
LEGITIMAÇÃO
Excerto 7: Egito (...) (p. 75) Nominalização Universalização

Excerto 8: o conhecimento de Vocabulário Universalização


todas as coisas (...) elevado Racionalização
grau (...) conhecimento do
universal (...) (p. 76)

Excerto 9: ciência superior Vocabulário Universalização


(....) (p. 76)

Excerto 10: ciências Interdiscurso Narrativização


especulativas mais ligadas ao Universalização
saber do que as produtivas (p.
77).

Fonte: Autor

O esquema no quadro acima está organizado de modo para visualizarmos o que


foi examinado em cada excerto, quais as categorias de análise utilizadas e quais estratégias
operacionalizadas para detectar a presença do silenciamento discursivo no discurso
aristotélico, além disso, para demonstrar, discursivamente, o racismo epistêmico que o
discurso filosófico de Aristóteles movimenta, representa e repercute. No quadro acima, nota-
se que no excerto 8 e 9 apresentam a categoria de análise presente em uma análise do
significado de palavras, isto é, do vocabulário, ou melhor, do léxico, visto que por meio do
léxico, Aristóteles, elabora uma visão de mundo que opera para a legitimação, bem como o
silenciamento discursivo e o racismo epistêmico, que não entram no quadro, pois
acompanham as estratégias de legitimação.

Percebe-se, nitidamente, a presença da estratégia de universalização em todos os


excertos analisados, corroborando assim com a proposta de universalização do conhecimento
colocada por Aristóteles. Quanto neste subtópico de análise, como no outro, o objetivo era
identificar, no discurso filosófico aristotélico as estratégias de legitimação e seu
funcionamento no que se refere às formas de silenciar a filosofia africana enquanto um saber
filosófico legítimo, além disso, analisar os modos de representação da filosofia a partir do
significado representacional postulado pela análise de discurso crítica. Partindo disso,
observamos que as estratégias de universalização e racionalização foram as mais operadas,
bem como as categorias de análise de interdiscurso e nominalização, tais estratégias e
categorias demonstraram, como visto na análise, o silenciamento discursivo e o racismo
epistêmico no discurso aristotélico e, brevemente, a sua repercussão na própria tradição
ocidental.
80

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação percorreu um caminho árduo até chegar às suas considerações


finais. Desde seu grande desafio: uma análise crítica do discurso filosófico, mas que nesta
pesquisa se efetivou mesmo sem termos tido acesso a pesquisas que focalizassem, no âmbito
da ADC, o discurso filosófico. Além de seu objetivo geral, que foi analisar a manifestação do
racismo epistêmico na obra Metafísica escrita por Aristóteles por meio das maneiras como a
prática filosófica aristotélica produz um silenciamento discursivo da filosofia kemética, se
operacionalizou áreas e conceitos que até então não foram entrecruzados; ADC, política do
silenciamento, operacionalização da ideologia e racismo epistêmico, entre outros que foram
utilizados em segundo plano.

Inicialmente, nesta dissertação, apresentamos a filosofia africana e sua


legitimação enquanto filosofia no mundo e sua recente adesão no Brasil, assim como
demonstramos a sua relação com a filosofia grega e o conceito de racismo epistêmico. Depois
expomos nosso aporte teórico linguístico: a análise de discurso crítica de modo geral e em
específico a abordagem de Norman Fairclough, na qual utilizamos na nossa análise. Nesta
mesma seção sobre ADC, discorremos também sobre o conceito de ideologia segundo
Thompson (2011) e a política do silenciamento de acordo com Eni Orlandi (2007). Esta
relação entre Filosofia e Estudos Críticos do Discurso proporcionou a identificação do
discurso filosófico aristotélico e o modo como a legitimação atua para silenciar
discursivamente a filosofia africana enquanto um saber filosófico legítimo.

Além do exposto acima, analisamos, no discurso filosófico aristotélico, os modos


de representação da filosofia a partir do significado representacional postulado pela análise de
discurso crítica, demonstrando assim a pertinência de uma perspectiva interdisciplinar para a
desnaturalização do discurso que reproduz o racismo epistêmico relativo à filosofia africana.
Na análise fomos capazes de detectar os aspectos discursivos presentes no discurso
aristotélico que silenciam a filosofia africana, através do interdiscurso e dos significados das
palavras. Diante disso, retomamos a questão central desta pesquisa: De que modo o racismo
epistêmico relativo ao silenciamento da filosofia africana atua no discurso filosófico
produzido por Aristóteles?

Observamos que o discurso filosófico de Aristóteles opera através do conceito de


legitimação, ou seja, busca se legitimar enquanto um discurso válido e, filosoficamente, mais
fundamentado do que os apresentados pelos filósofos anteriores à sua filosofia. Através da
81
racionalização e da universalização a filosofia aristotélica é instituída enquanto a única via
pela qual se pode obter o conhecimento verdadeiro da realidade, deste modo, acaba por
silenciar, discursivamente, outros percursos filosóficos que não estão dentro de seus critérios
de uma filosofia primeira e até mesmo do conhecimento. É neste silenciamento discursivo que
o racismo epistêmico se realiza, nas palavras de Ocoró (2021, p. 432), o “racismo epistêmico
opera assim: silenciando nossa história”. Através da instituição do que é filosofia e,
consequentemente, conhecimento, Aristóteles estabelece as vozes e sujeitos que não
produzem epistemologia.

