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CENTRO DE HUMANIDADES
MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA E CULTURAS
LINHA DE PESQUISA – MEMÓRIA, ORALIDADE E CULTURA ESCRITA
FORTALEZA
2019
LUAN LUCAS ARAÚJO MORAIS
FORTALEZA
2019
LUAN LUCAS ARAÚJO MORAIS
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof.º Dr. Gleudson Passos Cardoso
Universidade Estadual do Ceará – UECE
Orientador
____________________________________________
Prof.ª. Drª. Silvia Márcia Alves Siqueira
Universidade Estadual do Ceará – UECE
Membro interno
____________________________________________
Prof.ª Drª. Valéria Aparecida Alves
Universidade Estadual do Ceará – UECE
Membro interno
Ao amor para toda uma vida: Lauryane.
Ao amor que me deu a vida: Elieudes.
AGRADECIMENTOS
Ainda que não me defina como alguém religioso, é preciso agradecer à potência maior
responsável pelo dom da vida - queira e sinta-se livre para chamar como preferir -, logo, é
preciso agradecer ao Criador que sempre esteve me guardando, guiando e observando.
Aos familiares, e em especial, às mulheres que foram responsáveis por toda minha educação.
À minha avó, Elionora, exemplo de fé, sabedoria e amor incondicional. À Elianeudes, por
zelar, cuidar, educar e amar um sobrinho como se fosse seu próprio filho. E à maior razão de
tudo existir: à minha mãe, Elieudes, por estar presente em todos os momentos de dúvida,
angústia e tristeza, e por ter compartilhado comigo uma vida inteira de amor, afeto, sabedoria
e amizade. Obrigado por nunca ter desistido. Obrigado por sempre ter acreditado. Obrigado,
mãe, por simplesmente ser mãe. Vocês me ensinaram como amar.
Ao meu pai, Jocélio Morais, que soube compreender, respeitar e acolher minhas escolhas.
Obrigado pelo suporte, e por todos os incentivos, palavras de ordem, sonhos e desejos
compartilhados. Consegui, pai!
Ao primo, ao irmão, ao melhor amigo que a vida me deu: Felipe Leite. Crescemos, vivemos,
aprendemos, e seguiremos juntos. Para toda uma vida de amizade, companheirismo e
parceria.
Família de verdade, muitas vezes, não necessariamente precisa ser de sangue. Então, à família
que a vida me proporcionou, saibam que todos e todas são infinitamente amados: Isaac, Davi,
Haroldo, Paulo Henrique, Narcisio, Marcelo, Kelvia (e Maria Cecília!), Sofia, Larissa,
Maiara, William, Ranieri, Felipe Menezes, Fávilo, Thais Lopes, Luana, João Paulo, Lucas
Fernandes e Lucas Trévia. Obrigado por sonharem comigo. Por saberem esperar, ouvir, agir e
12
apoiar incondicionalmente. Vocês sofreram a cada derrota. Mas no fim, a vitória é de vocês.
Sempre será. O mundo nos espera, e tem sido maravilhoso dividi-lo com todos!
O que seríamos, faríamos e conquistaríamos sem amor? A todos, desejo que tenham a sorte de
encontrar o amor nos olhos, na voz, no sorriso e na alma de uma pessoa. Ao mundo, desejo
que encontrem alguém disposto viver, sonhar, lutar, acreditar e escolher estar ao seu lado
todos os dias da sua vida. Espero que encontrem o amor de suas vidas. Para toda e por toda
uma vida. Sorte minha que o encontrei em você, Lauryane Mayra. Sempre foi e sempre será
você. Obrigado por ser a mulher absurdamente extraordinária e a melhor amiga de todos os
tempos. Eu amo você, ninda.
Aos que acreditaram no menino de 15 anos que quis seguir seus passos na História. Meu
especial agradecimento a José Ramilson e Thiago Cavalcanti por terem mostrado o real
significado do que é ser um educador. A vocês, mestres, meu eterno amor e admiração.
À professora Silvia Siqueira, por ter aceitado o convite para minha banca, assim como o fez
durante a qualificação. Agradeço os valiosos conselhos, questionamentos e, sobretudo, por
capitanear em conjunto com o professor Gleudson Passos o Grupo de Pesquisa em Oralidade
e Cultura Escrita na Antiguidade e no Medievo (ARCHEA – UECE), responsável pela gênese
e desenvolvimento desta pesquisa.
Agradeço também à professora Valéria Alves, tanto pela solicitude em aceitar compor minha
banca de defesa quanto pelas maravilhosas lições compartilhadas desde a graduação. Meu
muito obrigado a quem desde o início demonstrou o real valor da educação neste País.
12
Esta pesquisa busca compreender a influência do Amor Cortês sobre uma cultura escrita
medieval que demarcou as representações femininas na literatura dos séculos XII e XIII,
selecionando como modelos de análise as figuras de Isolda e Fenice. Essa literatura, oriunda
dos ambientes palacianos, foi responsável por e representar perfis femininos aristocráticos que
fugiram à polaridade tradicional de análise das mulheres na Idade Média. Tal proposta apoia-
se no estudo e análise das poesias medievais cantadas pelos jograis, passando aos lais e
finalmente culminando naquele que seria o gênero literário mais divulgado durante o período:
o roman [romance] medieval. Por se tratar de uma narrativa descritiva, rica em digressões dos
mais variados aspectos da vida cotidiana do medievo, observa-se nos romans a necessidade
que os seus autores viam em melhor descrever sobre as próprias experiências, seus desejos e
fantasias imbricados no imaginário e nas imagens que os medievais possuíam sobre si
mesmos. Portanto, o roman tornou-se elegível para uma abordagem em torno das nuances
existentes sobre a educação, etiqueta e comportamento da nobreza feminina na
medievalidade. Desse modo, tal pesquisa busca apreender as relações entre as forças sociais e
o imaginário medieval presentes nas cortes aristocráticas e compreender como as
representações literárias de Isolda e Fenice influenciaram na construção de novas perspectivas
sobre a figura da mulher medieval.
Cette étude cherche à comprendre l'influence de l'Amour Courtois sur la culture écrite
médiévale qui a délimité les représentations féminines dans la littérature des XII e et XIIIe
siècles, dans l’analyse des modèles d'Isolde et de Fenice. Cette littérature, provenant des
milieux du palais, était responsable pour les représentations des images féminines
aristocratiques dissociant de la polarité traditionnelle des femmes au Moyen Âge. Cette
proposition est basée sur l'étude et discussion de la poésie médiévale par les troubadours (au
sud) et les trouvères (au nord), passant aux lais et finalement dans ce qui serait le genre
littéraire le plus répandu au cours de la période : le roman médiéval. Riche en digression des
aspects les plus variés de la vie quotidienne du Moyen Âge, il est observé dans le roman la
nécessité que ses auteurs ont vu dans mieux décrire leurs propres expériences, leurs désirs et
leurs fantasmes entrelacées dans l'imaginaire et les images que les médiévales possédaient sur
elles-mêmes. Par conséquent, le roman est éligible à une approche autour des nuances
existantes sur l'éducation, l'étiquette et le comportement de la noblesse féminine dans le
Moyen Âge. Ainsi, cette étude cherche à appréhender les relations entre les forces sociales et
l'imaginaire médiéval présentes dans les courts aristocratiques et à comprendre comment les
représentations littéraires d'Isolde et de Fenice ont influencé la construction de nouvelles
perspectives sur la figure de la femme médiévale.
Figura 1 – Mapa linguístico francês das langue d’oil e langue d’oc .................... 28
1. INTRODUÇÃO
1
Laboratório de História Antiga e Medieval da UEMA (Mnemosyne) e Brathair (Grupo de Pesquisa e de
Estudos Celtas e Germânicos; UEMA/UFMA). Disponível em: <http://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair>.
Acesso em: 3 jun, 2018.
2
Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (NEVE). Disponível em: <http://neve2012.blogspot.com/>. Acesso
em: 3 jun, 2018.
13
3
Apresentação e comunicação de trabalhos de âmbito regional, nacional e internacional realizados no período de
de 2014 a 2016 (como aluno de graduação): Encontro Nacional dos Estudantes de História (UECE/2014);
Seminário de Pesquisa em História (UFC/2014/2015/2016); Semana de História (UECE/2013/2015); Semana
Universitária (UECE/2013/2014/2015/2016); Encontro Internacional de História, Memória, Oralidade e Culturas
(UECE/2014/2016), c. CARDOSO; FERNANDES; MORAIS. História medieval e cultura escrita: possibilidades
da pesquisa na historiografia cearense. In: MUNIZ, Altemar da Costa; LEAL, Tito Barros (orgs.). Arquivos,
Documentos e Ensino de História: desafios contemporâneos. Fortaleza: EdUECE, 2017, p. 137-181.
4
MORAIS, Luan Lucas A. “Justas da Corte”: o Amor Cortês e as representações literárias do masculino e do
feminino na cultura escrita das cortes em França (Séculos XII-XIII). 2017. 101f. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em História). Curso de História, Universidade Estadual do Ceará, 2017. Disponível em:
<https://www.academia.edu/33247103/_Justas_da_Corte_o_Amor_Cort%C3%AAs_e_as_representa
%C3%A7%C3%B5es_liter%C3%A1rias_do_masculino_e_feminino_na_cultura_escrita_das_cortes_em_Fran
%C3%A7a_s%C3%A9culos_XII-XIII_> Acesso em: 19 abr, 2018.
14
Desse modo, alio a justificativa do presente trabalho perpassando pelo desejo pessoal
de engajar-me com algo de minha predileção, bem como aos desafios acadêmicos de
incrementar os índices de produção sobre estudos em História Medieval no Ceará, mediante
as ferramentas aqui utilizadas como o campo temático da Nova História Cultural (NHC) 5 e o
referencial teórico envolvendo o uso da literatura como fonte.
Estes, por sua vez, ligados ao aporte metodológico sobre a produção de uma cultura
escrita na temporalidade estudada, vinculada ao imaginário e as representações de um
universo feudal em que podem ser compreendidas como sendo “[...] legitimações, visões ou
exclusões de uma determinada camada ou sujeito social sobre os artefatos culturais
produzidos [...]” (PESAVENTO, 2008, p. 48).
Sobre o campo teórico da NHC, Peter Burke (2008, p. 9) pontua que “[...] Uma
solução para o problema da definição de história cultural poderia ser deslocar a atenção dos
objetos para os métodos de estudo [...]”, solução que por ventura, me aproprie em parte para
efeito de análise durante a pesquisa. Ao focar nas manifestações, produções, circulação e
representações dos objetos culturais na sociedade medieval, aqui representados pela literatura
de cunho cortês circulante à época, levei em consideração, por um outro lado, qual
metodologia e base teórica seriam adequadas a se fazerem presente no escopo do trabalho.
escopo cultural do imaginário, da representação, ela pode ser entendida como integrante “[...]
do lugar - simbólico e material – que a escritura ocupa/em para determinado grupo social,
comunidade ou sociedade [...]” (CHARTIER, 2007, p. 19-20), onde os objetos dessa escrita,
durante seu processo de publicação e circulação, retornam de maneira metafórica ou realista
às próprias obras sendo que as representações literárias aqui estudadas atuam de modo
integral como forma do procedimento de proliferação da escrita em sociedades para não
sucumbir perante à perda da materialidade dos registros e discursos produzidos (CHARTIER,
2007).
Sobre essa cultura, é válido ressaltar ainda sobre sua força na atmosfera mental e
suas relações com o imaginário do período, além de sua circulação nos variados lugares
sociais do mundo feudal. Podemos inferir que havia um tipo de manifestação cultural, uma
determinada “energia” que condizia com um conjunto de experiência sensoriais em que os
literatos e seu público-alvo estavam subordinados. Os primeiros, ao escrever, relatar,
apresentar e produzir suas obras e os últimos ao consumir, sejam letrados ou não, o conteúdo
ali presente.
Tal energia seria, portanto, uma energia social em que os objetos, as expressões e as
práticas culturais acerca dos perfis femininos exercidas na sociedade feudal dos séculos XII e
XIII seria “[...] manifestada na capacidade de [...] produzir, moldar e organizar experiências
coletivas físicas e mentais [...]” (GREENBLATT, 1988, p. 6), que logicamente, acabam por
dotar as fontes utilizadas neste trabalho de um significado e de uma carga simbólicos
enquanto representações referentes à realidade social daquela época.
Se a energia social, junto das representações, faz parte de um campo maior que é o
imaginário social do medievo, adotei o próprio conceito de imaginário, aqui traduzido como
sendo um “[...] sistema de ideias construídas pela representação das sociedades [...]”
(PESAVENTO, 2007, p. 48), ou seja, uma representação coletiva, que quando codificada
pelo “filtro” que perpassa as emoções básicas, os automatismos e as heranças culturais
enraizadas, torna-se elemento desse mesmo imaginário, o qual apontamos como sendo o filtro
mencionado ao dotar tais objetos de uma historicidade latente (FRANCO JÚNIOR, 2010).
Isso posto, nos cabe então uma apresentação sobre o tema propriamente dito, no caso
o Amor Cortês e representações femininas da aristocracia medieval na literatura do período,
temo como base as figuras literárias de Isolda e Fenice. Busquei elucidá-lo aos olhos de uma
percepção de mudança historiográfica no campo da medievalidade que evidenciasse múltiplas
16
Para retratar tais mudanças, e sobretudo para compreender o papel exercido pelas
mulheres, e sobretudo as mulheres nobres, optei por utilizar os exemplos oferecidos pelos
6
Historiograficamente, entende-se por Ocidente medieval as seguintes localidades: Bretanha, Germânia,
Península Ibérica, Península Itálica e a Gália.
17
romans em maior parte, presentes nas traduções do francês para o inglês das seguintes obras
selecionadas: O Romance de Tristão [Le roman de Tristan]7 e Cligès [Cligés]8, além de
romances selecionados da coletânea Arthurian Romances9, de autoria de Chrétien de Troyes.
Para retratar tais mudanças, e sobretudo para compreender o papel exercido pelas
mulheres, e sobretudo as mulheres nobres, optei por utilizar os exemplos oferecidos pelos
romans em maior parte, presentes nas traduções do francês para o inglês das seguintes obras
selecionadas: O Romance de Tristão [Le roman de Tristan]10 e Cligès [Cligés]11, além de
romances selecionados da coletânea Arthurian Romances12, de autoria de Chrétien de Troyes.
7
C. BEROUL. The Romance of Tristan. [Translated by Alan S. Fedrick]. London: Penguin Books, 1970. E
________. The Tale of Tristan’s Madness. In: ________. The Romance of Tristan. [Translated by Alan S.
Fedrick]. London: Penguin Books, 1970, p. 151-164.
8
TROYES, Chrétien de. Cligés. In: _________. Arthurian romances. [Translated with an Introduction and
Notes by William W. Kibler (Erec and Enide translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004.
9
C. TROYES, Chrétien de. Arthurian romances. [Translated with an Introduction and Notes by William W.
Kibler (Erec and Enide translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004.
10
C. BEROUL. The Romance of Tristan. [Translated by Alan S. Fedrick]. London: Penguin Books, 1970. E
________. The Tale of Tristan’s Madness. In: ________. The Romance of Tristan. [Translated by Alan S.
Fedrick]. London: Penguin Books, 1970, p. 151-164.
11
TROYES, Chrétien de. Cligés. In: _________. Arthurian romances. [Translated with an Introduction and
Notes by William W. Kibler (Erec and Enide translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004.
12
C. TROYES, Chrétien de. Arthurian romances. [Translated with an Introduction and Notes by William W.
Kibler (Erec and Enide translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004.
13
C. SARAIVA, Arnaldo (introdução e organização). Guilherme IX de Aquitânia: poesia. [Trad.: Arnaldo
Saraiva.] Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.
14
C. MARIE DE FRANCE. The Lais of Marie de France. [Translated with an introduction by Glyn S. Burgess
and Keith Busby]. 2nd ed. London: Penguin Books, 2003 e c. MARIE DE FRANCE. Poetry. [Translated and
edited by Dorothy Gilbert]. New York: Norton Critical Editions, 2015.
15
C. RUELLE, Pierre (Ed.). L'ornement des dames, Ornatus mulierum: Texte anglo-normand du XIIIe
siècle. Presses Universitaires, 1967.
16
C. CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês. [Introdução, tradução do latim e notas de Claude Buridant e
tradução de Ivone Castilho Benedetti]. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
17
C. CLARAVAL, São Bernardo de. De diligendo Deo – “Deus há de ser amado”. Vozes: Rio de Janeiro, 2010.
18
Arthurian romances. [Translated with an Introduction and Notes by William W. Kibler (Erec and Enide
translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004.
18
Cligès encontra-se referenciado; e também para as obras The Romance of Tristan19, The Lais
of Marie de France20, The Fabliaux21 e Poetry22. Para análise do conto de Isolda e Tristão,
também utilizo a versão de Gottfried von Strassburg, Tristan (século XIII)23 e a tradução para
o português da adaptação emprrendida por Joseph Bédier, O Romance de Tristão e Isolda.24
A forma de “amar” descrita em tais textos e representada nas ações e decisões das
personagens escolhidas, é visualizada como sendo parte de uma concepção aristocrática para
as práticas que envolviam o flerte e as relações entre a cavalaria masculina e o mundo até
então “misterioso”, que era o locus feminino. Logo, a retórica, os símbolos e os gestos em
torno da sensibilidade, docilidade, elegância e refinamento destacavam-se como parte da
etiqueta e do código de vida da aristocracia europeia no recorte temporal exposto.
Tais traços que podem ser bem exemplificados com uma breve passagem do
Tractatus de Amore (século XII), quando o autor descreve sobre os benefícios do amor para o
caráter:
[...] o amor faz um homem grosseiro e sem educação brilhar de elegância; até a um
homem de baixíssimo nascimento ele pode conferir nobreza de caráter; enche o
orgulhoso de humildade, e graças a ele o amante acostuma-se a prestar com prazer
serviços aos outros. Que coisa extraordinária o amor: permite que tantas virtudes
brilhem no homem e confere tantas qualidades a todos os seres, quaisquer que
sejam. (CAPELÃO, 2000, p. 12-13)
Na França de finais do século XI e início do XII, por exemplo, este ideal cortesão
presente na literatura da época surge como fruto das experiências sociais e políticas derivadas
diretamente das práticas exercidas por seus idealizadores: os grandes senhores feudais.
Seguindo a lógica de estrutura do regime senhorial à época, pequenas cortes foram se
afirmando em tal cenário devido ao seu poderio militar, riqueza e sobretudo por sua
capacidade de abrigar um número notável de poetas e letrados que cantavam, escreviam e
narravam as conquistas de seus senhores, sendo as mesmas o cenário principal das primeiras
narrativas sobre o Amor Cortês.
A construção desse “fino amor”, do trato cortês e suas mais variadas manifestações
literárias fizeram-se presentes no contexto de autoafirmação dessa nobreza ascendente e
também de uma preocupação com a divulgação dos ideais de conduta vinculados a esse
estrato social:
Para o público da corte absoluta, grande parte do que realmente existe no campo, na
“natureza”, não mais se retrata. A colina e mostrada, mas não a força nela plantada,
nem o cadáver pendurado. O campo é mostrado, mas não mais o camponês
esfarrapado tocando penosamente seus cavalos. Tudo o que é “comum” e “vulgar”,
da mesma forma que desaparece da linguagem de corte, desaparece também dos
quadros e desenhos destinados à aristocracia de corte. [...] Os sentimentos da classe
alta ainda não exigem que todo o vulgar seja eliminado da vida e, por conseguinte,
dos desenhos. É gratificante para os nobres saber que são diferentes dos demais. A
vista ao contraste aguça a alegria de viver e cabe recordar que, em uma forma mais
moderada, algo do prazer proporcionado por esses contrastes ainda se encontra, por
exemplo, em Shakespeare. (ELIAS, 2011, p. 195-198)
Por isso, dispus-me a utilizar a literatura enquanto documento histórico para o estudo
da temática, visto que em História, o texto (fonte) escrito possui como premissa objetiva uma
compreensão da história como uma narrativa que constrói uma representação sobre o passado,
e que se desdobra nos estudos da produção e da recepção de textos. Tal pressuposto, inserido
no campo teórico da NHC, busca observar nas obras literárias e na cultura escrita
propriamente dita, “mecanismos de produção de objetos culturais” que permitem ao
historiador uma maior percepção acerca do substrato social do qual os textos eram frutos.
A escolha por utilizar tal recurso para análise da temática cortês do amor possui seu
valor ao demonstrar a sociedade feudal de modo único e original, destacando muitas vezes um
reflexo das atitudes cotidianas na elaboração dos textos divulgados. História e literatura
possuem próximos de si o recurso estrutural da narrativa, obedecendo, logicamente, suas
especificidades, sendo que esta última, por sua vez, constrói em seu texto um imaginário e
20
Tal “linguagem das cortes” apresentada de maneira rica nos romans possibilitarão a
problematização da variedade dos “jogos” amorosos da corte disputados entre os amantes.
Daqui retiramos o título de nosso trabalho, visto que tais “disputas” entre os cavaleiros e suas
consortes seriam a metáfora cortesã para os torneios de justas muito comumente disputados
pela cavalaria feudal.
Ademais, ainda que tal polarização se tenha mantido, que outros discursos, imagens,
perfis e representações foram objetos de estudo dos literatos e representados nas mais diversas
obras de caráter cortesão e até mesmo eclesiástico? A idealização das virtudes femininas, suas
aptidões físicas e intelectuais também encontraram espaços nas canções e nos versos escritos
por tais autores, de modo que a figura da mulher medieval, e principalmente a mulher nobre,
foram múltiplas, dúbias e esclarecedoras ao ponto de me dedicar a este esforço historiográfico
e pessoal de empreender tal pesquisa.
Deste modo, após as linhas iniciais sobre o trabalho em questão, cabe uma posterior
estruturação sobre o desenvolvimento e de como as temáticas anteriormente citadas serão
elencadas no corpo textual. O primeiro ponto a ser trabalhado no pós-introdução seria a
compreensão e o balanço histórico sobre uma compreensão do que seria a “literatura” no
medievo, suas formas de expressão inicialmente orais, o amálgama com o elemento da
cultura escrita e análise estrutural do gênero do roman dentro do universo literário construído
nos séculos XII e XIII na região da França.
21
Tal significação era desconhecida dos medievais posto que o termo em latim
litteratura possuía “[...] o mesmo sentido que grammatica e designa, como esta palavra, ou a
gramática propriamente dita ou a leitura comentada dos autores e o conhecimento que
proporciona, mas não as obras em si [...]” (ZINK, 2017, p. 79). Desse modo, no contexto
medieval, o saber letrado e subsequentemente o saber “literário” tinha por preocupação
objetiva o domínio do ofício da escrita e da leitura propriamente dita, caracterizando um
status social elevado de quem os possuísse.
Uma incursão pela literatura do período necessita, sobretudo, da revisão dos agentes
históricos que propiciaram o cenário fortuito para este desenvolvimento à época, pelo simples
25
fato que empreender o estudo das formas literárias no medievo é também enveredar-se nos
meandros da cultura literária medieval, pois esta transcendeu a ordem do período por ser “[...]
fruto de uma coletividade que ultrapassa as fronteiras nacionais [...]” (SPINA, 1997, p. 12),
sendo, portanto, uma representação coletiva, parte de um imaginário filiado a construção de
“artefatos culturais escritos” (CHARTIER, 1990, p. 32-33). Sobre os respectivos espaços de
existência propagação dessa cultura literária, podemos destacar que o desenvolver de um
“círculo” cultural envolvendo a escrita no medievo ocidental também foi possível, dentre os
aspectos já mencionados, graças ao reflorescer do cenário urbano medieval.25
25
A revitalização dos centros urbanos trouxe de volta a valorização da cultura local, assim como um maior
destaque para a literatura, nas cortes citadinas que tinham além da nobreza que vinha do campo, a emergente
burguesia comercial abundante e de grande importância para a economia dessas localidades. A cidade medieval
também tinha uma nobreza oriunda da urbe que estimula tal produção escrita, pelo menos nos séculos XII e XIII.
c. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. [Trad.: Marcos de Castro]. 5ª ed., Rio de janeiro: José
Olympio, 2012b, p. 34-37 e DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios.
[Trad.: Jônatas Batista Neto]. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p. 170-171.
26
O termo literatura marcava como uma fronteira o limite do admissível. Uma terra de
ninguém isolava aquilo que, sob o nome folclore, se deixava às outras disciplinas.
No início de nosso século, a "literatura" adotava assim, em escala mundial, de
maneira exclusiva, os fatos e os textos homólogos aos que produzia a prática
dominante da Europa ocidental: estes os únicos concernentes à consciência crítica,
tendo-se lhes creditado caracteres que, segundo a opinião unânime, provinham de
sua competência. Em alguma medida, o conjunto de pressupostos que
administravam essa atitude de espírito originava-se do centralismo político que,
havia longo tempo, fora instaurado pela maioria dos Estados europeus. Estava de
acordo com as tendências mistificadoras, até alegorizastes, que aí presidiam à
elaboração das “histórias nacionais”: exaltação do herói que personificasse o
superego coletivo; a confecção de um Livro de Imagens no qual fundar um sentido
que justificasse o fato presente: as palavras de Joana d'Arc, a cruzada de Barba-roxa
ou a fogueira de Jan Huss [...]. (ZUMTHOR, 1993, p. 8)
Tal latim “vulgar”, foi empregado pelos camponeses às bordas do que sobrou dos
territórios outrora sob jugo de Roma, pelos soldados das legiões desgarradas e até mesmo na
dinâmica familiar dos nobres romanos que se deslocaram para suas villas interioranas após o
colapso das estruturas imperiais. Essa forma linguística do latim transmutou-se gradualmente
na língua latina utilizada no período que vai dos séculos VI-VIII, denominado de latim
medieval, com modificações e incorporações de palavras e fonemas oriundos de ramos
linguísticos como o grego, e incorporados na gramática da única língua escrita reminiscente
dos antigos territórios romanos.
26
C. BROWN, Peter. O fim do mundo clássico: de Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Editorial Verbo, 1972. E
BROWN, Peter. The World of Late Antiquity: AD 150-750. New York, London: W.W. Norton & Company,
1971.
27
Com forte influência do latim vulgar, essa variante medieval foi incorporando-se na
fala comum das regiões da Europa ocidental, modificando a dinâmica de escrita e de
ressignificação das palavras outrora “desconhecidas” da maioria da população. Nesse
intercurso gramatical, linguístico e cultural as línguas vernáculas (do latim vernaculum, que
provinha do termo verna, ao qual denominava-se o escravo nascido na casa de seu senhor) ou
locais, foram sendo desenvolvidas e assimiladas de modo a tornarem sua utilização cada vez
maior em detrimento do uso do latim.
Na Gália, por volta do século XI já se tornava notória a diferença entre o falar “lati”
e o falar “roman” [...] assim como entre a língua dos “francigenae” do Norte e dos
“provinciales” do Sul, a que no século XIII se daria o nome respectivamente de
língua “d’oïl” e língua “d’oc”, por assim se dizer “sim” nessas línguas. [...] o nome
“provençal” não se devia a nenhuma superioridade literária sobre os outros dialetos,
devia-se apenas ao fato de se chamar “Provença” ao antigo território da “Província
Romana”, que, portanto não coincidia com a região chamada “Provença”, e até da
Aquitânia. (SARAIVA, 2009, p. 19)
sobre sexo, amor e mulheres. Justamente por este tipo de escolha temática em suas
composições (quando a música era quase exclusivamente composta de cânticos religiosos)
Guilherme provocou espanto e admiração em sua corte, além de despertar a ira do clero,
sobretudo na região onde a corte real se localizava:
Os poucos poemas que Guilherme IX de Aquitânia nos legou [...] deram-lhe mais
fama do que suas riquezas ou do que a sua acidentada ação política, transformaram-
no em fundador de um ousado estilo poético novo, numa nova língua românica, que,
como outras línguas nascentes, não conhecia até então nenhum poeta digno desse
nome. Ele, que celebrou o tempo novo da natureza primaveril, tão notório na
Aquitânia [...] teve consciência da sua importância na produção de um tipo de poesia
distinto do que recebera dos últimos poetas que escreviam em latim [...]. Em tempos
de rivalidades entre poderes religiosos e feudais, entre clérigos e cavaleiros, entre
nobres e burgueses ou aristocratas ávidos de honras e de prestígio social, Guilherme
IX não faz valer só a sua excepcional capacidade poética; faz também com que na
sua corte de Aquitânia a poesia passe a ter um papel relevante, cultural e
socialmente prestigioso. [...] Começa a aparecer um novo tipo de poeta que compõe
letras mas frequentemente também compõe músicas e canta, valendo-se ou não de
jograis. A poesia, mesmo quando trata de motivos religiosos, começa a sair da Igreja
da religião para ocupar espaços laicos ou mundanos. (SARAIVA, 2009, p. 36)
Tal premissa reverbera na discussão sobre o termo “literatura” e seus derivados, visto
que grande parcela da população medieval não era alfabetizada. O medievo possuiu, dentre uma
30
Em uma perspectiva histórica, temos à vista uma dicotomia aparente: como uma
literatura de cunho eminentemente oral em sua gênese tornou-se ao longo dos séculos
instrumento de memória documental, compilada e escrita para servir de testemunho às futuras
gerações? Tratando-se dos textos medievais cabe ressaltar que as trocas empreendidas entre
os elementos escritos e orais denotavam uma determinada sincronia quando das suas
narrativas, como Michel Zink pontua ao dizer que “[...] A obra medieval, até o século XIV, só
existe plenamente sustentada pela voz [...], pela recitação ou pela leitura em voz alta [...] ”,
além de apontar que “[...] Em um certo sentido, o sinal escrito é pouco mais que auxílio para
memória e apoio [...]” (ZINK, 2017, p. 80-81).
Ora, a própria oralidade desses relatos históricos, das poesias, canções e epopeias
cantadas no medievo possuíam aspectos tão significativos que este aos poucos foram
incorporando-se na transmutação gradual que levou o uso da voz, ou vocalidade28 ao texto
escrito. Sobre sua forma de propagação, faz-se necessário perceber que:
[...] no interior de uma sociedade que conhece a escritura, todo texto poético, na
medida em que visa a ser transmitido a um público, é forçosamente submetido à
condição seguinte: cada uma das cinco operações que constituem sua história (a
27
Umberto Eco nos oferece uma perspectiva geral do que seria a noção de ars (“arte”) no medievo Ocidental,
onde o cerne da questão está presente no que ele denomina de um “conhecimento de regras objetivas”, que por
sua vez são ancoradas em dois pressupostos básicos para a produção e divulgação desse saber: o elemento
cognoscitivo e o produtivo, ou dito de outra forma, um saber teórico e prático para se produzir determinadas
coisas. Ademais, o autor pontua que a “arte inscreve-se no domínio de fazer”, atuando de forma específica no
seio da sociedade por suas formas expressivas de manifestação, sendo a arte literária uma delas. Eco ainda
defende que a arte, em certa medida, imita a natureza, porém “[...] na imitação da arte existe invenção,
reelaboração. A arte une as coisas desagregadas e separa as unidades, prolonga a obra da natureza, faz como a
natureza produz e dá continuidade ao seu nisus [construção; geração] criativo. [...]” c. ECO, Umberto. Arte e
Beleza na Estética Medieval. [Trad.; Mário Sabino]. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 202-204, grifos meus.
28
Sobre o termo, Paul Zumthor (1993, p. 20-21) destaca que o diferencial do texto pronunciado ao escrito
encontra se na sensibilidade e funcionalidade do primeiro frente ao segundo. O medievalista francês aponta que
no texto vocalizado “[...] atuam pulsões das quais provém para ouvinte uma mensagem específica [...] no
momento em que ela [a voz] o enuncia, transforma em ‘ícone’ o signo simbólico libertado pela linguagem. ”.
Seguindo tal linha de pensamento, Zumthor finaliza sua acepção conceitual do termo vocalidade como este
sendo intrinsicamente histórico, visto que “vocalidade é a historicidade de uma vez”, ou seja, sua utilização.
Grifos do autor.
31
Sob outro prisma de análise, a própria existência e domínio da escrita pelos litterati
não prendeu os textos já compilados, fossem de caráter dito “científico” ou mesmo as canções
e poesias anteriormente cantadas, em níveis determinados do mundo letrado. Vestígios
históricos como o são, todos eles faziam parte de um contexto maior, ordenado pelo ensejo da
escritura e da construção de uma memória social. Dessa forma, o elemento da escritura era
tido como instrumento de suporte e vinculado sempre ao mecanismo de memorização em
relação ao elemento oral/vocal.
29
O termo “intelectual” aqui evocado surge como instrumento teórico de aproximação do conceito para
intelectualidade na Idade Média. Jacques Le Goff esboça em um ensaio sobre o tema uma delimitação existente
e proposital entre o indivíduo (intelectual) e a instituição onde o conhecimento “científico” era veiculado: as
universidades. Para o autor, o “intelectual” do medievo era, em síntese, aquele “[...] cujo ofício era pensar e
transmitir seu pensamento a partir do ensino [...]”. Ademais, um outro fator a ter destaque é o espaço de atuação
desses indivíduos, tendo nos centros urbanos na virada do século XI para o XII o principal campo de debate e
ação efetiva dos intelectuais. O historiador francês também delega que o século XIII teria sido o apogeu para
esses “mestres do ofício” filosófico e pedagógico no que tange à uma maior massificação da produção intelectual
teórico-filosófica acerca das estruturas da civilização ocidental no medievo, Cf. LE GOFF, Jacques. Os
intelectuais na Idade Média. 5ª ed. [Trad.: Marcos de Castro]. Rio de janeiro: José Olympio, 2012b, p. 36-45.
