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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA E CULTURAS
LINHA DE PESQUISA – MEMÓRIA, ORALIDADE E CULTURA ESCRITA

LUAN LUCAS ARAÚJO MORAIS

“MEU CORPO FICA AQUI, LEVAS MEU CORAÇÃO”: O AMOR CORTÊS E AS


REPRESENTAÇÕES DE ISOLDA E FENICE NA CULTURA ESCRITA DOS
ROMANS MEDIEVAIS (SÉCULOS XII-XIII)

FORTALEZA

2019
LUAN LUCAS ARAÚJO MORAIS

“MEU CORPO FICA AQUI, LEVAS MEU CORAÇÃO”: O AMOR CORTÊS E AS


REPRESENTAÇÕES DE ISOLDA E FENICE NA CULTURA ESCRITA DOS ROMANS
MEDIEVAIS (SÉCULOS XII-XIII)

Dissertação apresentada à coordenação do


Mestrado Acadêmico em História e Culturas
(MAHIS) da Universidade Estadual do Ceará
(UECE), como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Gleudson Passos
Cardoso

FORTALEZA

2019
LUAN LUCAS ARAÚJO MORAIS

“MEU CORPO FICA AQUI, LEVAS MEU CORAÇÃO”: O AMOR CORTÊS E AS


REPRESENTAÇÕES DE ISOLDA E FENICE NA CULTURA ESCRITA DOS ROMANS
MEDIEVAIS (SÉCULOS XII-XIII)

Dissertação apresentada à coordenação do


Mestrado Acadêmico em História e Culturas
(MAHIS) da Universidade Estadual do Ceará
(UECE), como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Gleudson Passos
Cardoso

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________
Prof.º Dr. Gleudson Passos Cardoso
Universidade Estadual do Ceará – UECE
Orientador

____________________________________________
Prof.ª. Drª. Silvia Márcia Alves Siqueira
Universidade Estadual do Ceará – UECE
Membro interno

____________________________________________
Prof.ª Drª. Valéria Aparecida Alves
Universidade Estadual do Ceará – UECE
Membro interno
Ao amor para toda uma vida: Lauryane.
Ao amor que me deu a vida: Elieudes.
AGRADECIMENTOS

De todas as etapas e seções que compõem um trabalho de pesquisa, a seção dos


agradecimentos, é, sem dúvida, a que mais humaniza o indivíduo responsável por essas linhas.
Agradecer não é somente prestar o devido respeito a todos que auxiliaram e construíram
comigo esse empreendimento. Agradecer é, sobretudo, reconhecer que antes de
pesquisadores, professores, intelectuais, somos seres mundanos, frágeis, demasiadamente
humanos e responsáveis por nossas escolhas. Portanto, à toda sorte de pessoas responsáveis
direta ou indiretamente pelo florescer deste trabalho, o meu sincero, sonoro e verdadeiro
“obrigado!”

Ainda que não me defina como alguém religioso, é preciso agradecer à potência maior
responsável pelo dom da vida - queira e sinta-se livre para chamar como preferir -, logo, é
preciso agradecer ao Criador que sempre esteve me guardando, guiando e observando.

Aos familiares, e em especial, às mulheres que foram responsáveis por toda minha educação.
À minha avó, Elionora, exemplo de fé, sabedoria e amor incondicional. À Elianeudes, por
zelar, cuidar, educar e amar um sobrinho como se fosse seu próprio filho. E à maior razão de
tudo existir: à minha mãe, Elieudes, por estar presente em todos os momentos de dúvida,
angústia e tristeza, e por ter compartilhado comigo uma vida inteira de amor, afeto, sabedoria
e amizade. Obrigado por nunca ter desistido. Obrigado por sempre ter acreditado. Obrigado,
mãe, por simplesmente ser mãe. Vocês me ensinaram como amar.

Ao meu pai, Jocélio Morais, que soube compreender, respeitar e acolher minhas escolhas.
Obrigado pelo suporte, e por todos os incentivos, palavras de ordem, sonhos e desejos
compartilhados. Consegui, pai!

Ao primo, ao irmão, ao melhor amigo que a vida me deu: Felipe Leite. Crescemos, vivemos,
aprendemos, e seguiremos juntos. Para toda uma vida de amizade, companheirismo e
parceria.

Família de verdade, muitas vezes, não necessariamente precisa ser de sangue. Então, à família
que a vida me proporcionou, saibam que todos e todas são infinitamente amados: Isaac, Davi,
Haroldo, Paulo Henrique, Narcisio, Marcelo, Kelvia (e Maria Cecília!), Sofia, Larissa,
Maiara, William, Ranieri, Felipe Menezes, Fávilo, Thais Lopes, Luana, João Paulo, Lucas
Fernandes e Lucas Trévia. Obrigado por sonharem comigo. Por saberem esperar, ouvir, agir e
12

apoiar incondicionalmente. Vocês sofreram a cada derrota. Mas no fim, a vitória é de vocês.
Sempre será. O mundo nos espera, e tem sido maravilhoso dividi-lo com todos!
O que seríamos, faríamos e conquistaríamos sem amor? A todos, desejo que tenham a sorte de
encontrar o amor nos olhos, na voz, no sorriso e na alma de uma pessoa. Ao mundo, desejo
que encontrem alguém disposto viver, sonhar, lutar, acreditar e escolher estar ao seu lado
todos os dias da sua vida. Espero que encontrem o amor de suas vidas. Para toda e por toda
uma vida. Sorte minha que o encontrei em você, Lauryane Mayra. Sempre foi e sempre será
você. Obrigado por ser a mulher absurdamente extraordinária e a melhor amiga de todos os
tempos. Eu amo você, ninda.

Agradeço também a todos os funcionários e alunos do Instituto Dom José de Educação e


Culturas (IDJ-CE), por proporcionarem durante os últimos dois anos um dos melhores
momentos da minha profissional. Ser professor é saber ouvir, incentivar, aprender e mais uma
vez, aprender constantemente. Às minhas turmas de graduação, obrigado por crescerem junto
comigo. Vocês irão conquistar o mundo. Acreditem!

Aos que acreditaram no menino de 15 anos que quis seguir seus passos na História. Meu
especial agradecimento a José Ramilson e Thiago Cavalcanti por terem mostrado o real
significado do que é ser um educador. A vocês, mestres, meu eterno amor e admiração.

Ao companheiro de armas, ao valioso amigo, professor e orientador, Gleudson Passos. Por


acreditar na viabilidade de tal pesquisa para um mestrado, além de bancado e apostado em
minhas ideias, por ter ensinado o real ofício do historiador e por dividir os sonhos e
conquistas da medievalística cearense. Agradeço ainda por todo o incentivo, orientação,
conselhos e ajustes em relação ao presente trabalho. Fruto de nosso sonho, enfim
conseguimos!

À professora Silvia Siqueira, por ter aceitado o convite para minha banca, assim como o fez
durante a qualificação. Agradeço os valiosos conselhos, questionamentos e, sobretudo, por
capitanear em conjunto com o professor Gleudson Passos o Grupo de Pesquisa em Oralidade
e Cultura Escrita na Antiguidade e no Medievo (ARCHEA – UECE), responsável pela gênese
e desenvolvimento desta pesquisa.

Agradeço também à professora Valéria Alves, tanto pela solicitude em aceitar compor minha
banca de defesa quanto pelas maravilhosas lições compartilhadas desde a graduação. Meu
muito obrigado a quem desde o início demonstrou o real valor da educação neste País.
12

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo fomento à


esta pesquisa e pela oportunidade oferecida de poder me dedicar de modo exclusivo ao meu
projeto.
“– É meu – sussurrou. – Meu, como eu sou
sua. E se morrermos, morremos. Todos os
homens têm de morrer, Jon Snow. Mas,
primeiro, vivemos.”
(Ygritte)
RESUMO

Esta pesquisa busca compreender a influência do Amor Cortês sobre uma cultura escrita
medieval que demarcou as representações femininas na literatura dos séculos XII e XIII,
selecionando como modelos de análise as figuras de Isolda e Fenice. Essa literatura, oriunda
dos ambientes palacianos, foi responsável por e representar perfis femininos aristocráticos que
fugiram à polaridade tradicional de análise das mulheres na Idade Média. Tal proposta apoia-
se no estudo e análise das poesias medievais cantadas pelos jograis, passando aos lais e
finalmente culminando naquele que seria o gênero literário mais divulgado durante o período:
o roman [romance] medieval. Por se tratar de uma narrativa descritiva, rica em digressões dos
mais variados aspectos da vida cotidiana do medievo, observa-se nos romans a necessidade
que os seus autores viam em melhor descrever sobre as próprias experiências, seus desejos e
fantasias imbricados no imaginário e nas imagens que os medievais possuíam sobre si
mesmos. Portanto, o roman tornou-se elegível para uma abordagem em torno das nuances
existentes sobre a educação, etiqueta e comportamento da nobreza feminina na
medievalidade. Desse modo, tal pesquisa busca apreender as relações entre as forças sociais e
o imaginário medieval presentes nas cortes aristocráticas e compreender como as
representações literárias de Isolda e Fenice influenciaram na construção de novas perspectivas
sobre a figura da mulher medieval.

Palavras-chave: Amor Cortês. Literatura medieval. Cultura escrita. Representações.


Feminino.
12
RÉSUMÉ

Cette étude cherche à comprendre l'influence de l'Amour Courtois sur la culture écrite
médiévale qui a délimité les représentations féminines dans la littérature des XII e et XIIIe
siècles, dans l’analyse des modèles d'Isolde et de Fenice. Cette littérature, provenant des
milieux du palais, était responsable pour les représentations des images féminines
aristocratiques dissociant de la polarité traditionnelle des femmes au Moyen Âge. Cette
proposition est basée sur l'étude et discussion de la poésie médiévale par les troubadours (au
sud) et les trouvères (au nord), passant aux lais et finalement dans ce qui serait le genre
littéraire le plus répandu au cours de la période : le roman médiéval. Riche en digression des
aspects les plus variés de la vie quotidienne du Moyen Âge, il est observé dans le roman la
nécessité que ses auteurs ont vu dans mieux décrire leurs propres expériences, leurs désirs et
leurs fantasmes entrelacées dans l'imaginaire et les images que les médiévales possédaient sur
elles-mêmes. Par conséquent, le roman est éligible à une approche autour des nuances
existantes sur l'éducation, l'étiquette et le comportement de la noblesse féminine dans le
Moyen Âge. Ainsi, cette étude cherche à appréhender les relations entre les forces sociales et
l'imaginaire médiéval présentes dans les courts aristocratiques et à comprendre comment les
représentations littéraires d'Isolde et de Fenice ont influencé la construction de nouvelles
perspectives sur la figure de la femme médiévale.

Mots-clés : Amour Courtois. Littérature médiévale. Culture écrite. Représentation. Féminin.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Mapa linguístico francês das langue d’oil e langue d’oc .................... 28

Figura 2 – Miniatura do Cancioneiro da Ajuda ................................................... 50

Figura 3 – Iluminura de Marie De France ............................................................ 53

Figura 4 – Mapa político francês (séculos XI e XII) ............................................. 63

Figura 5 – Miniatura do Roman de la Rose ........................................................... 66

Figura 6 – Desejo e Misericórdia capturam corações ........................................... 77

Figura 7 – Manuscrito de Érec et Énide ................................................................ 84

Figura 8 – Isolda e Tristão bebem a poção mágica .............................................. 96

Figura 9 – O rei Mark observa Isolda e Tristão ................................................... 104

Figura 10 – As damas de Isolda .............................................................................. 108

Figura 11 – Início do roman Cligès (manuscrito do século XIII) ......................... 111

Figura 12 – Fenice e Cligès ...................................................................................... 126

Figura 13 – Fenice adoece ........................................................................................ 133

Figura 14 – Casa de banho pública (miniatura do século XV) ............................. 143

Figura 15 – Representação da Volúpia ................................................................... 169


SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................12
2. A “LINGUAGEM DAS CORTES”: CULTURA ESCRITA E A “LITERATURA
MEDIEVAL”.................................................................................................................24
2.1 O AMOR CORTÊS E A LITERATURA DO “DIVERTIMENTO”..............................26
2.2 NA TRILHA DOS ROMANS: A CULTURA ESCRITA NA FONTE MEDIEVAL.....47
3. DONZELAS, DAMAS E RAINHAS: O UNIVERSO FEMININO
ARISTOCRÁTICO NA LITERATURA MEDIEVAL.............................................68
3.1 REPRESENTAÇÕES DA ARISTOCRACIA FEMININA NA LITERATURA
MEDIEVAL....................................................................................................................69
3.2 “O AMOR NÃO OLHA RAZÃO E NEM DIREITO”: ISOLDA E O RETRATO DA
MULHER COMO RAINHA...........................................................................................89
3.3 “MEU CORAÇÃO É TEU E MEU CORPO, TAMBÉM, É TEU”: FENICE E A
FIGURA DA DONZELA..............................................................................................111
4. AMOR, SEXO, PAIXÃO: REPRESSÕES E “LIBERDADES” DO FEMININO
NO CONTEXTO MEDIEVAL..................................................................................137
4.1. CORPO MACULADO, ESPÍRITO CONDENADO: AS ESTURURAS DO PECADO
FEMININO....................................................................................................................138
4.2. “RAZÃO E SENSIBILIDADE”: “LIBERDADES” FEMININAS E O OLHAR ALÉM
DO CONFLITO EVA VS MARIA...............................................................................162
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................181
REFERÊNCIAS..........................................................................................................187
ANEXOS......................................................................................................................194
ANEXO A - MANDAMENTOS DO AMOR [TRACTATUS DE AMORE]................194
12

1. INTRODUÇÃO

As dificuldades, limites e percalços estão presentes no cerne de qualquer trabalho


historiográfico. Fatalmente, é raro – ou praticamente impossível – encontrar qualquer
pesquisador que ao longo do processo de gênese, delimitação e construção de sua pesquisa
não tenha sofrido com os desafios dessa tarefa.

Tratando-se da pesquisa histórica em recortes temporais mais afastados da


contemporaneidade, como os estudos que envolvem Antiguidade e, no caso deste em especial,
Idade Média, os desafios surgem de modo ainda mais pungente, com questões relacionados à
metodologia, fundamentação conceitual, e principalmente, documentação utilizada na
tessitura do trabalho. Questionamentos válidos e necessários para qualquer pesquisa
historiográfica, mas demasiadamente limitantes, pouco inspiradores e em certa medida, até
conservadores quando os trabalhos em questão se ocupam desses períodos históricos.

Felizmente, alguns desses obstáculos puderam ser perpassados ainda durante a


graduação, mediante o ingresso e participação produtiva no ARCHEA – Grupo de Pesquisa
em Cultura Escrita e Oralidade na Antiguidade e no Medievo, vinculado ao Mestrado
Acadêmico em História e Culturas da Universidade Estadual do Ceará (MAHIS/UECE).

Desde o início um claro objetivo foi capitaneado pelos coordenadores: a


oportunidade de amadurecimento e construção de temas de pesquisas cujo interesse pessoal
dos pesquisadores se aliasse com as novas abordagens e perspectivas referentes ao
fortalecimento do campo historiográfico em História Antiga e História Medieval no Ceará e
no Nordeste. Feito esse que direcionaria os olhares acadêmicos além do eixo tradicional
sul/sudeste para os estudos que aqui estão em desenvolvimento, como na Universidade
Estadual do Maranhão (UEMA)1 e na Universidade Federal da Paraíba (UFPB)2.

Graças ao advento do ARCHEA, busquei alocar um particular envolvimento com os


variados assuntos envolvendo o período em questão, junto a um aprofundamento maior e
melhor embasado teórica e metodologicamente para produzir algo de modo a somar e auxiliar
na construção desse campo historiográfico, que no meu caso particular, trataria
especificamente do cenário medieval.

1
Laboratório de História Antiga e Medieval da UEMA (Mnemosyne) e Brathair (Grupo de Pesquisa e de
Estudos Celtas e Germânicos; UEMA/UFMA). Disponível em: <http://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair>.
Acesso em: 3 jun, 2018.
2
Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (NEVE). Disponível em: <http://neve2012.blogspot.com/>. Acesso
em: 3 jun, 2018.
13

É válido ressaltar que a presente pesquisa faz parte de um esforço conjunto a


demonstrar a viabilidade de pesquisas em História Medieval no Ceará, através da
apresentação dos estudos nos encontros, simpósios e seminários da comunidade acadêmica,
tanto em comunicações e painéis, bem como, a participação em minicursos e oficinas deste
pesquisador3. Tal jornada pode se materializada ao longo do tempo com produção científica, a
princípio, no curso de Licenciatura em História, pela Universidade Estadual do Ceará, bem
como nas atividades realizadas no âmbito do grupo de pesquisa ARCHEA, na promoção de
encontros, seminários, palestras, mesas-redondas, oficinas, estudos direcionados, exibição e
debates sobre filmes de época, entre outras realizações.

Durante todo o período de graduação, o interesse pessoal pelo campo da


medievalidade sempre se fez presente nas leituras e nos estudos dirigidos. Mesmo ciente das
barreiras acadêmicas em potencial para o desenvolvimento de uma pesquisa em História
Medieval, foi crucial o suporte e incentivo necessário de alguns professores e colegas de curso
sobre persistir nessa área de estudo. Não raro o fato a oportunidade de estar sempre atuando
de um modo ou de outro nos projetos de monitoria e iniciação científica mencionados
anteriormente, bem como a apresentação de resumos e trabalhos em encontros internacionais,
semanas universitárias e outros eventos de caráter acadêmico voltados para a circulação de
temas e estudos voltados para o campo da medievalística.

Ademais, pude concluir meu trabalho monográfico sobre medievalidade no início de


2017, intitulado de “Justas da Corte”: o Amor Cortês e as representações literárias do
masculino e do feminino na cultura escrita das cortes em França (séc. XII-XIII) 4, dando
fim a um ciclo de estudos “preliminares” na graduação sobre as relações entre o mundo do
medievo ocidental, sua “literatura” produzida e sobre a cultura escrita existente à época sob a
ótica dos romances de cavalaria do período.

3
Apresentação e comunicação de trabalhos de âmbito regional, nacional e internacional realizados no período de
de 2014 a 2016 (como aluno de graduação): Encontro Nacional dos Estudantes de História (UECE/2014);
Seminário de Pesquisa em História (UFC/2014/2015/2016); Semana de História (UECE/2013/2015); Semana
Universitária (UECE/2013/2014/2015/2016); Encontro Internacional de História, Memória, Oralidade e Culturas
(UECE/2014/2016), c. CARDOSO; FERNANDES; MORAIS. História medieval e cultura escrita: possibilidades
da pesquisa na historiografia cearense. In: MUNIZ, Altemar da Costa; LEAL, Tito Barros (orgs.). Arquivos,
Documentos e Ensino de História: desafios contemporâneos. Fortaleza: EdUECE, 2017, p. 137-181.
4
MORAIS, Luan Lucas A. “Justas da Corte”: o Amor Cortês e as representações literárias do masculino e do
feminino na cultura escrita das cortes em França (Séculos XII-XIII). 2017. 101f. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em História). Curso de História, Universidade Estadual do Ceará, 2017. Disponível em:
<https://www.academia.edu/33247103/_Justas_da_Corte_o_Amor_Cort%C3%AAs_e_as_representa
%C3%A7%C3%B5es_liter%C3%A1rias_do_masculino_e_feminino_na_cultura_escrita_das_cortes_em_Fran
%C3%A7a_s%C3%A9culos_XII-XIII_> Acesso em: 19 abr, 2018.
14

Desse modo, alio a justificativa do presente trabalho perpassando pelo desejo pessoal
de engajar-me com algo de minha predileção, bem como aos desafios acadêmicos de
incrementar os índices de produção sobre estudos em História Medieval no Ceará, mediante
as ferramentas aqui utilizadas como o campo temático da Nova História Cultural (NHC) 5 e o
referencial teórico envolvendo o uso da literatura como fonte.

