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A criança preta como pilar para a espiritualidade

Certa vez chegou a seca e com a seca chegou a sede.


Não havia água, todos estavam desesperados e a morte já rondava o povoado.
Todos estavam à procura de água e todos fracassavam, homens e mulheres.
Os irmãos Ibejis brincavam no quintal, corno sempre.
Faziam buracos no chão.
Mas não era exatamente a brincadeira o que os entretinha.
Eles escavavam a terra à procura de água.
No final dessa busca angustiada, as crianças gêmeas alcançaram urna fonte subterrânea e com sua água
cristalina abasteceram potes, vasos e quartinhas.
Ofereceram então a todo o povoado o líquido precioso, matando a sede de seu povo e afastando a morte.

Este itan sobre os ibejis, divindade gêmea da vida, protetor dos gêmeos na mitologia iorubá, retrata
muito bem aquilo que viemos falar aqui hoje; a importância das crianças na comunidade. Não
viemos falar de infância, pois infância significa “aquele sem voz” e é uma compreensão totalmente
branca sobre esse estado de espírito e força que todos nós passamos e guardamos. Inclusive,
infância é uma palavra que os europeus utilizaram para falar sobre os povos africanos,
argumentando que somos infantis, ou seja, sem voz e prematuros na história da civilização, sendo
que sabemos que fomos nós que inauguramos a civilização.

As crianças dentro da comunidade negra representam o início do ciclo sem fim, pois funcionamos a
partir do movimento início-meio-início, sempre voltamos para o ponto de início e a criança é a
força motoro desse início. Por isso começar com esse itan, demonstrando que a brincadeira é uma
ciência, um objetivo, não é em vão… “quando uma criança brinca ela tá fazendo alguma coisa”…
Essa é uma frase que ouvimos muito nos terreiros de umbanda e candomblé. Uma brincadeira de
criança nunca é só uma brincadeira, por isso “nunca devemos excluir as crianças dos rituais. A
presença das crianças gera os rituais mais simples e vibrantes. Quando estão presentes , o quer que
se faça de errado tornar-se certo. Por alguma razão, elas são por sua própria natureza, ritualística”
(SOMÉ, Sobonfu). As crianças são a força fundamental da comunidade, sem elas, nada se
movimenta, nada se torna… Enquanto continuarmos desvalorizando a potência ancestral das
crianças, sua colaboração, criatividade e vida, continuaremos em uma seca, como no itan.

Infelizmente, por conta de nossas mentes colonizadas, ainda reproduzirmos essa prática branca de
acharmos que as nossas crianças não têm nada para nos ensinar, que são sem voz e ingênuas. Desta
forma, assim como falamos de respeitar os mais velhos devemos também respeitar os mais novos.
As crianças pretas precisam ser cuidadas pela comunidade e acolhidas… sem elas não temos
comunidade e nem continuidade, e por essa razão elas são o pilar de nossa espiritualidade.
Kiriku e a feiticeira é um filme que retrata muito bem o que acontece quando valorizamos nossas
crianças, pois ninguém conseguiu resolver as coisas com a feiticeira e fazer com que a fartura
voltasse pra aldeia senão Kiriku, foi Kiriku com suas brincadeiras e seu corpo pequeno que venceu
diversos feitiços da feiticeira, inclusive o que a manteve prisoneira da mágoa… Quem não assistiu
Kiriku deve assistir, é um ensinamento sobre a magia e o poder das crianças negras dentro da
comunidade.

Assim como os Ibejis, foi Kiriku que trouxe a fartura de volta a comunidade… Tratar nossas
crianças dessa forma é demonstrar pra elas mesmas seu poder, sua ancestralidade e se hoje elas não
descobriram isso é tudo culpa nossa, pois é nossa responsabilidade caminhar junto, se estão no
caminho contrário da comunidade é porque a comunidade está falhando em seu papel… Não é lei
10.639 ou professor branco, somos nós que devemos assumir essa responsabilidade, pois sem elas
nossa comunidade despenca e nunca enxergaremos problemas que só elas mostram.

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