Para uma outra análise e maior discussão acerca do uso da terminologia “intelectual” no período, ver: REVER,
Jacques. Homens e saber na Idade Média. [Trad. Carlota Boto]. Bauru, SP: EDUSC, 1999.
32
Modelos femininos e masculinos saltavam aos olhos dos leitores e ouvintes, figuras
fictícias, porém ancoradas em um retrato social do que eles queriam ver, sentir e fazer. É
chegado o momento capital dos amantes nessa literatura cortesã, onde as mais variadas
formas de se amar, pensar e sobretudo, reproduzir invadem de vez as cortes feudais.
[...] não é só na literatura e nas belas-artes que o anseio pelo amor encontra a sua
forma, a sua estilização. A necessidade de dar estilo e formas nobres ao amor
também encontra um amplo campo para se desenvolver nas próprias formas de vida:
no dia a dia da corte, nos jogos de salão, nas brincadeiras e no esporte. Também aí o
amor é constantemente sublimado e romantizado; nisso a vida imita a literatura, mas
esta, em fim de contas, acaba aprendendo tudo da vida. A visão cavaleiresca do
amor, no fundo, não surgiu na literatura, mas na vida. Nas verdadeiras condições de
vida é que se achava o motivo do cavaleiro e de sua amada. (HUIZINGA, 2011, p.
115-116)
Uma das primeiras obras a se aventurar em tentar definir o que de fato era o Amor
Cortês foi o Tractatus de Amore [Tratado do Amor Cortês] publicado no século XII, de
autoria de André Capelão, pois esta busca “[...] examinar em primeiro lugar o que é o amor,
de onde vem seu nome, quais são seus efeitos, entre que pessoas pode existir, de que modo
pode ser conquistado e mantido, que sinais indicam ser ele correspondido, o que um dos
amantes deve fazer quando o outro é infiel [...]” (CAPELÃO, 2000, p. 3). 30 O Tratado é
30
Finalizado e publicado no final do século XII (há controvérsias sobre a data exata da publicação, que oscila
entre 1182-1186), o Tractatus de Amore, no original em latim, é um tratado filosófico sobre o amor escrito por
André le Chapelain [André Capelão], clérigo francês estabelecido no condado de Champagne sob a tutela de
34
As regras, códigos e condutas presentes nas linhas do Tratado são formas específicas
de expressão, manifestação e registro da cultura cortês presente no ambiente aristocrático das
cortes medievais. Não obstante que ao próprio autor coube um patrocínio proferido da corte
de Champagne e uma posterior dedicatória a um amigo conhecido apenas como Gautier. 31 A
“linguagem das cortes” apresentada no Tractatus e nos demais romans medievais nos dão de
maneira mais coerente a problematização da variedade dos “jogos” amorosos disputados entre
os amantes. Além disso, por tratar diretamente dos ambientes palacianos, o autor nos fornece
os atributos que dão a possibilidade dos amantes de obter a estima e o amor da pessoa
desejada; geralmente apenas possíveis de se obter devido à condição elevada de nascimento,
educação e riqueza:
Alguns ensinam que dispomos de cinco trunfos para nos fazermos amar: belo físico,
excelente moralidade, extrema facilidade de elocução, grande riqueza e prontidão
com que cedem a nossos desejos. Mas eu [André Capelão], por minha vez,
considero que só os três primeiros nos permitem ganhar o amor; quanto aos dois
últimos, avalio que devem ser afastados da corte do Amor [...]. Com um físico
agradável obtém-se o amor sem grande esforço, sobretudo se o ser amado é ingênuo.
Isto porque um amante ingênuo tende a pensar que no outro nada conta, exceto a
beleza do rosto e a elegância do corpo. (CAPELÃO, 2000, p. 16)
Com essa passagem, sobretudo focada na influência que a visão da pessoa amada
possui sobre quem está enamorado, as obras cortesãs procuram explorar exaustivamente
descrições que se encarregam de explorar a beleza do sexo feminino, principalmente,
direcionada a influir durante a leitura o quanto tal pessoa soava magnífica no imaginário
Henrique I (1126-1181) à época. A obra de André consiste em um verdadeiro manual das práticas masculinas e
femininas que são desempenhadas sobre o tema do amor, ensinando desde o modo de portar-se diante de um
cortejo, à maneira correta de se iniciar um diálogo sobre o amor e até mesmo aconselhando como os amantes
devem reagir perante os obstáculos que sua paixão por ventura venha desencadear. Pouco ou quase nada se sabe
acerca da vida de André Capelão. O termo capelão sugere que o mesmo tenha sido um clérigo francês – o que
denota certo domínio dos estudos clássicos citados ao longo de seu tratado e a crítica quase que velada aos
comportamentos femininos. (CAPELÃO, 2000).
31
A dedicatória a Gautier é assinada por André de modo a perceber-se a afeição e aconselhamento do autor para
com o amigo. Pelo teor e tom das linhas assinadas, supõe-se que Gautier seja um homem ainda jovem, ou como
bem diz André “[...] um novato em Amor: recentemente atingidos por um de seus dardos, que não sabes como
segurar as bridas do teu cavalo e és incapaz de encontrar algum remédio para teu estado [...]” (CAPELÃO, 2000,
p. 1). A identidade de Gautier permanece sem maiores esclarecimentos, supondo-se apenas que deva trata-se de
um jovem nobre a quem André teve contato durante/após o período de composição de sua obra.
35
social da época. O Roman de la Rose32 , obra do século XIII, é uma destas obras que procura
exalta e idealizar o perfil feminino da beleza, em que o encontro do protagonista do Roman
com a alegoria da Beleza é representado pelo elemento do maravilhoso e da surpresa:
Possuía todas as boas qualidades pois não era nem escura nem morena, antes tão
resplandecente quanto a lua, que faz com que todas as estrelas se assemelhem a
pequenas velas. A pele tinha a frescura do orvalho, e ela era tão modesta quanto uma
noiva, tão branca quanto um lírio, com um rosto macio e delicado. [...] Juro por
Deus que meu coração se enche de grande doçura sempre que recordo as formas
perfeitas de cada um dos seus membros, tudo porque não havia no mundo mulher
mais bela. Resumindo, era jovem e loura, simpática e agradável, delicada e elegante,
de formas esguias e modos animados e atraentes. (LORRIS; MEUN, 2001, p. 22)
Uma pessoa que se distinga pelas qualidades morais atrai o amor de quem ostenta as
mesmas qualidades; pois quem é versado em amor, homem ou mulher, não rechaça
um amante de físico ingrato desde que rico em qualidades. E aquele que se mostrar
honesto e sábio se transviará pelos caminhos transversos do amor ou arrojará na dor
o ser que ama. [...] A mulher, tanto quanto o homem, não deve preocupar-se com
beleza nem com elegância ou nascimento, pois nenhuma beleza tem atrativos
quando faltam qualidades de alma, e só as virtudes da alam conferem ao homem a
verdadeira nobreza e lhe dão o esplendor da beleza. Porque, visto sermos todos
rebentos de uma mesma cepa e termos todos, naturalmente, a mesma origem, não
foram a beleza nem a elegância nem mesmo a riqueza que deram origem à elite que
é a nobreza nem engendraram as diferenças de classes, mas sim as qualidades
morais. (CAPELÃO, 2000, p. 19-20)
Para descrever a beleza de Cligès eu gostaria de pintar um retrato verbal, que não
será muito longo. Ele estava na flor de sua juventude, já que estava próximo dos
quinze anos de idade [...]. Seu cabelo se assemelhava ao ouro puro e seu rosto à rosa
matinal. Seu nariz era bem feito e sua boca bela, e ele fora constituído de acordo
com o melhor padrão da Natureza, que nele reuniu tudo o que parcelara em outros.
Esta foi tão generosa com ele que o dotou de todos os dons e deu-lhe de tudo o que
podia. Assim era Cligès, que combinava bom senso e beleza, generosidade e força.
[...] ele sabia mais sobre esgrima e arquearia do que o sobrinho do rei Mark, Tristão,
e muito mais sobre aves e mais sobre cães de caça. Em Cligès não havia nada que
faltasse. (TROYES, 2004, p. 156, tradução minha)35
Pesou-se o fato da nobreza buscar uma maior afirmação como grupo social
privilegiado existente no sistema feudal, haja vista que o estatuto jurídico da nobilis,
após séculos de jugo régio por parte dos carolíngios (séculos VIII-X), tendeu a
fechar-se sobre si mesmo como estatuto definido. Tal fato não seria suficiente para
confirmar sua superioridade social. Era preciso se impor também por meio da
criação de um estilo de vida, de um código de conduta e de práticas que retratassem
as qualidades inerentes a esse grupo. Dessa forma, os escritos corteses, as canções,
os romances e os poemas épicos imbuíram-se de uma carga mais fina e polida no
que tange à vida cotidiana das cortes medievais. [...] (MORAIS, 2017, p. 40)
33
Considerado como o primeiro romance arturiano composto por Chrétien de Troyes e Escrito por volta de 1175,
Cligès tem como narrativa principal o conto de amor entre Cligès e sua dama Fenice, mas também nos mostra
como Alexandre e Soredamors, pais de Cligès, vieram a se conhecer. Um dos únicos romances de Chrétien de
Troyes a contar duas histórias de amor, Cligès distingue-se dos demais por justamente ditar os tons que cada
relação possui, focando-se primeiramente na construção narrativa da história dos pais do protagonista para enfim
demorar-se na figuração do mesmo e de sua própria aventura. c. TROYES, Chrétien. Cligès. In: _______.
Arthurian romances. [Translated with an Introduction and Notes by William W. Kibler (Erec and Enide
translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004, p. 123-205.
34
Poeta francês cuja atividade floresceu na segunda metade do século XII.
35
Todas as citações e traduções das obras em língua estrangeira são realizadas pelo autor, como forma de
incorporar ao texto principal deste trabalho a tradução para otimizar a leitura. No original: “In order to describe
Cligés’s beauty I would like to paint a verbal portrait, which will be not long. He was in his flower, for he was
nearly fifteen years of age; […]. His hair resembled pure gold and his face the morning rose. His nose was well-
made and his mouth fair, and he was built according to Nature’s finest pattern, for in him she brought together
what she only parceled out piecemeal to others. Nature was so generous with him that she gathered all her gifts
in him and gave him all she could. This was Cligés, who combined good sense and beauty, generosity and
strength. […] he knew more about fencing and archery than did King Mark’s nephew Tristan, and more about
birds and more about hounds. In Cligés was not lacking.”
37
[...] transmitia uma moral, a moral que pretendiam propagar os príncipes mecenas,
os quais, para essa finalidade, sustentavam em sua casa os poetas e montavam os
poemas como espetáculo. [...] Pois esses romances são espelhos em que se refletem
as atitudes de seus ouvintes. Eles a refletem bastante fielmente porque, como as
vidas de santos, tinham por missão, distraí-los, ensiná-los a se conduzir bem; [...] Os
apaixonados e apaixonadas por essa literatura tendiam a copiar suas maneiras de
pensar, agir e sentir. (DUBY, 2013, p. 76-77)
As obras de caráter cortês ainda possuem suas bases ancoradas em uma realidade
social específica. A literatura cortesã aqui analisada age como um reflexo do convívio de
homens e mulheres na corte medieval, imaginados e representados nos escritos dessa
temporalidade. Como? Nos pressupostos do Amor Cortês, cabe à dama o controle exato da
situação amorosa na maioria dos casos.
Nas relações amorosas da aristocracia feudal, a imagem feminina retratada nos textos
de época remonta ainda a uma certa estilização e idealização das damas medievais, fato
presente nas obras que as descrevem, dentre outras formas, como sendo o fato preponderante
para a formação dos juvenes36 medievais, pois “[...] A dama tinha assim a função de estimular
o ardor dos jovens, de apreciar com ponderação, judiciosamente, as virtudes de cada um. [...]
Ela coroava o melhor. O melhor era quem a tinha servido melhor. O amor cortês ensinava a
servir e servir era o dever do bom vassalo [...]” (DUBY, 2011, p. 74).
36
Palavra designada aos jovens nobres que não possuíam esposas. Geralmente o termo era destinado aos filhos
mais novos de um vassalo senhorial que habitava a corte de seu suserano e aspirava por meio do casamento obter
o grau de sênior e as terras que viriam com o título.
37
Ver anexo A.
39
[...]
XXVI. O amante não sabe recusar nada à amante.
XXVII. O amante nunca se sacia dos prazeres que encontra junto à mulher amada.
(CAPELÃO, 2000, p. 261-262)
Cruzando tais informações sobre as regras que os amantes devem seguir com o tipo
de obra produzida no medievo, tomemos os mandamentos XII, XXIV e XXVII e as cantigas
compostas por Guilherme IX de Aquitânia para dar “voz” ao sentimento professado, ao papel
da mulher amada como inspiração e ao objetivo final do amante de conseguir os favores de
sua pessoa amada. A primeira cantiga, em franco-provençal composta por Guilherme, o
trovador, é intitulada de Farei canconeta nova [do original Farei chansoneta nueva], na qual
o poeta canta à amiga sobre seu desejo, amor e todas as qualidades que esta possui e que o faz
amá-la impreterivelmente:
Em outra cantiga, Guilherme, o trovador canta sobre o prazer obtido junto à amada,
colocando em posição de inigualável alcance dentre todos os prazeres existentes no mundo
que conhece. Intitulada de Cheio de gozo estou a amar [Mout jauzens me prent em amar]39,
assim o diz:
Como visto, tais cantigas transitam bem dentro do espectro temático do Amor
Cortês, onde um fator não tão claro no Tractatus salta aos olhos nas composições de
Guilherme IX: o alto teor sexual de seus versos. Como supracitado no início, as composições
de Guilherme causaram espanto e choque por conta de sua liberdade em escreve e cantar
sobre temas tão espinhosos dentro da sociedade feudal. O amor ao qual o trovador se referia
não era apenas o amor idealizado e puro, e mesmo que seguisse a linha de raciocínio de André
Capelão sobre as formas de nutrir e praticar o amor, o sentimento professado nas cantigas era
o carnal, consumado e quase explícito, onde o autor por meio de metáforas poéticas brinca
com as palavras do eu-lírico, sempre em posição de júbilo e prazer, realizando com sua amada
as mais diversas fantasias e desejos amorosos.
Desse modo, optei pelo uso da narrativa literária como fonte de análise pela riqueza
do discurso proferido e das múltiplas possibilidades de se analisar o período escolhido por
intermédio das representações de seus contemporâneos sobre sua própria realidade. Quando
trabalhada e manipulada dentro de seu contexto de produção, toda fonte, e a literária não foge
à regra, fornece ao historiador as oportunidades de reflexão sobre a problemática por ele
colocada.
A escolha pelo uso das representações literárias deste Amor Cortês descrito nas
páginas anteriores não escapa também a essa lógica, pois à rigor, e fundamentalmente, quando
representamos algo, ou alguém, sejam categorias sociais, culturais, simbólicas e/ou políticas,
consideramos que ali temos a alocação de uma ferramenta teórica que significa que o “[...]
estar no lugar de, é a presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver a
ausência. [...]”, onde a representação desses elementos seja percebida como sendo uma “[...]
43
não cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir
dele. [...]” (PESAVENTO, 2008, p. 40).
pois dentro da linha de raciocínio seguida até aqui, essa literatura, presente em um quadro
maior de explanação que seria o imaginário, representa por meio de sua própria estrutura
conjuntural, regimes de representação e verossimilhança com o real.
Enquanto documento essas obras “[...] não podem dar-lhes [aos historiadores] sobre
aquilo para o que não foram feitas: elas são em si próprias uma realidade histórica. Medíocres
ou geniais [...], não obedecem a motivações, regras ou finalidades iguais às dos documentos
de arquivo que o historiador está habituado a trabalhar [...]” (LE GOFF, 1994, p. 6, grifo
meu), ao mesmo tempo que direciona e aponta os caminhos existentes para um novo olhar e
uma nova abordagem sobre os retratos sociais ali descrito e é senão no imaginário construído
sobre o Amor Cortês que as obras idealizam e constroem suas figuras de heroísmo
cavaleiresco e de virtude feminina.
Sobre essa dinâmica temática de análise, Guilherme IX ainda canta sobre a mudança
das estações, sobre o cotidiano nas cortes nobiliárquicas. Sempre com o pano de fundo cortês,
o trovador buscou incorporar em sua poesia aspectos do social imaginados e refletidos nas
palavras que compunham seus escritos. Não obstante que a cantiga de título Pois vemos que
já refloresce [Pus vezem de novel florir] trata desses assuntos:
A obediência é o pilar
de muitos que querem amar
e que devem estar a par
do conveniente,
evitando em corte falar
como má gente.
40
“Pus vezem de novel florir / Pratz e vergiers reverdezir /Rius e fontanas esclarzir, /Auras e vens, / Bem deu
cascus lo joi jauzir / Don es jauzens / D’amor non dei dire mas be. / Quar no n ai ni petit ni re? / Quar ben leu
46
Georges Duby (2013, p. 11) comenta que a literatura dos séculos XII-XIII “[...]
procurava impor um conjunto de imagens exemplares[...]” e que além disso “[...] representa o
que a sociedade quer e deve ser [...]”. Mesmo que essa literatura não represente um retrato
fidedigno dos aspectos amorosos no cotidiano das cortes principescas, estas atuam
diretamente como sendo os baluartes de um “triunfo” literário das figuras representadas em
suas narrativas, e é na decorrência de tal fenômeno que tais histórias fizeram homens e
mulheres desprenderem-se um pouco da rígida ordem social existem no período.
plus no m’em cove; / Peo leumens / Dona gran joi qui be n mante / Los aizimens. / A totz jorns m’es pres enaissi
/ Qu’anc d’aquo qu’amiei no m jauzi, / Ni o farai ni anc non ho fi; / Qu’az esciens / Faz maintas res que l cor me
di; / “tot es niens”. / Per tal n’ai meins de bon saber / Quar vuelh so que non puesc aver. / Aisel reprovers me ditz
ver / Certanamens: / “A bom coratge bon poder, / Qui’s bem sufrens”. / Ja no sera nuils hom bem fis /
Contr’amor, si non les aclis, / Et als estranhs et als vezis / Non es consens, / Et a totz sels d’aicels aizis /
Obediens. / Obediensa deu portar / A maintas gens qui voi amar, / E coven li que sapcha far / Faigz avinens, / E
que s gart em cort de parlar / Vilanamens. / Del vers vos dic que mais ne vau / Qui bem l’enten, e n’a plus lau, /
Que l mot son fag tug per egau / Comunalmens, / E l sonetz, ieu mezeis m’en lau, / Bos e valens. / A Narbona,
mas ieu no i vau, Sia l prezens / Mos vers, e vuelh que d’aquest lau / Me sai guirens. / Mon Esteve, mas ieu no i
vau, / Sia l prezens / Mos vers, e vuelh que d’aquest lau /Me sai guirens.”
47
[...] o valor eminente que ele [roman] atribuía a escritura, de fato, modificava suas
relações, não somente com seu texto, mas também com o ouvinte. [...] O “romance”
procede a uma iniciação crítica de seu ouvinte, ele o envolve (de maneira menos ou
mais hábil) numa busca de sentido, uma investigação, certamente limitada pelas
injunções simbólicas que pesavam sobre a cultura de então, irrealizável, no entanto,
sem a intervenção do escrito. [...] Uma reflexão sobre a escritura (independente da
tradição retórica) esboça-se assim, em língua vulgar, a propósito de narrativas de
ficção, excluindo todos os outros textos. (ZUMTHOR, 1993, p. 267-268, grifo meu)
Todo ato social de certa importância devia ser público, realizar-se diante de uma
assembleia numerosa, cujos membros guardavam em depósito a lembrança e cuja
confirmação esperava-se que eles garantissem mais tarde, eventualmente, tanto
daquilo que tinham visto como ouvido. Palavras, gestos, enfiados num ritual a fim
de se imprimirem mais profundamente na memória do grupo para serem, no futuro,
relatados. Ao envelhecer, as testemunhas se sentiam obrigadas a transmitir à sua
descendência o que elas conservavam na memória, e essa herança de recordações
deslizava assim de uma geração para outra. [...] Gente que, para garantir o arranjo de
todas as relações sociais, não confiava nos textos, mas na memória, nessa memória
coletiva que era o “costume” – um código muito restrito, imperioso, embora não
estivesse em parte alguma registrado. Se se interrogava sobre esse ou aquele ponto
do direito, era preciso proceder à elocução das lembranças. A pesquisa oral, a
interrogação periódica dos membros da comunidade, inicialmente os mais idosos,
depositários de uma reserva mais antiga, julgada mais valiosa porque mergulhava
profundamente no passado, constituía um dos órgãos maiores de regulamentação da
sociedade. (DUBY, 2011, p. 196-197, grifos meus)
Não raro que tal “resistência” seja percebida nas primeiras obras literárias escritas no
início do século XII. É comum encontrar nos registros de época, nos poemas, poesias, canções
de gesta e romans, passagens que exprimem a maneira “tradicional” de se narrar os
acontecimentos, visto que o “contar” é literalmente isso, a narrativa sucessiva de fatos e
acontecimentos transmitidos via leitura em voz alta, àqueles que não tinham domínio das
letras.
de uma “memória medieval” ou até mesmo de uma memória “coletiva” em torno desses
retratos sociais passa pela tênue relação entre História e Memória. Ao final da década de 70,
Duby pontuou que:
[...] diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupa e que esse
mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes.
(HALBWACHS, 2006, p. 69, grifo meu)
[...] quando recordamos, elaboramos uma representação de nós próprios para nós
próprios e para aqueles que nos rodeiam. Na medida em que a nossa ‘natureza’ - o
que realmente somos – se pode revelar de um modo articulado, somos aquilo de que
nos lembramos [...]. (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p. 10)
Tomando por base tal reflexão, alio o pensamento da memória social junto à
manutenção de uma tradição oral de transmissão no medievo, pois ao evocar a subjetividade,
a coletividade e o quadro sociocultural do universo literário da Idade Média ocidental, leva-se
em consideração seu contexto de produção, de circulação e recepção, estando em sintonia
com a própria narrativa construída pelos agentes históricos que possibilitaram a existência das
diversas formas de compreensão que este universo possuía em seu interior.
Cancioneiro medieval contendo uma coletânea de poesias ibéricas escritas em galego-português no século
XIII, influenciadas pela lírica trovadoresca provençal (occitânica) inaugurada por Guilherme IX da
Aquitânia na França do século XII.
Fonte: <http://cantigas.fcsh.unl.pt/cancioneiro.asp?imgc=A_119_21&cdcanc=1>. Acesso em: 13 out, 2017.
Ora, a ideia de transmissão das obras literárias no medievo se perpetua durante muito tempo
por intermédio do recurso da voz, da música, em suma, da oralidade pujante.
Deve-se ter em mente que o amálgama dessa tradição oral com o elemento escrito
passa por uma análise cuidadosa do historiador em relação ao contexto de circulação dessas
práticas, aliado, em primeira instância com a compreensão de uma sociedade em que a
existência preliminar de uma cultura escrita por parte daqueles que detinham seus meios de
controle não obrigatoriamente a tornava em uma sociedade letrada.
Desse modo, uma maneira encontrada pela própria iconografia do período medieval
foi a representação nas iluminuras de grupos de músicos, como bardos, jograis e menestréis,
ao ponto de que o elemento visual se ajuntasse ao elemento vocal/oral para a construção e
perpetuação de uma prática social como a leitura de peças, obras e pantomimas em voz altas.
Tome-se de exemplo o conto de Tristão e Isolda, uma das histórias de amor mais
conhecidas e divulgadas da Idade Média. O conto deve suas origens às lendas celtas
transmitidas por meio da tradição oral do noroeste da Europa e desde o início do século V a
lenda dos jovens amantes é cantada aos quatro ventos pelos bardos e trovadores medievais.
Por meio do testemunho oral, as origens celtas da lenda de Tristão e Isolda foram
gradualmente se transmutando e se incorporando à sociedade cristã existente no ocidente
medieval, visto que:
52
[...] Histórias de Tristão e do rei Marcos [ou Mark] já eram conhecidas desde o
século VIII, mas é no século XII que a narrativa celta (trabalhada no imaginário
cristão) cristaliza-se numa intricada rede de sentido cuja unidade enigmática e
fascinante salta aos olhos apesar da multiplicidade das suas versões [...]. (WISNIK,
2009, p. 221, grifo meu).
41
No século XII temos a prosificação do poema de Tristão e Isolda. Diversos autores criaram suas próprias
variantes para o conto dos dois amantes, tendo as versões de Béroul (escrita entre 1160-1190) e de Thomas um
maior destaque por suas respectivas manutenções dos elementos celtas originais da narrativa. c. FEDRIK, Alan
S. Introduction. In: BEROUL. The Romance of Tristan: and the Tale of Tristan’s Madness. London: Penguin
Books, p. 9-35.
42
O lai é caracterizado por seu formato em versos octossilábicos, e sua história a ser narrada em formato
seminarrativo e semilírico, intercalando o canto dos acontecimentos com as passagens narrativas
desacompanhadas de música. Em suas exposições, eram sempre acompanhados de jograis munidos de harpas,
flautas e outros instrumentos de modo que a leitura dos versos obedecesse ao objetivo de performance que o
gênero exigia.
43
Seu nome verdadeiro nos é desconhecido, visto que o epíteto “Maria de França” foi dado somente devido ao
fato de que a poetisa assinou o final de um de seus escritos (a fábula de “Ysopet”) da seguinte maneira: “Al
finement de cest escrit, qu’en romanz ai traitié e dit, me numerai pur remembrance: Marie ai nun, si sui de
France.” (BURGESS, 2003, p. 17), [Ao final deste escrito, que em romance foi tratado e dito, me apresento
como lembrança: Maria é meu nome.]. Outra dificuldade em torno da figura de Marie, seria a imprecisão
histórica acerca do período em que sua obra foi composta. Estudiosos não chegaram ainda a um consenso,
embora as datas mais comumente estipuladas estejam entre 1150-1165 e 1170-1187. Dentre suas obras mais
conhecidas e que sobreviveram até os dias atuais estão os 12 lais bretões, as Fables (conjunto de fábulas
esópicas traduzidas e adaptadas para o francês arcaico), além de um escrito sobre a vida de São Patrício
[Tractatus de Purgatorio sancti Patricii, cujo tema em francês é L'Espurgatoire saint Patrice]. c. BURGESS,
G.S.; BUSBY, Keith. Introduction. In: MARIE DE FRANCE. The Lais of Marie de France. [Translated with
an introduction by Glyn S. Burgess and Keith Busby]. 2nd ed. London: Penguin Books, 2003, p. 7-38.
53
Percebe-se que autora joga com os elementos orais, afirmando que já ouvira a
história de outros, mas que também já a encontrara registrada por meio da escrita. Porém,
mesmo na sua própria forma de narrar o conto, opta por preservar um estilo rítmico, cantado,
ressaltando o elemento da vocalidade, que como mencionado no tópico anterior advém da
funcionalidade, sensibilidade e própria historicidade frente ao elemento da escrita.
Outro exemplo pode ser encontrado no roman Cligès, onde Chrétien de Troyes
literalmente faz um retrato preciso dos atributos da donzela Fenice, como se estivesse
conversando e narrando aos seus expectadores (no nosso caso, leitores) o seu deslumbramento
enquanto testemunha de tal visão:
A donzela não demorou, mas de imediato veio até o palácio. Ela era de uma figura e
beleza arrebatadora, pois o próprio Deus havia apreciado moldá-la de modo a fazer
os homens maravilharem-se. E o Deus que a fez não deu a nenhum homem
palavras suficientes para descrever sua enorme beleza. A donzela era chamada
Fenice, e não sem motivo, pois assim como a Fênix é a mais bela das aves e única de
sua espécie, também Fenice, ao que me parece, não havia igual para sua beleza. Ela
44
Segundo o original: “Asez me plest e bien le vueil / Del lai qu’um nume Chievrefueil / Que la verité vus en
cunt / Coment fu fez, de quei e dunt. / Plusurs le m’unt cunté e dit, / E jeo l’ai trové en escrit / De Tristram e de
la reine, / De lur amur que tant fu fine / Dunt il eurent meint dolur, / Puis mururent en un jur.”
55
era um milagre e uma maravilha cuja igualdade a Natureza nunca seria capaz de
criar novamente. Desde que minhas palavras nunca seriam capazes da tarefa,
não desejo descrever seus braços, ou seu corpo, ou seu rosto ou suas mãos;
mesmo se tivesse mil anos para viver e minhas habilidades [de poeta/autor]
dobrassem a cada dia, ainda assim meu tempo seria desperdiçado na tentativa de
descrevê-la como ela realmente era. Sei que se tentasse, esgotaria toda minha
habilidade e desperdiçaria todo o meu talento e meus esforços seriam em vão.
(TROYES, 2004, p. 155-156, grifos meus, tradução minha)45
Onde advogar e situar a cultura escrita em meio ao contexto oral de transmissão das
histórias no medievo ocidental? A necessidade de preservação, da valorização de uma
memória coletiva que sobrevivesse às futuras gerações seria o suficiente para garantir o lugar
social do escrito em uma Idade Média até então eminentemente oral?
Desse modo, a cultura escrita estaria além de uma simples definição para o
mecanismo da “manipulação textual”, dado que esta extrapola o próprio texto, sendo
percebida, construída e desenvolvida de acordo com as intervenções do autor, com as
respostas que a sociedade produz em cima dela e enfim, resultando na concepção de essa
cultura escrita pode ser percebida graças à sua relação múltipla de sentidos entre aquilo que se
produz e aquilo que é consumido, Portanto, pode-se definir a cultura escrita como:
[...] uma relação entre autores e receptores, que produzem múltiplos sentidos sobre
um elemento cultural escrito, sejam estes em suas diversas formas materiais e
imateriais, relegando peculiaridades e dinâmicas ímpares para cada conjuntura,
deixando a cultura escrita para além de princípio geral ou definição amarrada, mas
sim uma ideia ampla e de guia metodológico para se questionar forças escritas nas
mais diversas sociedades e seus tempos. (FERNANDES, 2016, p. 62)
conjunto de relações múltiplas entre os autores e seus ouvintes/leitores, em que pese que os
elementos culturais escritos acabem por representar dinâmicas e especificidades de uma
sociedade cuja força do elemento escrito seja referência conjuntural a ser considerada como
metodologia de análise dessas realidades sociais. Logo, o “triunfo” do escrito na sociedade
medieval no século XII e sua implicação dentro do corpo de obras que foram produzidas
seguindo essa nova dinâmica, caracteriza um ponto de virada entre o amálgama das formas
orais de se produzir, preservar e transmitir informações e narrar histórias e o ensejo agora
cada vez mais presente da escritura.
O cristianismo, como uma religião que possui no seu cerne estrutural a existência de
um livro sagrado como vetor de propagação das suas crenças, atestava pela manipulação dos
textos sua influência no convívio social, no imaginário e nas representações sobre a época
mencionada, monopolizando até mesmo a produção literária de caráter “não-oficial” advinda
da Igreja, como nas canções de gesta caracterizadas por seu forte teor cristianizado.
Desse modo, isso atesta que “[...] O poder da escrita representa sua autoridade, seu
caráter de veracidade e dominância como constituidora da memória, assim como sua força
delimitadora, pois suas codificações são inteligíveis para alguns, muito poucos na Idade
Média.” (FERNANDES, 2016, p. 64). E pode ser verificado quando se nota o que o simples
contato inicial daqueles que não detinham o saber letrado com algum registro escrito causava:
[...] essas inscrições não podem ser lidas pela maioria do povo por dois motivos:
estão inscritas em latim e se acham colocadas a uma altura que ultrapassa o olhar
normal. Não podem ser decifradas, mas torna visível o poder e delimitam um
território marcado, apropriado pelo poder por meio da escrita. Aqui aparece uma
dimensão da escrita do poder ou do poder por meio da escrita, expressada não no
cotidiano da prática burocrática ou administrativa e de controle, mas no da
dominação simbólica da escrita. (CHARTIER, 2001, p. 23-24)
Em termos de eleger aquilo que fato seria realmente considerado como parte
integrante de um sistema maior de manifestações culturais, alguns elementos não devem
passar desapercebidos aos olhos dos medievalistas da atualidade, sobretudo no que tange à
57
uma certa representatividade de alguns gêneros literários surgidos no medievo, como é o caso
específico do roman medieval. Portanto, antes de se buscar uma certa hierarquia quantos aos
diversos estilos literários, deve-se atentar antes para uma ideia de identidade vinculada à uma
autoridade de buscar nos próprios autores dos textos sua expressão determinante:
Para além dos aspectos textuais e estilísticos em sua composição, o roman jogava
com a representação do real e com elementos da ficção, contando com a presença de
componentes do chamado “maravilhoso medieval” (dragões, feiticeiras, encantamentos, etc.)
que davam vida às grandes façanhas, às aventuras dos cavaleiros, e os contos de amor
permeados de angústia, ódio incontrolável, dor e paixões desenfreadas. Tal “maravilhoso” é
senão definindo por sua “[...] raridade e pelo espanto que suscita [...]” (LE GOFF, 1994, p.