Estes, por sua vez, ligados ao aporte metodológico sobre a produção de uma cultura
escrita na temporalidade estudada, vinculada ao imaginário e as representações de um
universo feudal em que podem ser compreendidas como sendo “[...] legitimações, visões ou
exclusões de uma determinada camada ou sujeito social sobre os artefatos culturais
produzidos [...]” (PESAVENTO, 2008, p. 48).

Sobre o campo teórico da NHC, Peter Burke (2008, p. 9) pontua que “[...] Uma
solução para o problema da definição de história cultural poderia ser deslocar a atenção dos
objetos para os métodos de estudo [...]”, solução que por ventura, me aproprie em parte para
efeito de análise durante a pesquisa. Ao focar nas manifestações, produções, circulação e
representações dos objetos culturais na sociedade medieval, aqui representados pela literatura
de cunho cortês circulante à época, levei em consideração, por um outro lado, qual
metodologia e base teórica seriam adequadas a se fazerem presente no escopo do trabalho.

Os aportes escolhidos, os métodos e as possíveis “soluções” – e suas hipóteses em


aberto – estariam ancorados segundo o pressuposto de que aos estudos condizentes com a
NHC compete “[...] uma preocupação com o simbólico e suas interpretações. Símbolos,
conscientes ou não, podem ser encontrados em todos os lugares, da arte ou vida cotidiana,
mas a abordagem do passado em termos de simbolismo é apenas uma entre outras [...]”
(BURKE, 2008, p. 10).

Ademais, ciente das advertências e impossibilidades em relação às tentativas de


reconstrução fiel do “real”, parti em consonância com mais uma atribuição ao uso da NHC
enquanto campo de pesquisa: a existência e a produção de “regimes de verdade”, desviando-
me da chamada “tentação” que se apresenta ao historiador de considerar os registros materiais
e imateriais de qualquer temporalidade enquanto reflexos vívidos, imutáveis e sem qualquer
tipo de problemática em seu interior (BURKE, 2008).

Dessa forma, torna-se oportuno que o próprio conceito de cultura escrita


mencionado anteriormente venha realizar tal objetivo, quando entendemos que dentro do
5
Referenciada no texto principal a partir deste momento como “NHC”.
15

escopo cultural do imaginário, da representação, ela pode ser entendida como integrante “[...]
do lugar - simbólico e material – que a escritura ocupa/em para determinado grupo social,
comunidade ou sociedade [...]” (CHARTIER, 2007, p. 19-20), onde os objetos dessa escrita,
durante seu processo de publicação e circulação, retornam de maneira metafórica ou realista
às próprias obras sendo que as representações literárias aqui estudadas atuam de modo
integral como forma do procedimento de proliferação da escrita em sociedades para não
sucumbir perante à perda da materialidade dos registros e discursos produzidos (CHARTIER,
2007).

Sobre essa cultura, é válido ressaltar ainda sobre sua força na atmosfera mental e
suas relações com o imaginário do período, além de sua circulação nos variados lugares
sociais do mundo feudal. Podemos inferir que havia um tipo de manifestação cultural, uma
determinada “energia” que condizia com um conjunto de experiência sensoriais em que os
literatos e seu público-alvo estavam subordinados. Os primeiros, ao escrever, relatar,
apresentar e produzir suas obras e os últimos ao consumir, sejam letrados ou não, o conteúdo
ali presente.

Tal energia seria, portanto, uma energia social em que os objetos, as expressões e as
práticas culturais acerca dos perfis femininos exercidas na sociedade feudal dos séculos XII e
XIII seria “[...] manifestada na capacidade de [...] produzir, moldar e organizar experiências
coletivas físicas e mentais [...]” (GREENBLATT, 1988, p. 6), que logicamente, acabam por
dotar as fontes utilizadas neste trabalho de um significado e de uma carga simbólicos
enquanto representações referentes à realidade social daquela época.

Se a energia social, junto das representações, faz parte de um campo maior que é o
imaginário social do medievo, adotei o próprio conceito de imaginário, aqui traduzido como
sendo um “[...] sistema de ideias construídas pela representação das sociedades [...]”
(PESAVENTO, 2007, p. 48), ou seja, uma representação coletiva, que quando codificada
pelo “filtro” que perpassa as emoções básicas, os automatismos e as heranças culturais
enraizadas, torna-se elemento desse mesmo imaginário, o qual apontamos como sendo o filtro
mencionado ao dotar tais objetos de uma historicidade latente (FRANCO JÚNIOR, 2010).

Isso posto, nos cabe então uma apresentação sobre o tema propriamente dito, no caso
o Amor Cortês e representações femininas da aristocracia medieval na literatura do período,
temo como base as figuras literárias de Isolda e Fenice. Busquei elucidá-lo aos olhos de uma
percepção de mudança historiográfica no campo da medievalidade que evidenciasse múltiplas
16

facetas da representação feminina e mulheres no período, denotando a inserção histórica do


tema como objeto passível de discussão, tratando sobre direcionar e problematizar o mesmo
com a perspectiva de desvendar como tais representações foram frutos de uma cultura escrita
elaborada no medievo ocidental. Visando também refletir sobre o imaginário social dos
letrados que assinavam a autoria das obras envolvendo tais personagens femininas, procurei
manusear adequadamente uma bibliografia especializada e identificar documentos
históricos/fontes de pesquisas relacionadas ao campo da cultura escrita em períodos mais
remotos da história.

No período denominado pela historiografia de Idade Média Central (séculos XI-


XIII), o Ocidente medieval6 atravessou um conjunto de transformações culturais e sociais que
permitiram o surgimento de um panorama favorável para um processo gradual de
remodelação dos costumes e comportamentos dos homens e mulheres nobres no período
(FRANCO JR., 2001). A retomada de uma produção cultural escrita, sobretudo no século XI,
é ampliada de maneira a se fazerem surgir os primeiros escritos sobre a temática cortesã para
o amor, dos quais destaco neste trabalho, principalmente, o roman medieval devido à sua
narrativa descritiva e rica em digressões dos mais variados aspectos da vida cotidiana no
medievo.

Tais mudanças, alocaram-se na perspectiva de um refinamento dos costumes e na


gênese de um “processo civilizador” (ELIAS, 2011), entendendo que a dinâmica apresentada
pela mudança nos comportamentos masculinos e femininos ligados à nobreza durante a época
feudal pautaram-se na compreensão que um maior controle dos impulsos corporais e um
distanciamento das práticas “vulgares” vinculadas aos demais grupos sociais distintos da
aristocracia, agiria na demarcação e na afirmação de superioridade e de destacamento da
nobreza enquanto estrato social diferenciado, seja por suas características familiares ou
econômicas ou políticas, mas principalmente, por seus aspectos comportamentais:

A manifestação de sentimentos na sociedade medieval é, de maneira geral, mais


espontânea e solta do que no período seguinte. Mas não é livre ou sem modelagem
social em qualquer sentido absoluto. O homem sem restrições é um fantasma.
Reconhecidamente, a natureza, a força, o detalhamento de proibições, controles e
dependências mudam de centenas de maneiras e, com elas, a tensão e o equilíbrio
das emoções, e de idêntica maneira, o grau e tipo de satisfação que o indivíduo
procura e consegue. (ELIAS, 2011, p. 202)

Para retratar tais mudanças, e sobretudo para compreender o papel exercido pelas
mulheres, e sobretudo as mulheres nobres, optei por utilizar os exemplos oferecidos pelos
6
Historiograficamente, entende-se por Ocidente medieval as seguintes localidades: Bretanha, Germânia,
Península Ibérica, Península Itálica e a Gália.
17

romans em maior parte, presentes nas traduções do francês para o inglês das seguintes obras
selecionadas: O Romance de Tristão [Le roman de Tristan]7 e Cligès [Cligés]8, além de
romances selecionados da coletânea Arthurian Romances9, de autoria de Chrétien de Troyes.

Para retratar tais mudanças, e sobretudo para compreender o papel exercido pelas
mulheres, e sobretudo as mulheres nobres, optei por utilizar os exemplos oferecidos pelos
romans em maior parte, presentes nas traduções do francês para o inglês das seguintes obras
selecionadas: O Romance de Tristão [Le roman de Tristan]10 e Cligès [Cligés]11, além de
romances selecionados da coletânea Arthurian Romances12, de autoria de Chrétien de Troyes.

Ao dividir meu corpo documental em fontes escritas e iconográficas, ao grupo das


primeiras ajuntaram-se poesias13, lais14 e manuais de beleza15, seguindo uma conotação mais
“literária” e fluida. Ainda seguindo com as fontes escritas, tratados eclesiásticos foram
selecionados para análise, como o Tractatus de Amore [Tratado do Amor Cortês]16 e o De
diligendo Deo [Deus há de ser amado] 17, ambos referentes às condições e possibilidades
envolvendo o sentimento de “amor” – carnal no caso do primeiro, e espiritual no último –
professados na Idade Média Ocidental.

Ainda sobre as fontes documentais escritas, trabalho diretamente com as traduções


originais do francês arcaico para o inglês na coletânea Arthurian Romances18, cujo o roman

7
C. BEROUL. The Romance of Tristan. [Translated by Alan S. Fedrick]. London: Penguin Books, 1970. E
________. The Tale of Tristan’s Madness. In: ________. The Romance of Tristan. [Translated by Alan S.
Fedrick]. London: Penguin Books, 1970, p. 151-164.
8
TROYES, Chrétien de. Cligés. In: _________. Arthurian romances. [Translated with an Introduction and
Notes by William W. Kibler (Erec and Enide translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004.
9
C. TROYES, Chrétien de. Arthurian romances. [Translated with an Introduction and Notes by William W.
Kibler (Erec and Enide translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004.
10
C. BEROUL. The Romance of Tristan. [Translated by Alan S. Fedrick]. London: Penguin Books, 1970. E
________. The Tale of Tristan’s Madness. In: ________. The Romance of Tristan. [Translated by Alan S.
Fedrick]. London: Penguin Books, 1970, p. 151-164.
11
TROYES, Chrétien de. Cligés. In: _________. Arthurian romances. [Translated with an Introduction and
Notes by William W. Kibler (Erec and Enide translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004.
12
C. TROYES, Chrétien de. Arthurian romances. [Translated with an Introduction and Notes by William W.
Kibler (Erec and Enide translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004.
13
C. SARAIVA, Arnaldo (introdução e organização). Guilherme IX de Aquitânia: poesia. [Trad.: Arnaldo
Saraiva.] Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.
14
C. MARIE DE FRANCE. The Lais of Marie de France. [Translated with an introduction by Glyn S. Burgess
and Keith Busby]. 2nd ed. London: Penguin Books, 2003 e c. MARIE DE FRANCE. Poetry. [Translated and
edited by Dorothy Gilbert]. New York: Norton Critical Editions, 2015.
15
C. RUELLE, Pierre (Ed.). L'ornement des dames, Ornatus mulierum: Texte anglo-normand du XIIIe
siècle. Presses Universitaires, 1967.
16
C. CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês. [Introdução, tradução do latim e notas de Claude Buridant e
tradução de Ivone Castilho Benedetti]. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
17
C. CLARAVAL, São Bernardo de. De diligendo Deo – “Deus há de ser amado”. Vozes: Rio de Janeiro, 2010.
18
Arthurian romances. [Translated with an Introduction and Notes by William W. Kibler (Erec and Enide
translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004.
18

Cligès encontra-se referenciado; e também para as obras The Romance of Tristan19, The Lais
of Marie de France20, The Fabliaux21 e Poetry22. Para análise do conto de Isolda e Tristão,
também utilizo a versão de Gottfried von Strassburg, Tristan (século XIII)23 e a tradução para
o português da adaptação emprrendida por Joseph Bédier, O Romance de Tristão e Isolda.24

Ademais, foram incorporados a este trabalho fontes iconográficas de época, onde as


relações de imaginário e representação social ficarão mais claras com essa interligação entre
documento escrito e imagético. Pertencentes ao recorte temporal estipulado para a pesquisa,
ou seja, os séculos XII e XIII, tais obras ajudaram na compreensão das nuances variadas que o
medievo ocidental atravessou culturalmente.

A forma de “amar” descrita em tais textos e representada nas ações e decisões das
personagens escolhidas, é visualizada como sendo parte de uma concepção aristocrática para
as práticas que envolviam o flerte e as relações entre a cavalaria masculina e o mundo até
então “misterioso”, que era o locus feminino. Logo, a retórica, os símbolos e os gestos em
torno da sensibilidade, docilidade, elegância e refinamento destacavam-se como parte da
etiqueta e do código de vida da aristocracia europeia no recorte temporal exposto.

Tais traços que podem ser bem exemplificados com uma breve passagem do
Tractatus de Amore (século XII), quando o autor descreve sobre os benefícios do amor para o
caráter:

[...] o amor faz um homem grosseiro e sem educação brilhar de elegância; até a um
homem de baixíssimo nascimento ele pode conferir nobreza de caráter; enche o
orgulhoso de humildade, e graças a ele o amante acostuma-se a prestar com prazer
serviços aos outros. Que coisa extraordinária o amor: permite que tantas virtudes
brilhem no homem e confere tantas qualidades a todos os seres, quaisquer que
sejam. (CAPELÃO, 2000, p. 12-13)

Na França de finais do século XI e início do XII, por exemplo, este ideal cortesão
presente na literatura da época surge como fruto das experiências sociais e políticas derivadas
diretamente das práticas exercidas por seus idealizadores: os grandes senhores feudais.
Seguindo a lógica de estrutura do regime senhorial à época, pequenas cortes foram se

Chrétien de Troyes, op. cit.


19
Béroul, op. cit.
20
Marie de France, op. cit.
21
C. DUBIN, Nathaniel E. (org.). The fabliaux. [Translated by Nathaniel E. Dubin with an introduction by
Howard Bloch]. New York: Liveright, 2013.
22
C. MARIE DE FRANCE. Poetry. [Translated and edited by Dorothy Gilbert]. New York: Norton Critical
Editions, 2015.
23
C. STRASSBURG, Gottfried Von. Tristan. 3rd edition. [Introduction and translation by A. T. Hatto]. London:
Penguin Books, 2004.
24
C. BÉDIER, Joseph. O Romance de Tristão e Isolda. 5ª ed. [Trad.: Luis Claudio de Castro]. São Paulo:
Martins Fontes, 2012
19

afirmando em tal cenário devido ao seu poderio militar, riqueza e sobretudo por sua
capacidade de abrigar um número notável de poetas e letrados que cantavam, escreviam e
narravam as conquistas de seus senhores, sendo as mesmas o cenário principal das primeiras
narrativas sobre o Amor Cortês.

A construção desse “fino amor”, do trato cortês e suas mais variadas manifestações
literárias fizeram-se presentes no contexto de autoafirmação dessa nobreza ascendente e
também de uma preocupação com a divulgação dos ideais de conduta vinculados a esse
estrato social:

Para o público da corte absoluta, grande parte do que realmente existe no campo, na
“natureza”, não mais se retrata. A colina e mostrada, mas não a força nela plantada,
nem o cadáver pendurado. O campo é mostrado, mas não mais o camponês
esfarrapado tocando penosamente seus cavalos. Tudo o que é “comum” e “vulgar”,
da mesma forma que desaparece da linguagem de corte, desaparece também dos
quadros e desenhos destinados à aristocracia de corte. [...] Os sentimentos da classe
alta ainda não exigem que todo o vulgar seja eliminado da vida e, por conseguinte,
dos desenhos. É gratificante para os nobres saber que são diferentes dos demais. A
vista ao contraste aguça a alegria de viver e cabe recordar que, em uma forma mais
moderada, algo do prazer proporcionado por esses contrastes ainda se encontra, por
exemplo, em Shakespeare. (ELIAS, 2011, p. 195-198)

Por isso, dispus-me a utilizar a literatura enquanto documento histórico para o estudo
da temática, visto que em História, o texto (fonte) escrito possui como premissa objetiva uma
compreensão da história como uma narrativa que constrói uma representação sobre o passado,
e que se desdobra nos estudos da produção e da recepção de textos. Tal pressuposto, inserido
no campo teórico da NHC, busca observar nas obras literárias e na cultura escrita
propriamente dita, “mecanismos de produção de objetos culturais” que permitem ao
historiador uma maior percepção acerca do substrato social do qual os textos eram frutos.

Pude visualizar dentro da narrativa romanesca nuances gradativas sobre os


comportamentos femininos representados pelos autores que os relatavam. Inseridas em uma
problemática central da construção representativa que tais posturas assumiram nessa literatura
cortesã. Logo, fez-se necessário refletir sobre como as mulheres eram retratadas de modos
diversos, ainda que pelo mesmo autor.

A escolha por utilizar tal recurso para análise da temática cortês do amor possui seu
valor ao demonstrar a sociedade feudal de modo único e original, destacando muitas vezes um
reflexo das atitudes cotidianas na elaboração dos textos divulgados. História e literatura
possuem próximos de si o recurso estrutural da narrativa, obedecendo, logicamente, suas
especificidades, sendo que esta última, por sua vez, constrói em seu texto um imaginário e
20

realidade únicos, elaborando assim um discurso idealizado sem necessariamente se ater às


diretrizes do real, instituindo sua própria “verdade” dos fatos.

Tal “linguagem das cortes” apresentada de maneira rica nos romans possibilitarão a
problematização da variedade dos “jogos” amorosos da corte disputados entre os amantes.
Daqui retiramos o título de nosso trabalho, visto que tais “disputas” entre os cavaleiros e suas
consortes seriam a metáfora cortesã para os torneios de justas muito comumente disputados
pela cavalaria feudal.

Minha problemática envolveu o intuito de perceber se os perfis femininos


polarizados entre Eva, a pecadora e Maria, a redentora, sobreviveram e circularam de forma
tão determinante na literatura do período, e mais ainda dentro do contexto feminino
aristocrata, onde os privilégios e a notória posição de poder da nobreza proferiram e alteraram
o curso das relações sociais entre o ethos masculino e o universo feminino dentro dos recortes
temporal e espacial delimitados.

Ademais, ainda que tal polarização se tenha mantido, que outros discursos, imagens,
perfis e representações foram objetos de estudo dos literatos e representados nas mais diversas
obras de caráter cortesão e até mesmo eclesiástico? A idealização das virtudes femininas, suas
aptidões físicas e intelectuais também encontraram espaços nas canções e nos versos escritos
por tais autores, de modo que a figura da mulher medieval, e principalmente a mulher nobre,
foram múltiplas, dúbias e esclarecedoras ao ponto de me dedicar a este esforço historiográfico
e pessoal de empreender tal pesquisa.

Portanto, perceber na fonte literária medieval as nuances que marcaram o cotidiano


dos homens e mulheres desse período é o que torna viável a proposta aqui pretendida, que
munida dos aportes teóricos sobre o imaginário medieval e o estudo das representações
literárias fornecerá um quadro mais claro acerca daquilo que entretinha, disciplinava e por quê
não, “fazia amar” aos medievais.

Deste modo, após as linhas iniciais sobre o trabalho em questão, cabe uma posterior
estruturação sobre o desenvolvimento e de como as temáticas anteriormente citadas serão
elencadas no corpo textual. O primeiro ponto a ser trabalhado no pós-introdução seria a
compreensão e o balanço histórico sobre uma compreensão do que seria a “literatura” no
medievo, suas formas de expressão inicialmente orais, o amálgama com o elemento da
cultura escrita e análise estrutural do gênero do roman dentro do universo literário construído
nos séculos XII e XIII na região da França.
21

Desse modo, o primeiro capítulo de nome “A LINGUAGEM DAS CORTES”:


CULTURA ESCRITA E LITERATURA MEDIEVAL discute como deu-se o processo de
construção desse gênero específico e suas representações acerca do Amor Cortês na cultura
literária medieval.