A racionalização, a universalização e a narrativização atuam no discurso


aristotélico com o propósito de manter as relações de dominação que são constituídas através
da legitimação. Tais estratégias se entrelaçam em seu funcionamento, constituindo uma base
para uma tradição filosófica que se fortalecerá, ainda com suas ideias racistas, como é
possível ler em textos de um dos grandes sistematizadores da filosofia na época moderna, F.
Hegel, em suas poucas palavras sobre o continente africano: “o que entendemos por África é
algo fechado sem história” (HEGEL, 2008, p.88). Não só Hegel, mas outros também irão
reproduzir as representações discursivas constituídas por Aristóteles em seus discursos.

Reale (1990), um dos grandes historiadores da filosofia ocidental, reforça a nossa


posição a esse respeito: “os orientais possuíam de fato uma forma de ‘sabedoria’ feita de
convicções religiosas, mitos teológicos e 'cosmogônicos', mas não uma ciência filosófica
baseada na razão pura (no logos, como dizem os gregos)” (REALE, 1990, p. 4). Não
precisamos nos esforçar muito para encontrarmos a semelhança entre este argumento de Reale
e Aristóteles. “O critério científico” elencado pelo filósofo estagirita em seu texto examinado
nesta dissertação, é a base fundamental para os argumentos tanto de Reale quanto de Hegel. A
régua epistêmica como demonstramos é o que mede e define o conhecimento por meio da
ótica ocidental.

Diante disso, nos deparamos com uma filosofia que representa a filosofia africana
não como filosofia e menos enquanto um saber, já que ela não é mencionada no texto
aristotélico nem enquanto uma das formas de saber apresentadas pelo filósofo. As poucas
linhas que encontramos sobre o Egito são apenas uma menção sobre o nascimento das
ciências matemáticas na região perto do Egito. Além disso, nada mais. Esse silêncio, significa
e produz sentido constituindo um silenciamento discursivo que perpassa o não-dizer e,
principalmente, o não-citar, pois que ao dizer algo ou deixar de dizer, estará, necessariamente,
não dizendo outros sentidos ou construindo outros sentidos (ORLANDI, 2007).

O não-dito causa um apagamento que necessariamente silencia a possibilidade de


que se diga outra coisa naquele lugar, “ele intervém no movimento que faz a história, a
trajetória dos sentidos (nega o percurso já feito) e nos processos de identificação (nega a
82
identidade ao outro)” (ORLANDI, 2007, p.139). Ao silenciar, discursivamente a filosofia
africana, Aristóteles não está apenas silenciando um saber, está silenciando os sujeitos desses
saberes, suas identidades enquanto produtores de conhecimento, que posteriormente, como
sabemos, servirá para negar a própria humanidade desses sujeitos.

Esse mecanismo de não-citar, que a grande maioria dos/as filósofos/as ignora,


produz um lugar da falta do dizer como lugar possível quando, na realidade, esse lugar já está
realizado, está preenchido com outros dizeres escolhidos. Deste modo, esta escolha de não-
dizer algo acaba por constituir uma forma ideológica de apagamento da materialidade
histórica do dizer (ORLANDI, 2007), que nega a memória e produz uma negação da filiação
histórica de um saber, como, por exemplo, o da filosofia kemética.

Conseguimos responder às nossas questões fundamentais e demonstramos na


análise como o discurso filosófico aristotélico silencia, discursivamente, a filosofia kemética.
Ao examinarmos como este mesmo discurso opera para reproduzir e representar o racismo
epistêmico através da legitimação de seu discurso filosófico como universal e instituidor de
uma tradição que silencia, do mesmo modo, a filosofia africana.

A nossa contribuição, por meio desta dissertação, advém no sentido de produzir


uma provocação para filósofos e filósofas do Brasil (especificamente aqui no Ceará) para que
venham a questionar que filosofia buscam e que percursos filosóficos estão trilhando, bem
como uma referência para próximas análises e tentativas interdisciplinares entre a Filosofia e
os Estudos Críticos do Discurso. Que esta pesquisa possa servir como exemplo de que é sim
possível a interdisciplinaridade buscando gerar novas possibilidades epistemológicas nunca
antes pensadas e até mesmo mudanças sociais.

Nossas inquietações e conclusões seguem o desejo de George James, isto é, de


“estabelecer melhores relações raciais no mundo” (JAMES, 1954, p. 21). Que, a partir desta
dissertação, possamos despertar sobre como pensamos e representamos nossos discursos, se
eles estão excluindo vozes ou incluindo-as, para que assim possamos pensar uma filosofia,
não apenas do futuro, mas no presente, que deva levar em conta os grandes sistemas
especulativos de toda a humanidade. Tal filosofia com certeza nos abre caminhos mais
abrangentes e mais ricos de discussão, porque ao invés de contrapormos uma à outra,
encontraremos respostas ou questionamentos que nos ajudarão a melhorar enquanto ser
humano e, consequentemente, a própria sociedade.

Por fim, que esta pesquisa possa contribuir para combater o projeto de extermínio
da população negra por meio da crítica da base filosófica de ideias/argumentos que
fundamentam e legitimam tremenda violência. Além do que, sirva de recurso teórico para
todos/as pesquisadores/as negros/as em sua luta diária para descolonizar o conhecimento em
83
todas as áreas, desde Humanas a Exatas, fortalecendo cada vez mais a relevância de termos
frentes de pesquisas que combatam o racismo epistêmico, como a ABPN – ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE PESQUISADORES/AS NEGROS/AS, que contribui com pesquisas
contra-coloniais.
84
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