106), visto que a presença do sobrenatural e do extraordinário sempre fascinou o homem
medieval de tal modo que quando irrompe nos séculos XII e XIII, pode ser vista como sendo
oriunda de diversas culturas antigas:
A estética é uma reflexão sobre um campo de objectos [sic] dominado pelos termos
«belo», «sensível» e «arte». Cada um destes termos encerra e implica outros e estas
séries cruzam-se em diversos pontos: «belo» abre -se para o conjunto das
propriedades estéticas; «sensível» remete para sentir, ressentir, imaginar e também
para o gosto, para as qualidades sensíveis, para as imagens, para os afectos [sic],
58
etc.; «arte» abre -se para a criação, imitação, génio, inspiração, valor artístico, etc.
(HUGON-TALON, 2009, p. 7-8, grifos meus)
O medievo Ocidental não possuía uma definição tão elaborada sobre a estética de
suas produções, e ainda que o termo, o sentido e objetivos desta sejam compreendidos dentro
de um contexto que remonta ao século XVII e à contemporaneidade, mais precisamente, não
por menos esta acepção teórica torna-se impossível de se adotar para o estudo e compreensão
de uma literatura que teve em seu cerne toda uma miríade de preocupações com o objeto
dessa estética. Mesmo porque “[...] a sua tarefa não é apresentar e ordenar as obras do passado
nem julgar obras do presente. A estética é um método discursivo, analítico e argumentado que
permite clarificações conceptuais.” (HUGON-TALON, 2009, p. 8).
[...] o filósofo medieval, quando fala de beleza, não entende somente um conceito
abstrato, mas se remete à experiência concretas. É claro que na Idade Média existe
uma concepção de beleza puramente inteligível, da harmonia, do esplendor
metafísico, [...] a experiência da beleza inteligível constituía, antes de tudo, uma
realidade moral e psicológica para o homem da Idade Média, e a cultura da época
não permaneceria suficientemente iluminada se nos descuidássemos desse fator; em
segundo lugar, ampliando o interesse estético para o campo da beleza não sensível,
os medievais elaboravam ao mesmo tempo, por analogia, por paralelos explícitos ou
implícitos, uma série de opiniões a respeito do belo sensível, da beleza das coisas da
natureza e da arte. O campo de interesses estéticos dos medievais era mais dilatado
que o nosso, e sua atenção para a beleza das coisas era frequentemente estimulada
pela consciência da beleza enquanto dado metafísico; mas também existia o gosto do
homem comum, do artista e do amante das coisas de arte, vigorosamente para os
aspectos sensíveis. (ECO, 2010, p. 18-19)
por acaso que no Tractatus de Amore, André Capelão pontua que o “[...] Amor é uma paixão
natural que nasce da visão da beleza do outro sexo e da lembrança obsedante dessa beleza.
[...]” (CAPELÃO, 2000, p. 5, grifo meu).
Sobre primeira passagem, chama-se a atenção para a força que o contato visual entre
Cligès e Fenice provoca em ambos. Tratando-se de um roman cortês, e obedecendo à
estrutura narrativa que preza o desenvolvimento dos amantes, temos o seguinte retrato pintado
por Chrétien de Troyes:
Cligès pôs-se em frente ao seu tio em toda sua beleza, e também àqueles que não
tiravam os olhos dele; de modo similar, todos que conheciam a jovem [Fenice]
olharam-na fervorosamente, como em um esplendor. Mas Cligès, por amor, lançou
secretamente seus olhos sobre ela, e os retirou novamente de modo tão sutil que nem
sua ida e volta poderiam ser considerados um ato tolo. Ele a olhou com mais ternura,
mas não notou que ela estava oferecendo-lhe uma troca justa: em genuíno amor, ela
ofereceu-lhe seu olhar e tomou o dele para si. Tal troca pareceu excelente para ela, e
teria sido ainda melhor se ela soubesse algo sobre quem ele era. No entanto, apenas
sabia que ele era belo demais para ela, e se algum dia fosse amar alguém pela
beleza, não seria certo conceder e repousar seu coração em outro lugar. Ela deu-lhe
os olhos e o coração. Ele, por sua vez, prometeu-lhe o seu. 47 (TROYES, 2004, p.
156-157, tradução minha)
Em seguida, Chrétien segue descrevendo como a partir desta troca de olhares, cada
um entrega seu coração e seu amor ao outro, metaforizando o sentimento professando
didaticamente para aqueles que não versados na arte de amar:
Posso explicar-lhes como dois corações podem ser um só sem nunca se unir. Eles
são apenas um na medida em que o desejo de cada um flui para o outro; ambos
desejam a mesma coisa e, por mais que tenham tal desejo em comum, há aqueles
que dizem que cada um possuem ambos os corações. Mas um coração não está em
dois lugares. Seus desejos podem ser facilmente compartilhados, mas cada um ainda
possui seu próprio coração, assim como diferentes homens podem cantar uma
canção ou uma melodia em uníssono. Por esta analogia, provei a vocês que uma
pessoa não detém dois corações simplesmente por saber o desejo do outro, e nem
47
Originalmente: “Cligés stood in front of his uncle in all his beauty, and those who did not him could not take
their eyes from him; and in similar fashion, those who did know the girl gazed on her fervently, as on a marvel.
But Cligés, for love, cast his eyes upon her secretely and withdrew them again so subtly that neither going nor
their coming could be considered foolhardly. He gazed upon her most tenderly, but he did not notice that she was
offering him fair exchange: in true love, without deceit, she offered him her gaze and thrn took his. This trade
seemed excellent to her, and would have seemed even better had she known something of who he was. But she
knew only that he looked beautiful to her, and if ever she were to love anyone for his beauty, it would not have
been right to bestow her heart elsewhere. She bestowed on him her eyes and her heart, and he in turn pledged his
to her.”
60
porque sabe daquilo que o outro aprecia ou não. 48 (TROYES, 2004, p. 157, tradução
minha)
O acontecimento está ali. Narrado liricamente pelo poeta francês junto a todos os
elementos que constroem esteticamente uma narrativa cortesã. O roman deve aos seus autores
muito da sua capacidade estética imagética, cultural, lírica e viva da sociedade medieval,
sobretudo dos ambientes nobiliárquicos, o que fica comprovado na capacidade de que a
escrita possui ainda de manter lívidos e presentes os fatos, os retratos e as figuras
representadas nas linhas gravadas. E é na virada do século XII para o XIII que todas essas
características são elevadas à patamares de observação e descrição minuciosos e precisos.
Como uma obra composta nesse ínterim cultural, o Roman de la Rose incorpora já no
século XIII os recursos e ferramentas narrativas que exploram bem a preocupação dos autores
medievais de representar de modo detalhado os ambientes, a vida, os comportamentos e as
emoções existente no cotidiano feudal. Expressões de surpresa, de deslumbramento e de
admiração são comuns às obras romanescas compostas a partir do final do século XII (a partir
de 1186 com Érec et Enide, de Chrétien de Troyes) e por todo a centúria seguinte, como pode
ser visualizado quando da visão do protagonista do Roman de la Rose sobre o Jardim do
Amor:
[...] entrei no Jardim através da porta que a Preguiça abrira e, uma vez lá dentro, vi
aumentar o prazer, a alegria e também a jovialidade que sentia. De facto, garanto-
vos que acreditei estar num verdadeiro paraíso terrestre, já que o local era de tal
forma delicioso, que se diria etéreo. Para ser franco, e, tal como na altura me
pareceu, não existe paraíso onde se possa estar melhor que naquele jardim que
tanto prazer me deu. Eram inúmeras as aves canoras ali reunidas: num ponto viam-
se rouxinóis, num outro gaios e estorninhos, noutros, grandes bandos de carriças e
rolas, pintassilgos e andorinhas, cotovias e chapins. [...] O Jardim fora feito de forma
a constituir um quadrado perfeito, sendo sua largura igual ao seu comprimento [...]
Lembro-me perfeitamente de que ali havia árvores que exibiam romãs, um fruto
excelente para os que estão doentes, e abundantes árvores cujo fruto é a noz, entre
elas a noz-moscada, fruto que não é doce nem amargo. [...] Eram várias as espécies
de veados que viviam naquele jardim, e um número deveras elevado de esquilos
entretinha-se a trepar às árvores. Também havia coelhos, sempre a correr para dentro
e para fora das tocas, ocupados a jogar mais de quarenta jogos diferentes naquela
erva fresca e verde. Aqui e ali viam-se nascentes de água clara, livres de insectos e
de sapos, cercadas pelas sombras das árvores, mas o certo é que as posso enumerar.
Uma série de pequenos cursos de água corria através de canais construídos pelo
Divertimento, e a água produzia um som doce e agradável. Junto aos rios e nas
margens das nascentes de águas límpidas, a erva fresca crescia em abundantes
maciços, daí que qualquer um neles pudesse deitar, na companhia de sua amada,
como se o estivesse a fazer numa cama de penas, e isto devido à abundância da erva.
(LORRIS; MEUN, 2001, p. 18-28, grifos meus)
48
No original: “I can explain to you how two hearts can be as one without ever coming together. They are only
one in so far as each one’s desire flows into the other; they each desire the same thing and, in as much as they
have this commom desire, there are those who say that each of them has both hearts. But one heart is not in two
places. Their desires can easily be shared, but each still has their own heart, just as many different men can sing
a song or melody in unison. By this analogy I have proven to you that one person does not have two hearts
simply by knowing another’s desire, nor because the one knows what the other likes or dislikes.”
61
Desse modo, ainda que o conceito de estética não tenha sido elaborado estritamente
para o contexto medieval, ou ainda para analisar um tipo de obra literária específica como é o
roman, pode-se ainda assim adequá-lo e alocá-lo em uma análise que trata sobre a conjuntura
estrutural da obra medieval enquanto manifestação “artística” de seus autores. Não estaria a
literatura produzida no período fora desse escopo analítico, muito pela capacidade dos autores
medievais de ofereceram um tipo de narrativa como “espelho” ou reflexo social de uma época
tão culturalmente diversificada.
Com isso em vista, não demorou para que a influência dos romans crescesse dentro
da sociedade feudal, mais determinadamente nos ambientes nobres. As cortes medievais
francesas, sobretudo as localizadas ao sul, guardavam em seus muros verdadeiras oficinas
literárias49 que punham à prova muito da capacidade criativa existente dentro do universo
49
As regiões da Occitânia (ducado da Aquitânia), da Provença e de modo geral, do chamado Languedoc francês,
foram desenvolvendo desde a época de Guilherme IX, o trovador e duque da Aquitânia, e graças ao próprio
poeta, um apreço maior envolvendo o campo das artes, sobretudo às composições de peças, cantigas e poemas
que retratavam o modo de vida, a região e o cotidiano da nobreza que ali havia se instaurado. Como visto no
tópico anterior, Guilherme inaugura um tipo de poesia para os padrões da época, entrando em rota de colisão
com a corte real parisiense de forte influência clerical. Sua neta, Alienor, rainha consorte da França por seu
casamento com Luís VII e posteriormente rainha da Inglaterra por um segundo casamento com o rei Henrique II
Plantageneta, deu continuidade aos esforços do avô, desenvolvendo no próprio ducado da Aquitânia e
posteriormente no condado de Poitiers uma política de patronato que fez florescer a produção literária de modo
mais objetivo nos séculos XII e XIII na França. c. DUBY, Georges. Alienor. In: ________. As damas do século
62
artístico feudal. E é nesse cenário profícuo de produção que os escritos destinados ao público
nobre, aqueles dotados de uma carga maior de sensibilidade narrativa, surgiram e tiveram seu
apogeu nos limiares do século XII e XIII.
Ainda sobre as obras cortesãs, alguns autores destacam-se no período, tendo algumas
de suas criações sobrevivido e chegado até os dias atuais por meio de compilações e
manuscritos copiados dos originais. Dentre muitos, destacam-se as obras do poeta francês
Chrétien de Troyes (1135?-1183), cuja atividade floresceu na segunda metade do século XII.
Muito de sua biografia é desconhecida, visto que o mesmo não deixou sequer algumas
pequenas pistas em suas obras que iluminassem um pouco mais sobre suas ocupações e
atividades durante seu período de atividade. Sobre o autor, importante ressaltar que toda a sua
obra teve como palco produtivo algumas das cortes mais ricas e famosas da França do século
XII (ver figura 4):
XII: Heloísa, Isolda e outras damas do século XII; A lembrança das ancestrais; Eva e os padres. [Trad.: Paulo
Neves e Maria Lúcia Machado]. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013, p. 13-28.
63
Mapa dividido e representado a partir das principais cortes senhoriais do período. Com destaque para os
domínios pertencentes ao rei da Inglaterra (em amarelo).
Fonte:<http://theudericus.free.fr/Genealogie/Carte04_France_XI_XII_Siecle.jpg> . Acesso em: 04 jun, 2018.
Chrétien foi tido como o “pai do romance”, e sobretudo responsável por nos delegar
alguns dos maiores exemplares sobre o ciclo bretão-arturiano:
seguramente não é seu nome verdadeiro. Mas ele tomou como prenome aquele que
melhor expressava a natureza profunda dos homens do seu tempo, o pertencimento
a uma região. Ignoramos onde ele nasceu, mas é provável que tenha vivido em
Troyes; ele teria escolhido esse nome por duas razões. A primeira é que foi ligado
durante muito tempo, inclusive na sua produção literária, à corte de Champagne, que
residia em Troyes. A segunda é que esta cidade era, no século XII, um brilhante
centro cultural [...]. Em todo o caso, está claro que ele se beneficiou do apoio de
duas grandes cortes feudais: a primeira é a de Champagne, que tira proveito da
popularidade e da riqueza das feiras da região, na época do conde Henrique, o
Liberal (1152-1181) e de sua esposa Marie (1145-1198), filha de Luís VII e Leonor
da Aquitânia [neta de Guilherme IX, o Trovador]. A segunda é Flandres, em
particular no final de sua vida, sob Felipe de Flandres (1157-1191). (LE GOFF,
2013c, p. 192, grifo meu)
Entre suas obras de destaque estão: Ivain, le Chevalier au Lion [Ivain, o cavaleiro do
leão]; Lancelot, le Chevalier de la Charrete [Lancelote, o cavaleiro da charrete]; Érec et
Énide [Erec e Enida]; Cligès; Perceval ou le Conte du Graal [Perceval ou o Conto do Graal],
em que transformou toda a lenda arturiana e a chamada “Matéria da Bretanha” em uma série
de romans corteses, ocupando-se dos personagens mais romanescos da Távola Redonda,
como o próprio rei Artur, Lancelot, Guinevere, criando também a principal versão da história
de Perceval e da Demanda do Santo Graal (LE GOFF, 2013c).
50
Também conhecidos como a “Matéria da Bretanha”, esse conjunto de textos têm por tema principal a lenda e a
história envolvendo a figura mítica do Rei Artur. Com origens que remontam às localidades do noroeste da
Europa continental, como as Ilhas Britânicas (Irlanda, Escócia, Inglaterra, o atual País de Gales) e os povos
celtas que ali residiram desde o século IV a.C, tais narrativas foram incorporados os elementos culturais nativos,
como o apego às personagens femininas (Isolda, Guinevere), o culto à terra (característico da religiosidade celta
traduzida nas divindades matriarcais), a busca por objetos místicos e mágicos (caldeirão da Britânia que
posteriormente foi transmutado no Santo Graal) e as incursões em busca de terras para cultivo e habitação e
comércio. c. HAYWOOD, John. Os celtas: da idade do bronze aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 14-
19.
66
agentes históricos que possibilitaram a existência das diversas formas de compreensão que
este universo possuía em seu interior.
O “quadro” modelo dos romances corteses poderia ser descrito como sendo centrado
na figura de um jovem amante em uma busca quase que impossível pelo amor de sua dama.
Ao jovem cavaleiro, inúmeros obstáculos sãos postos em sua jornada pela predileção
amorosa, e não faltam exemplos de coragem, destreza e bravura que permitam que este
alcance o objetivo final que é estar ao lado de sua amada. Embora sigam traços estritamente
masculinos em suas linhas, os romances também atuavam como uma forma de literatura
“pedagógica”, onde o desenvolvimento dos personagens servia como molde e incentivo para a
nobreza copiar e reproduzir os comportamentos descritos como um meio de civilizar-se ainda
mais (ver figura 5):
Manuscrito iluminado anônimo do século XIII (c. 1298) representando uma dança entre homens e
mulheres nobres dentro do Jardim do Amor (MS DOUCE 195, f. 6v, 7r. Oxford, Bodleian Library).
Fonte: <http://romandelarose.org/#read;Douce195.007r>. Acesso em: 13 out, 2017.
Nota-se na iluminura uma disposição dos pares em fileiras de frente aos outros, cada
qual usando um tipo de chapéu vermelho na cabeça, simbolizando o Amor e a cortesia para
com seu respectivo par; além da presença de outros nobres em uma espécie de tribuna acima
dos demais, denotando o caráter simbólico que a dança detinha nos meios aristocráticos. De
fato, tratava-se, nas palavras de Georges Duby de uma dança, um “jogo de homens”, porém,
voltado às mais diversas expressões do que seria o ethos aristocrático daquele período:
Ao se analisar o roman medieval como fruto desse contexto histórico que envolveu o
desenvolvimento de uma literatura e de uma cultura escrita no ocidente medieval, percebe-se
que o conjunto de transformações históricas, sociais e culturais mencionadas envolvendo a
nobreza e a política de apadrinhamento dos artistas dentro das cortes feudais foi fundamental
68
para que uma cultura literária fosse de fato cultivada nesse período. Sendo uma literatura
direcionada, mas nem por isso menos “livre” em suas representações, não demorou para que
perfis de comportamento começassem a ser alocados dentro da narrativa romanesca de modo
a impulsionar cada vez mais o interesse por este tipo de gênero literário.
Aqui destaco que a figura feminina, da mulher enquanto nobre, foi cada vez
ganhando mais espaço nas aventuras cortesãs, não apenas enquanto figura idealizada para se
obter um amor impossível, mas sim como agente histórico de uma época em que a
representação feminina aos poucos foi tomando forma segundo as características do contexto
a que pertencia. Características estas, junto dos contornos e matizes específicos e contextuais,
que serão discutidas a seguir.
Dado um primeiro instante, ao lançarmos uma luz sobre aquilo que já foi escrito e
reproduzido acerca das mulheres medievais, notava-se de imediato uma polarização vigente
sobre uma figura feminina sacra – o ideal mariano de virtude – e a imagem de uma mulher
portadora do pecado – ligada ao estigma de Eva. Estudos recentes sobre a temática feminina e
essa polarização de perfis no medievo enveredaram por análises que gradativamente foram
descontruindo tal discurso histórico. Ainda que a sociedade no medievo ocidental fosse
marcada por vestígios eventualmente misóginos, a “recusa” ao feminino não é um elemento
novo ou inaugurado na medievalidade, tendo suas bases e tradições ancoradas na filosofia da
Antiguidade e nos estudos da Patrística sobre o papel da mulher na sociedade.
imponência e modelo a ser seguido, o que acaba por gerar um salto qualitativo, em certa
medida, nos olhares lançados até então sobre o universo feminino (LE GOFF, 2013a).
Coletar dados, examinar fontes, construir ideias, elaborar hipóteses e por fim, narrar
qualquer temática envolvendo o universo feminino na Idade Média e que não leve em
consideração a relação dessas personagens com o ambiente masculino e seu subsequente
espaço de primazia e dominação sobre o sexo feminino, é tarefa árdua e ao mesmo tempo
necessária ao medievalista.
Entretanto, uma outra parcela documental – escrita, também, por homens – matiza tal
concepção, estabelecendo uma relação histórica sobre a representação feminina e a sociedade
medieval, sobretudo na literatura. Diante disto, tome-se que:
Como afastar-se de tais pressupostos? Ou, tarefa ainda mais árdua, como trabalhar
com tais conceitos e discursos acerca da figura feminina em uma época demarcada por
preconceitos e “submissões” do feminino ao masculino? Ao pontuar que o erro de uma boa
parcela da historiografia foi justamente o não-afastamento ou contestação de tais “verdades
absolutas” acerca da condição feminina no medievo, Klapisch-Zuber expõe em seguida que o
questionamento de tais tendências deva ser feito de modo a interpretar quais construções
teóricas estiveram por trás dessas representações deturpadas.
E é sobre esse imaginário mencionado que o presente tópico dedicará suas linhas a
esmiuçar as representações de uma parcela específica da sociedade medieval feminina, a
aristocracia. Por limites metodológicos e teóricos, a opção de estudar e apresentar as variadas
imagens e perfis femininos aristocráticos justifica-se por um fator simples: no medievo
Ocidental, a diferenciação entre as mulheres baseou-se sobretudo nas respectivas posições e
ocupações que desempenhavam na sociedade.
Ademais, utiliza-se para isso as fontes literárias do período pois “O único campo em
que se pode com segurança perceber traços do pensamento feminino é a literatura [...]”
(MACEDO, 2014, p. 89), pois embora elaborada pelas mãos masculinas, tais obras tiveram
como mecenas grandes damas da sociedade medieval, ansiosas de terem para si uma corte
culturalmente rica e letrada que fosse educada e representada pelos ideias do Amor Cortês
(DUBY, 2013; MACEDO, 2014):
Diante disso, é oportuno enveredar-se por dentro de uma discussão mais profunda
daquilo que se imaginava acerca da figura e do universo femininos no Ocidente medieval dos
séculos XII e XIII. A perpetuação dos pensamentos e preconceitos antifemininos derivou da
necessidade ideológica que a sociedade medieval possuiu de moldar, hierarquizar e
representar no imaginário social os respectivos papéis convenientes a cada sexo.
acerca da relação entre esse imaginário e as representações das damas e donzelas medievais
apresentadas pela narrativa literária.
Porém, há uma outra opção teórica a ser considerada. Hilário Franco Júnior,
medievalista e discípulo de Jacques Le Goff, institucionaliza e reflete sobre uma outra
maneira de aproximar e utilizar tais conceitos. Pontuando que “[...] evidentemente, a
fidelidade não exclui a crítica [...]” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 68), este considera que “[...]
toda representação é imagem e toda imagem é representação, intelectual ou afetiva, portanto,
esta não pode ser entendida como ‘tradução mental de uma realidade exterior’, já que muitas
representações são de objetos internos ao sujeito.” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 68).
Desse modo, os modelos da aristocracia feminina retratados nas obras cortesãs dos
séculos XII e XIII, delegam ao historiador um esforço teórico-metodológico que leve em
consideração seu papel de reflexão sobre a sociedade da qual estava representando. As
aventuras, os perigos, as desilusões e paixões amorosas que tais mulheres perpassaram
estiveram inseridas em um campo específico de circulação: a corte. Portanto, tal espaço social
serviu como palco de uma reflexão – no caso do sentido literal do termo – em que tais
modelos refletem o outro e sobre o outro (FRANCO JÚNIOR, 2010).
julgou serem aptas para a arte do amor, mas antes, tratou de delimitá-las de acordo com suas
posições:
Para isso, direi antes que, entre as mulheres distingo a de condição plebeia
[burguesa], a de pequena nobreza e a de alta nobreza. Assim também quanto ao
homem, distingo o plebeu do que pertence à pequena nobreza e do grande senhor.
Sabes muito bem o que entendo por mulher de condição modesta; chamo de mulher
da pequena nobreza a que descenda de um vavassalo ou de um senhor, ou que seja
casada com um deles; a mulher de alta nobreza descende dos grandes senhores.
Quanto aos homens, direi a mesma coisa, com a diferença de que o homem não
muda de condição social segundo a posição ocupada pela esposa na aristocracia.
Porque a mulher, casando-se, muda de título segundo a posição do esposo.
(CAPELÃO, 2000, p. 21-23, grifo meu)
Sei muito bem que o amor não tem o hábito de diferenciar os homens por títulos,
mas força-os todos a servir de modo igual em suas fileiras, sem prestar atenção à
beleza, ao nascimento, ao sexo, às desigualdades de posição. [...] O amor calca-se na
natureza; portanto, os amantes não devem dar às diferenças entre os homens mais
atenção do que o próprio amor lhe dá: se o amor leva todos os homens, sejam quais
forem, a inflamar-se de paixão, os amantes não devem interessar-se pelas diferenças
de classes; uma única coisa deve importar: saber se quem solicita o amor foi tocado
pela paixão. [...] Sabei, portanto, que há muito tempo fui ferido pela flecha do vosso
amor e que tentei com todas as forças ocultar tal ferida; [...] Quando vos vejo, meu
espírito se perturba e minha alma se agita a tal ponto que esqueço tudo o que havia
preparado com tanto cuidado. (CAPELÃO, 2000, p. 37-38)
Embora ciente de sua posição inferior, o homem argumenta sobre as qualidades que
o amor suscita naqueles que amam, podendo até mesmo ignorar e superar obstáculos tão
grandes e reais como a fortuna e importância social. Em sua defesa, o amante diz que seu
próprio amor pela donzela é capaz de elevá-lo à uma posição de estima e valor equiparáveis
aos dela, que já nasceu com estes privilégios.
75
Embora seja fruto da mais nobre das artes, o Amor por si só, segundo a donzela, não
é suficiente para que esta venha a sequer considerar o pedido do jovem burguês, pois tem
noção que “[...] embora o amor veja que todos os homens são conduzidos pelos movimentos
naturais de suas paixões a desejar uma pessoa do sexo oposto, considerou que seria indigno de
si montar imediatamente suas tendas diante daquela cujo amor é requisitado, para obriga-la a
amar de pronto.” (CAPELÃO, 2000, p. 42), além disso, a donzela completa dizendo ao jovem
que:
A todo homem apetece mais procurar amante de condição superior à sua do que de
condição igual ou inferior; inversamente, a mulher cujo amor se solicita, em virtude
do princípio acima e de sua inclinação natural, prefere um amante de condição igual
ou superior à sua: assim, não se poderá pensar estar ela excluída da regra geral do
amor. Conclui-se de tudo isso, portanto, que teu esforço é inútil, e perceberás, no
fim, que te cansaste à toa. (CAPELÃO, 2000, p. 43)
Se um grande senhor estiver lutando pelo amor de uma mulher da sua classe, deverá
observar desde logo os seguintes princípios: acima de tudo, usar palavras doces e
amáveis e tomar o cuidado de nada dizer que possa ser censurável. Porque a mulher
nobre, a grande dama, mostra grande sagacidade nas críticas aos atos e às palavras
de um grande senhor; age assim sem temor e sente-se muito feliz por poder
ridiculizá-lo sem contemplação com frases mordazes. (CAPELÃO, 2000, p. 138-
139)
Acredito, e é pura verdade, que Deus incitou todos os homens virtuosos do mundo a
satisfazer vossos desejos e os das outras damas, e a razão disso parece-me
perfeitamente clara: os homens nada são nem podem fruir bem algum na fonte se
não forem instigados pelo incentivo que lhes é dado pelas mulheres. [...] Está claro,
portanto, que devemos aplicar todas as nossas foças a servir as damas, para
podermos receber os benefícios da claridade que elas nos queiram dispensar. [...]
Pois bem, conheço muitos homens que, podemos dizer, receberam o quinhão do
amor pleno, como também conheci outros que são sustentados apenas pelo leite
vivificante da esperança; mas eu, que nada tenho, nem a plenitude do amor nem os
favores da esperança, sou sustentado tão-somente pelo puro pensar em vós, pensar
que me habita e que, em comparação com os outros enamorados, me dá alegrias
infinitas. Que vossa piedade me leve então em consideração e venha em socorro de
meus pensamentos solitários, fortalecendo-os. E suplico-vos, senhora, de todo
coração que não procureis fugir à corte do Amor. (CAPELÃO, 2000, p. 140)
e preencher as respectivas funções para os quais foram elaborados. Tomando os diálogos aqui
reproduzidos e as respectivas representações dos homens e mulheres envolvidos, pode-se
observar em ambos expressões do cotidiano aristocrático, e do ponto de vista feminino, do
papel atribuído às grandes senhoras que constantemente eram inseridas e disputadas no
contexto social e cultural da formação das alianças por intermédio dos laços matrimoniais.
O que esperar como resposta de uma donzela da alta nobreza às súplicas de seu
pretendente? O reconhecimento de suas qualidades? Ou ainda a elevada posição social que
este ocupava, tão importante quanto a sus própria? Os gestos femininos, lembremos, não
estavam presentes apenas na linguagem corporal elaborada pelas mulheres da época, o que
seria a palavra, senão uma expressão poderosa daquilo que pensavam, desejavam ou mesmo
desprezavam? Era esperado das grandes damas medievais um refinamento, cortesia e
educação que fossem condizentes com o degrau que ocupavam nessa sociedade altamente
hierarquizada. Logo, a resposta da donzela ao seu pretende assim deveria obedecer a tais
elementos. Quando findada os lamentos e súplicas do senhor, ela lhe responde:
Embora vossas palavras sejam marcadas pela dignidade e pela profundidade e pela
profundidade, atingindo o limite extremo do refinamento em amor, vou esforçar-me,
na medida de minhas capacidades, por dar-lhes resposta apropriada. [...] Vós me
exortastes a tentar agir de tal maneira que meus atos possam aumentar meus méritos
e os dos outros; isso me enche de alegria, pois sempre tive a intenção de me
comportar assim. Pois sei bem, como afirmastes, que as mulheres dever ser móbil e
origem de todos os bens; devem, portanto, portar-se bem com todos os homens, dar-
lhes cortês acolhida, dizer palavras que coadunem com sua condição, também
precisam incitar claramente todos os homens à prática da cortesia, a evitar tudo o
que se assemelhe a trivialidade, e a não ter um senso de propriedade que possa
macular-lhes a reputação. Mas sentir amor por alguém é cometer grave ofensa
contra Deus, e para muitos, é expor-se ao risco de morrer. Ademais, parece que o
amor leva os que o sentem a sofrer inúmeros tormentos, reservando-lhes torturas
diárias e incessantes. Que bem poderíamos encontrar na ofensa ao esposo celeste e
ao próximo, sabendo-se que aqueles que assim agem expõem-se ao risco de morrer e
são atormentados por torturas ininterruptas? (CAPELÃO, 2000, p. 142)
Gentilmente, ao mesmo tempo que o agradece por suas palavras e elogios, a donzela
ao mesmo tempo externa seu pensamento sobre os perigos e infortúnios do Amor. É claro seu
posicionamento quanto à prática, notadamente quando o associa a uma ofensa contra Deus,
haja vista o pensamento na futura união dos corpos no ato sexual, sempre propenso à
liberação dos mais primitivos instintos do ser humano. Como condiz sua posição, a donzela
exorta os deveres e qualidades que o sentimento amoroso desperta nos homens, guiando-os
em direção ao caminho da honra, da distinção e das qualidades inerentes e esperadas da
aristocracia. Ademais, aponta o papel destinado às mulheres dentro dessa lógica construtiva
dos relacionamentos amorosos, deixando clara a função objetiva das mulheres de serem as
principais agentes e prêmios desse sentimento despertado nos homens.
78
Ilustração presente no Livre du couer d’Amour épris [Livro do coração comovido pelo amor, em tradução
livre], demonstrando a captura dos corações apaixonados pelas donzelas alegóricas do Desejo (em
vermelho) e Misericórdia (em azul). Escrito em 1457, a obra é um romance alegórico escrito por Renato
de Anjou (1409-1480), duque de Anjou, conde da Provença, rei de Nápoles e Jerusalém. Elaborado
duplamente em verso e prosa, o texto tem caráter alegórico e narra a busca de amor do cavaleiro Coração
que, em um sonho, parte com Desejo em busca de sua senhora, Misericórdia. MS fr 24399, f. 122v, Paris,
Bibliothèque Nationale de France. Fonte: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b60005361/f352.item.>.
Acesso em: 21 fev, 2019.
Em todas os seus lais, a figura feminina tem papel central no desenvolvimento das
narrativas. Central, porém, não principal. Paradoxalmente, o desenvolvimento das
personagens mulheres na obra de Marie de France atua sempre em direção na construção e
aperfeiçoamento dos personagens masculinos, em sua maioria os personagens principais de
suas histórias (MACEDO, 2014; GILBERT, 2015).
Basta ver a coletânea de lais conhecidos pelo nome que sobreviveram pelos
manuscritos compilados entre os séculos XII e XIII: Lanval, Eliduc, Milün, Guigemar, Yönec,
dentre outos, todos personagens masculinos que dão título às suas histórias, jovens cavaleiros
representados em suas aventuras em busca de fama, glória e claro, amor.
Em seu Lanval, Marie narra a história do jovem que dá nome ao lai, sem, porém,
deixar de lado toda a construção objetiva dos papeis femininos que levaram à construção e
desenvolvimento do herói. Cavaleiro juramentando da corte e Artur, servo leal e fiel de seu
rei, o jovem é preterido por seu senhor em uma das várias celebrações que Artur fizera para
celebrar os feitos em batalha e paz no reino. Embora nascido de uma alta linhagem nobre,
Lanval foi esquecido pelo rei, não sendo agraciado por suas grandes façanhas em beneficio da
paz do reino de Artur.
Desgostoso de sua situação, o jovem deixa a corte do rei e parte em busca de uma
jornada pessoal para encontrar um verdadeiro objetivo para sua vida. Em uma parada para
descansar em um florido campo, Lanval depara-se com duas lindas donzelas que vêm em sua
direção:
80
Quando Lanval chega até a tenda de sua ansiosa anfitriã, depara-se com uma mulher
linda, utilizando-lhe apenas uma veste translúcida que não lhe ocultava seus atributos
naturais: face, pele, seios, todos alvos, demonstrado a pureza e o simbolismo que uma mulher
de alta posição deveria possuir. Sentando ao lado da donzela em sua grande cama, o jovem
atentamente procura ouvir o que aquela bela mulher deseja dele:
Ouvindo tais palavras, Lanval regozija-se por, enfim, sentir-se valorizado graças às
suas qualidades. Decerto, sua fama e seus feitos teriam sido levados até as terras dessa dama
tão bela, e logo ela em pessoa quis conhecer o autor de tais façanhas. O jovem então aceita o
cortejo da dama, e ele mesmo responde-lhe que irá aceitar de bom grado a proposta feita por
51
No original: “They were advancing straightaway / just up to where the young knight lay. / Now courteous
Lanval rose to greet / the women, got up to his feet. / First they saluted the young man; / and then their message
gave to him. / ‘Sir Lanval, our own demoiselle, / so worthy, so wise and beautiful, / has sent us here to find you
thus; / she bids you come to her with us. / We shall conduct you safely there, / for the pavilion is quite near.’”