O primeiro tópico desse capítulo, O AMOR CORTÊS E A LITERATURA DO


DIVERTIMENTO, ocupa-se da reflexão em torno do ideal cortesão para o amor e sua relação
direta com o surgimento de uma literatura que delimitou códigos e posturas comportamentais
nos ambientes palacianos a partir do século XII. O segundo tópico, por sua vez, intitulado de
NA TRILHA DOS ROMANS: A CULTURA ESCRITA NA FONTE MEDIEVAL, destina-se
ao estudo específico da fonte, no caso o roman e as relações desta com a cultura escrita
medieval e a produção de artefatos culturais escritos naquela temporalidade.

Trabalhada essa primeira questão, no segundo capítulo intitulado DAMAS,


DONZELA E RAINHAS: O UNIVERSO FEMININO NA LITERATURA MEDIEVAL,
parti para uma análise sobre o imaginário e a mentalidade da aristocracia feudal acerca de
seus modelos femininos inspiradores contidos na literatura cortesã. Tal capítulo irá ocupar-se
da dinâmica feudal e do universo feminino em específico dentro dessa literatura cortês
circulante nas cortes medievais. Desse modo, o objetivo a ser alcançado nesta seção será o de
perceber uma variedade de figuras femininas existentes fora dos prismas antagônicos de
análise da mulher como figura redentora/idealizada e como portadora do pecado.

No tópico que abre este capítulo, “REPRESENTAÇÕES DA ARISTOCRACIA


FEMININA NA LITERATURA MEDIEVAL”, a análise concentra-se em torno da discussão
da figura da mulher aristocrata representada na documentação do período, sobretudo nos lais
e fabliaux que circularam no Ocidente medieval entre os séculos XII e XIII. Sobre tal
variedade dos perfis femininos apresentados, discute-se a figura das dama e donzelas
pertencentes à alta nobreza, observando seus respectivos papéis de atuação dentro do contexto
e do imaginário medievais. Ademais, este tópico se ocupará de analisar dentro da
documentação selecionada a variedade de posturas e comportamentos atribuídos à mulher na
Idade Média de acordo com características como idade, educação e posição social.

Quanto ao segundo tópico apresentado, “O AMOR NÃO OLHA RAZÃO E NEM


DIREITO”: ISOLDA E O RETRATO DA MULHER COMO RAINHA, este possui como
foco a análise de um dos dois perfis femininos selecionados para esse trabalho, no caso, o de
22

Isolda. As linhas que o compõem procuram elucidar, analisar e criticar historicamente a


representação feminina na figura literária da personagem Isolda.

No último tópico, “MEU CORAÇÃO É TEU E MEU CORPO, TAMBÉM, É TEU”:


FENICE E A FIGURA DA DONZELA, fez-se a análise do segundo perfil feminino em
específico da pesquisa, Fenice, em que a discussão em torno dos valores de donzela, dos
deveres enquanto nobre e sua paixão por seu amante Cligès entram em conflito, perpassando
uma faceta da mulher apaixonada, porém ciente de seus compromissos equivalentes à sua
posição social. . Aqui a dualidade entre a Emoção (Isolda) vs Razão (Fenice) foi explorada de
maneira a discutir de modo mais claro as representações femininas enquanto agente histórico
que mediou e estabeleceu novos padrões de comportamento no seio da cultura aristocrática
por intermédio de uma literatura profundamente específica e direcionada aos interesses dessa
sociedade de corte.

No que se refere ao capítulo final deste trabalho, AMOR, SEXO E PAIXÃO:


REPRESSÕES E “LIBERDADES” DO FEMININO NO CONTEXTO MEDIEVAL, a
abordagem acerca do universo feminino e do papel da mulher medieval dentro da sociedade
se voltará para os aspectos que envolvem a questão da sexualidade e do tipo de amor
nutrido/praticado pelas donzelas e damas medievais, de modo observar retratos, perfis e
posturas que realocavam a mulher em direção a uma liberdade sexual desvinculada dos ideais
religiosos de pureza e castidade.

O primeiro tópico, CORPO MACULADO, ESPÍRITO CONDENADO: AS


ESTRUTURAS DO PECADO FEMININO, parte da perspectiva de compreender os suportes
teóricos, intelectuais e ideológicos que buscaram regular e moralizar as ações e o corpo
femininos, percebendo nas fontes manuseadas e na utilização dos conceitos de representação
e imaginário, o modo como os autores da época percebiam e escreviam acerca do
comportamento e da sexualidade femininos.

No segundo e último tópico deste capítulo, “RAZÃO E SENSIBILIDADE”:


“LIBERDADES” FEMININAS E O OLHAR ALÉM DO CONFLITO EVA VS MARIA, o
prisma de reflexão incide sobre o sentimento amoroso condicionado pela racionalidade da
mulher ao se deparar na condição de apaixonada e das “liberdades” de comportamento
observada por intermédio das ações descritas dentro das documentação selecionada,
fornecendo um rico panorama reflexivo acerca de uma visão da ótica feminina para além dos
23

instintos e tensões corporais/sexuais existentes em trono da condição feminina no Ocidente


medieval.

Portanto, mediante as informações e considerações supracitadas, pode-se


compreender que as alterações que modificam determinada realidade social é um dos
pressupostos da ciência histórica. Jacques Le Goff (2012b, p. 49) afirmou que “[...] não há
história imóvel e que a história também não é a pura mudança, mas o estudo das mudanças
significativas [...]”. Com isso, o objetivo essencial ao longo do trabalho foi deixar claro como
as possibilidades de pesquisa no campo da história medieval, e sobretudo no campo da
historiografia cearense, são possíveis de modo a tornar o estudo das mudanças no
comportamento entre os homens e mulheres nobres no medievo algo significativo e imbuído
de uma relevância acadêmica para poder desvendar-se aspectos sociais e culturais da vida
cotidiana durante a Idade Média Ocidental.
24

2. A “LINGUAGEM DAS CORTES”: CULTURA ESCRITA E A “LITERATURA


MEDIEVAL”

Este capítulo busca compreender e efetuar a discussão sobre o desenvolvimento de


uma cultura escrita e de uma “literatura” medievais a partir do início do século XII, tendo
como base para seu florescimento as transformações socioculturais ocorrentes no Ocidente
medieval, sobretudo em boa parte do atual território francês. Por tratarem-se de regiões onde
o processo de ocupação e desenvolvimento propiciaram um ambiente favorável para o
nascimento de uma aristocracia refinada no que tange às artes e ao comportamento dos
homens e mulheres nobres, uma cultura cortesã, pautada nos ideais do Amor Cortês, surge
enquanto baluarte dos valores nobiliárquicos a serem transmitidos e perpetuados por meio de
uma literatura específica que fizesse jus a à tal nomenclatura

Quando nos debruçamos sobre a produção literária no medievo, primeiramente deve-


se voltar os olhares em direção às raízes dessa chamada “literatura” insurgente no período em
questão. De fato, a própria noção de “literatura”, tal como se concebemos hoje como sendo a
arte/ofício ocupado da produção de textos em prosa ou verso que seguem determinados
princípios teóricos, práticos e estéticos pré-estabelecidos, não cabe à definição ou ideia do que
a “literatura” medieval comportava. Logo, visualiza-se aqui a noção de literatura
contemporânea como um conjunto de textos específicos que exprimem características
compartilhadas, com obras que remetem a um corpo maior de informações como a literatura
brasileira, a literatura russa, a literatura inglesa, etc.

Tal significação era desconhecida dos medievais posto que o termo em latim
litteratura possuía “[...] o mesmo sentido que grammatica e designa, como esta palavra, ou a
gramática propriamente dita ou a leitura comentada dos autores e o conhecimento que
proporciona, mas não as obras em si [...]” (ZINK, 2017, p. 79). Desse modo, no contexto
medieval, o saber letrado e subsequentemente o saber “literário” tinha por preocupação
objetiva o domínio do ofício da escrita e da leitura propriamente dita, caracterizando um
status social elevado de quem os possuísse.

Uma incursão pela literatura do período necessita, sobretudo, da revisão dos agentes
históricos que propiciaram o cenário fortuito para este desenvolvimento à época, pelo simples
25

fato que empreender o estudo das formas literárias no medievo é também enveredar-se nos
meandros da cultura literária medieval, pois esta transcendeu a ordem do período por ser “[...]
fruto de uma coletividade que ultrapassa as fronteiras nacionais [...]” (SPINA, 1997, p. 12),
sendo, portanto, uma representação coletiva, parte de um imaginário filiado a construção de
“artefatos culturais escritos” (CHARTIER, 1990, p. 32-33). Sobre os respectivos espaços de
existência propagação dessa cultura literária, podemos destacar que o desenvolver de um
“círculo” cultural envolvendo a escrita no medievo ocidental também foi possível, dentre os
aspectos já mencionados, graças ao reflorescer do cenário urbano medieval.25

25
A revitalização dos centros urbanos trouxe de volta a valorização da cultura local, assim como um maior
destaque para a literatura, nas cortes citadinas que tinham além da nobreza que vinha do campo, a emergente
burguesia comercial abundante e de grande importância para a economia dessas localidades. A cidade medieval
também tinha uma nobreza oriunda da urbe que estimula tal produção escrita, pelo menos nos séculos XII e XIII.
c. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. [Trad.: Marcos de Castro]. 5ª ed., Rio de janeiro: José
Olympio, 2012b, p. 34-37 e DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios.
[Trad.: Jônatas Batista Neto]. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p. 170-171.
26

2.1 O AMOR CORTÊS E A LITERATURA DO “DIVERTIMENTO”

Em História, e mais especificamente no campo da medievalística, as discussões em


torno da relação história/literatura apontavam as dificuldades de assimilação da segunda em
relação à primeira, sobretudo em análises mais direcionadas ao ambiente sociocultural do
medievo ocidental. Não raro que até o início do século passado, as múltiplas e valiosas
contribuições da narrativa literária foram alocadas em segundo plano, principalmente porque:

O termo literatura marcava como uma fronteira o limite do admissível. Uma terra de
ninguém isolava aquilo que, sob o nome folclore, se deixava às outras disciplinas.
No início de nosso século, a "literatura" adotava assim, em escala mundial, de
maneira exclusiva, os fatos e os textos homólogos aos que produzia a prática
dominante da Europa ocidental: estes os únicos concernentes à consciência crítica,
tendo-se lhes creditado caracteres que, segundo a opinião unânime, provinham de
sua competência. Em alguma medida, o conjunto de pressupostos que
administravam essa atitude de espírito originava-se do centralismo político que,
havia longo tempo, fora instaurado pela maioria dos Estados europeus. Estava de
acordo com as tendências mistificadoras, até alegorizastes, que aí presidiam à
elaboração das “histórias nacionais”: exaltação do herói que personificasse o
superego coletivo; a confecção de um Livro de Imagens no qual fundar um sentido
que justificasse o fato presente: as palavras de Joana d'Arc, a cruzada de Barba-roxa
ou a fogueira de Jan Huss [...]. (ZUMTHOR, 1993, p. 8)

Ademais, a produção literária nas línguas vernáculas é característica de finais do


século XI e quase que impreterivelmente, do século XII. Ao período que a historiografia
denomina Antiguidade Tardia26, cobrindo a época posterior ao declínio do Império Romano
chegando até o início da conquista islâmica e retomada da Europa Oriental pelo Império
Bizantino (séculos III-V), o latim “clássico”, utilizado na urbe romana por poetas, oradores e
demais escritores, gradativamente, foi perdendo espaço para a linguagem menos rebuscada e
utilizada na fala dos territórios romanizados aquela época, que incorporaram o latim à sua
língua e dialetos locais, modificando a pronúncia e o entendimento das palavras.

Tal latim “vulgar”, foi empregado pelos camponeses às bordas do que sobrou dos
territórios outrora sob jugo de Roma, pelos soldados das legiões desgarradas e até mesmo na
dinâmica familiar dos nobres romanos que se deslocaram para suas villas interioranas após o
colapso das estruturas imperiais. Essa forma linguística do latim transmutou-se gradualmente
na língua latina utilizada no período que vai dos séculos VI-VIII, denominado de latim
medieval, com modificações e incorporações de palavras e fonemas oriundos de ramos
linguísticos como o grego, e incorporados na gramática da única língua escrita reminiscente
dos antigos territórios romanos.

26
C. BROWN, Peter. O fim do mundo clássico: de Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Editorial Verbo, 1972. E
BROWN, Peter. The World of Late Antiquity: AD 150-750. New York, London: W.W. Norton & Company,
1971.
27

Com forte influência do latim vulgar, essa variante medieval foi incorporando-se na
fala comum das regiões da Europa ocidental, modificando a dinâmica de escrita e de
ressignificação das palavras outrora “desconhecidas” da maioria da população. Nesse
intercurso gramatical, linguístico e cultural as línguas vernáculas (do latim vernaculum, que
provinha do termo verna, ao qual denominava-se o escravo nascido na casa de seu senhor) ou
locais, foram sendo desenvolvidas e assimiladas de modo a tornarem sua utilização cada vez
maior em detrimento do uso do latim.

Tomemos o exemplo da atual França e suas proximidades, visto que se trata da


região espacial em análise desta pesquisa. As origens da língua francesa provêm de suas
variantes ancestrais gaulesas, latinas e germânicas, sendo esta última proveniente do antigo
Reino Franco (séculos V-IX):

Na Gália, por volta do século XI já se tornava notória a diferença entre o falar “lati”
e o falar “roman” [...] assim como entre a língua dos “francigenae” do Norte e dos
“provinciales” do Sul, a que no século XIII se daria o nome respectivamente de
língua “d’oïl” e língua “d’oc”, por assim se dizer “sim” nessas línguas. [...] o nome
“provençal” não se devia a nenhuma superioridade literária sobre os outros dialetos,
devia-se apenas ao fato de se chamar “Provença” ao antigo território da “Província
Romana”, que, portanto não coincidia com a região chamada “Provença”, e até da
Aquitânia. (SARAIVA, 2009, p. 19)

Embora tenha sido desenvolvida em meio a um mosaico linguístico, a língua


francesa também possuía uma gama de dialetos locais no medievo que podiam ser percebidos
de acordo com a localização geográfica: norte (normando, frâncio, bretão, loreno), sul
(gascão, provençal, catalão, basco) e leste (franco-provençal). De modo geral, podemos
dividir tais variantes entre as langues d’oil e as langue d’oc, como visto no mapa a seguir
(figura 1):

FIGURA 1 – MAPA LINGUÍSTICO FRANCÊS REFERENTE ÀS DIVISÕES ENTRE


AS LANGUE D’OIL E LANGUE D’OC
28

Fonte: <https://ouilecoursdefrancais.files.wordpress.com/2013/11/france-cart-oil-oc.jpg>. Acesso em: 02 set,


2017.

As langue d’oil, ou francês arcaico, tinham suas raízes na parte setentrional do


território francês, sendo comuns nas cidades de Lille, Rouen e Caen, sendo utilizadas
sobretudo em obras com um cunho religioso em suas narrativas, devido à fixação da corte real
francesa na região da Île-de-France (em destaque no mapa) e o domínio eclesiástico
proveniente dessa presença. Já as langue d’oc - representantes da língua occitânica-provençal
– possuíam suas bases no território sul da França e eram empregadas em obras de caráter
lírico, poético e cortês, graças ao envolvimento de Guilherme, VII conde de Poitiers e IX
duque da Aquitânia, ou como comumente conhecido, Guilherme IX, o trovador (1071-1126).

Guilherme é considerado um dos primeiros nobres trovadores, preocupado


genuinamente com o desenvolvimento das artes, da poesia e da escrita em suas cortes. As suas
cantigas e poemas caracterizavam-se pelo uso de uma forte linguagem vernacular,
inaugurando a chamada poesia provençal e cantavam temas diversos, apesar de a maioria ser
29

sobre sexo, amor e mulheres. Justamente por este tipo de escolha temática em suas
composições (quando a música era quase exclusivamente composta de cânticos religiosos)
Guilherme provocou espanto e admiração em sua corte, além de despertar a ira do clero,
sobretudo na região onde a corte real se localizava:

Os poucos poemas que Guilherme IX de Aquitânia nos legou [...] deram-lhe mais
fama do que suas riquezas ou do que a sua acidentada ação política, transformaram-
no em fundador de um ousado estilo poético novo, numa nova língua românica, que,
como outras línguas nascentes, não conhecia até então nenhum poeta digno desse
nome. Ele, que celebrou o tempo novo da natureza primaveril, tão notório na
Aquitânia [...] teve consciência da sua importância na produção de um tipo de poesia
distinto do que recebera dos últimos poetas que escreviam em latim [...]. Em tempos
de rivalidades entre poderes religiosos e feudais, entre clérigos e cavaleiros, entre
nobres e burgueses ou aristocratas ávidos de honras e de prestígio social, Guilherme
IX não faz valer só a sua excepcional capacidade poética; faz também com que na
sua corte de Aquitânia a poesia passe a ter um papel relevante, cultural e
socialmente prestigioso. [...] Começa a aparecer um novo tipo de poeta que compõe
letras mas frequentemente também compõe músicas e canta, valendo-se ou não de
jograis. A poesia, mesmo quando trata de motivos religiosos, começa a sair da Igreja
da religião para ocupar espaços laicos ou mundanos. (SARAIVA, 2009, p. 36)

Considerando ainda a França, o panorama tornou-se fortuito devido a um conjunto de


fatores internos e externos que impulsionaram as práticas culturais ligadas à sedimentação e
posterior transmissão do saber literário: como o arrefecimento das incursões “bárbaras”, a
revitalização dos centros urbanos comerciais, o crescimento demográfico na virada do século
XI para o XII, o fim das epidemias de peste e fome (BASCHET, 2010). Embora o foco
principal deste trabalho seja a análise do escrito, em sua maioria o conjunto de obras literárias
circulantes no medievo tinha como pedra angular uma cultura estritamente oral de
transmissão.

Entretanto, ao se analisar o elemento da letra e consequentemente da escritura,


compreende-se que o recurso da oralidade não impediu que a Idade Média ocidental “[...]
fosse – também – uma idade da escritura [...]” (ZINK, 2017, p. 80-81), o que leva a uma
problematização sobre as trocas do elemento oral com as práticas de tessitura documental
empregadas no período. Delimitar um único sentido para o que seria a escritura no período
não atende às variantes empregadas no medievo, visto que esta:

[...] poderia referir-se a técnicas, atitudes e condutas diversas, conforme os tempos,


os tempos e os contextos eventuais. [...] Entre a mensagem a transmitir e seu
receptor, a produção do manuscrito introduz (tanto na transcrição do texto como tal
quanto na operação psicofisiológica do escriba) filtros que impressa em princípio
eliminará, mas que, em contrapartida são estreitamente análogos aos ruídos que
parasitam a comunicação oral. (ZUMTHOR, 1993, p. 99)

Tal premissa reverbera na discussão sobre o termo “literatura” e seus derivados, visto
que grande parcela da população medieval não era alfabetizada. O medievo possuiu, dentre uma
30

miríade de especificidades, a capacidade de aglutinar e sintetizar diferentes aspectos culturais e


sociais. Se de um lado temos na literatura uma forma de expressão da realidade vivenciada por
homens e mulheres no período, ou uma “arte” 27, isso servia de mote para diferenciar os estratos
existentes na própria sociedade: os litterati (letrados) e os illiterati (não-letrados):

Os primeiros [litterati] têm uma posição proeminente no plano cultural, mesmo


quando, no fim da Idade Média, já não possuem o monopólio da cultura escrita, na
medida em que se desenvolveu uma literatura em língua vernácula [...]. E numa
sociedade em que a oralidade é a regra, estes letrados exercem igualmente o que
Jacques Le Goff chama o “domínio da palavra”. O poder cultural dominante dos
letrados exerce-se pois ao mesmo tempo, no decurso da Idade Média, no plano da
oralidade e no da escrita. (SOT; GUERREAU; BOUDET, 1998, p. 263, grifo meu)

Em uma perspectiva histórica, temos à vista uma dicotomia aparente: como uma
literatura de cunho eminentemente oral em sua gênese tornou-se ao longo dos séculos
instrumento de memória documental, compilada e escrita para servir de testemunho às futuras
gerações? Tratando-se dos textos medievais cabe ressaltar que as trocas empreendidas entre
os elementos escritos e orais denotavam uma determinada sincronia quando das suas
narrativas, como Michel Zink pontua ao dizer que “[...] A obra medieval, até o século XIV, só
existe plenamente sustentada pela voz [...], pela recitação ou pela leitura em voz alta [...] ”,
além de apontar que “[...] Em um certo sentido, o sinal escrito é pouco mais que auxílio para
memória e apoio [...]” (ZINK, 2017, p. 80-81).

Ora, a própria oralidade desses relatos históricos, das poesias, canções e epopeias
cantadas no medievo possuíam aspectos tão significativos que este aos poucos foram
incorporando-se na transmutação gradual que levou o uso da voz, ou vocalidade28 ao texto
escrito. Sobre sua forma de propagação, faz-se necessário perceber que:

[...] no interior de uma sociedade que conhece a escritura, todo texto poético, na
medida em que visa a ser transmitido a um público, é forçosamente submetido à
condição seguinte: cada uma das cinco operações que constituem sua história (a
27
Umberto Eco nos oferece uma perspectiva geral do que seria a noção de ars (“arte”) no medievo Ocidental,
onde o cerne da questão está presente no que ele denomina de um “conhecimento de regras objetivas”, que por
sua vez são ancoradas em dois pressupostos básicos para a produção e divulgação desse saber: o elemento
cognoscitivo e o produtivo, ou dito de outra forma, um saber teórico e prático para se produzir determinadas
coisas. Ademais, o autor pontua que a “arte inscreve-se no domínio de fazer”, atuando de forma específica no
seio da sociedade por suas formas expressivas de manifestação, sendo a arte literária uma delas. Eco ainda
defende que a arte, em certa medida, imita a natureza, porém “[...] na imitação da arte existe invenção,
reelaboração. A arte une as coisas desagregadas e separa as unidades, prolonga a obra da natureza, faz como a
natureza produz e dá continuidade ao seu nisus [construção; geração] criativo. [...]” c. ECO, Umberto. Arte e
Beleza na Estética Medieval. [Trad.; Mário Sabino]. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 202-204, grifos meus.
28
Sobre o termo, Paul Zumthor (1993, p. 20-21) destaca que o diferencial do texto pronunciado ao escrito
encontra se na sensibilidade e funcionalidade do primeiro frente ao segundo. O medievalista francês aponta que
no texto vocalizado “[...] atuam pulsões das quais provém para ouvinte uma mensagem específica [...] no
momento em que ela [a voz] o enuncia, transforma em ‘ícone’ o signo simbólico libertado pela linguagem. ”.
Seguindo tal linha de pensamento, Zumthor finaliza sua acepção conceitual do termo vocalidade como este
sendo intrinsicamente histórico, visto que “vocalidade é a historicidade de uma vez”, ou seja, sua utilização.
Grifos do autor.
31

produção, a comunicação, a recepção, a conservação e a repetição) realiza-se


seja por via sensorial, oral-auditiva, seja por uma inscrição oferecida à percepção
visual, seja – mais raramente – por esses dois procedimentos conjuntamente. O
número de combinações possíveis se eleva, e a problemática então se diversifica.
Quando a comunicação e a recepção (assim como, de maneira excepcional, a
produção) coincidem no tempo, temos uma situação de performance. (ZUMTHOR,
1993, p. 19, grifo meu).

Outrossim, tais mecanismos de propagação da “literatura” aqui apresentada,


condensam-se cada vez mais com a preocupação que os intelectuais 29 medievais possuíam de
não deixar vestígios importantes cair num desvanecimento cultural daquilo retratado por essas
histórias. Grande parcela dos textos circulados no período, obviamente, foram produzidos e
sobreviveram à posteridade por motivos diversos, como o armazenamento em condições
favoráveis nos grandes castelos e mosteiros, pelas cópias destinadas à divulgação deste ou
daquele material no seio da sociedade feudal e pelo esforço conjunto de preservar tais objetos
culturais para que sua história fosse perpetrada e contada em futuro próximo.

Esse “contar” insere-se na lógica em que o historiador do medievo, ao abordar os


aspectos envolvendo a literatura no período, deve sobretudo situar e reconstruir o texto
medieval em um quadro onde este necessitava ser mais ouvido do que lido, por sua vez este
mesmo documento poderia ser narrado ou recriado por meio de improviso e ao mesmo tempo,
apreciado e registrado ou na memória ou no papel (MEDEIROS, 2008).

Sob outro prisma de análise, a própria existência e domínio da escrita pelos litterati
não prendeu os textos já compilados, fossem de caráter dito “científico” ou mesmo as canções
e poesias anteriormente cantadas, em níveis determinados do mundo letrado. Vestígios
históricos como o são, todos eles faziam parte de um contexto maior, ordenado pelo ensejo da
escritura e da construção de uma memória social. Dessa forma, o elemento da escritura era
tido como instrumento de suporte e vinculado sempre ao mecanismo de memorização em
relação ao elemento oral/vocal.

29
O termo “intelectual” aqui evocado surge como instrumento teórico de aproximação do conceito para
intelectualidade na Idade Média. Jacques Le Goff esboça em um ensaio sobre o tema uma delimitação existente
e proposital entre o indivíduo (intelectual) e a instituição onde o conhecimento “científico” era veiculado: as
universidades. Para o autor, o “intelectual” do medievo era, em síntese, aquele “[...] cujo ofício era pensar e
transmitir seu pensamento a partir do ensino [...]”. Ademais, um outro fator a ter destaque é o espaço de atuação
desses indivíduos, tendo nos centros urbanos na virada do século XI para o XII o principal campo de debate e
ação efetiva dos intelectuais. O historiador francês também delega que o século XIII teria sido o apogeu para
esses “mestres do ofício” filosófico e pedagógico no que tange à uma maior massificação da produção intelectual
teórico-filosófica acerca das estruturas da civilização ocidental no medievo, Cf. LE GOFF, Jacques. Os
intelectuais na Idade Média. 5ª ed. [Trad.: Marcos de Castro]. Rio de janeiro: José Olympio, 2012b, p. 36-45.
Para uma outra análise e maior discussão acerca do uso da terminologia “intelectual” no período, ver: REVER,
Jacques. Homens e saber na Idade Média. [Trad. Carlota Boto]. Bauru, SP: EDUSC, 1999.
32

Sob a ótica das sensibilidades, da valorização da vida palaciana, a literatura buscou


representar no conjunto das obras que abordavam, o tema do Amor, elementos que de algum
modo “embelezavam a vida” e que “[...] se concentravam na apresentação colorida das formas
do amor [...]” (HUIZINGA, 2011, p. 179). Seguindo estratégias de retórica e de análise
narrativa, a História e a Literatura se propõem a discutir o passado/presente de maneiras
análogas, porém distintas, valendo-se do recurso da narração e da “ficção controlada” pautada
pela metodologia empregada e pelo uso das fontes:

[...] é a História que formula as perguntas e coloca as questões, enquanto que a


Literatura opera como fonte. A Literatura ocupa, no caso, a função de traço, que se
transforma em documento e que passa a responder às questões formuladas pelo
historiador. Não se trata, no caso de estabelecer uma hierarquia entre História e
Literatura, mas sim de precisar o lugar onde se faz a pergunta. [...] A Literatura
permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo qual as
pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam seus passos,
quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores.
Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para a leitura do imaginário.
(PESAVENTO, 2007, p. 82, grifo meu)

A literatura influenciada pelo Amor Cortês proporcionou um novo conjunto de


práticas e valores nobres, ligados à beleza, docilidade, elegância e cortesia que levaram
donzelas, damas e cavaleiros medievais a desligarem-se um pouco da influência da Igreja
buscando uma maior autonomia dentro de suas propriedades, evitando por muitas vezes o
rigoroso crivo eclesiástico que via nessa literatura cortesã verdadeiras odes ao mundanismo,
concupiscência e até mesmo heresia.

Em meados do século XII (1135-1160), o cenário ideal para a divulgação dos


pressupostos da cultura cortês teve na França seu principal foco de desenvolvimento. O
“amor” na literatura cortesã francesa surge como fruto das experiências sociais e políticas
derivadas diretamente das práticas exercidas por seus idealizadores: os príncipes e senhores
feudais. A construção do “fino amor”, do trato cortês e suas mais variadas manifestações
literárias fizeram-se presentes no contexto de autoafirmação de uma nobreza ascendente e de
uma preocupação com a divulgação dos ideais de conduta desse grupo:

A mais influente das sociedades de corte desenvolveu-se, como sabemos, na França.


A partir de Paris, os mesmos códigos de conduta, maneiras, gosto e linguagem
difundiram-se, em variados períodos, por todas as cortes europeias. Mas isso não
aconteceu apenas porque a França fosse o país mais poderoso da época. [...] A
aristocracia absolutista de corte dos demais países inspirou-se na nação mais rica,
mais poderosa e mais centralizada da época [séculos XII-XIII], e adotou aquilo que
se adequava às suas próprias necessidades sociais: maneiras e linguagem refinadas
que a distinguiam das camadas inferiores da sociedade. [...] O que começa a
distinguir-se aos poucos, nos fins da Idade Média, não é apenas uma sociedade de
corte aqui e outra ali. É uma aristocracia de corte que abraça toda a Europa
ocidental, com seu centro em Paris, dependências em todas as demais cortes e
afloramentos em todos os outros círculos que alegavam pertencer à “Sociedade”,
33

notadamente o estrato superior da burguesia e até, em certa medida, em camadas da


classe média. (ELIAS, 1993, p. 17-18, grifo meu)

Atendendo às demandas de seus mecenas, os autores dotaram suas narrativas de uma


carga dramática mais intensa, sempre alinhado o pensamento sobre a realidade da
representação vivenciada, mas também do “maravilhoso” medieval contido no imaginário
coletivo. Não poderia ser de outra forma, visto que tendo sido escrita e direcionada para um
público específico, toda essa literatura deveria condizer com os aspectos que mais chamassem
a atenção advindos das práticas e pressupostos da insurgente cultura cortês. Realidades e
objetos históricos frutos de seu contexto natural, tudo foi colocado à prova nas mais diversas
estilizações e representações sobre os sexos nas obras romanescas em finais do século XII.

Modelos femininos e masculinos saltavam aos olhos dos leitores e ouvintes, figuras
fictícias, porém ancoradas em um retrato social do que eles queriam ver, sentir e fazer. É
chegado o momento capital dos amantes nessa literatura cortesã, onde as mais variadas
formas de se amar, pensar e sobretudo, reproduzir invadem de vez as cortes feudais.

Uma literatura refinadamente aristocrática em sua maioria, destinada à nobreza que a


patrocinava, e que se obstinava para vivê-la em sua plenitude. Os retratos masculinos e
femininos presentes neste corpo textual fornecem uma imagem de como a sociedade medieval
e seus literatos (as) buscavam nos tipos de comportamentos, nas relações de sensibilidade,
estética e sociabilidade entre damas e cavaleiros da corte, representar por meio da literatura o
convívio social entre esses agentes históricos. Pois como atesta Johan Huizinga:

[...] não é só na literatura e nas belas-artes que o anseio pelo amor encontra a sua
forma, a sua estilização. A necessidade de dar estilo e formas nobres ao amor
também encontra um amplo campo para se desenvolver nas próprias formas de vida:
no dia a dia da corte, nos jogos de salão, nas brincadeiras e no esporte. Também aí o
amor é constantemente sublimado e romantizado; nisso a vida imita a literatura, mas
esta, em fim de contas, acaba aprendendo tudo da vida. A visão cavaleiresca do
amor, no fundo, não surgiu na literatura, mas na vida. Nas verdadeiras condições de
vida é que se achava o motivo do cavaleiro e de sua amada. (HUIZINGA, 2011, p.
115-116)

Uma das primeiras obras a se aventurar em tentar definir o que de fato era o Amor
Cortês foi o Tractatus de Amore [Tratado do Amor Cortês] publicado no século XII, de
autoria de André Capelão, pois esta busca “[...] examinar em primeiro lugar o que é o amor,
de onde vem seu nome, quais são seus efeitos, entre que pessoas pode existir, de que modo
pode ser conquistado e mantido, que sinais indicam ser ele correspondido, o que um dos
amantes deve fazer quando o outro é infiel [...]” (CAPELÃO, 2000, p. 3). 30 O Tratado é
30
Finalizado e publicado no final do século XII (há controvérsias sobre a data exata da publicação, que oscila
entre 1182-1186), o Tractatus de Amore, no original em latim, é um tratado filosófico sobre o amor escrito por
André le Chapelain [André Capelão], clérigo francês estabelecido no condado de Champagne sob a tutela de
34

dividido em três partes (livros) e visa de antemão explicitar as condicionantes para a


existência, sentido e significados do amor (livro I), o que se fazer para manter o amor sem
maiores obstáculos (livro II, “Como manter o amor”) e por fim, paradoxalmente, os
infortúnios e dificuldades as quais os amantes estarão submetidos por se entregarem às suas
paixões (livro III, “Da condenação do amor”).

As regras, códigos e condutas presentes nas linhas do Tratado são formas específicas
de expressão, manifestação e registro da cultura cortês presente no ambiente aristocrático das
cortes medievais. Não obstante que ao próprio autor coube um patrocínio proferido da corte
de Champagne e uma posterior dedicatória a um amigo conhecido apenas como Gautier. 31 A
“linguagem das cortes” apresentada no Tractatus e nos demais romans medievais nos dão de
maneira mais coerente a problematização da variedade dos “jogos” amorosos disputados entre
os amantes. Além disso, por tratar diretamente dos ambientes palacianos, o autor nos fornece
os atributos que dão a possibilidade dos amantes de obter a estima e o amor da pessoa
desejada; geralmente apenas possíveis de se obter devido à condição elevada de nascimento,
educação e riqueza:

Alguns ensinam que dispomos de cinco trunfos para nos fazermos amar: belo físico,
excelente moralidade, extrema facilidade de elocução, grande riqueza e prontidão
com que cedem a nossos desejos. Mas eu [André Capelão], por minha vez,
considero que só os três primeiros nos permitem ganhar o amor; quanto aos dois
últimos, avalio que devem ser afastados da corte do Amor [...]. Com um físico
agradável obtém-se o amor sem grande esforço, sobretudo se o ser amado é ingênuo.
Isto porque um amante ingênuo tende a pensar que no outro nada conta, exceto a
beleza do rosto e a elegância do corpo. (CAPELÃO, 2000, p. 16)

Com essa passagem, sobretudo focada na influência que a visão da pessoa amada
possui sobre quem está enamorado, as obras cortesãs procuram explorar exaustivamente
descrições que se encarregam de explorar a beleza do sexo feminino, principalmente,
direcionada a influir durante a leitura o quanto tal pessoa soava magnífica no imaginário

Henrique I (1126-1181) à época. A obra de André consiste em um verdadeiro manual das práticas masculinas e
femininas que são desempenhadas sobre o tema do amor, ensinando desde o modo de portar-se diante de um
cortejo, à maneira correta de se iniciar um diálogo sobre o amor e até mesmo aconselhando como os amantes
devem reagir perante os obstáculos que sua paixão por ventura venha desencadear. Pouco ou quase nada se sabe
acerca da vida de André Capelão. O termo capelão sugere que o mesmo tenha sido um clérigo francês – o que
denota certo domínio dos estudos clássicos citados ao longo de seu tratado e a crítica quase que velada aos
comportamentos femininos. (CAPELÃO, 2000).
31
A dedicatória a Gautier é assinada por André de modo a perceber-se a afeição e aconselhamento do autor para
com o amigo. Pelo teor e tom das linhas assinadas, supõe-se que Gautier seja um homem ainda jovem, ou como
bem diz André “[...] um novato em Amor: recentemente atingidos por um de seus dardos, que não sabes como
segurar as bridas do teu cavalo e és incapaz de encontrar algum remédio para teu estado [...]” (CAPELÃO, 2000,
p. 1). A identidade de Gautier permanece sem maiores esclarecimentos, supondo-se apenas que deva trata-se de
um jovem nobre a quem André teve contato durante/após o período de composição de sua obra.
35

social da época. O Roman de la Rose32 , obra do século XIII, é uma destas obras que procura
exalta e idealizar o perfil feminino da beleza, em que o encontro do protagonista do Roman
com a alegoria da Beleza é representado pelo elemento do maravilhoso e da surpresa:

Possuía todas as boas qualidades pois não era nem escura nem morena, antes tão
resplandecente quanto a lua, que faz com que todas as estrelas se assemelhem a
pequenas velas. A pele tinha a frescura do orvalho, e ela era tão modesta quanto uma
noiva, tão branca quanto um lírio, com um rosto macio e delicado. [...] Juro por
Deus que meu coração se enche de grande doçura sempre que recordo as formas
perfeitas de cada um dos seus membros, tudo porque não havia no mundo mulher
mais bela. Resumindo, era jovem e loura, simpática e agradável, delicada e elegante,
de formas esguias e modos animados e atraentes. (LORRIS; MEUN, 2001, p. 22)

Tais atributos eram encarados como representação de elegância e boa aparência. Se


as damas medievais tomassem como molde os modelos apresentados nos romans, isto traria
sentido à tentativa de seus autores em transformar objetos de atenção literária em formas
concretas de atitude e comportamento. Havia também, no centro destas narrativas, um esforço
por analisar os sentimentos individuais, convidando os leitores a meditarem sobre o eu, isto
porque, na Idade Média Central, o homem tornou-se mais livre, houve um movimento cada
vez maior de emancipação do indivíduo, uma maior preocupação com suas emoções
humanas.