52
No original: “Sir Lanval, fair friend,’ the damsel said / I’ve come for you, I’ve come from far / I’ve left my
land, to seek you here. / If you are courtly, wise and brave, / joy beyond measure you shall have, / greater than
emperors or kings - / for I love you above all things.”
81
ela, pois nada o faria mais feliz do que cumprir aquilo que fora solicitado, e assim, ambos se
entregam ao amor, consumado o sentimento ali mesmo na tenda.
Após o ato, a dama promete a Lanval que todos seus desejos seriam realizados, e que
ele teria os maiores e mais belos presentes do mundo ao seu dispor. Com uma condição: que
não revelasse a ninguém o que ali acontecido entre os dois. Caso o fizesse, perderia a amante,
os favores e todos os prazeres que ela havia prometido. Jurando obedecer a seu pedido,
Lanval se une mais uma vez à sua amada em amor, selando assim o laço que estabeleceram
sob aquela mesma cama.
Deixando a companhia de sua dama, Lanval continua sua jornada até o ponto em que
é reconhecido por seus antigos pares cavaleiros, que estavam acompanhando a rainha
Guinevere em uma de suas visitas à cidade. Envergonhados por terem esquecido de Lanval
nos festejos anteriores, logo o convidam para celebrar junto a eles o novo período de paz do
reino. Prontamente, os cavaleiros e Lanval juntam-se às damas de companhia da rainha, para
comerem, dançarem e ser divertirem no espaço que fora reservado aos membros da corte.
Notando que Lanval era o único a não desfrutar das celebrações e da companhia de
suas damas, a rainha aproxima-se do jovem e de súbito lhe diz:
Lanval, que até o momento estivera completamente desconfortável por estar longe de
sua amada, desejoso de provar novamente de seus prazeres, mantém firme seu compromisso,
e logo responde a rainha:
53
No original: “Dear Lanval,’ said queen Guinevere, / you are much honored and held dear - / you may possess
my love entire! / Speak to me! Tell me your desire! / Freely I give you my druerie. / you must rejoice in taking
me!
82
Ferida em seu orgulho, a rainha calunia o jovem cavaleiro por tê-la desprezado.
Aqui, exemplificam-se mesmo na obra de Marie, as características negativas imputadas às
mulheres no medievo, como o desdém, a vaidade e principalmente, a mentira. Guinevere
acusa lanval de buscar a companhia de homens, ou seja, acusa-o de sodomia, pecado
gravíssimo dentro da estrutura religiosa que cercava o Ocidente medieval. A falta de
Guinevere demonstra ainda uma característica importante perpassada na literatura do período,
a dupla fragilidade feminina.
Após ser rejeitada por Lanval, vai até seus aposentos e põe-se a chorar. Quando
Artur encontra sua esposa em tal estado de tristeza, a indaga por qual motivo está chorando. A
rainha, por sua vez, clama que foi cortejada por Lanval, e quando negou suas investidas, o
cavaleiro a humilhou publicamente perante todos os que ali estavam presentes. Mentirosa,
ardilosa, humilhada, frágil. Ao mentir para Artur e acusar injustamente Lanval, Guinevere
demonstra mais uma vez a imagem de uma mulher difícil, trapaceira, ao ponto que a autora
faz questão de descrever que às características negativas atribuídas ao feminino podem existir
mesmo na alta camada da sociedade. De fato, “A mulher é enganadora por ser fraca. Fragilis,
[...] esse é o traço derradeiro que caracteriza sua natureza. Frágil, mas terna também, capaz de
54
No original: “Lady,’ said Lanval, ‘let me be!’ / I care not for your druerie. / I’ve served my king well, kept my
faith - / I’ll never compromise my oath! / No to your love, dame, no’s the word - / I will not wrong my sovereign
lord!”
55
No original: “ ‘Lanval’, she said, ‘I know, I sense / you do not care for dalliance; / but it is often rumored,
sire, / for women you have no desire! / But youths and squires, well-trained young men / You seek out; you
disport with them. / Oh, coward! Boor! Unnatural, / your service to my lord Lanval!”
83
derreter-se.” (DUBY, 2013, p. 110), como bem o fez a rainha quando ofereceu seus favores a
Lanval.
Entretanto, mesmo tal capacidade de amar o outro acima de todas as coisas terrenas –
pois o verdadeiro amor, o amor Divino, suplanta quaisquer outras necessidades
(CLARAVAL, 2010) – pode ser tida como uma fraqueza, já que “Apesar de tudo que há no
feminino um valor, essa pulsão cuja motivação está na carne e que leva a amar” (DUBY,
2013, p. 110).
Não somente nos lais do século XII que as donzelas são demonstradas enquanto
transformadoras ou manipuladoras dos destinos dos homens. O roman medieval, gênero
literário discutido no capítulo anterior, foi vetor essencial de propagação dos ideais corteses
na aristocracia medieval, representando nas heroínas que dividiam as linhas históricas com
56
No original: “King, I loved thy vassal. See, / there he stands; Lanval, it is he! / Here in thy court he stands
accused; / Lanval must not be here abused / for what he spoke; thou, King, must know / the queen was wrong; it
was not so, / he never sought her love at all!”
84
O primeiro romance arturiano composto por Chrétien de Troyes, Érec et Énide [Erec
e Enida], datado por volta de 1170, coloca em plano a jornada do protagonista Érec, dividido
entre seus deveres enquanto cavaleiro e seu amor por Énide. Durante todo o romance, o papel
de Énide é primordial. E temos aqui, um dos primeiros exemplos em que a importância da
personagem feminina é tão grande ou até de maior importância que a sua contraparte
masculina (KIBLER, 2004).
Ora, dentre todos os romances arturianos, Érec et Énide é o único a compartilhar no título o
nome das duas principais personagens da história, e não por acaso, tudo o que se passa no
romance é realizado para Énide e por conta dela. As ações de Érec são estabelecidas de modo
a sempre representar a estrutura corrente de um roman cortês, focando demasiadamente no
retrato da mulher idealizada, quase que intangível e que concentra em si todas as maravilhas
da criação divina:
[...] nunca houve uma só criatura tão bela no mundo. Em verdade, devo dizer que
Isolda, a loura não possuía tão dourado cabelo, pois comparada a esta donzela ela
nada era. Sua face e sua testa eram belas e mais brilhantes que um lírio; contrastando
maravilhosamente com a alvura, sua face era iluminada por uma cor crescente e
fresca que a natureza tinha lhe provido. Seus olhos brilhavam com uma intensidade
que lembravam duas estrelas; nunca Deus fez nariz tão belo, ou boca ou olhos. (DE
TROYES, Chrétien, 2004, p. 42, tradução minha)57
O autor procurou demonstrar toda a carga simbólica que a primeira noite de um casal
recém-casado possuía no período medieval. Em seu leito privado, lugar dos segredos, da
intimidade individual de cada cônjuge (RÉGNIER-BOHLER, 2009), ambos, Érec e Énide
compartilham seus corpos como selamento final do contrato sagrado do matrimônio.
Ademais, para Énide, a união carnal com seu esposo lhe conferiria um novo status social: esta
deixaria sua condição anterior de donzela e passaria a ser uma dama, uma senhora:
57
No original: “[...] never was such a beautiful creature seen in the whole world. In truth I tell you that Isolde the
Blonde had not such shining golden hair, for compared to this maiden she was nothing. Her face and forehead
were fairer and brighter than the lily-flower; contrasting marvelously with the whiteness, her face was
illuminated by a fresh, glowing colour that Nature had given her. Her eyes glowed with such brightness that they
ressembled two stars; never had God made finer nose, mouth, nor eyes.”
85
donzela para trás; na manhã, ela era uma nova dama. (DE TROYES, 2004, p. 63,
tradução minha)58
Atingindo este novo patamar, Énide distingue-se das demais damas e donzelas da
corte de Érec, provando-se cada vez mais importante, refinada, educada e bem-querida por
todos ao seu redor. Tanto que ao observar seu constante progresso, Érec não deseja outra
coisa senão a companhia de sua esposa, o que é o início para que negligencia suas outras
tarefas cavaleiro e senhor (DE TROYES, 2004). Entrando em uma espécie de crise identitária,
o jovem cavaleiro planeja uma nova jornada de autoconhecimento, primeiro para provar ser
digno de uma vez por todas do amor de Énide, segundo, para provar a si mesmo ser capaz de
conciliar os deveres de esposo e cavaleiro.
Início ilustrado do roman retirado de um manuscrito da segunda metade do século XIII (c. 1285), de
autoria de Aymon de Varennes. MS fr 1376 (c. 1285-1315), f. 95r.
Fonte: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b10549431k/f197.item.> Acesso em: 22 fev, 2019.
Paradoxalmente, Énide encontra-se no seio de toda essa querela. A dama se culpa por
ter afastado o marido de seus deveres, pois há tempos ouvira boatos na corte que Érec havia
se tornado fraco e relapso por não se interessar pelos assuntos tipicamente masculinos da
época, como a caça, as justas e a guerra em si. Ora, se contestada a virilidade ou esquecimento
58
No original: “The eyes, which channel love and send message to the heart, renewed themselves with looking,
for whatever they saw greatly pleased them. After the message from the eyes, came the sweetness, worth far
more, of the kisses that bring on love; they both sampled that sweetness and refreshed their hearts within, so that
with great difficulty they drew apart. Kissing was their first game. The love between the two of then made the
maiden more bold: she was not afraid of anything; she endured all, whatever the cost. Before she arose again,
she had lost the name of maiden; in the morning she was a new lady.”
86
dos deveres de um homem, por que não apontar como razão principal para isso a influência de
uma mulher?
Érec é impelido por um desejo pessoal de provar a si mesmo e à esposa que poderia
ser um bom combatente tanto no campo das armes (armas) como na seara do amors (amor).
Na lógica do Ocidente medieval, às mulheres casadas eram destinados o serviço de retidão
moral e o cuidado doméstico. Logicamente, dentro da estrutura privada das cortes e do leito
conjugal, as pulsões e as tensões sexuais que permeavam e teimavam em controlar os corpos
dos cônjuges, eram deixadas em um segundo plano, embora coubesse ao homem, e neste caso
específico, ao senior (senhor), estabelecer as diretrizes que deveriam ser obedecidas pela
mulher.
Qual o papel das esposas? Mesmo das grandes senhoras? É preciso educar, doutrinar
e dominar os corpos, pois mesmo sexo conjugal, se feito em demasiada intensidade e
frequência poderia levar ambos os esposos à perdição de suas almas. Logo:
O que teria acontecido à Énide e Érec, foi senão um abuso dos prazeres conjugais.
Embora jovem dama tenha cumprido exatamente sua função de esposa obediente, dedicada e
sempre presente para servir seu marido. Mesmo representada como um modelo exemplar de
virtude e retidão, Chrétien de Troyes busca ainda ressaltar em seu roman que mesmo uma
mulher tão nobre pode ser a causa da desgraça de um homem.
Tomada pelo desespero dos rumores e das notícias de difamação da honra de Érec,
Énide diz ao esposo aquilo que a atormenta, além de assumir inteira culpa pela desonra do
marido:
Por todo o reino todas as pessoas – os louros, os morenos, os ruivos – estão dizendo
que é uma grande vergonha que tenhas deixado de lado tuas armas. Tua reputação
declina-se constantemente. Antes, todos costumavam dizer que não havia no mundo
melhor ou mais bravo cavaleiro; teu igual não se encontrava em lugar algum. Agora
todos o ridicularizam, velhos e jovens, nobres e camponeses; todos chamam-no de
relapso. Acreditas em como me sinto mal ao ouvir todos falarem de ti com tanto
escárnio? Entristeço profundamente quando eles falam, e mais ainda quando põem a
culpa sobre mim. Que eu seja a culpada fere-me, principalmente, e todos bradam
87
que é porque o lacei e capturei que estás perdendo teu renome e interesse por
qualquer coisa. (DE TROYES 2004, p. 68, tradução minha)59
Durante três ocasiões Énide desobedece ao pedido de Érec. Mas em todas elas a vida
de seu esposo correu grave risco, e não fosse por seus avisos manifestados – e silenciosos –
Érec não teria sobrevivido às provações. Conforme tece sua narrativa, Chrétien de Troyes
coloca sua protagonista em uma situação de extrema fidelidade ao esposo, embora
representada por uma explícita sugestão de adultério e uso negativo dos atributos femininos.
À certa altura de sua jornada, o casal é convidado por um conde para cear em sua
propriedade. Invejoso com a beleza e qualidades de Érec, e tomado de desejo por Énide, o
conde logo trama para assassinar o jovem cavaleiro e reclamara para si a bela dama. Logo,
aproxima-se de Énide, cortejando-a e expondo suas verdadeiras intenções:
Tua beleza merece a mais alta honra e nobreza. Eu faria de ti a minha senhora, caso
fosse de seu agrado e prazer; serias minha amada e senhora de todas as minhas
terras. Como fiz tua corte com meu amor, não deves me rejeitar. É claro para mim
que teu senhor nem a ama e nem a estima; terás um senhor apropriado se
permanecer comigo. [...] Não me julgas merecedor do teu amor, minha senhora? És
muito orgulhosa! Nenhuma súplica ou compensação farás tu aceitar aquilo que
peço? De fato, é verdade que quanto mais se implora e estima uma mulher, mais
desdenhosa ela se torna; mas quanto mais um homem a maltrata e humilha, mais
desejosa ela se torna. Em verdade, juro a ti que se não fizeres o que desejo, espadas
serão desembainhadas. De um jeito ou de outro, terei o teu senhor despedaçado, bem
em frente aos teus olhos. (DE TROYES, 2004, p. 78, tradução minha)60
59
No original: “Throughout this land all people – the blonde, the brunette, the readheads – are saying that is a
great shame that you have laid down your arms. Your renown has greatly declined. Previously everyone used to
say that there was no better or more valiant knight know in all the world; your equal was nowhere to be found.
Now everyone holds you up to ridicule, young and old, high and low; all call you recreant. Do you believe it
does not distress me when I hear you spoken of scorn? It grieves me deeply when they speak so, and it grieves
me even more that they place the blame on me. That I am blamed for this grieves me particularly, and everyone
says it because I have so bound and captured you that you are losing your renown and your concern for anything
else.”
60
No original: “Your beauty deserves the highest honour and nobility. I would make you my lady, were it
pleasing and agreeable to you; you would be my beloved and mistress all over my land. Since I deign to court
you with my love, you must not reject me. It is obvious to me that your lord neither loves nor esteems you; you
will have a proper lord if you remain with me. […] Don’t you think me worthy of your love, my lady? You are
too proud! Would neither praise nor supplication make you do what I wish? It is indeed true that the more one
begs and praises a woman, the more contemptuous she becomes; but the man who shames and mistreats her
often finds her more compliant for it. Truly, I promise you that, if you do not as I wish, swords will be drawn.
88
Ouvindo tal cruel ameaça, Énide rapidamente elabora um plano de modo a manter a
vida de seu amado em segurança, pois até o momento, Érec não desconfiava das intenções do
conde. Receosa de que sua reação ao pedido do conde alertasse seu marido e revelasse a trama
antes do momento certo, a dama responde ao conde dizendo-lhe para se acalmar, pois o estava
apenas testando para saber a real intensidade de seu desejo por ela. Como uma forma de
ganhar tempo para contar a Érec sobre as intenções de seu anfitrião, ela pede ao conde que
espere até o outro dia, quando ambos descansados poderiam ter um combate em condições
iguais pela disputa dela mesma:
Pode tomar-me como tua; sou tua e é isso que desejo. [...] Espere até a manhã,
quando meu senhor irá desejar levantar-se; então poderás aproveitar para feri-lo sem
responder por traição ou covardia. “Sir”, ela disse, “acredite em mim! Não sejas tão
ansioso. Envie teus cavaleiros e homens-de-arma para me raptarem amanhã e
tomarem-me à força; meu senhor, que é muito orgulhoso e bravo, desejará me
defender. Quando o tiveres sobre alcance, capture-o, machuque-o ou então corte sua
cabeça. Vivi esta vida por muito tempo; não tenho apreço algum pela companhia de
meu senhor e não estou procurando esconder tal fato. Decerto, eu gostaria de te
sentir nu ao meu lado na cama. Já que estamos de acordo nisso, tu és assegurado do
meu amor. (DE TROYES, 2004, p. 79, tradução minha)61
Quais armas Énide utilizou para mentir ao conde e ganhar tempo para salvar seu
esposo? Primeiro, a dissimulação. A dama utiliza-se dos seus atributos físicos para acalmar a
ira do conde, prometendo-lhe devoção total e irrestrita quando este matasse Érec. Em
segundo, mente ao falar que não ama seu esposo, nem sente prazer quando está em sua
companhia. Ora, às mulheres no medievo Ocidental, e à literatura pode muito bem representar
tal realidade, cabia lutarem com os meios de combate à sua disposição. Qual instrumento mais
poderoso do que o próprio corpo? (BLOCH, 1995).
Rightly or wrongly, I shall have your lord slain forthwith, right before your very eyes.”
61
No original: “You can take me as your own; I am yours and that is what I wish. […] Hold back until morning,
when my lord will wish to rise; then you will be better able to harm him without incurring blame or reproach.
‘Sir’, she said, ‘Believe me! Don’t be so anxious. Send in your knights and your men-at-arms tomorrow and
have me taken by force; my lord, who is very proud and courageous, will want to defend me. Whether in earnest
or in sport, have him taken and wounded or have his head cut off. I have led this life too long; I have no liking
for my lord’s company and I am not seeking to disguise the fact. Indeed, I should already like to feel you naked
beside me in a bed. Since we have agreed on this, you are assured of my love.”
89
Por que não, dar voz, corpo, e vazão às personalidades que marcaram a nova forma
erudita de comportamento aristocrático? Se houve algo a ser ensinado, essa mesma literatura
do divertimento, por sua vez, também atuou como instrumento pedagógico de valorização dos
costumes cortesãos.
Logo, faz-se necessário apresentar por quê, quando, como e quem serviram de base
para tal empreendimento. Portanto, ao falar sobre tais mudanças estruturais, continuamos na
literatura para explorar devidamente quais caminhos podem ser desbravados e apresentados
sobre a figura feminina no período medieval. Hora de falar sobre rainhas e donzelas, seus
segredos, paixões, desejos e amores.
90
Há muito que conto de Tristão e Isolda ecoa no imaginário popular como um dos
exemplos notoriamente reconhecidos de uma narrativa literária que abordou desde aspectos da
vida cotidiana aristocrática no Ocidente medieval até a temática do amor, sendo esta última
uma de suas características mais marcantes.
Nela, observa-se a seguinte trama: Tristão é sobrinho do Rei Mark da Cornualha, que
em busca de uma esposa para conceber um herdeiro ordena ao jovem que vá em busca de uma
esposa para, assim, assegurar sua descendência. Tristão viaja até a Ilha da Irlanda e após uma
série de eventos, acaba por ganhar a mão da princesa Isolda em casamento no nome de seu tio
e senhor (BEROUL, 1970).
Não há como traçar uma origem definitiva da lenda, visto que mesmo a historiografia
e boa parcela do material produzido acerca do conto ainda não foram capazes de delimitar
exatamente um texto, ou um conjunto de textos, que ligaria a história de Tristão e Isolda a
uma matriz textual definitiva. Por sua vez, nos dispomos de vestígios linguísticos, culturais e
literários existentes dentro do corpus documental existente sobre o conto dos jovens
amantes.62
Sobre o conteúdo da lenda, seus autores e versões, é sabido que o registro mais
antigo do conto está preservado em um único manuscrito datado da segunda metade do século
62
Mesmo contando com uma origem “difusa”, é possível encontrar possíveis referências na literatura medieval
de língua gaélica e galesa, ramos linguísticos pertencentes a uma matriz indo-europeia originária do conjunto de
tribos que habitaram grandes porções da Ilha da Grã-Bretanha (Escócia e País de Gales) e da Ilha da Irlanda que
também possuíam uma matriz religiosa em comum: os povos celtas. Em um primeiro momento, e por intermédio
principalmente do testemunho oral, essas origens celtas foram gradualmente se transmutando e se incorporando à
sociedade cristã existente no Ocidente medieval, passando a conter no seu núcleo narrativo características
reinterpretadas e adaptadas para o ambiente nobiliárquico que irrompeu como sendo o centro cultural e de
patronato de uma “literatura” direcionada ao entretenimento de seus consumidores.
91
XIII63, contendo o poema em verso Le Roman de Tristan. Com cerca de 4500 versos, tal
poema foi copiado do original do século XII, cuja autoria é atribuída ao poeta normando
Béroul que o compôs em francês arcaico entre 1160-1170. Embora incompleto (o manuscrito
não contém um “início” e “final” bem delimitados), observa-se no poema de Béroul um dos
primeiros registros – escritos – da história de Tristão e Isolda no Ocidente medieval.
Seguindo a trilha deixada pelos versos de Béroul, outros autores acabaram por criar
suas próprias versões para o conto dos dois amantes, como é caso de Thomas da Inglaterra,
poeta anglo-normando e contemporâneo de Béroul, que teria composto seu poema entre 1155-
1170, também em francês arcaico.64 Tal obra também se encontra em estado fragmentário,
contendo cerca de 10 fragmentos de texto em seis manuscritos preservados datando do século
XIII.
Além de Béroul e Thomas, outras três versões da lenda foram compostas no século
XII, servindo de base para os posteriores escritos que tomaram estas obras anteriores como
inspiração e sustento em suas respectivas narrativas. São elas: o Tristrant de Eilhart von
Oberg, escrito por volta de 1185 em alto-alemão médio; o La Folie Tristan [A loucura de
Tristão, em tradução livre], de autoria anônima, escrito em torno de 1175 e preservado em um
manuscrito anglo-normando da segunda metade do século XIII 65; e por fim, o Tristan en
Prose [Tristão em Prosa], cuja finalização da obra deu-se apenas na centúria seguinte, entre
1230-1235.
63
O MS B.N fr. 2171, manuscrito conservado na Biblioteca Nacional Francesa (BnF). Disponível em:
<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b9058945v/f3.image>. Acesso: 05 set, 2018.
64
A obra de Thomas, assim como a de Béroul, é fragmentária, restando apenas 6 manuscritos contendo o poema
original. Um destes manuscritos é o MS Fr. d. 16, encontrando na Bodleian Library, em Oxford, Inglaterra.
Disponível em: < http://image.ox.ac.uk/show?collection=bodleian&manuscript=msfrd16>. Acesso: 06 set, 2018.
65
O manuscrito MS. Douce d. 6, atualmente, preservado na Bodleian Library, em Oxford, Inglaterra. O
manuscrito também contém em sua parte final um longo fragmento do romance de Tristão por Thomas da
Inglaterra, Disponível em: <http://image.ox.ac.uk/show?collection=bodleian&manuscript=msdouced6>. Acesso:
06 set, 2018.
92
A história dos jovens amantes é narrada sob uma ótica complexa que envolve “[...]
paixão e morte, amor, casamento e adultério; amizade, sexo e desejo [...]” (WISNIK, 2009, p.
221), onde a jornada de ambos é contada por intermédio de um narrador observador que tudo
presencia e descreve em seu texto. Ressalto aqui que mesmo no relato escrito e
posteriormente prosificado (século XIII), a narrativa não nega ou obscurece sua forma
original de transmissão: o relato oral:
Isolda, a Loura, como lhe atribui a lenda, é uma princesa do distante reino da Irlanda.
Tida como a mulher mais bela de sua época, os textos fazem incessantes menções aos seus
belos cabelos dourados e seus dotes físicos, mas acabam também por destacar suas qualidades
intelectuais e suas aptidões físicas para o canto, os números, as artes em geral demonstrando
um destaque até então inédito ao sexo feminino nos textos medievais:
[...] A instrução que ela já havia recebido estava em muito bom lugar. Ela já tinha
adquirido uma série de refinamentos e de maneiras polidas que necessitavam das
66
Esposa do senhor feudal. Senhora de fato e de direito – via matrimônio – da administração do ambiente
privado familiar. Por tal condição, muitas senhoras patrocinavam artistas e demais agentes culturais para
escreverem peças, cantá-las e dramatiza-las nas cortes senhoriais de seus maridos como uma forma de
autoafirmação de sua condição nobiliárquica e de poder.
93
Voltando à história do conto, Tristão acaba por conquistar a mão de Isolda numa
disputa na corte, e parte com a princesa de volta a seu reino natal para vê-la desposada com
seu tio, o rei. E é justamente no regresso à Cornualha que o destino fatídico dos amantes é
determinado. De início, a princesa achou que Tristão seria seu pretendente na disputa por sua
mão (e logo simpatiza com a ideia, visto os atributos que o jovem cavaleiro possuía), mas
quando este se apresenta como representante do rei Mark da Cornualha, Isolda a contragosto
cumpre seu papel de princesa e parte com Tristão ao reino de seu futuro esposo.
67
Traduzido de: “[...] The tuition she already received stood her in very good stead. She had previously acquired
a number of refinements and polite accomplishments that called for hands or voice – the lovely girl spoke the
language of Dublin, and French and Latin, and she played the fiddle excellently in the Welsh style. Whenever
they played, her fingers touched the lyre most deftly and struck notes from the harp with power. She managed
her ascents and cadences with dexterity. Moreover, this girl so blessed with gifts sang well and sweetly. She
profited from the accomplishments wich she had already acquired, and her tutor, the minstrel, much improved
her.”
94
Aqui abro espaço para analisar a conduta de Isolda e o sentimento nutrido em relação
à Tristão com a ideia de que o jovem cavaleiro havia conseguido permissão para desposá-la.
Durante a estadia de Tristão na Irlanda, o mesmo acaba por enfrentar diversos obstáculos e
como consequência de uma dessas aventuras, tomba ferido em combate. De início, Tristão
apresentou-se à corte do rei irlandês sob o nome de “Tantris” (anagrama para Tristan), como
meio de evitar perguntas sobre a sua origem e seus interesses no reino da Irlanda. Graças ao
carisma de Tristão, tanto a corte como o rei acolheram de maneira amistosa a presença do
jovem cavaleiro, de modo que ao saberem da situação crítica deste, logo se preocupam em
oferecer-lhe os melhores médicos e cuidados para que este recupere sua saúde.
Embora tratado com atenção e esforço, nada parecia fazer efeito sobre a condição
enferma de Tristão. Então, a rainha Isolda, homônima de sua filha, encarrega a jovem
princesa dos cuidados de Tristão. A princesa logo se afeiçoa ao jovem cavaleiro doente e faz
da cura de Tristão sua maior prioridade:
[...] Isolda continuou olhando para ele [Tristão]; Ela examinou todo seu corpo e sua
aparência com um interesse incomum. [...] Olhou-o de cima abaixo; e o que quer
que uma donzela pode requerer em um homem, tudo a satisfez muito bem, e ela o
elogiou em seus pensamentos. Agora que seu escrutínio tinha mostrado tal figura de
um ser tão magnífico e à sua maneira tão principesco, seu coração falou dentro dela:
"ó Senhor, fazedor de milagres, se há alguma coisa que tu criaste caiu de alguma
forma, seria este fracasso aqui, já que este esplêndido homem, a quem Tu dotastes
de tais perfeições físicas, teve de buscar o seu sustento vagando de terra em terra tão
precariamente". (VON STRASSBURG, 2004, p. 173, tradução minha)68
Como visto, Isolda acaba impressionada pelos dotes físicos de Tristão, e embora não
saiba até o momento que o jovem ali estava para reclamar sua mão em favor de outro homem,
acaba por julgá-lo digno de atributos “principescos”, levantando em seu âmago uma
possibilidade de envolver-se com Tristão futuramente.
Após isso, Tristão, já curado de suas mazelas, acaba por convencer Isolda de sua
missão e de seu objetivo em estar ali na Irlanda diante de sua presença. Embora use palavras
de palavras delicadas, o mesmo acaba por mentir à princesa, dando a entender que estava ali
por um desejo pessoal, guiado por seu coração e com o auxílio da natureza:
[...] - Certo dia, duas andorinhas voaram até Tintagel [Cornualha] para levar um
dos teus cabelos de ouro. Acreditei que vinham anunciar-me paz e amor. Por isso,
vim à tua procura, atravessando o mar. Por isso, enfrentei o monstro e seu veneno.
68
Originalmente: “[...] Isolde kept on looking at him; she scanned his body and his whole appearance with
uncommon interest. [...] She looked him up and down; and whatever a maid may survey in a man all pleased her
very well, and she praised in her thoughts. And now that her scrutiny had shown his figure to be so magnificente
and his manner so princely, her heart spoke within her. “O Lord, Worker of Miracles, if anything that Thou hast
created falls short in any way, there is a failure here, in that this splendid man, whom Thou hast endowed with
such physical perfections, should seek his livelihood wandering from land to land so precariously”.
95
Olha este cabelo costurado entre os fios de ouro do meu casaco; a cor dos fios de
ouro estragou-se; mas o ouro do meu cabelo não desbotou.
Isolda olhou para a grande espada e tomou nas mãos o casaco de Tristão. Vendo
nele o cabelo de ouro, ficou muito tempo em silêncio; em seguida, beijou seu
hóspede nos lábios em sinal de paz e vestiu-o com ricas roupagens. (BÉDIER, 2012,
p. 25)
Após tal episódio, é chegado o dia da revelação de Tristão e de sua identidade perante à corte,
quando este expõe a todos o motivo de sua ida até as terras irlandesas:
- Senhores, matei o Morholt [tio de Isolda], mas atravessei o mar para vos oferecer
uma bela compensação. Para resgatar o mal-feito, coloquei meu corpo em perigo de
morte e livrei-vos do monstro, e foi assim que conquistei Isolda, a Loura, a Bela.
Tendo-a conquistado, levá-la-ei, pois, na minha nau. Mas, para que pelas terras da
Irlanda e das Cornualhas não se espalhe mais o ódio, mas sim o amor, sabei que o
rei Marc, meu caro senhor, irá desposá-la. Eis aqui cem cavaleiros de alta linhagem,
prontos a jurar sobre as relíquias dos santos que o rei Marc vos manda vir paz e
amor, que seu desejo é venerar Isolda como sua cara mulher desposada, e que todos
os homens das Cornualhas servi-la-ão como sua senhora e rainha. (BÉDIER, 2012,
p. 48)
fato de que além da mentira contada sobre o seu fio de cabelo, Tristão “nem havia se dignado
a toma-la para si mesmo”, acabando assim por entrega-la a um outro homem. Enquanto
mulher, enquanto ser dotado de desejo e interesse, Isolda tem consigo uma pretensão não
atingida. Um interesse não correspondido. Ao ser, em sua visão, preterida por Tristão, Isolda
se sente ferida e desprezada por aquele homem cuja boa aparência, modos e virtudes haviam
despertado nela um vislumbre de um possível envolvimento.
Tal passagem acaba por ressonar com alguns pressupostos elaborados por André
Capelão em seu já mencionado Tractatus de Amore, onde o autor afirma que desde o primeiro
encontro entre dois amantes, há quatro estágios de envolvimento que estes devem obedecer de
modo a externar, nutrir e consumar o sentimento amoroso. Vejamos:
Com a lógica presente nesse excerto do Tractatus de Amore, temos que: I – Tristão
deu esperanças à Isolda ao dizer-lhe o conto sobre seu cabelo dourado e II – Isolda o beija nos
lábios como sinal de entendimento e paz, acreditando na história que Tristão havia lhe
contado. Até este momento, dentro da narrativa, ambos não chegaram ao terceiro e quarto
graus, graças à falta de Tristão perante Isolda. Já que a princesa logo demonstrou interesse e
foi acalentada com uma possível esperança de relacionamento com Tristão, tudo isso veio
abaixo quando da revelação dos ardis do jovem para conquista-la em nome de seu tio.
De modo a tentar resolver este impasse e preocupada com a felicidade de sua filha
em seu iminente matrimônio, a rainha da Irlanda, cujo nome também é Isolda, prepara um
filtro “mágico” à base de ervas e flores que misturado ao vinho é capaz de fazer nascer o amor
97
naqueles que o provam. Como presente no romance, a rainha delega a uma serva a tarefa de
fazer com que Isolda e o rei Mark - somente ele na condição de esposo - provem da bebida
visto que nas palavras da rainha “[...] a virtude dela é a seguinte: os que a beberem juntos
amar-se-ão com todos os seus sentidos e com todo o seu pensamento, para sempre, na vida e
na morte [...]” (BÉDIER, 2012, p. 29).
Durante o trajeto da Irlanda até a Cornualha, sedentos por conta do calor que fazia
durante todo o dia, Tristão e Isolda bebem do filtro (figura 6). O motivo? Um engano dos
jovens que pensaram em saciar a sede com vinho. Após sorver do líquido mágico, seus
destinos são selados: ambos estão apaixonados a partir desse instante.
Iluminura do manuscrito de Tristan en prose, datado do século XV (c.1470) Isolda e Tristão (ao centro do
navio) tomam do filtro mágico. À esquerda, o rei Mark aguarda-os para celebração do casamento com
Isolda. (MS 103, f. 8v, 5r, Paris, BnF). Fonte: < http://expositions.bnf.fr/arthur/grand/073.htm>. Acesso em: 17
abr, 2017.
maneira direta e concisa, acaba por resumir o desenrolar da história, projetando o cenário para
os futuros acontecimentos na narrativa a partir desse instante.
Graças ao efeito do filtro, Isolda começa a questionar-se mais uma vez sobre os
sentimentos dúbios em relação à Tristão:
Isolda amava-o. No entanto, queria odiá-lo: ele não a tinha desdenhado de modo tão
abjeto? Queria odiá-lo e não podia, irritada, em seu coração contra essa ternura mais
dolorosa que o ódio. [...] Infelizes quando separados, penavam, mais infelizes ainda,
quando, reunidos, estremeciam diante do horror da primeira declaração. (BÉDIER,
2012, p. 31)
Antes de chegarem ao seu destino, Isolda e Tristão resistem de início ao impulso que
os ronda, ao desejo de se entregarem à paixão, ao corpo e ao espírito um do outro. Vejamos o
diálogo entre ambos:
- Rainha – disse Tristão -, porque me chamar senhor? Não sou eu ao contrário, vosso
homem de lígio e vosso vassalo, para vos reverenciar, vos servir e vos amar como
minha rainha e minha senhora?
Isolda respondeu: - Não, tu o sabes; sabes que és meu senhor e meu amo! Sabes que
tua força me domina e que sou tua serva! Ah! Porque não avivei faz pouco tempo as
chagas do trovador ferido! Porque não deixei perecer no capinzal do pântano o
matador do monstro! Porque, quando estava no banho, não vibrei sobre ele o golpe
da espada já no ar! Ai de mim! Então eu não sabia o que hoje sei!
– Isolda, que é então que sabeis hoje? Que é então que vos atormenta?
- Ah! Tudo o que sei me atormenta, e tudo o que vejo. O céu me atormenta, e este
mar, e meu corpo, e minha vida!
Pousou o braço no ombro de Tristão. Lágrimas apagaram o brilho dos seus olhos,
seus lábios tremeram. Ele repetiu:
- Amiga, que é então que vos atormenta?
Ela respondeu:
- O amor por vós. (BÉDIER, 2012, p. 31-32)
Porém, numa noite diante de tamanho sacrifício, ambos sucumbem às suas pulsões e
terminam por satisfazer suas vontades mútuas, afinal “[...] nessas condições que culpa têm
aqueles que a paixão arrebata e quem pode razoavelmente condená-los? [...] (DUBY, 2013, p.
85).
Após consumarem seu amor, chegando assim ao quarto grau na escala de amor
segundo André Capelão, quando os amantes aportam à corte de Mark, é chegado o momento
das maiores provações. Ambos passam por uma sorte de contratempos que por hora os
aproxima cada vez mais, mas também os afasta, culminando até na separação do casal e no
consequente casamento de Tristão com uma outra Isolda, a de Mãos Brancas.
Impossibilitados de assumirem e desfrutar livremente de seu amor devido ao compromisso
99
vassálico e familiar de Tristão para com seu tio e o voto sagrado do matrimônio de Isolda com
Mark, a angústia, o medo e a até mesmo o espectro da morte ronda o pensamento dos
amantes.
A figura de Isolda, a partir deste instante narrativo, nos oferece um olhar mais
abrangente sobre os papéis desempenhados pelas mulheres no medievo ao ser retratada no
romance como sendo uma dama instruída, rainha e uma amante (DUBY; PERROT, 1993).
Isolda de antemão teve destaque nas várias obras cujo seu nome foi ressaltado como sendo
dona de uma beleza ímpar e singular, mas também pela profundidade que os autores buscaram
ao descrever sua personalidade e condutas:
Seja como for, não conheço nenhuma obra literária datada do século XII em que a
mulher ocupe tanto lugar na intriga, em que a personagem feminina seja descrita
com tanto discernimento, sutileza e, cumpre mesmo dizer, delicadeza, acariciada
pelas palavras que o autor escolheu. [...] Isolda é bela. É a mais bela daqui até as
fronteiras da Espanha. Seu rosto irradia luz: claridade dos olhos, brilho dos cabelos
dourados, frescor da pele. Do corpo, os poemas celebram a elegância, mas não o
mostram. Pudicos, não descrevem os detalhes de seus encantos, jamais. (DUBY,
2013, p. 81)
A jovem rainha, por sua vez, nunca se privou de viver toda a sorte de expectativas,
paixões e frustrações que sua relação proibida – e pecaminosa - com Tristão vieram a
desencadear. Isolda acaba por representar em suas ações e pensamentos o ideário feminino
medieval em que a dama anseia por estar na presença de seu amado, em que elabora planos de
encontro e lugares furtivos para consumar o amor entre os dois, além de suportar com
dignidade e altivez os augúrios de tristeza e saudade que a acometem na ausência do ente
querido e desejado.
Na condição de rainha, goza dos privilégios de sua posição, demonstrando por isso
um destaque maior à figura feminina em condições de poder graças a um status social elevado
na sociedade daquele período. Ao mesmo tempo, Isolda encarna um outro perfil feminino. O
da sofreguidão, da desconfiança e da solidão. Além da constante dúvida e medo de ter sua
relação com Tristão exposta perante ao rei e a todo reino. Isolda sofre por si mesma. Mas
também sofre por seu amado, caracterizando uma tensão que atravessa corporal e
espiritualmente tal como descrito e esperado das mulheres pecadoras que acabaram por ceder
às tentações do desejo e do prazer:
Isolda é rainha e parece viver em júbilo. Isolda é rainha e parece viver em tristeza.
Isolda tem a ternura do rei Mark, os barões a veneram, o povo lhe quer bem. Isolda
passa os dias em seus aposentos ricamente decorados e juncados com flores. Isolda
tem as joias nobres, os lençóis de púrpura e os tapetes vindos da Tessália, os
cânticos dos harpistas e os cortinados onde são lavrados leopardos, aleriões,
papagaios e todos os bichos do mar e das matas. Isolda tem seus vivos, seus belos
100
amores, e Tristão junto dela, à vontade, de dia e de noite; pois, assim como é
costume entre os grandes senhores, ele dorme no aposento real, entre os íntimos e os
fiéis. Isolda, no entanto, treme. Por que tremer? Não mantém ela secretos seus
amores? Quem suspeitaria de Tristão? Quem, pois, suspeitaria de um filho? Quem a
vê? Quem a espia? Qual a testemunha? (BÉDIER, 2012, p. 34)
Fácil é ver que o amor é uma paixão. Isto porque angústia nenhuma é maior que a
provocada por ele, pois o enamorado está sempre no temor de que sua paixão não
atinja o resultado desejado e de que seus esforços sejam baldados. Teme também o
falatório da multidão e tudo o que, de uma maneira ou de outra, possa
prejudicar o seu amor [...]. Uma vez correspondido o amor, as angústias não que
surgem não são menores; porque cada um dos dois amantes teme perder, pela
ação de um terceiro, aquilo que conquistou com tanto esforço; [...]. (CAPELÃO,
2001, p. 6-7, grifos meus)
A noção cortês para a arte de amar, nasceu dentro do seio aristocrático - como já
mencionado no capítulo precedente -, logo suas imbricações, desdobramentos e
representações mantiveram-se restritas por um longo tempo até familiarizarem-se com o
ambiente externo às cortes palacianas e posteriormente atravessarem as grandes amuradas
senhorias para chegarem à população comum como um todo. Tal movimento de expansão
teve início apenas no século XIV, mas para o objetivo desse trabalho o que importa de fato é o
caráter literário assumido por essas condições.
Isolda ordenou a morte de sua própria serva, pedindo inclusive que os servos
encarregados de realizar tal missão cortassem a língua de Brangien como uma última forma
de segurança. Desse modo, a serva não poderia contar e assombrar Isolda mesmo se voltasse
dos mortos, já que não teria como evocar e professar tudo aquilo que sabia sobre a conduta
delituosa da rainha. Após tal ordem, os servos levam Brangien para a floresta de modo a dar
cabo da tarefa. No entanto, acabam compadecendo-se da jovem serva e poupam sua vida. Em
102
Arrependida e abalada por ter ordenado tal coisa, Isolda reflete sobre sua decisão.
Havia agido por impulso, tomada pela loucura e pela febre que o amor por Tristão lhe
causava. Após lamentar-se pela suposta morte de Brangien, os servos então contam a rainha
que a serva estava viva e Isolda parte ao encontro de Brangien para suplicar-lhe o perdão por
tal atitude impensada. As reações de Isolda ao ordenar a morte de Brangien e ao saber de seu
suposto falecimento denotam – dentro da lógica literária do Amor Cortês – que o sentimento
nutrido pela rainha por Tristão a fazia cometer os atos mais impensáveis, porém, ela os
realizava como modo de proteger a si, seu amor e acima de tudo, seu amado. Nos
pressupostos cortesãos, tudo aquilo realizado de forma abnegada em prol do bem e da
segurança do ente amado, era perdoado não somente aos olhos do homem, mas também aos
de Deus. Ainda que o sentimento fosse demasiado proibido e pecaminoso, só quem poderia
julgá-los era Deus, pois não havia sido Ele o responsável por criar forma tão pura de
sentimento?:
[...] o amor Tristão e Isolda não os afasta de Deus – pelo contrário, já que Ele é
Amor e não importam os caminhos para atingi-lo. Dessa forma, negava-se o caráter
pecaminoso da relação extramatrimonial, valorizando-se apenas a intenção, a
sinceridade do sentimento, de acordo com a postura menos formalista da época [...].
Atitude aliás, presente na religiosidade popular, que via muitos milagres da Virgem
beneficiarem pessoas que haviam pecado, mas que lhe tinham uma devoção
genuína. (FRANCO JR, 1996, p. 143)
Não demorou até que a relação muito próxima de Isolda com o sobrinho fosse
assunto na corte, inclusive chegando até os ouvidos do rei os sussurros, as intrigas e demais
assuntos que envolviam sua rainha e seu amado sobrinho. O rei Mark, consumido pela
suspeita e ciúmes, bane temporariamente Tristão de sua corte, de modo que a ausência do
sobrinho se provasse um remédio eficaz contra as intrigas palacianas de sua relação com
103
Isolda. Apaziguado o coração do rei, este ordena que Tristão retorne à corte, mas seus barões,
com a ajuda de um anão feiticeiro, conseguem apanhar os dois amantes em flagrante graças a
uma artimanha bem elaborada:
Não havia mais escapatória ou ardil que desse cabo ao flagrante forjado pelos barões
do rei e pelo anão feiticeiro. Ao serem apanhados, Tristão logo suplica piedade ao seu tio.
Mas não por ele próprio, e sim à Isolda. Tristão é condenado à morte juntamente com Isolda
sem possibilidade julgamento. Cada um iria ser executado após o outro, não dando espaço ou
tempo para que viessem a se encontrar novamente diante de tudo o que já haviam feito nas
costas do rei. Chegado o dia da execução, Tristão é levado pela guarda real até o local de sua
morte. Enquanto percorre o caminho até seu suplício final, avista uma capela à beira de uma
montanha, e pede para fazer suas últimas preces e confessar seus pecados antes de morrer. Os
guardas, concedem à Tristão este último desejo, mas não contavam que o jovem cavaleiro
tentasse um último ardil para ver-se livre de seu trágico destino:
Deixaram-no entrar. Ele correu pela capela, transpôs a nave central, chegou à
vidraça da abside, segurou a janela, abriu-a e atirou-se... Antes essa queda que a
morte na fogueira, perante aquela assembleia!
Mas sabeis, senhores, que Deus lhe concedeu bela graça: o vento prendeu-se em
suas vestes, levantou-o e colocou-o sobre uma grande pedra ao pé do rochedo. A
gente das Cornualhas ainda chama essa pedra o “Salto de Tristão”. (BÉDIER, 2012,
p. 58)
Isolda logo sabe da fuga de seu amado, e regozija-se por Tristão estar a salvo e em
paz. É a vez da rainha de ir em direção ao seu fim iminente. Ao chegar na presença do rei, a
multidão logo grita por piedade e clemência para a rainha, graças à fama, ao prestígio e às
boas ações da rainha para com o povo. O rei determina que não haverá julgamento e nem
misericórdia, com Isolda sendo condenada de forma sumária à expiação de seus pecados pela
morte na fogueira. Contudo, a rainha é “salva” de última hora graças a um grupo de leprosos
que assistiam à sua condenação. Logo, o líder destes propõe ao rei Mark um castigo diferente
para Isolda:
- Sire, queres lançar essa mulher neste braseiro, é boa justiça, mas breve demais.
Este grande fogo tê-la-á queimado rapidamente, este grande vento depressa
espalhará suas cinzas. E logo que estas labaredas se apagarem sua pena estará
terminada. Queres que te ensine um castigo pior, de maneira que ela viva, mas com
grande opóbrio e sempre desejando a morte? Rei, queres?
O rei respondeu:
- Quero, sim, a vida para ela, mas com grande opóbrio e pior que a morte... Quem
me ensinar um suplício desses terá minha predileção.
- Sire, dir-te-ei meu pensamento em breves palavras. Vê, tenho ali cem
companheiros. Dá-nos Isolda, e que ela seja de todos nós! O mal atiça nossos
desejos. Se a deres aos teus leprosos, nunca mulher alguma terá tido pior fim. Vê,
nossos andrajos estão colados a nossas chagas, que ressumam. Ela que, junto a ti, se
regalava com ricos tecidos forrados de veiros, com as joias, as salas ornadas de
mármore, ela que se deliciava com os bons vinhos, com as honrarias, as alegrias
quando ela vir a corte dos teus leprosos, quando tiver que entrar sob nossos casebres
105
baixos e deitar conosco, então Isolda, a Bela, a Loura, reconhecerá seu pecado e terá
saudade deste belo fogo de espinheiros! (BÉDIER, 2012, p. 60-61)
O rei assente com a proposta feita e entrega Isolda às mãos do cortejo de enfermos. A
rainha é levada para fora da cidade pela mesma estrada em que Tristão encontrava-se
escondido após sua milagrosa fuga. Ao avistar sua amada na companhia dos leprosos, o
jovem prontamente os enfrenta para salvar e recuperar a companhia da rainha. Juntos mais
uma vez, Isolda e Tristão resolvem viver em fuga, estabelecendo-se na floresta mais próxima,
de modo a aproveitaram a companhia e o amor um do outro, longe das artimanhas dos barões
e das intrigas palacianas que por tanto tempo atrapalharam seu relacionamento.
A iluminura representa o encontro de Isolda com Tristão na floresta e o adormecimento do casal com a
espada separando os corpos, enquanto são observados pelo rei Mark. Iluminura do século XIII (c. 1275)
de um manuscrito parisiense do Roman de la Poire (MS Fr 2186, f. 5v, BnF, Paris). Fonte:
<http://expositions.bnf.fr/arthur/grand/079.htm.> Acesso em: 17 abr, 2018
106
O jovem cavaleiro sai para caçar, como o faz habitualmente, deixando Isolda aos
cuidados da cabana improvisada onde ambos estavam vivendo. O papel feminino delegado
aqui à rainha é o de dona de casa, provedora dos cuidados familiares e das tarefas domésticas.
Tristão é o reflexo masculino do homem provedor, que sai em busca do alimento para ele e
sua companheira. E o episódio é narrado da seguinte maneira:
Quando Tristão voltou da caçada, oprimido pelo calor sufocante, tomou a rainha em
seus braços.
- Amigo, onde estiveste?
- Fui atrás de um cervo que me deixou morto de cansaço. Vê como o suor escorre
dos meus membros, eu gostaria de me deitar e dormir.
Debaixo da choupana de ramos verdes, atapetada de ervas frescas, Isolda foi a
primeira a se estender. Tristão deitou-se depois dela e depôs a espada sem a bainha
entre seus corpos. Para a felicidade deles, conservaram suas roupas. A rainha
tinha no dedo o anel de ouro com as belas esmeraldas que o Mark lhe dera no dia de
suas núpcias; seus dedos tinham ficado tão magros que o anel mal se segurava.
Dormiam assim, um dos braços de Tristão passado pelo pescoço de sua amiga, o
outro jogado por cima de seu belo corpo, estreitamente abraçados; mas seus lábios
não se tocaram. (BÉDIER, 2012, p. 69, grifos meus)
Voltando ao episódio, o casal havia sido descoberto por um dos serviçais do rei que
fazia ronda habitual nas florestas de domínio real. Descobrindo o paradeiro dos amantes, o
servo logo pôs-se em direção à corte para avisar ao rei que os traidores estavam ali,
107
escondidos bem perto do castelo. Mark prontamente se colocou ao encalço dos amantes,
determinado de uma vez a pôr um fim nesta história que só lhe trouxera dor e humilhação:
São tais detalhes que permitem ao historiador buscar e trazer à tona aspectos ainda
obscuros sobre o pensamento e o imaginário medievais. Sabemos que o amor de Isolda por
Tristão é um amor adúltero, logo passível de condenação pelo clero e pela doutrina cristã
regente na sociedade feudal. Ao mesmo tempo, a lírica cortesão apelava constantemente ao
universo e à intervenção do elemento divino que protegeria os amantes de todos os sortilégios.
Ademais, “[...] Para o pensamento oficial cristão, o amor de Tristão e Isolda era
considerado culposo. Já que incestuoso, adúltero e perjuro. Havia ali, para a Igreja, um duplo
108
incesto.” (FRANCO JR., 1996, p. 140). Quais os crimes simbólicos do casal? Primeiro, o
“incesto” a qual os críticos, os clérigos e a doutrina cristã como um todo consideravam,
residia no parentesco entre Tristão e o rei. Tio e sobrinho. Logo, ao relacionar-se com Tristão,
Isolda estaria relacionando-se com um parente tão próximo quanto um filho de seu marido, e
esta, na condição de senhora, quase como uma mãe para Tristão.
O crime de adultério, em segundo lugar. Este talvez o mais óbvio. Ainda que o
romance trate a história trágica de como ambos se apaixonaram e consumaram seu amor, a
carga negativa cai sobre a figura feminina durante a maior parte da narrativa. Na condição de
adúltera, o crime de Isolda é logo determinado perante a lei dos homens e perante a lei de
Deus, já que a rainha deliberadamente partilhou seu corpo com mais de um homem mesmo na
condição sagrada e indissolúvel do matrimônio. Desse modo, o perfil feminino da mulher
promíscua e lasciva, acabou por cristalizar-se no discurso clerical que era contra a
disseminação das obras de caráter cortesão ao longo dos séculos XII e XIII.
69
Traição ou descumprimento dos deveres vassálicos, tratando-se do período medieval.
109
por proferir as sentenças e demais obrigações que a realeza possuía para com seus súditos
(figura 10):
Iluminura do manuscrito de Tristan umd Isolde, de Gottfried Von Strassburg e datado do século XIII (MS
BSB 51, f. 3, 5r, Baviera). Fonte: <https://www.wdl.org/pt/item/18407/view/1/77/>. Acesso em: 17 abr, 2018.
também de afrontar a petulância dos homens invejosos de sua influência no reino. Os barões
de Mark anunciaram ao rei:
Rei, ouve nossa palavra. Tinhas condenado a rainha sem julgamento, e fora um
crime abominável. Hoje a absolves sem julgamento: não é incidir no mesmo crime
também? Ela nunca se justificou, e os barões do teu país reprovam a vós ambos. É
melhor que lhe aconselhes que ela mesma peça o julgamento de Deus. Que lhe
custará, sendo inocente, jurar pelos ossos dos santos que nunca pecou? Inocente,
segurar um ferro em brasa? Assim o quer o costume, e por esta prova fácil estarão
para sempre dissipadas as suspeitas antigas. (BÉDIER, 2012, p. 87)
Isolda então diz ao rei que aceita o julgamento da ordália 70 de ferro, sob testemunho
do Rei Arthur e toda sua corte de cavaleiros. No dia marcado para a prova, Isolda valendo-se
de sua influência com a corte de Arthur, manda convocar Tristão para estar próximo ao local
onde seria julgada, este que estava afastado da corte de Mark devido à inveja de alguns
conselheiros reais, faz-se presente de modo seguro, ocultando sua identidade com um manto
vestido por leprosos. Chegando ao local, Isolda reconhece o amado mesmo por entre o
disfarce, e quando convoca a algum cavaleiro que a ajude a descer de sua montaria,
rapidamente Tristão a toma nos braços e a leva para onde estão o rei e as testemunhas:
A rainha, tendo suplicado a Deus, retirou as joias do pescoço e com as suas mãos
deu-as aos pobres mendigos. Desprendeu seu manto de púrpura e seu escapulário
fino, e deu-os; deu seu chintz e seu casaco e seus sapatos enriquecidos de pedrarias.
Conservou somente sobre o corpo uma túnica sem mangas e, com os braços e os pés
descalços, colocou-se à frente dos dois reis. Em volta, os barões contemplavam-se
em silêncio e choravam. Perto das relíquias ardia um braseiro. Trêmula, ela estendeu
a mão direita na direção das ossadas dos santos e disse: - Rei de Logres e vós, rei
das Cornualhas, e vós sires Gauvain e Ké e Girflet, e vós todos que sois minhas
testemunhas, por estes corpos santos e por todos os corpos santos que estão neste
mundo, juro que jamais homem algum nascido de mulher me teve em seus braços a
não ser o rei Mark, meu senhor, e o pobre peregrino que, ainda há pouco, se deixou
cair aos vossos olhos. Rei Mark, este juramento é adequado? – Sim, rainha, e que
Deus manifeste seu verdadeiro julgamento! – Amém! – disse Isolda. Ela aproximou-
se do braseiro, pálida e cambaleando. Todos mantinham-se calados, o ferro estava
em brasa. Então mergulhou seus braços nus na brasa, agarrando-a e depois, tendo-a
rejeitado, estendeu seus braços em cruz, com as palmas das mãos abertas. E cada um
viu que sua carne estava mais são do que ameixa tirada do pé de ameixeira. Então de
todos os peitos um grande brado de louvação elevou-se para Deus. (BÉDIER, 2012,
p. 92)
70
Também conhecida no período medieval como judicium Dei (juízo de Deus), foi um tipo de prova judiciária
utilizada para determinar a inocência ou culpa de um indivíduo por meio da participação de elementos naturais
(fogo, chuva, ventos, etc.). Seu resultado, favorável ou não, ao acusado era interpretado como uma decisão
divina e irrevogável.
111
muito especial da mulher/rainha, aquela que é astuta e que não se prende ou muito menos se
rende às malhas da rede da submissão masculina.
Se o perfil de Isolda foi analisado de acordo com os feitos, gestos e ações desta
personagem, pode-se observar um caráter feminino que ao menos tentou escapar da noção
cristalizada de “submissão” da mulher no mundo medieval. Embora o traço misógino e
antifeminista seja indissociável ao cenário cotidiano e à literatura no medievo, as ações de
Isolda, por sua vez, demonstram uma personagem específica – a rainha (senhora) – envolvida
nas diversas tramas concernentes à sua posição social dentro da aristocracia. As diferenças de
um estrato social para outro, sobretudo dentro do “universo feminino”, são perceptíveis à
medida que os grandes poemas, romans, lais e outras produções literárias destacam as
mulheres ricas, bem-nascidas e ocupantes de um lugar de destaque dentro da estrutura
hierárquica dos séculos XII e XIII no Ocidente medieval.
Embora grande parte dessas obras privilegiem tal grupo minoritário de mulheres, e
mais especificamente, as mulheres casadas, as donzelas, ou seja, mulheres prometidas em
casamento ou ainda solteiras, também são exploradas por essa mesma literatura e graças à sua
condição de nobreza – além da questão pré-matrimonial – as representações, estratégias e
sentimentos expressados por esse grupo de mulheres tornam-se passíveis de análise em
contraposição às suas contrapartes desposadas. Notemos, então, que:
Estas não são damas. Não o são ainda, vão ser. Donzelas, são capturadas pelo amor.
Por amor se tornam damas, e o amor, o belo amor, permanece. Essas duas imagens
de mulheres, em realidade, formam apenas uma; da primeira, simples esboço, a
segunda vem precisar os traços, avivar as cores. (DUBY, 2013, p. 100, grifo meu)
No caso do roman Cligès (c. 1176), este acabou por lançar em sua narrativa uma
jornada dupla de seus protagonistas: se por um lado o perfil masculino (representando pelo
jovem cavaleiro que dá nome à obra) mantém-se fiel e condizente com os pressupostos de
honra, altivez, elegância e cortesia propagados pelo ideal do Amor Cortesão, é no retrato da
donzela Fenice que as “malhas da submissão masculina” supracitadas “afrouxam-se” e saltam
aos olhos do historiador pelo papel determinante que a personagem assume dentro do próprio
roman.
Detalhe do início do roman Cligès em verso, presente no MS Français 1450, f. 188 v (c.1235-1245). Fonte:
<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8415202d/f386.image>. Acesso em: 30 jan, 2019.
Para uma melhor compreensão do enredo, ressalta-se que Cligès tem como narrativa
principal o conto de amor entre Cligès e sua dama Fenice, mas também narra mostra como
Alexandre e Soredamors, pais de Cligès, vieram a se conhecer. Um dos únicos romances de
Chrétien de Troyes a contar duas histórias de amor, Cligès distingue-se dos demais por
justamente ditar os tons que cada relação possui, focando se primeiramente na construção
narrativa da história dos pais do protagonista para enfim demorar-se na figuração do mesmo e
de sua própria aventura.
Logo, é durante os eventos ocorridos após o nascimento de Cligès que seu pai,
Alexandre, envolve-se em uma disputa dinástica como seu irmão Alis pelo trono de
Constantinopla, ocupado indevidamente por este último graças a um mal-entendido que
envolvia a falsa notícia da morte de Alexandre – Alis era o irmão mais novo, então o trono
pertencia por direito à Alexandre como herdeiro mais velho (DE TROYES, 2004, p. 151-154)
71
No original: “[...] there is no court in all world that is free of wicked counsel, and barons often stay from the
paths of loyalty in believing wicked counsel.”
114
Diante de tal trama, enfim somos expostos ao núcleo da narrativo do roman. Ora,
lembremos que no medievo a manutenção das linhagens aristocráticas fora assegurada pelo
matrimônio, e Alis, enquanto imperador do Oriente, desejava assegurar uma descendência que
carregasse o seu nome. Logo, quando Alis insiste que sua esposa e futura imperatriz seja “[...]
graciosa, bela, sábia, rica e nobre.” (DE TROYES, 2004, p. 155) 72, seus conselheiros tomam
como escolha óbvia a filha do imperador do Sacro Império Romano Germânico, pois essa era
“[...] tão bela que nenhuma donzela em toda Cristandade poderia rivalizá-la em beleza.” (DE
TROYES, 2004, p. 155)73.
Torna-se então claro o desejo de Alis em confirmar o matrimônio com uma donzela
que suprisse todas essas demandas. Desse modo, pode-se depreender que o papel feminino,
sobretudo das filhas das grandes linhagens aristocráticas, configurou-se em um perfil de “[...]
corpos dados, tomados, postos como reserva para a qualidade de seu sangue, postos de lado
quando não se podia tirar mais nada deles.” (DUBY, 2013, p. 146). Qual era, então, a
identidade da eleita por Alis? Chrétien nos dá a resposta:
A moça se chamava Fenice, e não sem motivo, pois assim como a fênix 74 é a mais
bela das aves e única de seu tipo, era Fenice, assim me parecia, sem igual em beleza.
Ela era um milagre e uma maravilha daqueles cuja Natureza jamais criaria
novamente. Embora minhas palavras jamais estejam aptas para a tarefa, não desejo
descrever seus braços ou corpo ou face ou mãos; mesmo que tivesse mil anos para
72
No original: “[...] the future empress of Constantinople must be graceful, beautiful, wise, rich and noble.”
73
No original: “[...] his daughter was so fair that no maiden in all Christendom could rival her in beauty
74
No original em francês arcaico a grafia do nome é “Fenyce”, um recurso linguístico que se aproxima de
“phénix”, ou seja, fênix, no francês moderno. Tal escolha de nome é simbólica devido à ação da donzela durante
o desenrolar do roman, como símbolo de resistência e sobretudo, ressureição.
115
viver e minha habilidade dobrasse a cada dia, ainda assim meu tempo seria em vão
tentando descrevê-la como ela realmente era. Sei que se tivesse tentado esgotaria
toda minha habilidade e gastaria todo meu talento, e meus esforços seriam em vão.
(DE TROYES, 2004, p. 156, tradução minha)75
[...] Cligès, por amor, lançou seus olhos secretamente sobre ela [...] Ele a olhou
ternamente, mas não notou que ela estava oferecendo-lhe uma troca justa: em
verdadeiro amor, sem enganação, ela ofereceu-lhe seu olhar e tomou o dele. [...] Ela
concedeu-lhe seus olhos e seu coração e ele, por sua vez, prometeu-lhe o seu. (DE
TROYES, 2004, p. 156-157, tradução minha)76
A força do contato visual e das promessas e juramentos silenciosos feitos pelos dois
amantes estão em consonância com os pressupostos estabelecidos no Tractatus de Amore
[Tratado do Amor Cortês] de André Capelão, embora Chrétien tenha escrito seu roman no
período entre 1170-1176. Entretanto, como autores contemporâneos – cujo auge de sua
produção teria sido situado entre 1180-1190 – não seria errôneo inferir que Chrétien tivesse
75
No original: “The girl was named Fenice, and not without reason, for just as the phoenix is the most beautiful
of birds an unique of its kind, so Fenice, it seems to me, had no equal for beauty. She was a miracle and marvel
whose equal Nature could never again create. Since my words would never be equal to the task, I do not wish to
describe her arms or body or head or hands; even if I had a thousand years to live and my skill doubled each day,
still my time would be wasted in trying to describe her as she truly was. I know that if I tried I would exhaust all
my skill and waste all my talent, and my efforts would be in vain.”
76
No original: “Cligès, for love, cast his eyes upor her secretly […] He gazed upon her most tenderly, but he did
not notice that she was offering him fair exchange: in true love, without deceit, she offered him her gaze and
then took his. […] She bestowed on him his eyes and her heart, and he in turn pledged his to her.”
116
tido contato com o Tractatus, visto que suas representações e retratos sobre as relações
amorosas vão ao encontro das ideias estabelecidas na obra.
Amor é uma paixão natural que nasce da visão da beleza do outro sexo e da
lembrança obsedante dessa beleza. Passamos a desejar, acima de tudo, estar nos
braços do outro e a desejar que, nesse contato, sejam respeitados por vontade
comum todos os mandamentos do amor. (CAPELÃO, 2000, p. 5-6)
Desse modo, a escolha por representar o vínculo afetivo entre Fenice e seu amado
por intermédio de uma troca de olhares ressoa perfeitamente com o objeto de estudo
desenvolvido até o momento. Se o Amor Cortês influenciou o desenvolvimento de uma
literatura sensível ao trato aristocrático das relações entre o masculino e feminino no medievo,
não nos esqueçamos que estamos lidando especificamente nesta pesquisa das mulheres.
A idealização das damas e donzelas medievais, imbuídas desse pano de fundo cortês,
refinado e elegante, acaba por ser também um retrato masculino, uma representação daquilo
que Georges Duby chamou de “Idade dos homens”, referindo-se à época dos romances,
poemas e canções medievais que buscavam apresentar tais temáticas. Ainda que obras de
ficção, e inseridas dentro do contexto específico de transformações socioculturais do Ocidente
medieval nos entre os séculos XII e XIII, tais obras e, principalmente, as mulheres ali
representadas não fogem ao fato de que são descritas, idealizadas, amadas, desprezadas e
sobretudo julgadas pelo raio de visão masculino. Fato ainda mais presente quando se fala do
período em questão.
Portanto, mesmo que Fenice não tenha vacilado diante do olhar de Cligès e por sua
vez o tenha retribuído com igual ou até maior intensidade, o que se pode e se deve apreender
de tudo isso é que “ ‘Os homens olham as mulheres. As mulheres se observam sendo olhadas.
Isso determina não só as relações entre os homens e as mulheres, mas também a relação das
117
mulheres consigo mesmas.’ ” (BERGER apud WOLF, 2018, p. 92), o que acaba por
demonstrar que a afirmação do crítico literário John Berger pode ser aplicada
independentemente do período temporal do qual se fala.
[...] ela estava sendo forçada a casar-se com alguém que não a traria prazer nenhum
[Alis, tio de Cligès], o que a deixava ansiosa e perturbada, e não sabendo quem
consultar acerca de seu amor [por Cligès] ela é deixada a sós com seus próprios
pensamentos e noites sem dormir. (DE TROYES, 2004, p. 154, tradução minha,
grifos meus)
Importante comentar que embora nutrindo paixões por Cligès graças ao encontro
silencioso mencionado anteriormente, Fenice não sabia qual a identidade de seu amado. Tal
característica de mistério em torno da figura do pretendente é utilizada nos romans medievais
como parte da jornada específica em torno da afirmação masculina de merecer o amor de sua
donzela/dama por intermédio da realização de feitos heroicos que façam o cavaleiro digno da
atenção, respeito e reciprocidade em relação à mulher cortejada. Por isso que o Amor Cortês
pode ser interpretado não apenas como um código de conduta da aristocracia medieval, mas
também com um jogo muito específico de sedução e comportamento amoroso.