Sobre o aspecto da moralidade, Capelão prossegue seu discurso justificando o porquê


que a existência de uma moral elevada se sobressai sobre o atributo visual da beleza externa,
principalmente pelo fato de que:

Uma pessoa que se distinga pelas qualidades morais atrai o amor de quem ostenta as
mesmas qualidades; pois quem é versado em amor, homem ou mulher, não rechaça
um amante de físico ingrato desde que rico em qualidades. E aquele que se mostrar
honesto e sábio se transviará pelos caminhos transversos do amor ou arrojará na dor
o ser que ama. [...] A mulher, tanto quanto o homem, não deve preocupar-se com
beleza nem com elegância ou nascimento, pois nenhuma beleza tem atrativos
quando faltam qualidades de alma, e só as virtudes da alam conferem ao homem a
verdadeira nobreza e lhe dão o esplendor da beleza. Porque, visto sermos todos
rebentos de uma mesma cepa e termos todos, naturalmente, a mesma origem, não
foram a beleza nem a elegância nem mesmo a riqueza que deram origem à elite que
é a nobreza nem engendraram as diferenças de classes, mas sim as qualidades
morais. (CAPELÃO, 2000, p. 19-20)

É comum que as obras cortesãs abordem na construção e desenvolvimento de seus


personagens os atributos descritos no trecho da fonte mencionada. Não raro que donzelas,
damas e cavaleiros sejam representados como sendo indivíduos de incomparável caráter,
32
O Roman de la Rose [Romance da Rosa] é um poema em verso originário do século XIII que está dividido em
duas partes de diferente autoria. A primeira parte do Roman é escrita na década de 1230, quando Guillaume de
Lorris poeta francês e cortesão do rei Luís IX da França, também conhecido como São Luís, elabora cerca de
4000 versos para seu poema, descrevendo que nele “[...] estará contida toda a arte do amor[...]” (LORRIS;
MEUN, 2001, p. 9). A segunda parte do Roman é retomada e terminada por Jean de Meun poeta e literato
francês que a escreve por volta de 1268-1285, dando sua contribuição para cerca de 17000 versos ao poema.
36

destreza, coragem, elegância e refinamento que potencializam suas características físicas de


maneira a elevá-los e distingui-los dos demais personagens existentes na narrativa. Tome-se
de exemplo a descrição do jovem Cligès, protagonista do romance homônimo 33 do século XII,
cuja autoria é do poeta Chrétien de Troyes (1135?-1183)34:

Para descrever a beleza de Cligès eu gostaria de pintar um retrato verbal, que não
será muito longo. Ele estava na flor de sua juventude, já que estava próximo dos
quinze anos de idade [...]. Seu cabelo se assemelhava ao ouro puro e seu rosto à rosa
matinal. Seu nariz era bem feito e sua boca bela, e ele fora constituído de acordo
com o melhor padrão da Natureza, que nele reuniu tudo o que parcelara em outros.
Esta foi tão generosa com ele que o dotou de todos os dons e deu-lhe de tudo o que
podia. Assim era Cligès, que combinava bom senso e beleza, generosidade e força.
[...] ele sabia mais sobre esgrima e arquearia do que o sobrinho do rei Mark, Tristão,
e muito mais sobre aves e mais sobre cães de caça. Em Cligès não havia nada que
faltasse. (TROYES, 2004, p. 156, tradução minha)35

Percebem-se nos excertos das fontes mencionadas, características que convergem em


torno dos aspectos dinâmicos relacionados às representações literárias existentes na literatura
cortês. Ainda neste pressuposto analítico, o Amor Cortês enquanto ideal de comportamento,
desponta outros elementos que condizem à valorização e idealização da figura feminina,
sendo muitas vezes encarado como metáfora para a dinâmica “feudal” característica da virada
do século XI para o XII. Na França, isso pode ser percebido de modo mais conciso pelo
processo que levou ao desenvolvimento da nobreza local, visto que:

Pesou-se o fato da nobreza buscar uma maior afirmação como grupo social
privilegiado existente no sistema feudal, haja vista que o estatuto jurídico da nobilis,
após séculos de jugo régio por parte dos carolíngios (séculos VIII-X), tendeu a
fechar-se sobre si mesmo como estatuto definido. Tal fato não seria suficiente para
confirmar sua superioridade social. Era preciso se impor também por meio da
criação de um estilo de vida, de um código de conduta e de práticas que retratassem
as qualidades inerentes a esse grupo. Dessa forma, os escritos corteses, as canções,
os romances e os poemas épicos imbuíram-se de uma carga mais fina e polida no
que tange à vida cotidiana das cortes medievais. [...] (MORAIS, 2017, p. 40)

33
Considerado como o primeiro romance arturiano composto por Chrétien de Troyes e Escrito por volta de 1175,
Cligès tem como narrativa principal o conto de amor entre Cligès e sua dama Fenice, mas também nos mostra
como Alexandre e Soredamors, pais de Cligès, vieram a se conhecer. Um dos únicos romances de Chrétien de
Troyes a contar duas histórias de amor, Cligès distingue-se dos demais por justamente ditar os tons que cada
relação possui, focando-se primeiramente na construção narrativa da história dos pais do protagonista para enfim
demorar-se na figuração do mesmo e de sua própria aventura. c. TROYES, Chrétien. Cligès. In: _______.
Arthurian romances. [Translated with an Introduction and Notes by William W. Kibler (Erec and Enide
translated by Carleton W. Carroll)]. London: Penguin Books, 2004, p. 123-205.
34
Poeta francês cuja atividade floresceu na segunda metade do século XII.
35
Todas as citações e traduções das obras em língua estrangeira são realizadas pelo autor, como forma de
incorporar ao texto principal deste trabalho a tradução para otimizar a leitura. No original: “In order to describe
Cligés’s beauty I would like to paint a verbal portrait, which will be not long. He was in his flower, for he was
nearly fifteen years of age; […]. His hair resembled pure gold and his face the morning rose. His nose was well-
made and his mouth fair, and he was built according to Nature’s finest pattern, for in him she brought together
what she only parceled out piecemeal to others. Nature was so generous with him that she gathered all her gifts
in him and gave him all she could. This was Cligés, who combined good sense and beauty, generosity and
strength. […] he knew more about fencing and archery than did King Mark’s nephew Tristan, and more about
birds and more about hounds. In Cligés was not lacking.”
37

Ademais, tal quadro justificava-se ainda, devido à política sobre os casamentos e na


manutenção da linhagem das casas nobres nas províncias francesas de maior prestígio.
Usualmente costumava-se casar apenas um dos filhos – geralmente o primogênito – por
ocasião de prevenir a dissociação e o fracionamento dos patrimônios familiares. Desta forma,
somente o filho mais velho tinha direito à uma esposa legítima, deixando grande parte do
corpus masculino sem condição semelhante:

[...] Eis o quadro: um homem, um “jovem”, no duplo sentido dessa palavra, no


sentido técnico que tinha na época – isto é, um homem sem esposa legítima -, e,
depois, no sentido concreto, um homem efetivamente jovem, cuja educação não
havia sido concluída. Esse homem assedia, com intenção de tomá-la, uma dama [...]
O amor delicado é um jogo. Educativo. É o correspondente exato do torneio [...] o
homem bem-nascido arrisca sua vida nesse jogo, põe em aventura seu corpo [...] o
jovem arrisca a vida na intenção de completar-se, de aumentar seu valor, mas
também de tomar, de conquistar seu prazer, capturar o adversário após lhe ter
rompido as defesas, após o ter desmontado, derrubado, revirado (DUBY, 2011, p.
69-70).

De modo a controlar o ímpeto viril masculino, os nobres franceses optaram por


reunir em suas cortes boa parte da cavalaria feudal ascendente com o objetivo de domesticá-la
por intermédio de uma literatura produzida por poetas e intérpretes profissionais, que visasse
um trato mais adequado e cortês em relação ao sexo feminino, formando, enfim, um
ambiente, uma “sociedade de corte” que concentrara em seu interior uma roupagem e uma
linguagem específica em se tratando das formas de agir, que Norbert Elias define como sendo
o lugar social que assumiu:
[...] um novo aspecto e uma importância na sociedade ocidental, em um movimento
que se espalhou lentamente pela Europa, para refluir novamente, mais cedo aqui,
mais tarde ali, durante a época que denominamos “Renascença” [aqui o autor
refere-se à Renascença do século XII]. Nos movimentos desse período, as cortes
foram se tornando o modelo concreto e os centros formadores do estilo [civilizado,
cortês]. [...] Somente se tornou possível porque, em uma transformação geral da
sociedade europeia, formações sociais semelhantes, caracterizadas por formas
análogas de relações humanas, surgiram por toda parte. Na França ela via,
plenamente desenvolvido, algo que nascera de uma situação social semelhante e que
se ajustava a seus próprios ideais: pessoas que podiam exibir seu status, enquanto
observavam também as sutilezas do intercâmbio social, definindo sua relação exata
com todos acima e abaixo através da maneira de cumprimentar e de escolher as
palavras – pessoas de “distinção”, que dominavam a “civilidade”. (ELIAS, 1993, p.
17, grifos meus)

Ainda incialmente alheios à “arte de amar”, os jovens rapazes passariam por um


processo de refinamento nas suas ações perante o sexo feminino, sendo familiarizados
continuadamente com o universo que a cultura cortesã propiciava pelas mãos, vozes e
sobretudo pelos escritos de seus idealizadores. Duby aponta que esse tipo de produção
literária:
38

[...] transmitia uma moral, a moral que pretendiam propagar os príncipes mecenas,
os quais, para essa finalidade, sustentavam em sua casa os poetas e montavam os
poemas como espetáculo. [...] Pois esses romances são espelhos em que se refletem
as atitudes de seus ouvintes. Eles a refletem bastante fielmente porque, como as
vidas de santos, tinham por missão, distraí-los, ensiná-los a se conduzir bem; [...] Os
apaixonados e apaixonadas por essa literatura tendiam a copiar suas maneiras de
pensar, agir e sentir. (DUBY, 2013, p. 76-77)

As obras de caráter cortês ainda possuem suas bases ancoradas em uma realidade
social específica. A literatura cortesã aqui analisada age como um reflexo do convívio de
homens e mulheres na corte medieval, imaginados e representados nos escritos dessa
temporalidade. Como? Nos pressupostos do Amor Cortês, cabe à dama o controle exato da
situação amorosa na maioria dos casos.

Nas relações amorosas da aristocracia feudal, a imagem feminina retratada nos textos
de época remonta ainda a uma certa estilização e idealização das damas medievais, fato
presente nas obras que as descrevem, dentre outras formas, como sendo o fato preponderante
para a formação dos juvenes36 medievais, pois “[...] A dama tinha assim a função de estimular
o ardor dos jovens, de apreciar com ponderação, judiciosamente, as virtudes de cada um. [...]
Ela coroava o melhor. O melhor era quem a tinha servido melhor. O amor cortês ensinava a
servir e servir era o dever do bom vassalo [...]” (DUBY, 2011, p. 74).

André Capelão em seu Tractatus esboçou um total de 31 mandamentos do Amor37,


que deveriam ser observados e seguidos à riscas de modo a cultivar e fazer sobreviver todo o
sentimento nutrido por aquele ou aquela a quem se ama. Alguns dos mais significativos
mandamentos são:

III. Ninguém pode ligar-se a dois amores ao mesmo tempo.


[...]
XII. O verdadeiro amante não deseja estar em outros braços que não sejam os de sua
amante
[...]
XIV. A conquista fácil torna o amor sem valor; a conquista difícil dá-lhe apreço.
XV. Todo amante deve empalidecer na presença da amante.
XVI. Quando um amante avista de repente a mulher amada, seu coração deve
começar a palpitar.
[...]
XXIV. Todo ato do amante tem como finalidade o pensamento da mulher amada.

36
Palavra designada aos jovens nobres que não possuíam esposas. Geralmente o termo era destinado aos filhos
mais novos de um vassalo senhorial que habitava a corte de seu suserano e aspirava por meio do casamento obter
o grau de sênior e as terras que viriam com o título.
37
Ver anexo A.
39

[...]
XXVI. O amante não sabe recusar nada à amante.
XXVII. O amante nunca se sacia dos prazeres que encontra junto à mulher amada.
(CAPELÃO, 2000, p. 261-262)

Cruzando tais informações sobre as regras que os amantes devem seguir com o tipo
de obra produzida no medievo, tomemos os mandamentos XII, XXIV e XXVII e as cantigas
compostas por Guilherme IX de Aquitânia para dar “voz” ao sentimento professado, ao papel
da mulher amada como inspiração e ao objetivo final do amante de conseguir os favores de
sua pessoa amada. A primeira cantiga, em franco-provençal composta por Guilherme, o
trovador, é intitulada de Farei canconeta nova [do original Farei chansoneta nueva], na qual
o poeta canta à amiga sobre seu desejo, amor e todas as qualidades que esta possui e que o faz
amá-la impreterivelmente:

Farei cançoneta nova


antes que vente, gele, chova;
minha dona me ensaia e prova
para saber como a amo;
mas por mais mal que me mova
não me livrará do seu liame.

Pois me rendo e prendo mais,


que me inscreva em seus anais.
Por ébrio não me tenhais
se esta boa dona amo;
sem ela não vivo, tais
o amor e a fome com que a chamo.

Mais branca sois que marfim,


outra alguma adoro assim.
Se em breve não tenho o sim
da dona boa que eu amo,
por S. Gregório, é meu fim
sem seu beijo em cama ou sob ramo.

Que vos vale, dona ideal,


se vosso amor me não vale?
Quereis ser monja, afinal?
Pois sabeis, tanto que vos amo
temo que a dor me apunhale
40

Se a bem não passa o mal que clamo

Que vos vale se me enclausuro


e por vós não sou seguro?
Todo o bem é nosso, juro,
Se me amais, dona, e eu vos amo.
A Daurostre, amigo puro,
peço e manda que cante piano

Por esta tremo e me estremeço,


de tão bom amor a amo.
E cuido de que igual preço
mais não dará de Adão o ramo. (GUILHERME IX, 2009, p. 77-78)38

Em outra cantiga, Guilherme, o trovador canta sobre o prazer obtido junto à amada,
colocando em posição de inigualável alcance dentre todos os prazeres existentes no mundo
que conhece. Intitulada de Cheio de gozo estou a amar [Mout jauzens me prent em amar]39,
assim o diz:

Cheio de gozo estou a amar


o gozo e não quero sair.
38
A tradução aqui utilizada para todas as cantigas de Guilherme IX foi realizada pelo professor Arnaldo Saraiva
diretamente das composições originais em franco-provençal. As traduções seguiram os critérios de estrutura,
rítmica, estética e sentido, de modo a não comprometer o texto original com a perda de sentido nas cantigas e
também do elemento poético que caracterizou a obra do nobre trovador. c. GUILHERME IX DE AQUITÂNIA.
Poesia. [Trad.: Arnaldo Saraiva]. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. No original, temos: “Farai
chansoneta nueva / Ans que vent ni gel ni plueva; / Ma dona m’assai e m prueva, / Quossi de qual guiza l’am; / E
ja per plag que m en mueva / No m solvera de son liam. / Qu’ans mi rente a lieis e m liure / Qu’en as carta m pot
escriure; / E no m’em tengatz per iure, / S’ieu ma bona dompna am, / Quar senes lieis non puesc viure, / Tant ai
pres de s’amor gran fam. / Que plus es blanca qu’evori, / Per qu’ieu autra non azori. / Si m breu non ai ajutori,
/Cum m abona dompna m’am, /Morrai, pel cap Sanh Gregori, / si n om baiz’em sotz ram. / Qual pro i auretz,
dompna conja, / Si vostr’amors mi deslonja? / Par que us vulhatz metre monja! / E sapchtaz, quar tan vos am, /
Tem que la dolors me ponja, / Si no m faitz dreg dels tortz qu’ie us clam. / Qual pro auretz, s’ieu m’enclostre e
no m retenetz per vostre? / Totz lo jois del mon es nostre, / Dompna, s’amdui nos amam. / Lai al mieu amic
Daroustre / Dic e man que chan e (no) bram. / Per aquesta fri e tremble, / Quar de tam bon’amor l’am, qu’anc no
cug qu’em nasques semble / en semblan del gran linh N’Adam.”
39
No original: “Mout jauzens me prenc en amar / Um joi dons plus mi vuelh aizir; / E pus em joi vuelh revertir, /
Ben dei, si puesc, al mielhs anar, / Quar mielhs onra m, estiers cujar, / Qu’om puesca vezer ni auzir. / Ieu, so
sabetz, no m dei gabar / Ni de grans laus no m sai formir, / Mas si anc nulhs jois poc florir, / Aquest deu sobre
totz granar / E part los autres esmerar, / Si cum sol brus jorns esclarzir. / Anc mais no poc hom faissonar / Cors,
em voler ni em dezir / Ni em pensar ni em cossir; / Aitals jois no pot par trobar, / E qui be l volria lauzar / D’un
an noi i poiri’ avenir / Totz jois li deu humiliar, / E tota ricors obezir / Midons, per son bel aculhir / E per son bel
plazent esguar; / E deu hom mais cent tans durar, / Qu il joi de s’amor pot sazir. / Per son joi pot malautz sanar, /
E per sa ira sas morir / E savis hom enfolezir / E belhs hom sa beutat mudar, / E l plus cortes vilanejar / E l totz
vilas encortezir. / Pus hom gensor no n pot trobar / Ni huelhs vezer ni boca dir, / A mos ops la vuelh retenir, / Per
lo cor dedins refrescar / E per la carn renovelar, / Que no puesca envellezir. / Si m vol midons s’amor donar, /
Pres sui del penr’ e del grazir / E del celar e del blandir / E de sos plazers dir e far / E de son pret tener em car / E
de son laus enavantir. / Ren per autri non laus mandar, / Tal paor ai qu’ades s’azir, / Ni ieu mezeis, tan tem
falhir, / No l’aus m’amor fort assemblar; / Mas elha m deu mo mielhs triar, / Pus sap qu’ab lieis ai a guerir.”
41

E já que ao gozo torno a ir,


podendo, o melhor vou buscar;
e é o melhor, sem hesitar,
que se pode olhar ou ouvir

Sabei: não quero me gabar,


nem grandes louvores nutrir.
Mas se o gozo pode florir,
fruta melhor este vai dar,
e entre outros há-de-brilhar
como o dia sombrio a abrir

Corpo igual não se pode idear


nem no querer, nem no sentir,
nem no pensar, nem no urdir.
Nem gozo tal se pode achar.
E quem o queira celebrar
nem num ano vai conseguir.

O gozo tem de se inclinar


e o poder há-de servir
a minha dona, o seu sorrir,
o seu belo e ardente olhar
Mais de cem anos vai durar
quem do seu gozo usufruir

Seu gozo pode o mal curar,


sua ira o são submergir,
o homem sábio confundir,
o homem belo afear,
o mais cortês vilão tornar,
e o vilão fazer luzir.
Pois mais gentil não há para amar,
olhos verem, boca aplaudir.
Para mim, só, a quero atrair,
ao meu coração dar novo ar,
a minha carne renovar
e nunca, nunca empedernir.

Se seu amor me quer doar


42

eu pronto estou para a servir,


para a louvar e encobrir,
seu prazer dizer e alçar,
o seu alto preço prezar,
e o seu louvor difundir.

Nada por outrem vou mandar,


tal pavor tenho de a ferir,
nem, para ela me não punir,
ouso o meu amor declarar.
Ela o melhor irá achar
para o meu gozo garantir. (GUILHERME IX, 2009, p. 80-85)

Como visto, tais cantigas transitam bem dentro do espectro temático do Amor
Cortês, onde um fator não tão claro no Tractatus salta aos olhos nas composições de
Guilherme IX: o alto teor sexual de seus versos. Como supracitado no início, as composições
de Guilherme causaram espanto e choque por conta de sua liberdade em escreve e cantar
sobre temas tão espinhosos dentro da sociedade feudal. O amor ao qual o trovador se referia
não era apenas o amor idealizado e puro, e mesmo que seguisse a linha de raciocínio de André
Capelão sobre as formas de nutrir e praticar o amor, o sentimento professado nas cantigas era
o carnal, consumado e quase explícito, onde o autor por meio de metáforas poéticas brinca
com as palavras do eu-lírico, sempre em posição de júbilo e prazer, realizando com sua amada
as mais diversas fantasias e desejos amorosos.

Desse modo, optei pelo uso da narrativa literária como fonte de análise pela riqueza
do discurso proferido e das múltiplas possibilidades de se analisar o período escolhido por
intermédio das representações de seus contemporâneos sobre sua própria realidade. Quando
trabalhada e manipulada dentro de seu contexto de produção, toda fonte, e a literária não foge
à regra, fornece ao historiador as oportunidades de reflexão sobre a problemática por ele
colocada.

A escolha pelo uso das representações literárias deste Amor Cortês descrito nas
páginas anteriores não escapa também a essa lógica, pois à rigor, e fundamentalmente, quando
representamos algo, ou alguém, sejam categorias sociais, culturais, simbólicas e/ou políticas,
consideramos que ali temos a alocação de uma ferramenta teórica que significa que o “[...]
estar no lugar de, é a presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver a
ausência. [...]”, onde a representação desses elementos seja percebida como sendo uma “[...]
43

não cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir
dele. [...]” (PESAVENTO, 2008, p. 40).

Se na literatura sobre o Amor Cortês determinados tipos de comportamentos são


descritos de modo prolífico pelos autores que as produziam, visualizamos aqui um retrato
problematizado da época, um “regime narrativo ficcional”, mas que por intermédio da força
de um discurso que deixou homens e mulheres nobres expostos às mais variadas aventuras e
acontecimentos fantásticos, foi construído a partir da capacidade de mobilização e produção
de reconhecimento e legitimidade de um quadro social específico, no caso, a sociedade de
corte francesa.

Por isso, considero que o uso da representação enquanto ferramenta teórica de


análise do medievo, da literatura cortesã adequa-se à problemática estabelecida sobre a
discussão em torno da “literatura” medieval e as apropriações que dizem respeito às figuras
elencadas, visto que:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a


universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos
interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento
dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. As percepções do social
não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas
(sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros,
por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os
próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as
representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de
concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de
dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu
domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações não e,
portanto, afastar-se do social — como julgou durante muito tempo uma história de
vistas demasiado curtas —, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de
afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais.
(CHARTIER, 1990, p. 17, grifos meus)

Alocada num pressuposto do campo teórico da História Cultural, tal afirmativa


corrobora com os pressupostos do campo literário, cujo um dos objetivos principais é senão a
aproximação e incorporação da produção de uma cultura presente na própria linguagem e nos
discursos proferidos por seus produtores – intelectuais ou leigos – nos diversos substratos da
vida social, além de buscar observar nos próprios textos literários e numa cultura escrita
propriamente dita, “mecanismos de produção de objetos culturais” (PESAVENTO, 2008, p.
42).

O uso da narrativa literária e suas imbricações com o imaginário social do medievo


no oferece a oportunidade de medirmos o alcance que os escritos corteses tiveram no período,
44

pois dentro da linha de raciocínio seguida até aqui, essa literatura, presente em um quadro
maior de explanação que seria o imaginário, representa por meio de sua própria estrutura
conjuntural, regimes de representação e verossimilhança com o real.

Enquanto documento essas obras “[...] não podem dar-lhes [aos historiadores] sobre
aquilo para o que não foram feitas: elas são em si próprias uma realidade histórica. Medíocres
ou geniais [...], não obedecem a motivações, regras ou finalidades iguais às dos documentos
de arquivo que o historiador está habituado a trabalhar [...]” (LE GOFF, 1994, p. 6, grifo
meu), ao mesmo tempo que direciona e aponta os caminhos existentes para um novo olhar e
uma nova abordagem sobre os retratos sociais ali descrito e é senão no imaginário construído
sobre o Amor Cortês que as obras idealizam e constroem suas figuras de heroísmo
cavaleiresco e de virtude feminina.

Sobre essa dinâmica temática de análise, Guilherme IX ainda canta sobre a mudança
das estações, sobre o cotidiano nas cortes nobiliárquicas. Sempre com o pano de fundo cortês,
o trovador buscou incorporar em sua poesia aspectos do social imaginados e refletidos nas
palavras que compunham seus escritos. Não obstante que a cantiga de título Pois vemos que
já refloresce [Pus vezem de novel florir] trata desses assuntos:

Pois vemos que já refloresce


o prado, o vergel [pomar] reverdece,
o rio e a fonte esclarece,
o vento, o ar,
cada qual goze o que merece
estar a gozar.
De amor não direi senão bem.
Por que nada dele me vem?
Porque mais não me convém.
E facilmente
dá grande gozo a quem o tem
sempre na mente.

Toda a vida tive esta lei:


do que eu amei nunca gozei,
nunca o fiz, nunca o farei,
e sou ciente
do que pelo coração sei:
“Tudo é ausente”.
45

Desfruto assim menos prazer,


só quero o que não posso ter.
Num rifão vejo um parecer
bem pertinente:
“A bom desejo bom poder
se é paciente”.

Ninguém prestará bom serviço


ao amor se não lhe é submisso,
ou se ao vizinho e ao noviço
é indiferente
e não é a quem tem feitiço
obediente.

A obediência é o pilar
de muitos que querem amar
e que devem estar a par
do conveniente,
evitando em corte falar
como má gente.

Este poema mais dirá


a quem o entenda e louvará,
pois nas suas palavras há
arte eloquente,
e o som, de que me orgulho, está
bom, excelente.

A Narbona, onde não vou, vá


como presente,
este poema, e seja lá
louvor ardente.

A Estevão, lá onde está, vá,


como presente,
este poema, e seja lá
louvor ardente.40 (GUILHERME IX, 2009, p. 70-75, grifo meu)

40
“Pus vezem de novel florir / Pratz e vergiers reverdezir /Rius e fontanas esclarzir, /Auras e vens, / Bem deu
cascus lo joi jauzir / Don es jauzens / D’amor non dei dire mas be. / Quar no n ai ni petit ni re? / Quar ben leu
46

Georges Duby (2013, p. 11) comenta que a literatura dos séculos XII-XIII “[...]
procurava impor um conjunto de imagens exemplares[...]” e que além disso “[...] representa o
que a sociedade quer e deve ser [...]”. Mesmo que essa literatura não represente um retrato
fidedigno dos aspectos amorosos no cotidiano das cortes principescas, estas atuam
diretamente como sendo os baluartes de um “triunfo” literário das figuras representadas em
suas narrativas, e é na decorrência de tal fenômeno que tais histórias fizeram homens e
mulheres desprenderem-se um pouco da rígida ordem social existem no período.

Em sua construção, buscavam um divertimento, um alento, formas de fazerem seu


público gozar de seus desejos secretos e seus sonhos de amor. Mesmo que diversas vezes tais
sonhos fossem proibidos, inalcançáveis e subsequentemente trouxessem sofrimento, quem
sabe não valeria à pena o risco e a emoção de se entregarem às suas paixões amorosas.

plus no m’em cove; / Peo leumens / Dona gran joi qui be n mante / Los aizimens. / A totz jorns m’es pres enaissi
/ Qu’anc d’aquo qu’amiei no m jauzi, / Ni o farai ni anc non ho fi; / Qu’az esciens / Faz maintas res que l cor me
di; / “tot es niens”. / Per tal n’ai meins de bon saber / Quar vuelh so que non puesc aver. / Aisel reprovers me ditz
ver / Certanamens: / “A bom coratge bon poder, / Qui’s bem sufrens”. / Ja no sera nuils hom bem fis /
Contr’amor, si non les aclis, / Et als estranhs et als vezis / Non es consens, / Et a totz sels d’aicels aizis /
Obediens. / Obediensa deu portar / A maintas gens qui voi amar, / E coven li que sapcha far / Faigz avinens, / E
que s gart em cort de parlar / Vilanamens. / Del vers vos dic que mais ne vau / Qui bem l’enten, e n’a plus lau, /
Que l mot son fag tug per egau / Comunalmens, / E l sonetz, ieu mezeis m’en lau, / Bos e valens. / A Narbona,
mas ieu no i vau, Sia l prezens / Mos vers, e vuelh que d’aquest lau / Me sai guirens. / Mon Esteve, mas ieu no i
vau, / Sia l prezens / Mos vers, e vuelh que d’aquest lau /Me sai guirens.”
47

2.2 NA TRILHA DOS ROMANS: A CULTURA ESCRITA NA FONTE MEDIEVAL

Se anteriormente foi discutido sobre o ideal do Amor Cortês na literatura do


medievo, cabe agora destacar o principal gênero e veículo literário de expressão dos valores
cortesãos à época. Inserido em um universo literário ainda com fortes resquícios oriundos de
uma tradição oral, o gênero do roman surge como um meio de ampliar ainda mais o alcance
do mecanismo da escrita na vida cotidiana do medievo. Fato observado nos próprios
questionamentos surgidos quando da menor menção do termo, tornou-se coerente ao menos
apontá-lo como sendo o modelo para “[...] designar as formas poéticas narrativas mais novas
que apareceram, no correr da segunda metade do século XII na França [...]” (ZUMTHOR,
1993, p. 266).

Sobre sua terminologia e significado no contexto ao qual se encontra, tal gênero


pertence e é escrito dentro do quadro linguístico vernacular do francês medieval, abrangendo
seus variantes, dialetos e formas de expressão que se sairiam mais próximas de seu público-
alvo do que o tradicional latim, a língua do clero e dos principais escritos circulantes até o
momento.

Fruto de um contexto sociocultural em que inúmeras formas de pensar e agir foram


manifestadas, o roman medieval de início do século XII obedece à conjuntura do período,
marcada pelo gradual desenvolver das narrativas escritas nos centros urbanos e nas cortes
nobiliárquicas, além de demarcar o maior destaque a partir de então de uma cultura escrita e
sua relação específica com seus autores, intérpretes e receptores:

[...] o valor eminente que ele [roman] atribuía a escritura, de fato, modificava suas
relações, não somente com seu texto, mas também com o ouvinte. [...] O “romance”
procede a uma iniciação crítica de seu ouvinte, ele o envolve (de maneira menos ou
mais hábil) numa busca de sentido, uma investigação, certamente limitada pelas
injunções simbólicas que pesavam sobre a cultura de então, irrealizável, no entanto,
sem a intervenção do escrito. [...] Uma reflexão sobre a escritura (independente da
tradição retórica) esboça-se assim, em língua vulgar, a propósito de narrativas de
ficção, excluindo todos os outros textos. (ZUMTHOR, 1993, p. 267-268, grifo meu)

Ademais, o roman trouxe consigo elementos conjugados que sobreviveram ao


amálgama dos componentes escritos e orais mencionados no tópico anterior, dotando-o de
valores e acepções mais completas no que se refere ao maior desenvolvimento da cultura
literária medieval. Seu próprio processo de formação pode ser descrito por medievalistas e
linguistas como sendo o ápice final do conjunto das tradições vocais e escritas do ocidente
medieval:
48

O “romance” surgiu, com efeito, por volta de 1160-70, na junção da oralidade e da


escritura. Logo de saída colocado por escrito, transmissível apenas pela leitura (com
a intenção, é verdade, de atingir ouvintes), o “romance” recusa a oralidade das
tradições antigas, que terminarão, a partir do século XV, marginalizando-se em
"cultura popular". Formalizado em língua vulgar, mas por causa de altas exigências
narrativas ou retóricas, o romance não recusa menos, de fato, a supremacia do latim,
suporte e instrumento do poder do clero. Contrariamente aos contos de que se nutre
o povo em geral, ele requer vastas dimensões: longas durações de leitura e de
audição, em que os encadeamentos da narrativa, por mais embrulhados que por
vezes pareçam, são projetados para um adiante nunca fechado, exclusivo de toda
circularidade. O discurso acha assim, em seu nível próprio, garantindo conotações
mais ricas, o traço de incompletude e de indefinição das palavras comuns, as que no
fio dos dias dizem a vida. (ZUMTHOR, 1993, p. 266)

A valorização da escritura na Idade Média ocidental foi possível, também, graças à


revitalização da urbe medieval, em que pese que a passagem de uma sociedade ancorada na
tradição oral para uma sociedade que envolvesse e adotasse o uso das técnicas de escrita para
fins múltiplos - desde a preservação de memória à manifestação e representação da vida
cotidiana - deu-se de maneira gradual, obedecendo uma lógica de desenvolvimento que ainda
colocava o elemento oral sobreposto às letras:

Todo ato social de certa importância devia ser público, realizar-se diante de uma
assembleia numerosa, cujos membros guardavam em depósito a lembrança e cuja
confirmação esperava-se que eles garantissem mais tarde, eventualmente, tanto
daquilo que tinham visto como ouvido. Palavras, gestos, enfiados num ritual a fim
de se imprimirem mais profundamente na memória do grupo para serem, no futuro,
relatados. Ao envelhecer, as testemunhas se sentiam obrigadas a transmitir à sua
descendência o que elas conservavam na memória, e essa herança de recordações
deslizava assim de uma geração para outra. [...] Gente que, para garantir o arranjo de
todas as relações sociais, não confiava nos textos, mas na memória, nessa memória
coletiva que era o “costume” – um código muito restrito, imperioso, embora não
estivesse em parte alguma registrado. Se se interrogava sobre esse ou aquele ponto
do direito, era preciso proceder à elocução das lembranças. A pesquisa oral, a
interrogação periódica dos membros da comunidade, inicialmente os mais idosos,
depositários de uma reserva mais antiga, julgada mais valiosa porque mergulhava
profundamente no passado, constituía um dos órgãos maiores de regulamentação da
sociedade. (DUBY, 2011, p. 196-197, grifos meus)

Não raro que tal “resistência” seja percebida nas primeiras obras literárias escritas no
início do século XII. É comum encontrar nos registros de época, nos poemas, poesias, canções
de gesta e romans, passagens que exprimem a maneira “tradicional” de se narrar os
acontecimentos, visto que o “contar” é literalmente isso, a narrativa sucessiva de fatos e
acontecimentos transmitidos via leitura em voz alta, àqueles que não tinham domínio das
letras.

Ademais, ao historiador, sobretudo ao historiador do medievo, salta-se aos olhos a


presença da memória na construção do discurso histórico. No medievo ocidental, tal elemento
fluía por entre os meandros das oficinas de trabalho, da vida cotidiana, da instigação pelo
imaginário construído por autores/receptores, intérpretes/espectadores, leitores/ouvintes. Falar
49

de uma “memória medieval” ou até mesmo de uma memória “coletiva” em torno desses
retratos sociais passa pela tênue relação entre História e Memória. Ao final da década de 70,
Duby pontuou que:

Um dos efeitos da descolonização foi obrigar os historiadores europeus a levar mais


em consideração as sociedades sem escrita – como eram quase todas as sociedades
medievais -, a fazê-los a descobrir o papel da oralidade na transmissão das
lembranças coletivas, na construção de uma história não menos sólida do que aquela
cujo conjunto nós aprimoramos, não menos viva, não menos necessária à
organização das relações sociais. Entretanto, a incerteza em que estamos em relação
aos mecanismos da memória na cultura na Idade Média decorre principalmente do
fato de que os fenômenos escapam à nossa observação. Esta passa obrigatoriamente
por traços escritos, por textos, e nós não captamos jamais a memória a não ser
imobilizada pelo trabalho de técnicos cujo ofício era precisamente capturá-la,
aprisioná-la numa rede de palavras. (DUBY, 2011, p. 195-196)

Seguindo o raciocínio de James Fentress e Chris Wickham (1992) sobre o elemento


da memória, temos que tal fenômeno em si possui um nível de complexidade que abrange das
dimensões privadas ao universo coletivo, reconhecendo a influência mais direta dessa mesma
memória no âmbito mais público e vinculado, novamente, ao social.

Ainda sobre o assunto, Maurice Halbwachs considerou que a existência de uma


“memória coletiva” sobrepõe-se de um modo específico ao prisma da individualidade pois
“[...] a representação das coisas evocada pela memória individual não é mais que uma forma
de tomarmos consciência da representação coletiva relacionada às mesmas coisas [...]”,
(HALBWACHS, 2006, p. 69) denotando, segundo o mesmo, a existência de “quadros sociais
de memória” que atuam em conjunto com elemento individual das sociedades, porém,
subordinados ao coletivo:

[...] diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupa e que esse
mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes.
(HALBWACHS, 2006, p. 69, grifo meu)

Nossas recordações e lembranças muito provém do elemento social, mas atuam em


conjunto, e não seguindo determinada ordem pré-estabelecida onde um ponto está acima dos
demais. Fentress e Wickham reconhecem que a memória em si mesma é pura e subjetiva, mas
que é complementada com os instrumentos sociais da linguagem, do ensino, e da observação
partilhada entre os atuantes. Por isso, utilizando-se do precedente aberto por Halbwachs,
contribuem para o conceito de memória ampliando o escopo do coletivo para o social, haja
vista que dotada dos elementos opostos – mas aqui complementares – do individual/coletivo,
a “memória social” pode, independentemente daquilo que tomamos por critérios do que seja
real/fictício, compreender a identidade de um grupo ou de vários:
50

[...] quando recordamos, elaboramos uma representação de nós próprios para nós
próprios e para aqueles que nos rodeiam. Na medida em que a nossa ‘natureza’ - o
que realmente somos – se pode revelar de um modo articulado, somos aquilo de que
nos lembramos [...]. (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p. 10)

Tomando por base tal reflexão, alio o pensamento da memória social junto à
manutenção de uma tradição oral de transmissão no medievo, pois ao evocar a subjetividade,
a coletividade e o quadro sociocultural do universo literário da Idade Média ocidental, leva-se
em consideração seu contexto de produção, de circulação e recepção, estando em sintonia
com a própria narrativa construída pelos agentes históricos que possibilitaram a existência das
diversas formas de compreensão que este universo possuía em seu interior.

FIGURA 2 – MINIATURA DO CANCIONEIRO DA AJUDA

Cancioneiro medieval contendo uma coletânea de poesias ibéricas escritas em galego-português no século
XIII, influenciadas pela lírica trovadoresca provençal (occitânica) inaugurada por Guilherme IX da
Aquitânia na França do século XII.
Fonte: <http://cantigas.fcsh.unl.pt/cancioneiro.asp?imgc=A_119_21&cdcanc=1>. Acesso em: 13 out, 2017.

A miniatura observada anteriormente representa um grupo de músicos, tendo ao lado


esquerdo da imagem a figura do intérprete, sentado e à postos para apresentar sua cantiga.
51

Ora, a ideia de transmissão das obras literárias no medievo se perpetua durante muito tempo
por intermédio do recurso da voz, da música, em suma, da oralidade pujante.

Deve-se ter em mente que o amálgama dessa tradição oral com o elemento escrito
passa por uma análise cuidadosa do historiador em relação ao contexto de circulação dessas
práticas, aliado, em primeira instância com a compreensão de uma sociedade em que a
existência preliminar de uma cultura escrita por parte daqueles que detinham seus meios de
controle não obrigatoriamente a tornava em uma sociedade letrada.

Desse modo, uma maneira encontrada pela própria iconografia do período medieval
foi a representação nas iluminuras de grupos de músicos, como bardos, jograis e menestréis,
ao ponto de que o elemento visual se ajuntasse ao elemento vocal/oral para a construção e
perpetuação de uma prática social como a leitura de peças, obras e pantomimas em voz altas.

A cultura da oralidade importa, possui força, e ainda que sobrepujada posteriormente


pelo “triunfo” da escrita na Idade Média, logrou seu lugar social devidamente especificado
nos estudos sobre a cultura literária insurgente no século XII. Desse modo, para uma reflexão
e discussão objetiva sobre o tema, observa-se que:

Um estudioso que trabalha com tradições orais deve compenetrar-se da atitude de


uma civilização oral em relação ao discurso, atitude essa, totalmente diferente da de
uma civilização onde a escrita registrou todas as mensagens importantes. Uma
sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação
diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais,
venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. A
tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de
uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso,
pois palavras criam coisas. [...] A oralidade é uma atitude diante da realidade e
não a ausência de uma habilidade. As tradições desconcertam o historiador
contemporâneo – imerso em tão grande número de evidências escritas, vendo-se
obrigado, por isso, a desenvolver técnicas de leitura rápida – pelo simples fato de
bastar à compreensão a repetição dos mesmos dados em diversas mensagens. As
tradições requerem um retorno contínuo à fonte. O historiador deve, portanto,
aprender a trabalhar mais lentamente, refletir, para embrenhar-se numa
representação coletiva, já que o corpus da tradição é a memória coletiva de uma
sociedade que se explica a si mesma. (VANSINA, 2010, p. 139-140, grifos meus)

Tome-se de exemplo o conto de Tristão e Isolda, uma das histórias de amor mais
conhecidas e divulgadas da Idade Média. O conto deve suas origens às lendas celtas
transmitidas por meio da tradição oral do noroeste da Europa e desde o início do século V a
lenda dos jovens amantes é cantada aos quatro ventos pelos bardos e trovadores medievais.
Por meio do testemunho oral, as origens celtas da lenda de Tristão e Isolda foram
gradualmente se transmutando e se incorporando à sociedade cristã existente no ocidente
medieval, visto que:
52

[...] Histórias de Tristão e do rei Marcos [ou Mark] já eram conhecidas desde o
século VIII, mas é no século XII que a narrativa celta (trabalhada no imaginário
cristão) cristaliza-se numa intricada rede de sentido cuja unidade enigmática e
fascinante salta aos olhos apesar da multiplicidade das suas versões [...]. (WISNIK,
2009, p. 221, grifo meu).