Por desconhecer a identidade do amado, Fenice padece da aflição causada pelos seus
sentimentos por Cligès, descrevendo-os como “[...] uma dor diferente de qualquer outra”, uma
dor que a fazia sofrer, ao mesmo tempo em que sentia “[...] prazer no meu desconforto” (DE
118
TROYES, 2004, p. 160, tradução minha)77. Em uma tentativa de amenizar seu sofrimento,
Fenice pede ajuda à sua governanta Thessala, que ao ver e ouvir os lamentos de sua ama logo
atesta a natureza de seus “males”, além de revelar a identidade de Cligès:
[....] Eu direi a você ambos o nome e a natureza de sua dor. Você disse-me, acredito,
que o sofrimento que a aflige parece-lhe tão prazeroso e revigorante: a dor do amor
é exatamente dessa natureza, pois advém da alegria e do sofrimento. Portanto, você
está apaixonada, e eu posso provar isso a você, pois não há doçura alguma na dor,
exceto apenas a dor do amor. Todos os outros tipos de dor são deveras horríveis e
cruéis, mas o amor é doce e prazeroso. (DE TROYES, 2004, p. 160, tradução
minha)78
Tal sentimento, fator comum na maioria dos romans da época, já foi sumariamente
descrito no Tractatus com sendo a fonte de todas as alegrias e possíveis decepções do homem.
Capelão escreveu que “Fácil é ver que o amor é uma paixão. Isto porque angústia nenhuma é
maior que a provocada por ele, pois o enamorado está sempre no temor de que sua paixão
não atinja o resultado desejado e de que seus esforços sejam baldados.” (CAPELÃO, 2000, p.
6-7, grifos meus), o que visto na fala de Thessala acaba demonstrando mais uma vez a
influência e suporte dos pressupostos cortesãos na narrativa literária durante o século XII.
[...] o imperador está casando-se comigo, o que me deixa triste e brava, pois aquele
que amo é o sobrinho do homem que devo casar-me. E se o imperador tirar o seu
prazer de mim, então terei perdido toda minha própria felicidade e não posso esperar
por mais nenhuma. (DE TROYES, 2004, p. 161, tradução minha)79
Prefiro ser dilacerada membro a membro do que ter nosso amor lembrado como
aquele de Tristão e Isolda, que se tornou motivo de zombaria e me faz envergonhar
de falar sobre o mesmo. Eu nunca poderia concordar em levar a vida que Isolda
levou. O amor foi muito intenso sobre ela, pois seu coração foi dado inteiramente a
um só homem, mas seu corpo foi compartilhado por dois; logo ela passou sua
vida inteira sem negar ambos. Seu amor era contrário à razão, mas o meu amor
sempre será constante, pois nada irá causar a separação de meu coração e corpo. De
fato, meu corpo nunca será prostituído, e nunca será compartilhado. Que aquele que
77
No original: “My pain is different for any other for, if I’m to tell you the truth, it pleases me though causes me
to suffer, and I take pleasure in my discomfort.”
78
No original: “I’tell you both the name and the nature of your pain. You’ve told me, I believe, that the suffering
you fell seems both joyful and invigorating: the pain of love is of this nature exactly, for its comes from joy and
suffering. Therefore you’re in love, and I can prove it to you, because I find no sweetness in any pain except the
pain of love alone. All other sorts of pain are always horrible and cruel, but love is sweet and pleasant.”
79
No original: “[...] the emperor is marrying me, which makes me sad and angry, for the one I love is the nephew
of the man I must wed. And if the emperor takes his pleasure of me, then I will have lost my own happiness and
can expect no other.”
119
possuir meu coração possua também meu corpo, pois abjuro todos os demais.
(DE TROYES, 2004, p. 161, tradução minha, grifos meus)80
80
No original: “I’d rather be torn limb from limb than have our love remembered like that of Tristan and Isolde,
which has become a source of mockery and makes me ashamed to talk of it. I could never agree to lead the life
Isolde led. Love was greatly abased in her, for her heart was given entirely to one man, but her body was shared
by two; so she spent all her life without refusing either. Her love was contrary to reason, but my love will always
be constant, because nothing will ever cause my heart and body to be separated. Truly my body will never be
prostituted, nor will it ever be shared. Let him who possesses my heart posses my body, for I abjured all others.”
81
Disponível em: <http://www.e-codices.unifr.ch/fr/list/one/bge/fr0176>. Acesso em: 30 jan, 2019.
120
charrete, culminando em seu Cligès, escrito quase como se fosse uma “resposta” ao conto
trágico de amor e loucura entre Isolda e Tristão (KIBLER, 2004).
Estabelecidas tais abjurações, eis os princípios generativos aos quais estas estão
vinculadas:
Esta circulação [da energia social] depende de uma separação de práticas artísticas
de outras práticas sociais, uma separação produzida por um trabalho ideológico
sustentado, uma classificação consensual. Ou seja, a arte não existe simplesmente
em todas as culturas; é composta junto a outros produtos, práticas, discursos de uma
determinada cultura. (Na prática, “composta” significa herdada, transmitida,
alterada, modificada, reproduzida muito mais do que significa inventada: como
regra, há muita pouca invenção pura na cultura) (GREENBLATT, 1988, p. 12-13,
tradução minha, grifo meu)83
Fenice), torna-se por sua vez motivo de reformulação – ou adaptação – por parte de outro
autor.
Não posso entender como aquele que detém meu coração possa ter meu corpo, já
que meu pai está me entregando a outro homem e não ouso opor-me a ele. E quando
este homem se tornar senhor do meu corpo, se ele o usar de um modo que não
122
desejo, então não será certo para eu acolher outro [senhor]. (DE TROYES, 2004, p.
161, tradução minha)84
Fenice toma o caminho contrário de Isolda, mais uma vez deixando claro que seu
papel enquanto donzela, filha imperador é suficientemente importante para que esta não pense
sequer em desobedecer ao acordo de casamento que seu pai fez em nome dela. Se Isolda,
mesmo casada com Marc, compartilhava seu corpo entre este e Tristão, Fenice tem plena
consciência que tal prática traria vergonha não apenas para ela, mas também para Cligès se
fossem descobertos.
Fenice, como se sabe, recorreu à sua governanta em busca de ajuda para lidar com o
dilema de amar Cligès e estar prometida a outro homem. Logo após relatar toda sua angústia e
preocupação também com o futuro de seu amado, Fenice pede que Thessala busque um meio
de manter intacta sua castidade, mesmo casada com o tio de Cligès. Eis a saída encontrada por
Thessala, uma poção mágica, semelhante à que Isolda tomou, desta vez com propriedades e
objetivos diferentes: manter tanto o coração, mas principalmente o corpo de Fenice
resguardado para Cligès:
84
No original: “But I cannot understand how the one to whom my heart yields can have my body, since my
father is giving me to another and I dare not to oppose him. And when he becomes lord of my body, I he uses it
in a way I don’t wish, then it is not right for me to welcome another.”
123
[...] então sua governanta a assegurou que iria desenvolver vários feitiços, poções, e
encantamentos que a fariam não se preocupar ou temer qualquer coisa sobre o
imperador: logo que ele tomasse a poção que ela lhe desse para beber, eles iriam
dividir a mesma cama, mas não importasse quanto tempo ela passasse junto dele, ela
estaria a salvo como se houvesse um muro entre ambos. “Mas não se aborreça caso
ele tire prazer de você nos sonhos dele, pois quanto mais rápido ele dormir, mais
terá seus prazeres com você, e irá acreditar firmemente que terá aproveitado o
bastante quando acordar. Ele nunca suspeitará que era um sonho, ardil ou mentira.
Assim será como ele terá seus prazeres com você: enquanto estiver dormindo, ele
acreditará que está desperto e fazendo amor com você. (DE TROYES, 2004, p. 161,
tradução minha)85
Ora, Thessala mencionou também que buscaria toda uma sorte de “feitiços e
encantamentos” para ajudar Fenice, portanto, o epíteto de “bruxa”, de agente das forças
ocultas, de serva do Diabo, é um rótulo comum dado às mulheres medievais, sobretudo as
camponesas, que lidavam com práticas e unguentos medicinais considerados desviantes pela
cúpula eclesiástica medieval. E próprio Chrétien não estava imune a tal estereótipo, visto o
modo que apresenta Thessala no roman, citando inclusive outra feiticeira famosa pela boca da
própria governanta:
Sua governanta, que tinha a amamentado [Fenice] quando criança, era chamada
Thessala e era versada em necromancia. Ela chamava-se Thessala pois havia nascido
na Tessália, onde encantamentos diabólicos floresciam e eram ensinados. As
mulheres dessa terra praticam feitiços mágicos e maldições. [...] “Sei como curar
hidropsia e sarar a gota, tosse e asma. Sou tão habilidosa em ler a urina e o pulso que
você erraria se fosse procurar outro médico; e, se ouso dizer, estou mais
familiarizada com feitiços e encantamentos verdadeiros que Medeia jamais
esteve86. (DE TROYES, 2004, p. 159, tradução minha, grifo meu)87
85
No original: “Then her nurse assured her that she would devise so many conjurings, potions, and enchantments
that she need have no cause to fear or worry about this emperor: as soon as he has drunk the potion she will give
him to drink, they will share the same bed, but no matter how often she is with him she will be as safe as if there
were a wall between them. ‘But don’t let it upset you if he takes his pleasure of you in his dreams, for when he’s
fast asleep he’ll have his sport with you, and will firmly believe he took his pleasure while awake. He’ll never
suspect it was dream, deceit, or lie. This is how he’ll have his sport with you: while he’s asleep he’ll believe that
he’s awake and making love with you.”
86
Feiticeira e personagem do ciclo mitológico grego relativo ao mito de Jasão e os Argonautas, sendo esposa
deste. O mito de Medeia é conhecido por envolver práticas xamanísticas em benefício próprio e de Jasão, além
do retrato psicológico profundo de uma mulher que chegou a cometer o infanticídio de seus próprios filhos para
se vingar da infidelidade de Jasão. Tal versão ficou mais conhecida pela tragédia grega homônima de Eurípedes,
datada de 431 a.C.
87
No original: “Her governes, who had nursed her as a child, was named Thessala and was skilled in
necromancy. She was called Thessala because she had been born in Thessaly, where diabolical enchantments
flourish and are thaught. The women of this land praticse magic spells and bewitchments […] I know how to
cure the dropsy and heal the gout, quinsy, and asthma. I am so skilled in reading urine and the pulse that you’d
be wrong to seek another doctor; and, if I dare say so, I am more familiar with true and proven spells and
124
Não por acaso que as mulheres já foram associadas diretamente à figura de Satã,
atuando como seus “agentes” no plano físico, seja por intermédio da ação direta ou indireta de
seus feitos. Quando Jean Delumeau pontou que “A atitude masculina em relação ao ‘segundo
sexo’ sempre foi contraditória, oscilando da atração à repulsão, da admiração à hostilidade”
(DELUMEAU, 2009, p. 462), este põe como elemento central de sua análise o medo, o
verdadeiro pavor que os homens e as sociedades patriarcais nutrem em relação ao
desconhecido e daquilo que não podem controlar. A aproximação entre Fenice e Thessala, o
vínculo que mantêm desde a infância da primeira, serve como ponte para a donzela sinta-se
segura em confiar à governanta seus desejos mais secretos e buscar ajuda para resolver seus
problemas em relação ao que sente por Cligès.
Fenice conseguiu o que queria: manteve intacta sua castidade e seu dever de casar-se
para honrar a aliança e promessa de seu pai. Qual o próximo passo? Declarar seu amor
diretamente para Cligès. Sobre este sentimento, André Capelão pontuou sobre os medos
existentes que os amantes têm em relação ao ser amado:
[...] suportamos bem menos a perda de coisas que acreditávamos obter do que a
privação de um ganho que apenas esperávamos. O amante também tem medo de
ofender a amada de uma maneira ou de outra, e seus temores são tão numerosos que
é bem difícil relacioná-los. [...] Quando esses pensamentos chegam a tomar conta
dele por inteiro, já não há como frear o amor, e ele passa de pronto à ação; o
enamorado procura obter um apoio, descobrir um mensageiro. Começa a cismar
modos de vir a estar nas boas graças de quem ama, busca lugar e momentos
propícios à conversação, e um breve instante é para ele interminável, pois nada é
feito com suficiente presteza para seu espírito impaciente; e muitas coisas, como se
sabe, assim se passam com ele. (CAPELÃO, 2000, p. 7-8)
Logo, mesmo enamorada de Cligès, Fenice apenas encarou seu amado uma única vez
e não ousou dirigir-lhe a palavra por receio de que este fosse recusar e rejeitar seus
sentimentos. Embora sendo representada como uma donzela extremamente fiel e abnegadora
ao que sentia, Fenice também compartilha das dores que o sentimento não-declarado infligia
aqueles sob seu domínio. Logo na primeira chance a sós com Cligès, a donzela estava
permeada de receios em professar ao amado toda a natureza de seus pensamentos e ações:
Ambos estavam tão receosos de serem rejeitados que não ousaram abrir seus
corações. Ele tinha medo de que ela o rejeitasse; e ela teria aberto seu coração se não
houvesse medo de rejeição por parte dele. Mas apesar disso, os olhos de cada
revelavam seus pensamentos secretos, se soubessem observar! Cuidadosamente,
conversavam com seus olhos, mas tinham tanto medo de suas línguas que não
ousavam colocar em palavras o amor que tanto os atormentava. Não era surpresa
que Fenice não ousasse começar, pois uma donzela deveria ser reticente e recatada.
Mas por quê Cligès hesitava? O que ele estava esperando? [...] Qual era a razão
desse medo, que o acovardava diante de uma donzela, uma criatura fraca e medrosa,
simples e recatada?
seguintes: “[...] XV – Todo amante deve empalidecer em presença da amante. XVI – Quando
um amante avista de repente a mulher amada, seu coração deve começar a palpitar. [...] XX –
O enamorado sempre tem medo.” (CAPELÃO, 2000, p. 261)
A mulher deve, pois, informar-se com cuidado se o seu pretendente merece ser
amado; e, se concluir ser ele perfeitamente digno disso, não deverá recusar-lhe seu
amor de modo algum, a menos que, por acaso, já esteja comprometida com outro.
(CAPELÃO, 2000, p. 48)
Ora, não estava Fenice já casada com o tio de Cligès? De que modo então poderia
não recusar o amor de Cligès segundo a ideia proposta por Capelão? O que torna o conto de
Fenice distinto dos demais, e sobretudo da história de Isolda, é o cumprimento absoluto das
promessas da donzela ao amado e a si mesma: manter sua castidade, casar-se como o dever
exigia e nunca dividir seu corpo, alma e coração com alguém que não fosse o jovem
cavaleiro. A ausência do elemento adúltero, da consumação carnal antes do matrimônio e da
manutenção da pureza virginal, mesmo nutrindo um amor considerado proibido, põe em
xeque o ideal de sacralidade, amor e pureza absolutos que apenas seriam encontrados no
matrimônio.
“Minha senhora”, disse ele, “eu amei enquanto estive lá, mas não amei ninguém que
fosse de lá. Meu corpo estava na Britânia sem meu coração, com um pedaço de
madeira sem seu núcleo. Não sei o que se tornou do meu coração depois que deixei
a Germânia, apenas que este lhe seguiu até aqui. Meu coração estava aqui e meu
corpo estava lá. [...] E tu – [...] quais felicidades experimentou aqui? Gosta do seu
povo? Gosta da terra?” “Não gostava antes, mas agora sinto uma certa felicidade e
satisfação [...] Nada de mim que não seja a casca restou, pois, meu coração partiu e
estou vivendo sem ele. Apesar de nunca ter me encontrado na Britânia, meu coração
tinha alguns assuntos a resolver por lá sem mim.” “Minha senhora, quando o seu
coração esteve lá? Diga-me o tempo e a estação que ele foi, [...] Esteve lá enquanto
127
Iluminura do Roman de la Poire, presente no MS fr. 2186, f. 3v, BnF (c. 1275), com o detalhe de Fenice (à
esquerda na figura) segurando seu coração enquanto conversava com seu amado.
Fonte: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b9059053m/f5.item>. acesso em: 30 jan, 2019.
Após tal jogo de palavras e sentimentos, ambos enfim confessam seu amor um pelo
outro, visto que finalmente perceberam a reciprocidade do que nutriam. Não havia mais
medo, ou temor pela rejeição:
“Então, minha senhora, de acordo com que dizes, nossos corações estão aqui
conosco, pois o meu é inteiramente seu.”
“E tu, meu amigo, tens o meu, já que estamos em perfeito acordo. E deves saber
que, Deus me provenha, seu tio jamais teve parte alguma de mim, pois isso não me
agrada e nem ele teve ocasião. Ele nunca me conheceu como Adão conheceu Eva.
Sou chamada erroneamente de esposa, mas sei que aquele que me chama de sua
esposa não percebe que continuo uma donzela.”
“[...] Meu coração é teu e meu corpo, também, é teu; e não serei exemplo de vilania
para ninguém. Pois quando meu coração se entregou a ti, deu-lhe consigo meu
corpo, e prometi que ninguém mais iria partilhá-lo. [...] Se eu o amo e se tu me
89
No original: “ ‘My lady’, he said, ‘I loved while there, but I loved no one who was from there. My body was in
Britain without my heart, like a piece of bark without its heartwood. I don’t know what became of my heart
when I left Germany , except that I followed you here. My heart as here and my body was there. […] And you
[…] what happiness have you experienced here? Do you like the people? Do you like the land?” “It did not
please me before, but now I sense a certain joy and satisfaction […] Though I have never been to Britain, my
heart has had some sort of business there without me.” “My lady, when was your heart there? Tell me the time
and season that it went […] Was it there when I was there?” “Yes, though you did not know it. It was there as a
long as you were, and then it left with you.”
128
amas, tu nunca será chamado de Tristão e nem eu de Isolda, o que iria sugerir que
nosso amor não era honroso.” (DE TROYES, 2004, p. 187, tradução minha)90
Pode-se observar no excerto acima o teor da promessa que os amantes haviam feito
um para o outro. Ambos entregaram por completo seus corações ao outro, além do
compromisso, quase pacto vassálico, de partilharem entre apenas entre si o corpo e os desejos
nascidos de tal paixão. Fenice, como já supracitado, volta ainda a mencionar Isolda como
forma de desligar-se da imagem adúltera, irracional e desmedida da rainha que deixou-se
levar pelo amor a seu querido Tristão. A proposta de Chrétien em estabelecer uma relação
crítica e ao mesmo tempo oferecer uma alternativa a seus personagens de viverem a plenitude
do Amor sem a mancha do adultério e da felonia é clara.
Logo, “A fim de que a contradição fique evidente, Chrétien retomou para seu
romance certos esquemas do Tristão. Os dois poemas tratam de um sobrinho, da esposa de
um tio, da paixão amorosa entre mulheres casadas e cavaleiros solteiros [...]” (DUBY, 2013,
p. 103). Se os esquemas se repetem, ainda assim conservam suas especificidades, haja vista
que o elemento da poção mágica, presente em ambos, é fator de diferença fundamental no
desenrolar da narrativa de Cligès. Se o sentimento amoroso no Tristan nasce graças ao efeito
do filtro mágico, em Cligès, o amor entre Fenice e o jovem cavaleiro não advém dos
sortilégios, feitiços e encantamentos preparados por Thessala, e sim pela troca de olhares
entre os dois.
Ademais, a poção mágica preparada por Thessala teve como objetivo impedir que
Alis consumasse o casamento com Fenice, mantendo-a virgem e casta para poder partilhar seu
corpo apenas com o homem que já era dono de seu coração: Cligès. Porém, mais um
obstáculo estava à frente; embora professado, o amor entre os jovens não poderia burlar as
regras do matrimônio. Enquanto presa ao laço do matrimônio, Fenice só poderia reunir-se
com seu amado se tal vínculo fosse dissolvido. Como se o pacto conjugal era vitalício,
sacramentado pela Igreja, responsável pela aliança entre os impérios e ainda mais diretamente
relacionado ao parentesco entre Cligès e seu tio Alis?
90
No original: “Then, my lady, according to what you say, our two hearts are here with us, for mine is wholly
yours.’ “And you, friend, have mine, so we are in perfect accord. And you must know, so help me God, that your
uncle has never had a part of me, for it did not please me and he did not have the occasion. He has never yet
known me as Adam knew his wife. I am wrongly called a wife, but I know those who call me his wife do not
realize that I am still a maid. […] My heart is yours and my body, too, is yours, and I will be an example of
villainy to no one. For when my heart settled on you, it gave you my body as well, and promised that no one else
would share in it. […] If I love you and you love me, you will never be called Tristan nor I Isolde, which would
suggest that our love was not honourable.”
129
Fenice, então, lança uma promessa e um pedido à Cligès quando confrontada diante
de tal situação:
Prometo a ti que não terás mais consolo do meu amor do que já tens a menos que
descubra um modo de encerrar meu casamento e levar-me para longe de vosso tio de
maneira que ele nunca me encontre novamente, de modo que ele nunca lhe culpe ou
saiba quem acusar. Tu deves pensar sobre isso esta noite e me dizer amanhã qual o
melhor plano que elaboraste e eu também irei refletir sobre. Venha ter comigo cedo
pela manhã, logo que eu estiver de pé, e iremos discutir nossos planos e decidir o
que faremos de melhor. (DE TROYES, 2004, p. 187, tradução minha)91
Das maneiras de conservar o Amor e fazê-lo crescer, está escrito no Tractatus que
“[...] quando a bem-amada passa por momento de necessidade, todo amante é obrigado a
socorrê-la, compartilhar suas penas e concordar com todos seus desejos razoáveis.”
(CAPELÃO, 2000, p. 211). Ora, o pedido de Fenice a Cligès decerto se encaixa nessas
características: ambos só poderiam estar juntos, livres e desimpedidos se Cligès encontrasse
uma forma de libertá-la dos grilhões do matrimônio.
91
No original: “But I promise that you have no more solace from my love than you have now unless you can
discover how to end my marriage from my love than you have now unless you can discover how to end my
marriage and secrete me away from your uncle to where he could never find me again, in a way that he could not
blame you or me or know whom to accuse. You must see this tonight and tell me tomorrow the best plan you
have devised, and I too will reflect on it. Come to speak with me early tomorrow, as soon as I am up, and we will
lay out our plans and set about doing whichever we deem better.”
130
Qual seria então a saída encontrada pelos amantes? No dia seguinte à conversa com
Fenice, Cligès diz a sua amada sobre o que pensou durante a noite:
“Minha senhora”, ele disse, “Estou convencido que não faríamos nada melhor que
não fosse ir para a Britânia; pensei de levá-la até lá. Por favor, não recuse, pois a
alegria em Tróia quando Páris trouxe Helena não seria nada em comparação à
alegria sentida por mim e vós na terra de meu tio-avô, o rei. Mas caso não seja de
seu agrado, diga-me o que pensas, pois estarei pronto, não importa quais sejam as
consequências, para apoiar seu plano.” (DE TROYES, 2004, p. 187-188, tradução
minha)92
Devo lhe dizer: não irei fugir contigo dessa maneira, pois todos iriam falar de nós
depois que partíssemos, como o fizeram com Isolda, a loura e Tristão, e homens e
mulheres de toda parte iriam condenar nossa paixão. Ninguém iria acreditar no que
realmente aconteceu, nem deveriam. Quem iria acreditar que enquanto donzela
enganei e fugi de seu tio? Isso seria considerado vergonhoso e você seria tomado
como tolo. (DE TROYES, 2004, p. 188, tradução minha)93
É melhor manter e seguir o conselho de São Paulo: se não podes permanecer puro,
São Paulo ensina como comportar-se com discrição, de modo que ninguém critique,
culpe ou reprove a ti. É melhor silenciar uma língua má, e, se não tiveres objeção,
acredito que conheço uma maneira de fazer isso. (DE TROYES, 2004, p. 188,
tradução minha)94
Por que Fenice teria invocado os conselhos de Paulo para justificar seu
comportamento em relação a Cligès? Ora, o medo do pecado, de macular o corpo e a alma
imortal, perpassava por todo os estratos sociais no medievo. Ademais, se o situarmos no
contexto da época, não seria errôneo percebê-lo como fator de influência quase que
primordial na construção das relações sociais, na simbologia, nas instituições, na visão de
mundo e nas práticas rituais dos homens e mulheres da medievalidade (CASAGRANDE;
VECCHIO, 2017).
feminina. Se o corpo na Idade Média “torna-se uma metáfora” (LE GOFF, 2010, p. 155),
todas suas respectivas ações automaticamente possuem significados e simbolismos muito
próprios.
Com base nisso, qual o papel da mulher dentro deste prisma de análise? Ou melhor, a
quais características o feminino está intrinsicamente ligado? Partindo de uma dupla
perspectiva – espiritual e corporal – o que se observa, via de regra, é uma subordinação do
feminino em relação ao masculino, pois se o mundo medieval é, em sua essência,
hierarquizado, “[...] a mulher só pode ocupar uma posição secundária, procurar o apoio
masculino. Homem e mulher não se equilibram, nem se completam: o homem está no alto, a
mulher embaixo.” (KLAPISCH-ZUBER, 2017, p. 157).
Graças a tal “necessidade” de organização, e por ser, em tese, mais suscetível aos
pecados da luxúria e concupiscência, o corpo feminino foi duramente vigiado e vilipendiado,
segundo uma ideologia que o considerava fraco, impuro e pecaminoso por natureza: “[...] aqui
a carne concupiscente, fonte de impulsos dificilmente refreáveis; ali um espírito enfraquecido,
assolado pelas paixões, incapaz de governar sozinho o corpo que habita e tolhido em seu
desejo de se voltar para o bem. [...]” (CASAGRANDE; VECCHIO, 2017, p. 379). Segundo
essa “antropologia do pecado”, não era surpresa que o vínculo matrimonial por si só
configurasse uma salvação para as contradições existentes e impostas ao corpo das mulheres.
Quando Fenice menciona que “é melhor manter e seguir o conselho de São Paulo”,
faz referência indireta às epístolas do apóstolo em que este exorta e aconselha sobre temas
como adultério, fornicação e, claro, celibato. Ora, se o apóstolo diz que “vossos corpos são
membros de Cristo” (I Coríntios 6, 15) e que também o “é templo do Espírito Santo, que
habita em vós” (I Coríntios, 6, 19), logo procura estabelecer o caráter sagrado da criação
máxima de Deus: o homem.
Fenice também menciona que “São Paulo ensina como comportar-se com discrição”,
o que pode ser vislumbrado quando o apóstolo diz que “Aos solteiros e às viúvas, digo-lhes
132
que é bom permanecerem assim, como eu. Mas se não podem guardar a continência, casem-
se. É melhor casar do que abrasar-se.” (I Coríntios, 7, 8-9).
Meu plano é fingir morrer; porém, antes, fingir estar doente, e quanto a ti, no que lhe
cabe, deverás lidar com a construção de minha tumba. Use tua habilidade e atenção
para que minha tumba e caixão sejam construídos de modo que eu não sufoque ou
morra em seu interior, e para que ninguém note quando tu vieres à noite retirar-me
deles. Encontre um lugar para me esconder depois onde ninguém, exceto tu, irá
poder me ver, e não deixe que nenhuma pessoa atenda minhas necessidades, exceto
tu mesmo, para quem me dou e confio totalmente. (TROYES, 2004, p. 188, tradução
minha)95
Se o rito matrimonial, até indissolúvel, era eterno, não seria a morte uma maneira de
pôr fim à sua existência? Entretanto, quando se fala do período medieval, deve-se atentar para
dois possíveis erros de interpretação que incutem o historiador ao equívoco, fazendo-o
elucidar uma “advertência metodológica”, sobretudo, no que diz respeito à natureza dos
documentos por ele utilizados (DUBY, 2011).
Tal risco cai justamente em uma “hiperinterpretação” de tais preceitos, pois nada
mais natural que entre o elemento teórico contido em tais regulamentos e sua real validade e
95
No original: “My plan is to pretend to die; before long I shall pretend to be sick, and you for you part should
see to the construction of my tomb. Use your skill and attention to see that my tomb and coffin are built in such a
way that I do not suffocate or die inside, and that no one will take any notice when you come at night and lift me
from them. Find a place for me to hide afterwards where no one but you will see me, and let no one provide any
of my needs except you, to whom I give and entrust myself.”
133
Já o segundo erro, em sintonia maior com o objeto dessa pesquisa, relaciona-se com
a adoção imediata da visão eclesiástica sobre o casamento. Seus postulados, pontos de vista, e
sobretudo, pelo testemunho do clero medieval acerca do papel dos cônjuges em tal instituição.
Logo, a veia antifeminista, misógina e punitiva salta aos olhos do estudioso que pode “[...]
involuntariamente, a partilhar do pessimismo ou então do irenismo desses homens, a tomar
por certo o que eles, na maioria celibatários ali que fingem sê-los, exprimiram sobre as
realidades conjugais.” (DUBY, 2011, p. 12)
Existe uma terceira via? Uma alternativa existente no âmbito dessa disputa
civil/eclesiástica? Por que não estender aos domínios da literatura, mas da literatura cortesã, a
problematização estabelecida? Se tomadas como “emergência do privado” e “consideração do
indivíduo”, tal documentação convida o historiador ao seu uso “prudente” (RÉGNIER-
BOHLER, 2009).
Tomando as narrativas literárias como sendo dotadas daquilo que entendemos por
“regimes de verossimilhança” (PESAVENTO, 2007), ali pode-se observar determinadas leis
que sejam coerentes com o elemento do real que desejam espelhar, pois “[...] A simples
esboços do espaço real ou sonhado, alguns protagonistas privilegiados, a literatura sabe dar
vida: de um lugar ao outro, de um conflito às conciliações, a literatura preenche o que em
aparência apagara.” [RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 314). Desse modo, o ardil proposto por
Fenice representa a visão de seu autor, Chrétien, de uma situação até o momento
insustentável, presidindo uma forma de alento para que sua protagonista obtenha a liberdade,
sem, porém, macular sua estimada reputação.
donzela “[...] fria, sem cor, pálida e rígida, e que mascarasse a força de sua voz e respiração,
apesar do fato de que ela estaria viva e saudável e em nada sentiria tais efeitos.” (DE
TROYES, 2004, p. 189, tradução minha)96.
Logo, o plano foi posto em ação. Enquanto Fenice convalescia de sua falsa condição,
Cligès fazia os demais preparativos, e toda a corte sofria junto com males que haviam
cometido sua imperatriz. Quando Thessala ministra a segunda dose da poção a Fenice, esta
logo sente seu corpo paralisar, perder as forças e a capacidade de falar, entrando em um
estado de falsa morte que deixa o imperador e todo o povo em estado luto profundo. Restava
agora a parte final do plano: Cligès resgatar Fenice de sua tumba escondida na torre mais
afastada e alta do castelo.
Iluminura presente no MS fr. 2186, f. 3v, BnF (c. 1275), representando Fenice sendo examinada pelos
médicos da corte após tomar a poção.
Fonte: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b9059053m/f5.item>. acesso em: 30 jan, 2019.
Quando enfim reúnem-se, Fenice diz ao seu amado “[...] Meu querido, doce amor,
um pomar onde eu pudesse relaxar me faria bem. [...] Se fosse possível, eu realmente adoraria
96
No original: “[...] cold, colourless, pale and stiff, and that woul mask her power of speech and breathing,
though she would in fact be quite alive and healthy and would feel no ill effects.”
135
ir até lá fora: me sinto confinada nessa torre. Faria muito bem a mim se houvesse um pomar
próximo onde eu pudesse caminhar” (DE TROYES, 2004, p. 200, tradução minha)97.
Se Fenice determinou que somente Cligès pudesse atender seus pedidos e ser
responsável por sua vigília, é porque o segredo da torre é mais um a ser partilhado pelo
sentimento amoroso. Em uma ordem privada, pois “[...] A jovem mulher e seu amante vivem
seus amores no impedimento... e na proximidade” (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 324).
Segundo espaço, idílico, o pomar tem por sua vez o papel simbólico de local ideal
para as manifestações do amor entre os enamorados. Seja nas reuniões escondidas –
preferencialmente noturnas –, seja como local de sedução e desnudamento da mulher, “[...] o
pomar dos amantes é sobretudo um lugar protetor” (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 325). Ali
encerram os mais secretos desejos, angústias, carícias e realizações do Amor.
Quando Fenice é levada até o pomar mais próximo, logo todas as suas palpitações,
angústias e questionamentos dão vazão ao sentimento de pertencimento e segurança que esta
enfim sente ao lado de Cligès, representados assim segundo Chrétien:
Quando Fenice viu a porta aberta e o sol brilhando, o qual não via há muito tempo,
seu sangue urgiu em felicidade e ela disse estar perfeitamente feliz: agora que não
estava mais confinada em sua cela subterrânea não poderia desejar estar em outro
lugar que não este. Cruzou a porta para um prazeroso e maravilhoso pomar. No meio
deste havia uma árvore coberta de folhas e flores, com uma longa e espaçosa copa.
[...] Era tudo o que Fenice poderia desejar! Sob a árvore, a grama espalhava-se
macia e bem-feita e mesmo quando sol estava o mais quente possível ao meio-dia,
nenhum raio de luz era capaz de penetrar o arco feito pela árvore [...]. Fenice ia até
lá para repouso, e, durante o dia, eles colocavam a cama embaixo da árvore, onde os
amantes tiravam sua felicidade e prazeres. O pomar era cercado por altos muros
97
No original: “My dear, sweet love, an orchard where I could relax would do me good. […] If it were possible,
I really would like to go outside: I feel confined within this tower. It would often do me much good if there were
an orchard nearby where I could go and walk.”
136
ligados à torre e ninguém poderia entrar sem antes passar pela torre. Fenice estava
muito contente, com nada a interromper seus prazeres e todos os seus desejos enfim
estavam se realizando agora que ela podia abraçar seu amor quando quisesse
debaixo das flores e folhas. (DE TROYES, 2004, p. 201, tradução minha)98
Portanto, foi no pomar onde os jovens amantes puderam enfim juntar seus corpos e
corações de vez, uma vez que Fenice agora não estava mais ligada ao imperador pelo laço
matrimonial. Como visualizado, Chrétien procurou representar nas reações de Fenice a ideia
de um porto seguro, um espaço de amor, onde nada e ninguém, além dos dois, fosse o centro
das atenções um do outro. Desse modo, o simbolismo é mais uma vez observado neste lugar
que “[...] oferece a imagem de uma felicidade sem ameaça de ruptura, e diz respeito
evidentemente ao problema da permanência ilimitada, em sua duração, pelo inesgotável
afluxo de sensações [...]” (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 326).
Durante todo o roman, o que se observa nas múltiplas nuances de Fenice, bem
representadas por Chrétien de Troyes, é, ao mesmo tempo um novo olhar analítico sobre a
figura feminina que escape da tentadora polarização discutida nos tópicos anteriores.
Colocando a donzela no centro da narrativa, das ações e de toda construção temática da
história, Chrétien de Troyes induz, ou faz crer ao historiador a possibilidade de que as
relações sociais e as representações femininas já a partir da segunda metade do século XII
estiveram se transformando gradualmente.
Como poeta, fazia bem ao ouvir seu público, e mais ainda, entregar-lhes o que estes
desejavam. Por qual motivo, então, não seria o público feminino aristocrata um de seus
principais, e por que não, sua principal audiência? É preciso cuidado para não cair no
simplismo, ou na exacerbada idealização da condição feminina na medievalidade, mesmo
dentro da aristocracia. O medievo foi um período marcado por traços misóginos,
controladores e estritamente masculino. Porém, não o foi apenas isso.
98
No original: “When Fenice saw the door open and the sun come shining in, which she had not seen for a long
while, her blood surged with joy and she said that she was perfectly happy: now that she was no longer confined
to her underground cell she could not wish for another place to stay. She stepped through the door into the
pleasant and delighful orchard. In the middle. In the middle of the orchard stood a grafted tree, covered with
leaves and flowers, with a wide-spreading top. […] It was all that Fenice could want! Beneath the tree grass
grew fair and soft, and even when the sun was at its hottest at noon no ray could penetrate the bower […]. Fenice
went there for her repose, and by day they set up her bed beneath the tree where the lovers had their joy and
pleasure. The orchard was surrounded by high walls connected to the tower and no one could enter there without
first passing through the tower. Fenice was very contented, with nothing to disrupt her pleasure and all her
desires fulfilled no that she could embrace her lover whenever she wished beneath the leaves and flowers.”
137
caminho historiográfico venha ganhando espaço nos estudos sobre a condição feminina e sua
ligação com a literatura do período, já na segunda metade do século passado os primeiros
alertas foram feitos. Georges Duby foi um dos que fizeram coro à tal problemática, ao afirmar
que “[...] Por muito tempo combati, e duramente, a hipótese de uma promoção da mulher na
época feudal porque os argumentos propostos para sustentar essa hipótese não me pareciam
convincentes” (DUBY, 2013, p. 106).
Embora a ideia principal deste capítulo tenha recaído sobre essas duas personagens
literárias e suas relações, a questão dos desejos, da sexualidade intermitente e da relação
corpo/desejo/pecado foi diluída entre os tópicos. De modo a continuar de modo mais
específico tal discussão, o capítulo seguinte terá por objetivo elucidar e discutir cenários,
situações e espaços de uma possível “liberdade” sexual feminina, suas implicações e
logicamente, suas condenações e combates.
138
Entretanto, sob pena de cair no erro vital do historiador de tomar como verdade
inquestionável tais testemunhos, por que não delimitar, apontar e questionar sob quais
pressupostos teóricos e ideológicos tais visões sobre o feminino foram construídas
historicamente? O que os fabliaux anônimos do século XII relatavam sobre os vícios, falhas e
perigos do corpo e da mente femininos? Ou então o que o tratado teológico de São Bernardo
de Claraval (1090-1153) sobre as diferentes formas de amor nos diz sobre a influência
teológica nas relações entre o corpo perene e alma imortal? São questionamentos e reflexões
discutíveis sob tal alternativa historiográfica de perceber e apontar diferentes visões e
representações da condição feminina entre os séculos XII e XIII no medievo Ocidental.
Quando Georges Duby escreveu em seu a Eva e os padres que “Ao longo do século
XII, a Igreja do Ocidente começou a levar seriamente em conta a expectativas das mulheres”
e que assim o fazendo poderiam enfiam tais mulheres que “Sentiam-se abandonadas e pediam
que melhor as ajudassem a caminha rumo à salvação” (DUBY, 2013, p. 255), o detalhe
importante a se notar é o curso e o uso da palavra/noção de salvação.
Durante todo o período medieval, como supracitado, a dinâmica social esteve envolta
na relação entre o pecado, a coletividade e os indivíduos que eram constantemente
assombrados por essa realidade que tanto se fazia presente nos constantes sermões do clero.
Palavra de ordem: controle. Seja o controle institucional, intelectual, e principalmente, o
corporal, foi assim que a Igreja medieval acabou por moldar toda uma ética comportamental
que solidificou e ajudou a construir a ideia de um período de excessiva repressão, combate,
desvalorização e condenação do corpo.
Como, então, viver dentro de tal cenário social, envolto em constantes discussões,
disputas e castigos seja pela natureza corporal dos indivíduos ou do destino de suas almas
imortais?
Tal feito só foi possível mediante o caráter simbólico existente nas Escrituras que
atestam a possível “validade” de tal fundamento, pois a “tríade de reprovação sexual dos
clérigos” entre os séculos V e XII no Ocidente medieval constituiu-se na observação dos
pecados da fornicação, concupiscência e luxúria observados em grande medida no Novo
Testamento (LE GOFF; TRUONG, 2010).
Logo, coube à Igreja a dupla função de condenar e salvar as mulheres envoltas nessa
teia contraditória de vícios e virtudes relacionados ao seu sexo. E por que os clérigos? Não
constituía um profundo paradoxo que estes indivíduos celibatários se ocupassem de advogar,
aconselhar, relatar e refletir sobre os assuntos de natureza sexual que envolvessem terceiros, e
mais ainda, indivíduos que não pertenciam ao seu próprio gênero?
comportar-se em amor” e elucidar “[...] qual a origem da nobreza dos homens da Igreja”
(CAPELÃO, 2000, p. 194-195). Ele então diz que:
No entanto, não há, por assim dizer, ninguém que passe pela vida sem cometer o
pecado da carne, e os eclesiásticos estão mais sujeitos que os outros homens às
tentações do corpo, pois têm sempre muito tempo disponível e mesa farta. Se,
portanto, algum deles quiser se entregar às justas amorosas, que faça sua corte e se
esforce por realizar o serviço religioso segundo a classe ou a situação social de seus
pais. (CAPELÃO, 2000, p. 196)
Quando menciona “segundo a classe ou situação social de seus pais”, o autor refere-
se à condição social das mulheres cortejadas pelos clérigos. Seria um insulto às donzelas e
damas da pequena e alta nobreza que um cônego, padre ou até mesmo um bispo lhes fizessem
corte. Não raro que a literatura medieval, sobretudo a satírica e erótica, tenha múltiplos
exemplos dessa conduta amorosa de clérigos relacionando-se com mulheres plebeias.
Dentro desse universo literário, um dos gêneros de escrita que mais abordou os temas
mencionados foi o fabliau (com o plural fabliaux). De teor geralmente cômico e erótico,
consistia em uma narrativa curta e elaborada em versos octossilábicos, muito característica da
região norte da atual França. Seus autores e intérpretes, os trouvères99, versaram comumente
sobre a vida cotidiana dos diversos estratos sociais do medievo Ocidental, utilizando da sátira,
ironia e de uma linguagem escatológica para tecerem críticas e representações de suas
realidades históricas:
99
A língua francesa distingue trouvères de troubadours. Os primeiros são os trovadores característicos da região
norte da França, enquanto os últimos são os cantores-poetas da região da Provença, no sul do território francês.
142
Os fabliaux são um espelho social do seu tempo. Essa importante primeira expressão
do realismo literário europeu representa uma fonte extremamente valiosa de
informações sobre a vida cotidiana em uma época da qual poucos documentos
sobrevivem, e aqueles que sobrevivem lidam com domínios de pensamento e
imaginação muito distantes da experiência cotidiana. Apesar do exagero, do absurdo
e do escândalo [...], essa narrativa cômica testemunha o grande renascimento urbano
do século XII, bem como o que se passava no campo. (BLOCH, 2013, p. XXII,
tradução minha)100
Retornando à análise anterior, pode-se destacar o elevado interesse dos clérigos pelas
mulheres de baixa condição. Mulheres plebeias, porém, casadas. Quase todos os exemplos
existentes nos fabliaux dos séculos XII relatam as aventuras amorosas do baixo e do alto clero
com mulheres casadas, muitas vezes em situações absurdas que expõem as contradições
existenciais da rígida estrutura hierárquica imposta no medievo. É possível observar ainda nos
fabliaux, a narrativa da criação das três ordens – clero, nobreza e campesinato –, e as funções
e deveres imputados a cada uma., como fabliau anônimo do século XII intitulado Des putains
et des lecheors [As putas e os pantomimeiros, em tradução livre], que assim narra tal
momento:
100
No original: “The fabliaux are a social mirror of their time. This first important expression of European
literary realism represents an extremely valuable source of information about daily life in an age from which few
documents survive, and those which do survive deal with domains of thought and imagination far removed from
everyday experience. Despite the exaggeration, the absurdity, and the scandal […] the comic tale bears witness
to the great urban renaissance of the twelfth century as well as to what went in on the countryside.”
143
Após o advento da criação e da divisão das tarefas, duas “classes” sociais questionam
Deus por não levar em conta seus desejos e considerações: os artistas de rua e as donas de
bordel. Quando indagado por estes o motivo de não os prover e assisti-los de acordo com suas
necessidades (vv. 22-29), Deus, então, dirige-se imediatamente à suas três ordens,
considerando o pedido feito por seus outros rebentos. O Criador assim os ordena:
Ilustração de uma casa de banho pública, onde os serviços de banho, alimentação e prostituição são
oferecidos. Detalhe para o canto superior direito da figura, mostrando um casal sob o leito; e para o canto
inferior direito, onde outro casal compartilha um banho enquanto são servidos por uma mulher.
Manuscrito iluminado do livro IX do Des faits et des paroles mémorables, de Valério Máximo (c. 1470-
maintain) / issi le vos voil commander.” (the harlots under your protection) / Selonc cestui commandement (In
keep with the Lord’s decree) / ne font il nul trespassement (the clergy supports harlotry) / car il les tienent totes
chieres (holding these women in esteem) / si les tienent a beles chieres (and making sure they get the cream) / del
miaus qu’il ont & del plus bel. (of all Mother Church’s riches.)”
145
Ainda sobre a questão das prostitutas e sua relação com o clero medieval, é
importante ressaltar que a classe eclesiástica se consistiu em uma clientela valiosa dos
prostíbulos medievais. Quando o fabliau citado diz que “[...] o clero apoiou a
prostituição/mantendo essas mulheres em estima/e se assegurando que estas teriam o melhor
de todas as riquezas da Igreja Mãe” (vv. 45-49), pode-se perceber uma certa condescendência
no discurso narrativo, uma “denúncia”, da hipocrisia clerical de regular a tudo e a todos
enquanto boa parcela de seu corpo eclesiástico desfrutava dos prazeres mundanos que tanto
combatiam. Logo, o que se percebia já na época era a tendência de uma aproximação da
Igreja com o sexo mundano, ao mesmo tempo tão distante e tão próximo das realidades
sociais do período:
Sobre tal clero lascivo, até membros da alta hierarquia eclesiástica não escaparam
das críticas contundentes dos fabliaux. Tome-se de exemplo o relato do fabliau L’evesque qui
beneï le con [A boceta abençoada pelo bispo, em tradução livre], em que as aventuras
amorosas de um bispo que vivia perto da cidade normanda de Bayeux, ao norte da França, são
descritas e expostas. Logo somos apresentados ao cotidiano do clérigo:
O fabliaux continua sua narrativa, apontando para o fato de o clérigo manter sua
moradia distante do centro urbano, como um modo de escapar dos olhares curiosos da
população que já desconfiava e desgostava de seu modo de vida (THE FABLIAUX, 2013, vv.
11-18, 2013, p. 67). De modo a acentuar a crítica ao comportamento desviante do clero
medieval, o autor do fabliau coloca no centro da narrativa um outro clérigo, desta vez um
padre que vivia em regime de concubinato com uma camponesa (THE FABLIAUX, 2013, vv.
19-23, 2013, p. 67-68). Sabendo de tal condição, e tomado pelo desejo de ter para si a mulher
do colega de batina, o bispo impõe uma série de proibições ao padre para que este separe-se
desta, como proibi-lo de beber vinho e de se alimentar de aves (THE FABLIAUX, 2013, vv.
30-63, p. 67-69).
Porém, a mesquinhez e luxúria do bispo direcionam-se a uma outra mulher que havia
conhecido em uma de suas viagens. Cortejando-a e dando-lhe vários presentes, o clérigo
ansiava seduzir e satisfazer-se com ela o mais rápido possível (THE FABLIAUX, 2013, vv.
111-114, p. 71). Mas a mulher de quem o bispo havia se enamorado era engenhosa,
provavelmente pertencente à nobreza, ao que a narrativa assim nos diz:
Mesmo surpreendendo-se com o pedido, o bispo logo trata de fazer o que foi pedido,
deitando a mulher de frente para ele e lhe abençoando as partes íntimas:
105
No original: “Sire, fait el, ne vos hastez (Father, she tells him, not so fast) / se vos volez vos volantez (if you
want to do what you asked) / faire de moi ne de mon con (of me, before you turn to messing),/ i covient que
beneïçon (ith my body and cunt, a blessing)/ li doigniez & si lo seigniez (you must pronounce and make as
well) / ençois que vos i adessez (the sign of the cross, for I tell) / qu’il ne fu onques ordonez (you, it’s never been
consecrated)./ La destre main en haut levez (Now raise your right hand high, she started) / sel beneïsiez
maintenant (and give your blessing right away).”
106
A expressão correta em latim corresponde a “In saecula saeculorum”, que literalmente quer dizer “para
sempre e todo o sempre”. O bispo do fabliau o diz “Assim abençoo. Para sempre e todo sempre.”
107
No original: “L’evesques ot qu’el li sarmone (The Bishop takes in what she orders)/que ja a li n’avra tochié
(that lay a hand on her he won’t) / tant qu’ençois ait son con seignié (unless he first has blessed her cunt). […] Li
evesque lo con seigna (Over her cunt the bishop made) / & puis a dit: ‘Per onnia qan qu’il fait la beneïçon’ (the
sign of the cross and the said) / dit, secula seculorum’ (Benedico. Per omnia in seculorum secula).”
148
Ainda no que tange à condição feminina e sua relação com o prelado medieval, cabe
destacar que embora o clero condenasse a prática da prostituição e os demais atos que
envolvessem o ato sexual fora dos limites matrimoniais, havia uma distinção entre tal prática
e o regime do concubinato.
108
No original: “Des hui matino ï retraire (Today I heard the information) / que tu voloies ordres faire (that you’d
perform an ordination) / si i voloie ester, biau sire (I’d like to witness that, I thought). / Li evesquez commence a
rire (The bishop heartily guffawed) /& dit: ‘Or m’as tu espié (and said, ‘You laid a trap for me) / & bien sorpris
& engignié! (and caught me by your trickery.) / Or te doin je congié de boivre (I henceforth give you my
permission) / & de magier poucins au poivre (to drink wine and eat peppered chicken) / & oës qant tu en
voudraus (and dine on goose as much as you) / & avoc toi ta fame avras (would like, and keep your woman
too). / Si garde que mais ne voie (Just you keep well out of my sight). / Lors s’an torne cil a grant joie (Off goes
the priest in delight).”
149
Tal lei canônica distinguia o concubinato, isto é, a prática sexual com apenas um
parceiro (a) fora do casamento, da prostituição pela ausência de tal elemento de
promiscuidade. Fato comum no medievo, os regimes de concubinato serviam como válvula de
escape das tensões sociais e sexuais masculinas, que assim como prostituição, auxiliava na
manutenção da “ordem social” e dos padrões “estáveis” de comportamento no período
medieval.
No que diz respeito aos dois últimos, Burcardo escreveu uma série de medidas e
penitências a serem respeitadas e cumpridas caso o acusado fosse apanhado em flagrante ou
então confessado ao seu pároco, cônego ou autoridade religiosa equivalente quais as
extensões e natureza de sua transgressão. Sobre os casos de adultério, o Decretum menciona
“Cometeste adultério com a esposa de outro e tu não tens esposa? Farás penitência de 40 dias
a pão e água, o que em língua comum é chamado de carina, pelos próximos sete anos.”
(WORMS, 2016, p. 296)110, seguido por:
109
Burcardo foi bispo de Worms de 1000 a 1025, e é reconhecido como o principal canonista a escrever entre
1012 e 1023 uma coletânea de vinte livros sobre direito canônico intitulada originalmente de Collectarium
canonum ou Decretum. Nesse conjunto de textos, destaca-se especialmente o livro XIX, chamado "Corrector
Burchardi", que funciona como uma espécie de guia para o confessor (penitencial). Os temas abordados neste
livro são diversos, como o homicídio, o incesto, a fornicação, o furto, os juramentos, os abusos contra o cônjuge,
as superstições, as supostas feitiçarias, além de provações demoníacas (JÚNIOR; BIRRO, 2016).
110
Os trechos do Decretum aqui utilizados referem-se à tradução dos 4 primeiros capítulos do livro de
penitências e da introdução realizadas pelos professores Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFF) e Renan
Marques Birro (UNIFAP/USP), como consta no trabalho O Corrector Sive Medicus (ou Corrector Burchardi, ou
ainda De Poenitentia, c.1000-1025) de Burcardo De Worms (c. 965-1025): apresentação e tradução dos capítulos
1-4, além das “instruções” de penitência 001 a 095. In: Revista Signum, v. 17, n. 1, p. 266-309, 2016.
Disponível em: <http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum/article/view/188/195.>. Acesso: 21 fev,
2019.
150
sequenciais: uma por ter tido outra à revelia de tua esposa, e outra por adultério, que
nunca deve existir sem penitência. (WORMS, 2016, p. 296)
Note-se que em ambos excertos, as punições são direcionadas aos indivíduos do sexo
masculino. Ademais, tais castigos restringem-se apenas à privação de alimentos, baseando-se
em uma dieta restrita de pão e água pelo período de quarenta dias. Penas muito brandas para
indivíduos que sucumbiram ao pecado da luxúria e concupiscência, mesmo sendo casados, o
que em tese, configuraria um delito ainda maior devido à natureza sacra do matrimônio.
Tal aversão ao sangue feminino pode ser explicada, juntamente a outros fatores,
graças ao tabu dos fluidos corporais no medievo: o esperma e o sangue. Desde o advento do
cristianismo, a relação dos homens em relação ao sangue é de dubiedade.
Por conter no seio de sua doutrina o elemento do sacrifício individual de Cristo para
salvar a humanidade, representando constantemente pelos horrores sangrentos de sua Paixão.
Ademais, é Cristo quem fala durante a Santa Ceia “Tomai e comei, isto é o meu corpo” (Mc
14, 22), partindo o pão e distribuindo aos apóstolos, em seguida tomando o cálice de vinho
para pronunciar “Isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que por muitos é
derramado” (Mc 22, 24).
Mediante o que foi apresentado, o que se fazer quando o homem não respeita o
período de regras da mulher? Não seria uma dupla infração? Ao sangue impuro feminino,
junta-se o esperma masculino, outro fluido corporal é associado imediatamente à depravação
máxima do espírito e do corpo de um indivíduo, pois o sexo só deveria ser realizado com o
único intuito de procriar. O Decretum oferece um vislumbre da mácula e da penitência a ser
obedecida quando trespassada tal proibição:
As damas, indóceis, agressivas, são naturalmente hostis a esse macho a quem seu pai
ou irmão, ou filho primogênito as entregou. Não lhe suportam a necessária tutela.
Assim, no seio do par conjugal, trava-se uma luta, surda, tenaz, cruel. Diante do
esposo, que se irrita de a encontrar tão distante quando se dispõe ao amor, a esposa
se faz cada vez mais “pesada”, mais “renitente”, “taciturna” [...]. (DUBY, 2013, p.
259)
Vaidosas, até mesmo os cuidados com o corpo e aparência são condenados pelo clero
observador, o qual associa toda e qualquer prática de “disfarce” à feitiçaria e ação diabólica.
Nas palavras de Jean Delumeau, as “agentes preferidas de Satã” buscavam falsear e mascarar
sua aparência, de modo a seduzir, controlar e condenar os homens (DELUMEAU, 2009). Na
visão da Igreja, “[...] todas sendo mais ou menos feiticeiras, as damas preparam entre si
misturas suspeitas, a começar pelas maquiagens, os unguentos, as pastas depilatórias de que
se servem [...]” (DUBY, 2013, p. 258), sempre com intuito de dissimular suas verdadeiras
intenções.
Alguns até tentarem fabricar asas feitas com cera e penas, colocando-as ao redor do
corpo da donzela, na esperança de realizar seu sonho e garantir para sempre seus favores
(THE FABLIAUX, 2013, vv. 10-18, p. 340-341). Vendo tal situação, um jovem e esperto
estudante se propõe a resolver o dilema da donzela. Ele a diz que todos os esforços anteriores
foram inúteis, pois o que ela realmente precisava era um bico e uma cauda para poder içar-se
aos céus (THE FABLIAUX, 2013, vv. 19-34).
Ora, o tal estudante quis pregar uma peça na vaidosa donzela. O “bico” que lhe deu,
na verdade, foram bicadas, beijos amorosos para acalmar a excitação da donzela de ter,
enfim, seu sonho tornado realidade. Sobre a cauda que lhe prometera, a metáfora não poderia
ser mais explícita: a penetração em si, dissimulada por ser feita de quatro, por trás, tal como
os animais o faziam, e acima tudo, sendo prática condenada pela Igreja, como bem diz o
Decretum: “Copulaste com tua esposa ou com outra mulher por trás, à maneira dos cães? Se
tu o fizeste, farás penitência por dez dias a pão e água.” (WORMS, 2016, p. 299).
Extasiada pela emoção, a donzela ainda clama que seu “benfeitor” não cesse suas
ações, e fala ao jovem “[...] dê o seu melhor! / meta-lhe fundo, para que não caia/e mantenha-
se firme [...]” (THE FABLIAUX, 2013, vv. 52-55, p. 343, tradução minha) 112. O jovem
continua o ato e quando terminado, diz à donzela que que não seria hoje que o trabalho estaria
terminado.
Ouvindo tal notícia, a donzela rapidamente suplica ao jovem que não desista e que
retome o trabalho imediatamente, de modo que ambos, bico e cauda, principalmente esta
última, estejam prontos o mais rápido possível. Assim, o jovem atende os desejos da donzela,
manifestados em uma metáfora sexual poderosa, pós-desvirginamento, na qual a mulher
111
No original: “Li clers em .i. lit la cocha (Upon a bed the student placed her), / plus de .xxx. fois la besa; (and
more than thirty time embraced her.) / ele demande que c’estoit (He said, when she asked what this was) / Il dit
que lou bec li faisoit (for, he’s making that beak of hers). / Fet lo l’en donc en tel manière? (So that’s how beaks
are made, you say?) /- Oïl. Tornez vos par derriere (Yeah. Turn around the other way) / que la coë i enterai (and
I will graft the tail on you). / - Danz clers, fet ele, je ferai (Student, she says, I’ll gladly do) / tot ce que vos
m’ensaigneroiz (whatever you tell me I need) / mes gardez que vos n’I failloiz (to do, but make sure you
succeed) / Cele se torne a estupons (The damsel turns around and crawls); / il li enbat jusqu’as coillons (on all
fours. Right up to the balls) / lo vit el con sanz contredit (he rams his peter in her cunt)/& la damoisele li dit
(while she wants to be told up front)/ & demant comment ce vet (exactly how his work advances).”
112
No original: “Danz clers, fet el, or esploitiez! (Student, she says, give it your all!) / Botez parfont, si l’atachiez
(Stick it in deep, so it won’t fall) / si fermement qu’ele ne chiee! (off but hold firmly).”
154
nunca estaria satisfeita o suficiente depois de provar das tentações carnais (THE FABLIAUX,
2013, vv. 66-78).
Quando exposto em toda sua trama, o jovem estudante prontamente reage e assim
responde à donzela enganada:
113
No original: “[...] vos m’alez a grant tort blasmant (why turn on me? What do you want?), / que, par la foi que
je vos doi (You’re not diminished in your stature) / n’iestes pas descreüe en moi (when big with child – that’s
only nature)/se grosse iestes – ce est nature (you take my word for this, however,) / mes ce estoit grant
desmesure (that it was prideful beyond measure)/que par l’air volïez volez (to think you could fly through the
air); / par trop en faites a blasmer (more shame to you! How did you dare?) / De poi estes apesantie (Now you be
a bit less flightly).
155
Embora tais características sejam associadas quase que de imediato como a figura
feminina, a mentira e a dissimulação também são outras comumente atribuídas às mulheres no
medievo. Aos relatos de desobediência e insubmissão, há os de pura malícia, inteligência e
esperteza direcionadas para ações moralmente questionáveis. Se os fabliaux explicitam de
maneira crua e direta os vícios e os perigos do convívio feminino entre os séculos XII e XIII,
outros textos partem por um caminho menos visceral, expondo quase que de modo
pedagógico uma mensagem de alerta para quem ouvia e lia tais histórias.
Marie de France, supracitada anteriormente graças aos seu lais, acabou por escrever
um número bastante expressivo de pequenas fábulas, versando sobre temas que iam do amor,
cavalaria e casamento ao adultério e folclore medievais (GILBERT, 2015). Duas destas
fábulas trazem à tona o tema do adultério, mais precisamente a forma como duas camponesas
conseguem ludibriar seus esposos de suas traições, inclusive, em pleno flagrante.
Intituladas A mulher que enganou o marido e Pela segunda vez, uma mulher engana
seu marido115, as duas breves narrativas expõe como as mulheres podem ser dissimuladas e
114
No original: “En tel manière l’a servie (As you can hear, it served her right. He) / com vos poëz ici oïr (gave
her a lesson for her cheek), / & ce l’en doit bien avenir – (which she deserved. The more you seek) / qui otage
quiert, il li vient (to rise, the harder you will fall,) / Por ce de ceste me sovient (and so I think of her whose gall) /
qui trop estoit desmesuree (and hubris were on such a scale). / Issi li fu la qeue entee (she ended up stuck with a
tail).
115
Traduzidas a partir das versões em inglês das fábulas “The Woman Who Tricked Her Husband” e “A Second
Time, a Woman Tricks Her Husband”, respectivamente. Tais traduções para o inglês diretamente do francês
arcaico se encontram na edição crítica e comentada da obra de Marie de France, da professora Dorotthy Gilbert.
156
enganadoras, sendo capazes de fabricar toda uma história fictícia que as dê vantagem sobre
seus cônjuges.
Na primeira, Marie nos conta que um camponês ao chegar em casa, depara-se com a
visão de sua mulher partilhando a cama com outro homem. Logo, explode em fúria e
questiona a esposa o que havia acontecido:
Em seguida, a esposa toma o marido pelas mãos e o guia até um vaso com água.
Confuso por tal atitude, o camponês logo indaga a mulher qual a razão para tal ato. Ela, por
sua vez, o pede para que olhe dentro da bacia e diga a ela o que ali vê (MARIE DE FRANCE,
2015, vv. 17-22, p. 191). A resposta obtida é “[...] apenas ele mesmo, um reflexo ali.”
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 191, tradução minha)117.
As traduções para o português aqui encontradas seguirão tal edição. C. MARIE DE FRANCE. Poetry.
[Translated and edited by Dorothy Gilbert]. New York: Norton Critical Editions, 2015.
116
No original: “What have I seen’, he said, ‘Alas!’/His wife at once responded thus: /’Dear heart, whatever’s
wrong with you?’/’Another man! I saw, I knew - / I saw him take you, on our bed!’/Furious, the peasant’s wife
the said/ ‘Oh, not again! When will I learn! / I knew this madness would return!/Ilusions, lies! You think them
true!’/ ‘Wife, I know what I saw of you.’/ ‘You’re crazy if you take’, said she, / ‘for truth this thing you’ve
claimed to see.’”
117
No original: “Just his own self. An image there.”
118
No original: “Surely, dear, you’re not / with all your clothes, inside that vat; / you see an empty likeness that /
you must not trust – dismiss the thought! / Your eyes lie; they mispresent!”.
157
E é assim que Marie narra a resposta do marido à sua esposa, maravilhado por tal
“descoberta”:
Nessa primeira fábula, a esposa do camponês de fato não mentiu para o esposo.
Marie colocou as ações da mulher sob a linha tênue do disfarce e da dissimulação, pois a
personagem apenas demonstra ao marido uma outra forma dele perceber e compreender
aquilo que seus olhos demonstraram. De todos os sentidos, a visão deteve a maior importância
durante o período medieval justamente por conta poder catártico que causa nos homens.
Portanto, a primeira fábula de Marie de France joga com tais elementos teóricos e
narrativos, ainda que tenha como objetivo claro e direto alertar para aquilo que os olhos veem.
A autora, ao finalizar a fábula, brinca uma vez mais sobre o fato do marido tomar como
verdade absoluta aquilo que sua esposa o havia demonstrado. Ela diz, “Nós, graças a este
conto moral, podemos ver / como o bom senso e sagacidade / são de grande utilidade na vida
119
No original: “The husband said: ‘Oh, I repent! / Surely a man, to prosper, must / give what his wife says all
his trust, / rather than what his false eyes see - / sight makes the fool, so easily!’”.
158
das pessoas / mais do que as posses, mais do que parentes – ou esposas!” (MARIE DE
FRANCE, 2015, p. 192, tradução minha)120.
No que tange a segunda fábula, Marie nos apresenta outro casal de camponeses,
seguindo a mesma linha narrativa em que o esposo apanha a mulher e o amante em pleno
flagrante. Dessa vez, o marido observa sua esposa sendo levada para dentro da floresta por um
homem desconhecido. Irado, persegue a ambos e perde o rastro do homem, que amedrontado,
foge e se esconde atrás de um arbusto (MARIE DE FRANCE, 2015, vv. 1-18, p. 192).
Vendo o esposo em tal estado de fúria, a mulher o indaga qual a razão para tanto, e o
que ela poderia ter feito para deixá-lo tão irado. O homem prontamente responde que havia
visto ela e o amante irem juntos até a floresta, onde foram desonrá-lo e envergonhá-lo sob a
luz da noite, onde as sombras iriam escondê-los em sua devassidão. Ouvindo atentamente o
esposo, a mulher logo pergunta se ele tinha certeza de tê-la visto acompanhada de um homem
e quando seu marido confirma, a esposa lhe fala:
Indo além, a mulher pede ao marido que reúna seus parentes o mais rápido possível,
para que possam dividir entre si as posses, além de pedir que o marido vá até o convento mais
próximo em busca de freiras para fazerem seu cortejo fúnebre (MARIE DE FRANCE, 2015,
vv. 28-32). Desesperado com a atitude e as palavras que acabara de ouvir da esposa, o marido
lhe diz para se acalmar, não sucumbir à tristeza e desespero, e que não fosse para longe dele.
Completa dizendo ainda que havia mentido para ela, pois não viu homem algum a levando
para longe.
120
No original: “We, by this moral tale, can see / how plain sense and sagacity /are of great worth in people’s
lives; / more than goods, more than kin – or wives!”
121
No original: “Alas, I’m dead!’, she said, ‘I’ll die / tomorrow, possibly today. / My grandmother died this same
way, / my mother – I saw that, I say! / A bit before their deaths, each one / (this I am saying is well known) /
were led away by a young man / where, otherwise, they’d not have gone. / I know so well my end is near!’”
159
Ditas tais palavras, o esposo logo aceita as condições e ambos vão para uma igreja,
de modo a jurar sob Deus, mais uma vez, o compromisso e validade de sua união.
Observemos, então, a exigência da esposa de conclamar um juramento público por parte do
marido, exigindo que este jure pela fé, diante de todos os familiares de sua mulher, que esta
não é culpada do crime e do pecado de adultério.
Ora, ainda que subordinada à autoridade masculina, não era a mulher membro de tal
comunidade? Em tese, seus direitos, sobretudo em relação ao cônjuge, deveriam ser
observados, desde que levados até a instância pública de averiguação de possíveis problemas.
Embora o matrimônio medieval fosse considerado em si uma célula de caráter privado,
concernente apenas ao senhor (marido) e sua posse (esposa), o contrato conjugal especulava e
permitia contestações sobre a união, sobretudo se houvesse suspeita – e confirmação – de
adultério de uma das partes.
Não é permitido devolver sua esposa, exceto em razão de fornicação, isto é, se ela
perpetrou adultério com outro. Neste caso, é permitido devolvê-la em virtude da
fornicação, mas, enquanto viver, não te casarás com outra. Mas se permanecer em
regime privado por própria vontade e se ambos não proclamarem a separação, que
permaneçam assim. Contudo, se ambos proclamarem a separação [o divórcio?],
perante o bispo eles devem penitência, isto é, após o sétimo ano da penitência, se
pedirem, ele deve reconciliá-los. A mesma lei serve para o marido contra a esposa;
se ela perpetrou adultério, e se ela desejar, pode devolver o marido em virtude da
fornicação, pela mesma razão supracitada da esposa que está perpetrando adultério.