Diferentes versões narram a história dos jovens amantes, e a partir do século XI


temos as primeiras versões literárias do conto escritas por poetas normandos 41. A lenda possui
também uma versão em lai42, gênero literário narrativo que designava pequenos contos e
narrativas compostos com o objetivo de perpetuar a memória de uma aventura cavaleiresca,
de um acontecimento importante e também de preservar a tradição oral na qual a literatura
medieval tem sua gênese. Os lais que sobreviveram ao teste do tempo e chegaram até nós são
em sua maioria de autoria de Marie de France [Maria de França] 43 (figura 3), poetisa e autora
francesa que supostamente teria passado boa parte de sua vida produtiva na corte de Henrique
II Plantageneta (1133-1189), na Inglaterra da segunda metade do século XII (1160-1180),
período em que provavelmente boa parte de seus escritos foram compostos.

41
No século XII temos a prosificação do poema de Tristão e Isolda. Diversos autores criaram suas próprias
variantes para o conto dos dois amantes, tendo as versões de Béroul (escrita entre 1160-1190) e de Thomas um
maior destaque por suas respectivas manutenções dos elementos celtas originais da narrativa. c. FEDRIK, Alan
S. Introduction. In: BEROUL. The Romance of Tristan: and the Tale of Tristan’s Madness. London: Penguin
Books, p. 9-35.
42
O lai é caracterizado por seu formato em versos octossilábicos, e sua história a ser narrada em formato
seminarrativo e semilírico, intercalando o canto dos acontecimentos com as passagens narrativas
desacompanhadas de música. Em suas exposições, eram sempre acompanhados de jograis munidos de harpas,
flautas e outros instrumentos de modo que a leitura dos versos obedecesse ao objetivo de performance que o
gênero exigia.
43
Seu nome verdadeiro nos é desconhecido, visto que o epíteto “Maria de França” foi dado somente devido ao
fato de que a poetisa assinou o final de um de seus escritos (a fábula de “Ysopet”) da seguinte maneira: “Al
finement de cest escrit, qu’en romanz ai traitié e dit, me numerai pur remembrance: Marie ai nun, si sui de
France.” (BURGESS, 2003, p. 17), [Ao final deste escrito, que em romance foi tratado e dito, me apresento
como lembrança: Maria é meu nome.]. Outra dificuldade em torno da figura de Marie, seria a imprecisão
histórica acerca do período em que sua obra foi composta. Estudiosos não chegaram ainda a um consenso,
embora as datas mais comumente estipuladas estejam entre 1150-1165 e 1170-1187. Dentre suas obras mais
conhecidas e que sobreviveram até os dias atuais estão os 12 lais bretões, as Fables (conjunto de fábulas
esópicas traduzidas e adaptadas para o francês arcaico), além de um escrito sobre a vida de São Patrício
[Tractatus de Purgatorio sancti Patricii, cujo tema em francês é L'Espurgatoire saint Patrice]. c. BURGESS,
G.S.; BUSBY, Keith. Introduction. In: MARIE DE FRANCE. The Lais of Marie de France. [Translated with
an introduction by Glyn S. Burgess and Keith Busby]. 2nd ed. London: Penguin Books, 2003, p. 7-38.
53

FIGURA 3 – MARIE DE FRANCE

Miniatura do início do Lai du chèvefreuille, em detalhe de um manuscrito iluminado parisiense anônimo


do final do século XII (c. 1170), demonstrando Marie de France escrevendo o referido lai. (MS BnF, 1104
f. 32). Fonte: <https://www.lelivrescolaire.fr/#!manuel/54/francais-5e/chapitre/608/l-univers-des-poetes-du-
moyen-age-au-xviie-siecle/page/693424/portraits-de-poetes-en-peinture/lecon/document/710076>. Acesso em: 3
jun, 2018.
O detalhe da miniatura visualizada anteriormente pertence a uma categoria específica
em termos iconográficos na Idade Média. Alguns manuscritos iluminados continham
representações imagéticas dos autores que tiveram seu trabalho manuseado, lido e copiado
pelos escribas, monges e outros artífices no período. Qual a razão para tal fato? Schmitt
pontua que:

As respectivas especificidades da imagem e da língua impedem que a primeira seja


jamais designada como ilustração de um texto, mesmo no caso de uma miniatura
pintada tendo em vista um texto e uma relação direta com seu conteúdo. O texto
evoca seu significado na sucessão temporal das palavras; a imagem organiza
espacialmente a irrupção de um pensamento figurativo radicalmente diferente.
(SCHMITT, 2001, p. 34)

Logo, a representação iconográfica de Marie de France no início do manuscrito


iluminado atua como uma identificação autoral e uma personalização do documento nos
termos medievais, em que o público, seja ele letrado ou não, posso identificar e atribuir de
imediato uma determinada obra ao seu respectivo autor, além de conferir ao documento
54

escrito um valor simbólico e significativo que Jean-Claude Schmitt denomina de “aparição e


epifania” do elemento imagético (SCHMITT, 2001). Ademais, alguns literatos, poetas e
escritores mantinham o costume de representarem a si mesmos dentro de suas narrativas, pois
era uma concepção comum a atitude “imersão” e reflexão autoral sobre aquilo que tinham
produzidos.

Voltando ao texto escrito, em sua versão do conto, o chamado Le lai du chèvrefeuille


[O lai da madressilva], Marie de France explora o recurso oral ao seu favor, de modo a tornar
a narrativa mais familiar e dinâmica para quem lia e ouvia seu relato:

Muito me agrada e bem o quero,


de um lai que se chama Madressilva
dizer-vos a verdadeira história,
e por quem foi feito, como e de onde veio.
Muitos me contaram
E eu mesma encontrei-a já escrita
A história de Tristão e da rainha [Isolda],
De seu amor tão fino
Que para eles foi a causa de tanto sofrimento,
E do qual morreram no mesmo dia.
(MARIE DE FRANCE, 2004, p. 161, grifos meus, tradução minha)44

Percebe-se que autora joga com os elementos orais, afirmando que já ouvira a
história de outros, mas que também já a encontrara registrada por meio da escrita. Porém,
mesmo na sua própria forma de narrar o conto, opta por preservar um estilo rítmico, cantado,
ressaltando o elemento da vocalidade, que como mencionado no tópico anterior advém da
funcionalidade, sensibilidade e própria historicidade frente ao elemento da escrita.

Outro exemplo pode ser encontrado no roman Cligès, onde Chrétien de Troyes
literalmente faz um retrato preciso dos atributos da donzela Fenice, como se estivesse
conversando e narrando aos seus expectadores (no nosso caso, leitores) o seu deslumbramento
enquanto testemunha de tal visão:

A donzela não demorou, mas de imediato veio até o palácio. Ela era de uma figura e
beleza arrebatadora, pois o próprio Deus havia apreciado moldá-la de modo a fazer
os homens maravilharem-se. E o Deus que a fez não deu a nenhum homem
palavras suficientes para descrever sua enorme beleza. A donzela era chamada
Fenice, e não sem motivo, pois assim como a Fênix é a mais bela das aves e única de
sua espécie, também Fenice, ao que me parece, não havia igual para sua beleza. Ela

44
Segundo o original: “Asez me plest e bien le vueil / Del lai qu’um nume Chievrefueil / Que la verité vus en
cunt / Coment fu fez, de quei e dunt. / Plusurs le m’unt cunté e dit, / E jeo l’ai trové en escrit / De Tristram e de
la reine, / De lur amur que tant fu fine / Dunt il eurent meint dolur, / Puis mururent en un jur.”
55

era um milagre e uma maravilha cuja igualdade a Natureza nunca seria capaz de
criar novamente. Desde que minhas palavras nunca seriam capazes da tarefa,
não desejo descrever seus braços, ou seu corpo, ou seu rosto ou suas mãos;
mesmo se tivesse mil anos para viver e minhas habilidades [de poeta/autor]
dobrassem a cada dia, ainda assim meu tempo seria desperdiçado na tentativa de
descrevê-la como ela realmente era. Sei que se tentasse, esgotaria toda minha
habilidade e desperdiçaria todo o meu talento e meus esforços seriam em vão.
(TROYES, 2004, p. 155-156, grifos meus, tradução minha)45

Onde advogar e situar a cultura escrita em meio ao contexto oral de transmissão das
histórias no medievo ocidental? A necessidade de preservação, da valorização de uma
memória coletiva que sobrevivesse às futuras gerações seria o suficiente para garantir o lugar
social do escrito em uma Idade Média até então eminentemente oral?

Embora mencionada anteriormente e ao longo deste tópico, deve-se estabelecer


propriamente o que seria essa cultura escrita. Ela pode ser referida quando identificamos sua
relação com o “[...] lugar - simbólico e material – que a escritura ocupa/em para determinado
grupo social, comunidade ou sociedade [...]” (CHARTIER, 2007, p. 19-20), onde os objetos
culturais produzidos por essa escrita, durante seu processo de publicação e circulação,
retornam de maneira metafórica ou realista às próprias obras.

Desse modo, a cultura escrita estaria além de uma simples definição para o
mecanismo da “manipulação textual”, dado que esta extrapola o próprio texto, sendo
percebida, construída e desenvolvida de acordo com as intervenções do autor, com as
respostas que a sociedade produz em cima dela e enfim, resultando na concepção de essa
cultura escrita pode ser percebida graças à sua relação múltipla de sentidos entre aquilo que se
produz e aquilo que é consumido, Portanto, pode-se definir a cultura escrita como:

[...] uma relação entre autores e receptores, que produzem múltiplos sentidos sobre
um elemento cultural escrito, sejam estes em suas diversas formas materiais e
imateriais, relegando peculiaridades e dinâmicas ímpares para cada conjuntura,
deixando a cultura escrita para além de princípio geral ou definição amarrada, mas
sim uma ideia ampla e de guia metodológico para se questionar forças escritas nas
mais diversas sociedades e seus tempos. (FERNANDES, 2016, p. 62)

A importância da cultura escrita enquanto ferramenta metodológica para o estudo


das obras literárias pode ser complementada levando em consideração que por ligarem-se ao
aparato social de determinada temporalidade, definem-na como ferramenta que produz um
45
No original: “The maiden did not delay, but came immediately into the palace. She was of surpassing beauty
and figure, for it had pleased God Himself to shape her in order to make men marved. And God who fashioned
has given no man words sufficient to describe her great beauty. The girl was named Fenice, and not without
reason, for just as the phoenix is the most beautiful of birds and unique of its kind, so Fenice, it seems to me, had
no equal for beauty. She was a miracle and marvel whose equal Nature could never again create. Since my words
would never be equal to the task, I do not wish to describe her arms or body or head or hands; even if I had a
thousand years to live and my skill doubled each day, still my time would be wasted in trying to describe her as
she truly was. I know that if I tried I would exhaust all my skill and waste all my talent, and my efforts would be
in vain.”
56

conjunto de relações múltiplas entre os autores e seus ouvintes/leitores, em que pese que os
elementos culturais escritos acabem por representar dinâmicas e especificidades de uma
sociedade cuja força do elemento escrito seja referência conjuntural a ser considerada como
metodologia de análise dessas realidades sociais. Logo, o “triunfo” do escrito na sociedade
medieval no século XII e sua implicação dentro do corpo de obras que foram produzidas
seguindo essa nova dinâmica, caracteriza um ponto de virada entre o amálgama das formas
orais de se produzir, preservar e transmitir informações e narrar histórias e o ensejo agora
cada vez mais presente da escritura.

Daqui advém, ainda inserido na dinâmica da cultura escrita, o elemento do poder da


escrita visualizado no tipo de literatura que esta pesquisa se ocupa. Não por acaso que a
literatura cortesã, como o próprio nome sugere, surge no seio das cortes principescas de modo
a delimitar bem o espaço social a que pertence e mais ainda, a quem é estritamente
direcionada. Anteriormente ao desenvolvimento de uma cultura local focada no letramento
gradual de sua nobreza, como na França do século XII, o domínio eclesiástico sobre a escrita
era onipresente.

O cristianismo, como uma religião que possui no seu cerne estrutural a existência de
um livro sagrado como vetor de propagação das suas crenças, atestava pela manipulação dos
textos sua influência no convívio social, no imaginário e nas representações sobre a época
mencionada, monopolizando até mesmo a produção literária de caráter “não-oficial” advinda
da Igreja, como nas canções de gesta caracterizadas por seu forte teor cristianizado.

Desse modo, isso atesta que “[...] O poder da escrita representa sua autoridade, seu
caráter de veracidade e dominância como constituidora da memória, assim como sua força
delimitadora, pois suas codificações são inteligíveis para alguns, muito poucos na Idade
Média.” (FERNANDES, 2016, p. 64). E pode ser verificado quando se nota o que o simples
contato inicial daqueles que não detinham o saber letrado com algum registro escrito causava:

[...] essas inscrições não podem ser lidas pela maioria do povo por dois motivos:
estão inscritas em latim e se acham colocadas a uma altura que ultrapassa o olhar
normal. Não podem ser decifradas, mas torna visível o poder e delimitam um
território marcado, apropriado pelo poder por meio da escrita. Aqui aparece uma
dimensão da escrita do poder ou do poder por meio da escrita, expressada não no
cotidiano da prática burocrática ou administrativa e de controle, mas no da
dominação simbólica da escrita. (CHARTIER, 2001, p. 23-24)

Em termos de eleger aquilo que fato seria realmente considerado como parte
integrante de um sistema maior de manifestações culturais, alguns elementos não devem
passar desapercebidos aos olhos dos medievalistas da atualidade, sobretudo no que tange à
57

uma certa representatividade de alguns gêneros literários surgidos no medievo, como é o caso
específico do roman medieval. Portanto, antes de se buscar uma certa hierarquia quantos aos
diversos estilos literários, deve-se atentar antes para uma ideia de identidade vinculada à uma
autoridade de buscar nos próprios autores dos textos sua expressão determinante:

[...] a autoridade de uma “fonte” escrita conservada ou perdida, a autoridade moral


de um grande personagem ou de um narrador, os desígnios de escrita de um clérigo
lutando com sua folha branca, as intenções de duplo registro de um recitante às
voltas com os ouvintes. [...] mas nunca sabemos quantos, nem quais, desses níveis
afloram verdadeiramente no texto. (BATANY, 2017, p. 383)

Para além dos aspectos textuais e estilísticos em sua composição, o roman jogava
com a representação do real e com elementos da ficção, contando com a presença de
componentes do chamado “maravilhoso medieval” (dragões, feiticeiras, encantamentos, etc.)
que davam vida às grandes façanhas, às aventuras dos cavaleiros, e os contos de amor
permeados de angústia, ódio incontrolável, dor e paixões desenfreadas. Tal “maravilhoso” é
senão definindo por sua “[...] raridade e pelo espanto que suscita [...]” (LE GOFF, 1994, p.
106), visto que a presença do sobrenatural e do extraordinário sempre fascinou o homem
medieval de tal modo que quando irrompe nos séculos XII e XIII, pode ser vista como sendo
oriunda de diversas culturas antigas:

O sobrenatural, o miraculoso, que constituem o que é o princípio do cristianismo,


parecem-me diferentes, por natureza e função, embora tenham marcado com seu
selo do “maravilhoso cristão”. O maravilhoso da época cristã parece-me, pois,
substancialmente encerrado dentro destas heranças anteriores, de que encontramos
alguns elementos “maravilhosos” nas crenças, nos textos, na hagiografia. Na
literatura encontra-se quase sempre um maravilhoso cuja raízes são pré-cristãs. (LE
GOFF, 1994, p. 225)

Dotado de características estruturais especificas, o roman traz consigo toda uma


carga dos elementos constituintes da vida cotidiana naquele período. Geralmente dotados de
uma narrativa permeada de constantes digressões, as instituições, a ordem, os sistemas sociais
dentre outros são descritos nas entrelinhas que demarcam uma estética até então nova. Sobre
esta, é importante delimitarmos de início que embora o termo utilizado seja no sentido de
exprimir as características estruturais no que se refere às obras romanescas analisadas neste
trabalho, cabe ressaltar que a própria definição sobre a estética permeia por entre uma
discussão objetiva e filosófica que a situa como uma área de atuação sobre temas bem
específicos:

A estética é uma reflexão sobre um campo de objectos [sic] dominado pelos termos
«belo», «sensível» e «arte». Cada um destes termos encerra e implica outros e estas
séries cruzam-se em diversos pontos: «belo» abre -se para o conjunto das
propriedades estéticas; «sensível» remete para sentir, ressentir, imaginar e também
para o gosto, para as qualidades sensíveis, para as imagens, para os afectos [sic],
58

etc.; «arte» abre -se para a criação, imitação, génio, inspiração, valor artístico, etc.
(HUGON-TALON, 2009, p. 7-8, grifos meus)

Analisando o cunho das obras literárias apresentadas até o momento, depreende-se


que o roman medieval e os demais escritos de caráter cortesão mesclam elementos do real e
imaginário, que foram representados por seus autores e intérpretes seguindo uma lógica que
implica a existência de uma percepção da realidade social e dos elementos mencionados
acima. Uma literatura que se utiliza dos sentimentos, que joga com o belo (característica
central do Amor Cortês) e que preza sobretudo por uma narrativa coerente com os aspectos
narrativos que envolvem as emoções de seus personagens.

O medievo Ocidental não possuía uma definição tão elaborada sobre a estética de
suas produções, e ainda que o termo, o sentido e objetivos desta sejam compreendidos dentro
de um contexto que remonta ao século XVII e à contemporaneidade, mais precisamente, não
por menos esta acepção teórica torna-se impossível de se adotar para o estudo e compreensão
de uma literatura que teve em seu cerne toda uma miríade de preocupações com o objeto
dessa estética. Mesmo porque “[...] a sua tarefa não é apresentar e ordenar as obras do passado
nem julgar obras do presente. A estética é um método discursivo, analítico e argumentado que
permite clarificações conceptuais.” (HUGON-TALON, 2009, p. 8).