(WORMS, 2016, p. 297, grifo meu)
Logo, a saída encontrada pela esposa foi o testemunho público e pessoal do marido
para inocentá-la perante seus parentes e a comunidade na qual pertenciam. Além de obedecer
aos mandamentos da lei do homem e da lei divina, daí o fato de ambos terem ido até uma
igreja para jurarem novamente um ao outro seu compromisso mútuo.
123
Adjetivo derivado da palavra chicana, cujo sentido, no vocabulário jurídico, está basicamente atrelado à
existência de uma dificuldade criada, no decorrer de um processo judicial, pela apresentação de um argumento
com base em um detalhe ou ponto irrelevante, valendo-se do abuso dos recursos, sutilezas e formalidades do
sistema jurídico.
161
124
No original: “Thus man fault women; say they see / how women use chicanery. / Ingenious, devious, crafty,
evil - / they’ve more art than the very devil!”
162
Embora atraentes, tais concepções devem ser matizadas como uma forma de evitar a
manutenção e generalização tão comuns a este tema. Não seria negar de modo algum a veia
misógina e repressiva corrente durante o período estudado, apenas fornecer caminhos,
hipóteses e direcionamentos alternativos condizentes e responsáveis de acordo com o
contexto, agentes e forças históricas da época. Durante o período que recobre os séculos X ao
XIII, o Ocidente medieval reconhece, absorve e reproduz um novo ethos:
Nos séculos XI-XII o Ocidente adquire uma unidade e uma vitalidade até então
desconhecidas. Poupado pelas invasões que, no passado, muitas vezes lhe tinham
confundido os traços, ele dilata-se. Do ponto de vista ideológico, os valores cristãos
dão-lhe coesão. [...] A Igreja não se contenta em ganhar territórios e almas. Tomada
de um ardor incoercível, ela purifica-se e quer cristianizar em profundidade;
paróquias e mosteiros multiplicam-se. Ao mesmo tempo, a população aumenta, as
terras cultivadas expandem-se, cidades e comércio reanimam-se enquanto se
estabelecem os novos quadros do poder político. (PERROT, 1990, p. 273)
Ora, é senão no século XII que a figura da mulher é alçada à sua mais pura condição
natural, exemplificada no maior e mais destacado modelo feminino a ser imitado. O culto
mariano atinge seu apogeu no mesmo século da denominada “Renascença do Século XII”,
164
além de ser fruto das reformas eclesiásticas do papa Gregório VII no século anterior (1073-
1085), em que gradativamente a figura da redentora foi associada à purificação de uma
sociedade mergulhada em constante pecado e degradação (RÉGNIER-BOHLER, 2006).
A associação entre a virgindade mariana e o culto à Santa Igreja não é realizada por
acaso na obra de Agostinho. Se o corpo humano, mais notoriamente o feminino, é receptáculo
e invólucro de todo o pecado na Idade Média (PILOSU, 1999; SCHMITT, 2014), a figura de
Maria tornou-se rapidamente um elemento duplo de expressão social e cultural: por um lado,
representava o processo de humanização do cristianismo medieval e por outro a principal
expressão de uma feminilização do sentimento religioso no período (FRANCO JÚNIOR,
2010).
por uma situação demográfica favorável, as mulheres são menos numerosas do que os homens
(FOSSIER, 2007).
absolvição às criaturas anteriormente condenadas por sua própria natureza desde o Pecado
Original.
Ciente das estruturas as quais também pertencia, o clero medieval buscou aprofundar
tais prerrogativas nos estratos sociais qualitativamente homônimos em relação à condição.
Nada mais óbvio que a valorização dos discursos e dos ensinamentos proferidos aos grandes
senhores – e senhoras – serem engendrados no seio da aristocracia feudal, cuja influência e
alcance do clero havia perdido força desde a derrocada no Império Carolíngio no século X:
Embora tal dualidade exacerbada não seja a regra geral dos matizes comportamentais
no medievo – como este trabalho busca apresentar –, é sabido que, paradoxalmente, é graças
ao seu maior elemento de condenação – a mulher –, que o cristianismo buscou resgatar a
humanidade. Por intermédio da figura da Virgem que a Igreja se aproximou e ajuntou cada
vez mais os fiéis segregados e esquecidos em busca de redenção.
125
A partir do século XI, o hino Salve Rainha estabelece essa relação imediata entre Eva e Maria: “Salve Regina,
Mater misericordiae: Vita, dulcedo et spes nostra, salve! Ad clamamus, exsules, filii Hévae” [Salve Rainha, Mãe
de Misericórdia, vida e doçura esperança nossa, salve! A vós clamamos, degredados filhos de Eva, em tradução
livre].
167
Cabe mencionar ainda a repercussão do culto mariano nos estratos sociais mais
afastados da condição aristocrática. Falar sobre a Virgem, pregar o culto à figura redentora de
Maria, sobretudo ao público feminino, denotou um esforço constante e considerável da Igreja
desde o início do século XI. Quando se fala em Ocidente medieval, sobretudo dentro recorte
temporal estabelecido, observa-se que o teor das obras, pregações e publicações “comuns”
tanto à nobreza quanto ao campesinato seguiram de pensamento teológico e cultural que
muitas vezes os aproximaram entre si.
Não somente uma cultura de elite, livresca, construída em alguns locais especiais
por algumas grandes personalidades, mas também e sobretudo uma cultura dos
campos, das praças, das tavernas, das estradas, cultura oral, anônima, na qual todos
são elaboradores, receptores e transmissores. Cultura “popular”, portanto. Para esse
estudo o historiador recorre a um instrumental variado, tomado de empréstimo ao
168
Some-se isso a ideia de que, desassociando o termo “cultura popular” como a noção
equivocada de que tudo aquilo que é rústico, ilógico e, principalmente, iletrado, ao se falar de
Idade Média, é vinculado imediatamente às camadas populares, o que temos é a ideia de que
há um componente erudito na construção de toda cultura popular (CERTEAU; JULIA;
REVEL, 1970; FRANCO JÚNIOR, 1996). Desse modo, a alternativa encontrada baseia-se no
conceito de uma manifestação cultural “[...] praticada, em maior ou menor medida, por quase
todos os membros de uma dada sociedade, independentemente de sua condição social.”
(FRANCO JÚNIOR, 1996).
ligadas ou não à aristocracia gozaram de certa autonomia para exercerem de modo ativo
diferentes papéis na estrutura social do período.
[...] áreas culturais específicas, grupais, classistas, sociais enfim, que se inter-
relacionam exatamente porque têm um imenso repertório de pontos comuns. E é
através dessa área de intersecção que determinados pontos podem migrar num
sentido ou noutro, alargando essa zona de identidade grupal (étnica, religiosa,
linguística, artística etc.) e de intermediação cultural (a partir da qual ocorrem
eventualmente mudanças sociais). (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 35)
Um outro ponto de discussão entre Eva e Maria relaciona-se aos arquétipos de beleza
femininos estabelecidos no medievo. Tendo em mente a suposta oposição intrínseca entre
ambas as figuras, é mais óbvio transfigurá-las em sentidos opostos quando se fala da natureza
de suas representações. O ideal mariano, logicamente, remete à uma beleza sacra, em
contraposição à beleza profana e luxuriosa representada por Eva. Ademais, há de levar-se em
conta a reprodução, sobretudo pela iconografia medieval, de ambas as mulheres, notadamente
descrevendo-as entre a dupla concepção do nu/vestido.
170
Nessa civilização dos gestos e dos costumes, como garante Jean-Claude Schmitt, há
uma “encenação dos corpos”, um teatro estabelecido pelas tensões do corpo feminino,
constantemente atravessado pela dinâmica que encara a representação da nudez feminina
sobre o pêndulo oscilante entre a inocência do homem enquanto indivíduo antes do Pecado
Original – o presente de Deus dado ao homem e à mulher, sua beleza divina – e a volúpia
insidiosa que recai sobre a mulher após a expulsão do Paraíso (SCHMITT, 2014). Sobre tal
aspecto, convém mencionar que a nudez para homem medieval, não se constituía em um tabu.
Mesmo condenada dentro do círculo eclesiástico, o corpo nu encontrou-se no centro de uma
promoção e de uma desvalorização de seus aspectos (LE GOFF; TRUONG, 2010).
FIGURA 15 – A VOLÚPIA
Escultura do século XIII (c. 1230), representando a Volúpia. Boa parte do simbolismo da obra reside na
imagem feminina sendo coberta por um manto feito a partir da pele de um bode, animal tradicionalmente
associado ao Diabo. A Volúpia ainda demonstra toda sua malícia ao instigar a curiosidade dos
171
observadores ao ocultar seu sexo com uma das patas presente no manto, deixando apenas os seios
desnudos como que um convite à luxúria. Fonte: <https://www.ricardocosta.com/artigo/donzela-que-nao-
podia-ouvir-falar-de-foder-e-da-mulher-quem-arrancaram-os-colhoes-dois>. Acesso: 22 fev, 2019.
delicados. Tais representações são ambíguas, pois podem “[...] ser um hino à beleza física,
mas também um aguilhão da sexualidade e da luxúria” (LE GOFF; TRUONG, 2010, p. 142).
Desse modo, os despojos e adornos femininos na Idade Média entram em cena como
expressões individuais tanto de uma individualidade pungente quanto de uma sexualidade
constantemente reprimida, porém professada do que é ser mulher em tal período. A vaidade
feminina, comumente associada às mais diversas formas de ofensa ao Criador, é colocada em
xeque pelos escritos da época que alertaram homens e mulheres em relação ao uso e abuso de
ferramentas artificias para disfarçar, modificar ou até mesmo enganar os outros.
André Capelão em seu Tractatus de Amore faz um apelo aos homens que prestem
bastante atenção ao se depararem com mulheres demasiadamente “disfarçadas” pelos
cosméticos da época:
Mas se vires uma mulher com excesso de arrebiques, não te deixes seduzir por sua
beleza antes de teres certeza de que ela não frequenta lugares de prazer, pois a
mulher que só conta com o poder de sedução dos seus arrebiques não costuma ser
ornamentada por muitas virtudes. [...] Cuida então, [...] de não seres enganado pela
beleza vã das mulheres, pois elas são tão argutas e têm a palavra tão fácil que,
quando tiveres começado a usufruir de seus favores, será bem difícil renunciar a
amá-las. (CAPELÃO, 2000, p. 18-19)
A associação que o autor faz do uso de maquiagem pelas mulheres com a suposta
ocupação delas enquanto cortesãs é bastante explícita. Em contraposição aos adornos
corporais, Capelão postula que o ornamento moral de tais mulheres não é digno da atenção
masculina e nem apto para desfrutar da corte do Amor. Ainda em seu tratado, o mesmo dedica
algumas linhas para falar acerca do “amor das cortesãs”:
Alguém poderia perguntar o que pensamos do amor das cortesãs. Diremos que é
absolutamente necessário fugir delas, pois é uma ignomínia frequentá-las, e em
companhia delas sempre cometemos o pecado da impudicícia. Além disso,
raramente uma cortesã se entrega a alguém sem antes ter recebido um presente que
lhe agrade. Aliás, mesmo ocorrendo que uma mulher dessas se apaixone, não resta
dúvida que seu amor é funesto para os homens: todos os que tenham bom senso
reprovam o comércio íntimo das cortesãs, e quem as frequenta perde a boa
reputação. Por isso, não queremos expor os meios de conquistar o amor delas, pois,
seja qual for o sentimento que as leve a entregar-se a quem o solicite, sempre o
fazem sem necessidade de muitos pedidos; portanto, não deves procurar conhecer a
técnica do amor nesse campo. (CAPELÃO, 2000, p. 208)
Os manuais de beleza feminina não eram artigos tão raros assim no medievo.
Entretanto, poucos sobreviveram às intempéries do tempo, aos desmandos dos governos e até
mesmo às intervenções clericais, que consideravam o adorno feminino, o embelezamento
pessoal e a vaidade como sendo artigos de luxúria voltados para o prazer carnal e mundano.
173
Logo no prefácio da obra, o autor procura expor os motivos que o levaram a compor
tal obra. Segundo ele, Deus em sua infinita sabedoria deu à mulher beleza eterna no momento
da Criação. Porém, graças a pecado de Eva, todas as mulheres foram condenadas a pagar um
preço físico pelo Pecado Original: além de conhecer a dor do parto, teriam que conviver com
o envelhecimento, tendo no auge de sua juventude a pele macia e clara; e após o decurso dos
anos, seriam marcadas pelo peso da idade e do casamento (ORNATUS MULIERUM, 1967,
p. 32)
Desse modo, como uma forma de garantir os favores e as boas graças das mulheres,
o autor procura em sua obra ensiná-las como preservar a beleza e os cuidados com a aparência
mesmo com o passar dos anos. Uma outra preocupação do autor em sua obra, talvez ainda
imbuído pela moral cristã ou então pelo ideal da cortesia, é de preocupar-se em descrever os
cuidados com o corpo apenas do busto feminino até a cabeça. O mesmo afirma no prefácio da
obra que:
126
Contendo ao todo 319 fólios, o manuscrito foi grafado em dialeto anglo-normando, com rubricas e títulos
sendo escritos em latim. Devido a tais características incomuns, Pierre Ruelle, cuja tradução do manuscrito
original em para o francês moderno é aqui utilizada, determinou o tempo de confecção da obra entre a segunda
metade do século XIII, na parte meridional da Inglaterra, sendo posteriormente copiada para outros manuscritos
a partir do século XV em diante.
174
O cuidado com os cabelos, desse modo, estava diretamente ligado com a condição na
qual as mulheres estariam ou não apresentáveis para o convívio social, seja de qual segmento
pertencessem. Como então fazer para que estes mesmos cabelos não caiam e mantenham-se
longos e fortes? O autor nos responde:
Para conservar o comprimento dos cabelos, por sua vez, tal era a receita prescrita:
Para conservar o cabelo
Se desejas que teu cabelo cresça longo e firme, pegue uma boa quantidade de cevada
junto de carne de toupeira. Queime-os em um vaso não utilizado e reduza-os à pó.
Pegue um pouco de mel branco para ungir o local onde queres que o cabelo cresça.
Coloque o pó em cima e espere por dois dias. Ao terceiro dia, enxágue sua cabeça
com água fervida com hortelã e sálvia. (ORNATUS MULIERUM, 1967, p. 34,
tradução minha)129
Você irá remover manchas marrons do rosto desta forma: alguns pegam dois ovos
de galinha e coloca-os no vinagre até a casca amolecer. Então, pegam um bom
punhado de farinha de mostarda selvagem e mistura tudo com os ovos e um pouco
do vinagre. Coe a mistura com um pano e esfregue seu rosto com o preparo,
deixando assim pela noite inteira. Pela manhã, lave com água limpa. Prossiga com
isso várias vezes e assim as manchas desaparecerão. Porém, não utilize esta receita
com uma mulher grávida, caso contrário ela perderá sua criança. (ORNATUS
MULIERUM, 1967, p. 55, tradução minha)130
matin et soir. Je vis en Pouille une dame qui, chaque année, perdait ses cheveux. Trote de Palerme les soigna de
cette manière : elle prit de la nielle, quelle calcina, de l'écorce de saule, des feuilles de figuier et de la cendre de
châtaigne, de vigne et d'euphorbe ; elle fit macérer le tout dans de l'huile d'olive et, après que la tête fut lavée
d'eau de pluie, elle la frotta quatre fois de cette préparation. Depuis lors, les cheveux ne tombèrent plus jamais. »
129
No original: « Pour conserver les cheveux - Si vous voulez que les cheveux repoussent longs et serrés à
suffisance, prenez une bonne quantité d'orge et une taupe, calcinez le tout dans un récipient qui n'ait pas encore
servi et réduisez en poudre. Prenez du miel blanc et oignez l'endroit où vous voulez que les poils poussent, puis
jetez-y la poudre et attendez deux jours. Dans le courant du troisième jour, lavez avec de l'eau où l'on aura fait
bien chauffer de l'orcanète, de la menthe et de la sauge. »
130
No original: « Il survient parfois au visage mainte chose désagréable, comme les taches de rousseur et bien
d'autres maladies. Vous ferez disparaître les taches de rousseur de cette manière : d'aucuns prennent deux œufs
de poule et les mettent dans du vinaigre jusqu'à ce que les coquilles soient amollies, prenez ensuite une bonne
176
A higiene bucal também era levada em consideração, pois há uma breve passagem
no texto que menciona os cuidados para clarear os dentes. Mesmo dentro do seio aristocrático,
os cuidados com a boca eram escassos, logo, não há surpresa quando o autor do Ornatus faz
indicações de como preservar a alvura dos dentes por mais tempo. Basta que as mulheres
obedeçam desta maneira “[...] Se queres clarear os dentes, pegue farinha de cevada muito
limpa, alume em pó fino e sal aquecido; misture-os com um pouco de mel derretido. Se
esfregares os dentes frequentemente com tal preparação, eles irão embranquecer.”
(ORNATUS MULIERUM, 1967, p. 73, tradução minha).131
poignée de farine de sénevé, délayez avec les oeufs et avec un peu de vinaigre et passez dans une étoffe,
frictionnez le visage avec cette préparation et laissez-y la toute la nuit, le matin lavez à l'eau pure. Procédez ainsi
de manière répétée et les taches de rousseur s'en iront, mais n'appliquez pas ce remède à une femme enceinte, car
elle perdrait l'enfant. »
131
No original: « Pour blanchir les dents, prenez de la farine d'orge bien propre, de l'alun en menue poudre et du
sel décrépité, mélangez en ajoutant un rien de miel fondu, frottez-vous fréquemment les dents de cette
préparation et cela vous les rendra blanches. »
177
meditação e oração, como a oração contemplativa, oração da união, a lectio divina, oração de
quietude e a oração de Jesus (NOGUEIRA, 2013):
A mística faz parte da história da filosofia (ou pelo menos nela está presente) desde
suas origens até os dias hodiernos. Para verificarmos tal assertiva, basta revisitarmos
a obra ou o pensamento de alguns filósofos. Assim, por exemplo sem entrarmos em
detalhes em relação às grandes divisões ou classificações da mística (fiquemos com
a do Ocidente e com as vertentes chamadas pagãs e cristãs), temos desde os órficos e
pitagóricos, passando por Platão, Plotino e o Neoplatonismo na Antiguidade. [...] Na
Idade Média um nome se destaca como elemento propulsor das especulações
místicas: Dionísio, o pseudo-areopagita. Depois dele ou por causa dele (da
repercussão de sua obra), a filosofia medieval, na sua vertente cristã, se vê enredada
numa mística que une elementos pagãos e cristãos e que termina por estabelecer a
estrutura e a terminologia do que chamamos de mística cristã. (NOGUEIRA, 2013,
p. 156-157)
132
As beguinas foram mulheres leigas católicas que praticavam uma vida ascética em comum, semelhante com
a monacal, atuando na maior parte das vezes nos chamados beguinários, na área da atual Bélgica. Suas ações
foram contemporâneas ao surgimento das Ordens Mendicantes no século XIII (franciscanos e beneditinos), o que
decerto influenciou no fato de que as beguinas dedicaram-se ao cuidado dos doentes e dos pobres, assim como às
tarefas caritativas e piedosas, sem estar contudo vinculadas a regras de clausura nem a de votos monásticos.
178
A solução destes problemas, de acordo com suas ideias, devia advir de uma união
cooperativa e harmoniosa entre corpo e espírito, entre a real natureza humana e a graça
Divina, como visto na sua principal obra, o Liber scivias Domini, abreviação de Scito vias
Domini [Conhecei os caminhos do Senhor, em tradução livre], escrito entre 1141-1150. Nela,
a abadessa dirige-se diretamente às camadas indolentes do clero medieval, exortando-os e
repreendendo-os a retomarem o reto caminho da fé e das obras de Deus.
Um outro escrito notável de Hildegarda foi o Liber vitae meritorum [Livro dos
méritos da vida, em tradução livre], um tratado sobre a ética comportamental e a descrição
dos vícios e virtudes comumente reproduzidos na sociedade medieval da qual a abadessa
convivia.
179
Obviamente, a própria concepção de amor havia sido alterada, haja vista que os
principais teólogos – e místicas – do período foram levados por esse conjunto de
transformações a elaborarem novas perspectivas sobre o mesmo:
Estes o imaginavam como uma avidez. Ou esse desejo projeta-se para o alto, para o
espiritual, para Deus, e era denominado caritas. Ou então para baixo, para as coisas
terrestres, e era denominado cupiditas. Sobre essa simples clivagem baseava-se a
moral do bem e do mal e, especialmente, o julgamento sobre o comportamento dos
machos com relação ao outro sexo: o amor era visto como uma pulsão egoísta, um
apetite: é por mim, para saciar minha cobiça que me lanço sobre tal objeto, sobre tal
ser. [...] No começo do século XII, nas escolas parisienses, desenha-se uma
reviravolta. O amor, o bom amor, não é mais visto como uma captura, mas como um
dom. (DUBY, 2013, p. 345)
Nesse primeiro estágio, o homem estima a si próprio. Tal estima provém do interesse
intrinsicamente carnal da natureza humana, logo, é sabido que Deus criou a carne do homem,
e o salvou por intermédio desta mesma carne. Quando o homem se eleva para além das
preocupações carnais – vide o sexo – , ele ama a Deus são por puro egoísmo, para apropriar-
se da ideia de recompensa advinda do Criador, já que “[...] seu fruto é ele próprio [o amor].
‘Amo porque amo, amo por amar’. Amor gratuito, amor ‘puro’, ‘tanto mais suave e doce
133
São Bernardo de Claraval (1090-1153) foi um abade francês da ordem cisterciense e um dos doutores da
Igreja. Responsável pela reformulação da Ordem de Cister, ajudou na consolidação dos ideais monásticos e
ascéticos no âmbito das ordens religiosas cristãs.
134
O tratado eclesiástico aqui escrito por São Bernardo por objetivo refletir sobre sua experiência espiritual
durante a II Cruzada e para incitar a Cristandade sobre as maneiras de amar à Deus sobre todas as coisas. No
tratado, São Bernardo distingue sete maneiras distintas do amor ao divino, tecendo críticas ao amor material e
mundano em detrimento da experiência religiosa que o amor direcionado à Deus proporciona.
180
quanto aquilo de que se pode tomar consciência é todo divino.’” (DUBY, 2013, p. 346, grifo
meu):
De fato, pode-se duvidar se Deus há de ser amado por mérito dele ou para nossa
vantagem. Na realidade, eu responderia o meso em ambos os casos, quer dizer, não
há por mim outra razão digna de amar a Deus a não ser Ele mesmo. Primeiramente
vejamos o mérito da questão. Ele mereceu muito por nós, pois entregou-se por nós
que não merecíamos. O que Ele podia dar de melhor do que si mesmo? Portanto, se
se procurar a causa pela qual Deus há de ser amado, se busca o mérito de Deus, e
aquele é o fundamenta: que Ele por primeiro nos amou. Por isso, Ele é digno de ter
seu amor de volta, especialmente quando observa-se quem amou, quem foi amado e
quanto tenha amado. (CLARAVAL, 2010, p. 9)
Devido à tal prerrogativa, e absorvendo os estudos, as obras e as manifestações das
místicas medievais, o clero medieval se viu obrigado a falar às mulheres. No século XII, por
intermédio dos tratados morais, penitenciais e cartas, em um primeiro momento “[...] a
maioria das mulheres a quem os homens da Igreja escreveram eram religiosas, embora fossem
também esposas, mas de Cristo [...]” (DUBY, 2013, p. 308). À época em que o Pecado
Original fora transformado em pecado sexual, intensificaram-se o cerco, a zombaria, o
desprezo e o medo que os homens – do claustro ou não – sentiam pelas mulheres.
É notório que o teor dos escritos direcionados aos mosteiros, abadias e conventos
difere-se daqueles voltados ao público leigo, ou então ao público das grandes casas senhoriais.
Cientes do papel cada vez maior das mulheres dentro do seio estrutural da hierarquia
eclesiástica, o clero masculino dirige-se à essas mulheres com uma linguagem
condescendente, procurando lembrá-las de que “[...] ninguém se esqueça de que eles
dominam, paternalmente por certo, mas com firmeza, as que não chamam suas damas, mas
suas irmãs, e, com mais frequência, suas filhas” (DUBY, 2013, p. 308).
Embora absortas dentro deste contexto, as místicas femininas travam uma batalha em
diferentes polos das instituições eclesiásticas do Ocidente medieval. Se por um lado estão
completamente distantes da figura pecadora de Eva, por outro, aproximam-se um pouco da
representação da Virgem, negando-lhe, porém, a subserviência, retidão e sacralidade
comumente impostas à imagem de Maria.
Um paralelo que pode ser estabelecido entre tais mulheres nesses diferentes
contextos é o apelo ético e teológico para uma nova forma de compreender o mundo em que
vivem: como lidar com visões, seus corpos, o uso de seu intelecto, seu próprio poder e
autoconfiança para dar forma para sua própria vida (TROCH, 2013).
Entretanto, tais “estratégias de combate” sofrerão uma forte ofensiva que se inicia
sob uma dupla face a partir dos séculos XV e XVI: a um primeiro instante graças à ação da
181
Por sua vez, a ofensiva que parte dos centros urbanos se concentrou no poder e na
influência exercidos pelas universidades. O surgimento das universidades mantém o
conhecimento sob controle, logo, o saber intelectual das místicas estava diretamente sob o
jugo das autoridades escolásticas.
Logo, suas vozes e suas escritas soam como uma espécie de transgressão, aliás, de
uma quádrupla transgressão: uma transgressão de gênero (mesmo que não deva ter o
peso do sentido moderno do termo); uma transgressão da ortodoxia da Igreja
(quando criticam explicitamente ou veladamente alguns dos seus hábitos); uma
transgressão linguística – ou de expressão – (posto que escrevem em língua
vernácula e não em latim – língua oficial da igreja) e uma transgressão dos limites
da relação entre o humano e o divino (quando a alma e Deus se tornam um só). Ora,
se os escritos dessas mulheres nos espantam, não só pela vivência que eles refletem,
mas também, como afirmam alguns estudiosos, pelo enraizamento de um fundo
sólido de conhecimentos; o que dizer da reação de muitos dos seus contemporâneos:
um assombro que alguns consideraram maravilhoso e outros, perigoso.
(NOGUEIRA, 2013, p. 162-163)
Desse modo, oferece-se aos leitores, aos especialistas, aos leigos e demais entusiastas
da Idade Média, um vislumbre modesto acerca de um pequeno recorte do universo feminino,
calcado na análise responsável dos testemunhos históricos legados até nós, sobretudo pela
literatura, como forma de apreender, criticar e refletir sobre a realidade das relações e tensões
sociais que demarcaram posturas, discursos e representações comportamentais tão ricas e
complexas de serem analisadas pelo historiador do medievo.
183
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enfim, surge o roman, que embora não fosse o pioneiro no tratamento dos temas
sobre o Amor Cortês, irrompe na vanguarda de um curso literário agora disposto a delimitar,
representar e exemplificar o que era, como podia nascer, como se manifestava e como
circulava esse ideal para o Amor. Produto das forças históricas que moldaram o cenário
político, econômico e cultural da Europa e, sobretudo da França, durante a época feudal esse
gênero acabou por aglutinar as especificidades tanto de seus autores como também de seus
184
receptores, aqueles que de início apenas ouviam, mas que agora poderiam ouvir e ler ao
mesmo tempo.
Jogando com tais premissas, os heróis e heroínas – além, claro, de seus algozes –
representados nesse meio literário ajudaram na construção histórica de si mesmos enquanto
agentes de compreensão do real. As figuras imaginárias, os lugares, as aventuras e decisões
tomadas servem como elementos de decodificação da fonte literária enquanto produtora
narrativa de um “regime de verdade” e de construção social sobre as relações entre homens e
mulheres sob a influência dos códigos de comportamento corteses.
da mulher enquanto objeto imóvel, carente de tom e até mesmo, autonomia. É aqui que se
encontra Isolda, rainha cuja inteligência e sagacidade destaca-se durante seu conto.
Embora fossem figuras vinculadas ao ideal do Amor Cortês, ambas atuaram em uma
esfera de influência para além da vida literária, estimulando uma dupla reflexão na sociedade
medieval que por um lado absorveu a mensagem, os perfis e as características de tais modelos
femininos e por outro soube criar e representar nesse mesmo tipo de literatura outras facetas,
vícios e virtudes de um segmento social tão preocupado com seu status quo na sociedade: a
aristocracia.
O conto de Isolda versa sobre amor, paixão, adultério e sobre uma irracionalidade da
rainha ao arriscar sua vida e a de seu amante para satisfazer os desmandos de um amor
proibido. Irracionalidade nascida de um desejo, de uma expressão feminina que desafiou
convenções sociais e hierárquicas para viver tal experiência tantas vezes taxada de louca ou
irresponsável. Isolda, valendo-se de sua posição como rainha soube articular situações que a
fizeram escapar dos grilhões do jugo masculino e misógino para viver seu amor proibido com
Tristão.
Embora o núcleo narrativo do roman seja centrado na relação amorosa entre Isolda e
Tristão, diversas passagens da obra retratam a rainha ocupando posições de destaque e
186
autoridade na corte devido à ausência de seu esposo. Até mesmo na passagem onde é acusada
de adultério com Tristão, a própria rainha defende a si mesma e aceita passar pelo julgamento
da ordália, como forma de atestar seu caráter e sua autoconfiança no resultado.
Atitudes assim são muito mais comuns na literatura cortesã – e sobretudo no conto
de Tristão e Isolda – do que simples subserviência feminina ao mundo masculino. É dessa
forma que a contraparte de Isolda nesta pesquisa se apresenta. Fenice, donzela de nascimento
real, se mantém fiel aos arranjos do pai, porém, não se furta de expressar sua tristeza e
descontentamento com a situação na qual fora colocada.
Diferentemente de Isolda, cuja paixão voraz por Tristão quase a denunciou múltiplas
vezes, Fenice é representada como a anti-Isolda, já que optou pela recusa da tentação carnal e
enveredou pelo uso da inteligência e astúcia para enfim consumar seu amor com Cligès.
A própria antítese narrativa das duas figuras escolhidas para a análise central desse
trabalho configurou-se pelos desdobramentos significativos que esta pesquisa tomou. Ora,
embora histórias de amor, os romans trabalhados jogam com elementos e gestos simbólicos
muito particulares do Ocidente medieval. A própria autonomia e liberdade de Isolda
contrastam com a astúcia e elegância de Fenice, estabelecendo um paralelo reflexivo de como
a posição social e o status quo das mulheres alterou de modo significativo suas condições de
vida dentro – e até mesmo fora – da sociedade de corte.
Desse modo, optou-se por trabalhar de modo sistemático a literatura do período pela
sua capacidade singular de exprimir manifestações e expressões vívidas de uma cultura tão
ímpar quanto a medieval. A mesma literatura que idealizou de modo exacerbado a figura
feminina, acabou por promover de modo direto ou indireto uma promoção social das
mulheres naquela temporalidade.
Este trabalho não compactua com a teoria de Jacques Le Goff quando o grande
medievalista afirmou categoricamente que “o cristianismo salvou as mulheres” (LE GOFF,
2013b) ou que ainda o universo feminino tenha sido alijado e marginalizado do seio social
naquilo que o mesmo denominou de a “recusa do prazer”. Embora saiba-se sobre o traço
misógino e repressivo do clero medieval ansioso por controlar e punir as mulheres por sua
simples posição de ser quem são, não há como negar o papel imprescindível que a literatura
cortesã teve durante os séculos XII e XIII na educação das cortes e sobretudo na
“domesticação” de uma cavalaria totalmente bélica e dada à arroubos de violência contra as
mulheres.
187
Desse modo, o que se pode admitir é que a virada do século XII para o XIII trouxe
consigo uma transformação estrutural, estilística e conjuntural dentro da narrativa romanesca
e do modo de como a mulher era representada em tal tipo de literatura. O modo, a forma de
narrar as histórias, havia mudado. O foco esteve senão, além da veiculação dos ideais
corteses, na propagação das variantes sociais contraditórias, na representação dos elementos
vinculados ao saber universitário e no uso dos valores comuns tanto à cultura “erudita” quanto
à cultura “popular”, em se tratando da posição e do alcance que as mulheres poderiam ter
naquela época.
“artefatos culturais” produzidos dentro desse cenário histórico sobre o florescer da cultura
escrita e da manifestação cada vez mais comum dos assuntos femininos no Ocidente
medieval.
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ANEXOS
V – O que o amante obtém sem assentimento da amante não tem sabor algum.
VII – Depois da morte do amante, quem sobreviver deverá esperar dois anos.
VIII – Ninguém deve ser privado do objeto de seu amor sem a melhor das razões.
IX – Ninguém pode amar de verdade se a isso não for incitado pelo amor.
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XII – O verdadeiro amante não deseja estar em outros braços que não sejam os de sua amante.
XIV – A conquista fácil torna o amor sem valor; a conquista difícil dá-lhe espaço.
XVI – Quando um amante avista de repente a mulher amada, seu coração deve começar a
palpitar.
XXIII – Quem é atormentado por cuidados de amor come menos e dorme pouco.
XXIV – Todo ato do amante tem como finalidade o pensamento da mulher amada.
XXV – O verdadeiro amante não acha bom nada daquilo que não lhe pareça agradar a amante.
XXVII – O amante nunca se sacia dos prazeres que encontra junto à mulher amada.
XXXI – Nada impede que uma mulher seja amada por dois homens e um homem por duas
mulheres.
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