Os “artistas”46, ou melhor, os artífices medievais, tinham uma noção que englobava o


elemento estético às suas produções vinculado sobretudo ao elemento visual, principalmente
no que se concernia à beleza:

[...] o filósofo medieval, quando fala de beleza, não entende somente um conceito
abstrato, mas se remete à experiência concretas. É claro que na Idade Média existe
uma concepção de beleza puramente inteligível, da harmonia, do esplendor
metafísico, [...] a experiência da beleza inteligível constituía, antes de tudo, uma
realidade moral e psicológica para o homem da Idade Média, e a cultura da época
não permaneceria suficientemente iluminada se nos descuidássemos desse fator; em
segundo lugar, ampliando o interesse estético para o campo da beleza não sensível,
os medievais elaboravam ao mesmo tempo, por analogia, por paralelos explícitos ou
implícitos, uma série de opiniões a respeito do belo sensível, da beleza das coisas da
natureza e da arte. O campo de interesses estéticos dos medievais era mais dilatado
que o nosso, e sua atenção para a beleza das coisas era frequentemente estimulada
pela consciência da beleza enquanto dado metafísico; mas também existia o gosto do
homem comum, do artista e do amante das coisas de arte, vigorosamente para os
aspectos sensíveis. (ECO, 2010, p. 18-19)

Desse modo não é estranho encontrar nos romans passagens eminentemente


descritivas, seja do ambiente no qual a história se passa, seja da figura masculina ou mais
comumente, da figura que se objetiva dar destaque. Em consonância com os pressupostos do
Amor Cortês, tais características são potencializadas pelo zelo dado à sentido da visão. Não
46
Conferir nota 17 sobre a noção de “arte” na Idade Média.
59

por acaso que no Tractatus de Amore, André Capelão pontua que o “[...] Amor é uma paixão
natural que nasce da visão da beleza do outro sexo e da lembrança obsedante dessa beleza.
[...]” (CAPELÃO, 2000, p. 5, grifo meu).

Analisemos então, segundo os preceitos estéticos supracitados, duas passagens


descritivas, uma do roman Cligès, focada no primeiro encontro entre Fenice e Cligès e a outra
do Roman de la Rose, centrada na representação do Jardim do Amor em toda sua plenitude.

Sobre primeira passagem, chama-se a atenção para a força que o contato visual entre
Cligès e Fenice provoca em ambos. Tratando-se de um roman cortês, e obedecendo à
estrutura narrativa que preza o desenvolvimento dos amantes, temos o seguinte retrato pintado
por Chrétien de Troyes:

Cligès pôs-se em frente ao seu tio em toda sua beleza, e também àqueles que não
tiravam os olhos dele; de modo similar, todos que conheciam a jovem [Fenice]
olharam-na fervorosamente, como em um esplendor. Mas Cligès, por amor, lançou
secretamente seus olhos sobre ela, e os retirou novamente de modo tão sutil que nem
sua ida e volta poderiam ser considerados um ato tolo. Ele a olhou com mais ternura,
mas não notou que ela estava oferecendo-lhe uma troca justa: em genuíno amor, ela
ofereceu-lhe seu olhar e tomou o dele para si. Tal troca pareceu excelente para ela, e
teria sido ainda melhor se ela soubesse algo sobre quem ele era. No entanto, apenas
sabia que ele era belo demais para ela, e se algum dia fosse amar alguém pela
beleza, não seria certo conceder e repousar seu coração em outro lugar. Ela deu-lhe
os olhos e o coração. Ele, por sua vez, prometeu-lhe o seu. 47 (TROYES, 2004, p.
156-157, tradução minha)

Em seguida, Chrétien segue descrevendo como a partir desta troca de olhares, cada
um entrega seu coração e seu amor ao outro, metaforizando o sentimento professando
didaticamente para aqueles que não versados na arte de amar:

Posso explicar-lhes como dois corações podem ser um só sem nunca se unir. Eles
são apenas um na medida em que o desejo de cada um flui para o outro; ambos
desejam a mesma coisa e, por mais que tenham tal desejo em comum, há aqueles
que dizem que cada um possuem ambos os corações. Mas um coração não está em
dois lugares. Seus desejos podem ser facilmente compartilhados, mas cada um ainda
possui seu próprio coração, assim como diferentes homens podem cantar uma
canção ou uma melodia em uníssono. Por esta analogia, provei a vocês que uma
pessoa não detém dois corações simplesmente por saber o desejo do outro, e nem

47
Originalmente: “Cligés stood in front of his uncle in all his beauty, and those who did not him could not take
their eyes from him; and in similar fashion, those who did know the girl gazed on her fervently, as on a marvel.
But Cligés, for love, cast his eyes upon her secretely and withdrew them again so subtly that neither going nor
their coming could be considered foolhardly. He gazed upon her most tenderly, but he did not notice that she was
offering him fair exchange: in true love, without deceit, she offered him her gaze and thrn took his. This trade
seemed excellent to her, and would have seemed even better had she known something of who he was. But she
knew only that he looked beautiful to her, and if ever she were to love anyone for his beauty, it would not have
been right to bestow her heart elsewhere. She bestowed on him her eyes and her heart, and he in turn pledged his
to her.”
60

porque sabe daquilo que o outro aprecia ou não. 48 (TROYES, 2004, p. 157, tradução
minha)

O acontecimento está ali. Narrado liricamente pelo poeta francês junto a todos os
elementos que constroem esteticamente uma narrativa cortesã. O roman deve aos seus autores
muito da sua capacidade estética imagética, cultural, lírica e viva da sociedade medieval,
sobretudo dos ambientes nobiliárquicos, o que fica comprovado na capacidade de que a
escrita possui ainda de manter lívidos e presentes os fatos, os retratos e as figuras
representadas nas linhas gravadas. E é na virada do século XII para o XIII que todas essas
características são elevadas à patamares de observação e descrição minuciosos e precisos.

Como uma obra composta nesse ínterim cultural, o Roman de la Rose incorpora já no
século XIII os recursos e ferramentas narrativas que exploram bem a preocupação dos autores
medievais de representar de modo detalhado os ambientes, a vida, os comportamentos e as
emoções existente no cotidiano feudal. Expressões de surpresa, de deslumbramento e de
admiração são comuns às obras romanescas compostas a partir do final do século XII (a partir
de 1186 com Érec et Enide, de Chrétien de Troyes) e por todo a centúria seguinte, como pode
ser visualizado quando da visão do protagonista do Roman de la Rose sobre o Jardim do
Amor:

[...] entrei no Jardim através da porta que a Preguiça abrira e, uma vez lá dentro, vi
aumentar o prazer, a alegria e também a jovialidade que sentia. De facto, garanto-
vos que acreditei estar num verdadeiro paraíso terrestre, já que o local era de tal
forma delicioso, que se diria etéreo. Para ser franco, e, tal como na altura me
pareceu, não existe paraíso onde se possa estar melhor que naquele jardim que
tanto prazer me deu. Eram inúmeras as aves canoras ali reunidas: num ponto viam-
se rouxinóis, num outro gaios e estorninhos, noutros, grandes bandos de carriças e
rolas, pintassilgos e andorinhas, cotovias e chapins. [...] O Jardim fora feito de forma
a constituir um quadrado perfeito, sendo sua largura igual ao seu comprimento [...]
Lembro-me perfeitamente de que ali havia árvores que exibiam romãs, um fruto
excelente para os que estão doentes, e abundantes árvores cujo fruto é a noz, entre
elas a noz-moscada, fruto que não é doce nem amargo. [...] Eram várias as espécies
de veados que viviam naquele jardim, e um número deveras elevado de esquilos
entretinha-se a trepar às árvores. Também havia coelhos, sempre a correr para dentro
e para fora das tocas, ocupados a jogar mais de quarenta jogos diferentes naquela
erva fresca e verde. Aqui e ali viam-se nascentes de água clara, livres de insectos e
de sapos, cercadas pelas sombras das árvores, mas o certo é que as posso enumerar.
Uma série de pequenos cursos de água corria através de canais construídos pelo
Divertimento, e a água produzia um som doce e agradável. Junto aos rios e nas
margens das nascentes de águas límpidas, a erva fresca crescia em abundantes
maciços, daí que qualquer um neles pudesse deitar, na companhia de sua amada,
como se o estivesse a fazer numa cama de penas, e isto devido à abundância da erva.
(LORRIS; MEUN, 2001, p. 18-28, grifos meus)
48
No original: “I can explain to you how two hearts can be as one without ever coming together. They are only
one in so far as each one’s desire flows into the other; they each desire the same thing and, in as much as they
have this commom desire, there are those who say that each of them has both hearts. But one heart is not in two
places. Their desires can easily be shared, but each still has their own heart, just as many different men can sing
a song or melody in unison. By this analogy I have proven to you that one person does not have two hearts
simply by knowing another’s desire, nor because the one knows what the other likes or dislikes.”
61

Percebendo na análise das fontes do período a presença dos aspectos estéticos


concernentes à discussão proposta, demonstrou-se que o quadro estrutural dos romans
favorecia um desenvolvimento maior da cultura escrita no ocidente medieval pelo fato de que
a obra literária no medievo, sobretudo logo após a condensação das práticas orais e escritas,
possuía porque:

Além de narrar as obras literárias constroem também uma certa tipificação da


realidade social apresentada. Tal tipificação manifesta-se sobretudo no segundo
plano da descrição literária, nas personagens secundárias [...]. as obras literárias
permitem confrontar essas construções históricas com o quadro que funcionava na
consciência social de uma época examinada. (GEREMEK, 1995, p. 16)

Desse modo, ainda que o conceito de estética não tenha sido elaborado estritamente
para o contexto medieval, ou ainda para analisar um tipo de obra literária específica como é o
roman, pode-se ainda assim adequá-lo e alocá-lo em uma análise que trata sobre a conjuntura
estrutural da obra medieval enquanto manifestação “artística” de seus autores. Não estaria a
literatura produzida no período fora desse escopo analítico, muito pela capacidade dos autores
medievais de ofereceram um tipo de narrativa como “espelho” ou reflexo social de uma época
tão culturalmente diversificada.

Ademais, ambas as passagens das fontes anteriormente analisadas, demonstram que


o vigor cultural existente no medievo a partir do século é fruto de uma Idade Média que soube
sobreviver, adaptar-se e produzir matérias, artefatos e objetos culturais passíveis de análise
crítica por parte de qualquer pesquisador. De fato, pode-se notar que:

[...] A Idade Média produz tratados de óptica, reportórios iconográficos de modelos


para copiar, obras técnicas destinadas aos pintores, aos escultores ou aos mestres
vidreiros. Nestes tratados de praticantes da arte encontram -se por vezes fermentos
teóricos importantes. Assim, nos manuais literários vai -se, pouco a pouco,
iluminando a ideia de uma autonomia da poesia, distinta simultaneamente da
gramática e da métrica. (HUGON-TALON, 2009, p. 27)

Com isso em vista, não demorou para que a influência dos romans crescesse dentro
da sociedade feudal, mais determinadamente nos ambientes nobres. As cortes medievais
francesas, sobretudo as localizadas ao sul, guardavam em seus muros verdadeiras oficinas
literárias49 que punham à prova muito da capacidade criativa existente dentro do universo
49
As regiões da Occitânia (ducado da Aquitânia), da Provença e de modo geral, do chamado Languedoc francês,
foram desenvolvendo desde a época de Guilherme IX, o trovador e duque da Aquitânia, e graças ao próprio
poeta, um apreço maior envolvendo o campo das artes, sobretudo às composições de peças, cantigas e poemas
que retratavam o modo de vida, a região e o cotidiano da nobreza que ali havia se instaurado. Como visto no
tópico anterior, Guilherme inaugura um tipo de poesia para os padrões da época, entrando em rota de colisão
com a corte real parisiense de forte influência clerical. Sua neta, Alienor, rainha consorte da França por seu
casamento com Luís VII e posteriormente rainha da Inglaterra por um segundo casamento com o rei Henrique II
Plantageneta, deu continuidade aos esforços do avô, desenvolvendo no próprio ducado da Aquitânia e
posteriormente no condado de Poitiers uma política de patronato que fez florescer a produção literária de modo
mais objetivo nos séculos XII e XIII na França. c. DUBY, Georges. Alienor. In: ________. As damas do século
62

artístico feudal. E é nesse cenário profícuo de produção que os escritos destinados ao público
nobre, aqueles dotados de uma carga maior de sensibilidade narrativa, surgiram e tiveram seu
apogeu nos limiares do século XII e XIII.

O romance cortês apresentava-se aos homens e mulheres nobres do período como


sendo o baluarte que levava em sua estrutura o ethos aristocrático da nobreza feudal, o que
nos leva a observar que como fonte escrita, o roman insere-se na concepção teórica de que
tratando-se de objeto da História, como documento escrito, este possui como premissa
objetiva uma “[...] compreensão da História como uma narrativa que constrói uma
representação sobre o passado, e que se desdobra nos estudos da produção e da recepção de
textos [...]” (PESAVENTO, 2008, p. 69), que como exposto, apresenta uma representação da
realidade específica dos elementos sociais do mundo feudal, tendo como base de produção
seu ambiente de circulação, consumo e recepção.

Ainda sobre as obras cortesãs, alguns autores destacam-se no período, tendo algumas
de suas criações sobrevivido e chegado até os dias atuais por meio de compilações e
manuscritos copiados dos originais. Dentre muitos, destacam-se as obras do poeta francês
Chrétien de Troyes (1135?-1183), cuja atividade floresceu na segunda metade do século XII.
Muito de sua biografia é desconhecida, visto que o mesmo não deixou sequer algumas
pequenas pistas em suas obras que iluminassem um pouco mais sobre suas ocupações e
atividades durante seu período de atividade. Sobre o autor, importante ressaltar que toda a sua
obra teve como palco produtivo algumas das cortes mais ricas e famosas da França do século
XII (ver figura 4):

XII: Heloísa, Isolda e outras damas do século XII; A lembrança das ancestrais; Eva e os padres. [Trad.: Paulo
Neves e Maria Lúcia Machado]. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013, p. 13-28.
63

FIGURA 4 - MAPA DO TERRITÓRIO FRANCÊS NOS SÉCULOS XI E XII

Mapa dividido e representado a partir das principais cortes senhoriais do período. Com destaque para os
domínios pertencentes ao rei da Inglaterra (em amarelo).
Fonte:<http://theudericus.free.fr/Genealogie/Carte04_France_XI_XII_Siecle.jpg> . Acesso em: 04 jun, 2018.

Chrétien foi tido como o “pai do romance”, e sobretudo responsável por nos delegar
alguns dos maiores exemplares sobre o ciclo bretão-arturiano:

Chrétien de Troyes é sem dúvida o primeiro e o maior dos romancistas franceses da


Idade Média. Provavelmente o gênero nasce com ele. [...] Chrétien de Troyes
64

seguramente não é seu nome verdadeiro. Mas ele tomou como prenome aquele que
melhor expressava a natureza profunda dos homens do seu tempo, o pertencimento
a uma região. Ignoramos onde ele nasceu, mas é provável que tenha vivido em
Troyes; ele teria escolhido esse nome por duas razões. A primeira é que foi ligado
durante muito tempo, inclusive na sua produção literária, à corte de Champagne, que
residia em Troyes. A segunda é que esta cidade era, no século XII, um brilhante
centro cultural [...]. Em todo o caso, está claro que ele se beneficiou do apoio de
duas grandes cortes feudais: a primeira é a de Champagne, que tira proveito da
popularidade e da riqueza das feiras da região, na época do conde Henrique, o
Liberal (1152-1181) e de sua esposa Marie (1145-1198), filha de Luís VII e Leonor
da Aquitânia [neta de Guilherme IX, o Trovador]. A segunda é Flandres, em
particular no final de sua vida, sob Felipe de Flandres (1157-1191). (LE GOFF,
2013c, p. 192, grifo meu)

Entre suas obras de destaque estão: Ivain, le Chevalier au Lion [Ivain, o cavaleiro do
leão]; Lancelot, le Chevalier de la Charrete [Lancelote, o cavaleiro da charrete]; Érec et
Énide [Erec e Enida]; Cligès; Perceval ou le Conte du Graal [Perceval ou o Conto do Graal],
em que transformou toda a lenda arturiana e a chamada “Matéria da Bretanha” em uma série
de romans corteses, ocupando-se dos personagens mais romanescos da Távola Redonda,
como o próprio rei Artur, Lancelot, Guinevere, criando também a principal versão da história
de Perceval e da Demanda do Santo Graal (LE GOFF, 2013c).

Devido à pluralidade dos autores que os produziam, existiam determinadas


características que aos poucos foram tornando-se padrão de modo a facilitar o entendimento e
a própria organização produtiva dos romans medievais. Os modos de divulgação deveriam
seguir regras condizentes ao público-alvo específico, visto que mesmo nos ambientes nobres,
alguns membros da realeza ainda insistiam na transmissão das narrativas de forma oral,
implicando toda uma carga de performance e teatralidade nos contos descritos. O elemento
escrito ali estava presente, ainda que a leitura em voz alta fornecesse ao público uma
compreensão mais inteligível daquilo existente dentro dos longos pergaminhos e códices
compilados:

O “romance” desmarca tudo o que, por notoriedade pública, funda-se somente na


tradição oral. De fato, ele se liga estreitamente a esta, que permanece uma de suas
fontes de inspiração. [...] Qualquer que tenha sido a tomada de posição pessoal de
cada autor, o valor eminente que ele atribuía à escritura de fato modificava suas
relações, não somente com seu texto mas também com o ouvinte. [...] O ‘romance’
procede a uma iniciação crítica de seu ouvinte, ele o envolve (de maneira menos ou
mais hábil) numa busca de sentido, uma investigação, certamente limitada pelas
injunções simbólicas que pesavam sobre a cultura de então, irrealizável, no entanto,
sem a intervenção do escrito. (ZUMTHOR, 1993, p. 267)

Toda uma preocupação em torno dos modos de se transmitir as narrativas


romanescas girava em torno da noção que os autores deveriam ter em dotarem suas histórias
de casos entediantes, ou demasiados longos. O cerne estava na constante evolução da trama,
sem espaço para pausas narrativas ou sequências sem “ação”. A leitura do texto escrito
65

dependia da sua forma de produção e desenvolvimento, mas também a reprodução desses


escritos dependia de uma concentração, como pontua Paul Zumthor:

[...] na natureza, no sentido próprio e nos efeitos da voz humana, independentemente


dos condicionamentos culturais particulares... para voltar em seguida a eles e re-
historicizar, reespacializar, se assim posso dizer, as modalidades diversas de sua
manifestação [...]. (ZUMTHOR, 2007, p. 12)

O que de acordo com premissa estabelecida na tessitura do documento acabaria


dotando as histórias narradas de uma dinamicidade essencial. As formas de composição da
estrutura narrativa literária de um roman cortês seguem suas próprias direções. Cabe ao nosso
interesse aqui neste trabalho somente o ciclo referente às novelas de cavalaria inspiradas nas
narrativas orais celtas advindas da Bretanha, ou o chamado ciclo bretão-arturiano.50

Tais contos inicialmente elaborados em forma de poesia em verso começam um


processo gradual de prosificação já em finais do século XI, de modo a conferir aos relatos
orais um trato mais adequado quando estes forem escritos. Ademais, os temais iniciais dessas
narrativas consistiam basicamente na descrição das aventuras do Rei Artur e de seus
cavaleiros em busca de objetos místicos e também por retratar o cotidiano e vicissitudes da
cavalaria medieval incipiente.

Em um modo de tentar expor as condicionantes da vida aristocrática em suas


narrativas, os romans concentraram atenção e esforço numa linha estrutural
predominantemente calcada nas relações entre as damas e cavaleiros nobres do período. Desta
forma, o roman cortês propriamente dito possuía quase que invariavelmente um quadro
histórico que permitiu aos seus autores e receptores de moldarem experiências mentais
coletivas numa forma de representar as ideias do Amor Cortês em voga nos ambientes
palacianos do medievo.

As características dessa dita “estilização” do roman, tornaram-se recorrentes pelo


fato de que a literatura era o principal veículo de propagação do ethos aristocrático descrito
nas páginas dos romances, pois levava em consideração seu contexto de produção, de
circulação e recepção, além de estar em sintonia com a própria narrativa construída pelos

50
Também conhecidos como a “Matéria da Bretanha”, esse conjunto de textos têm por tema principal a lenda e a
história envolvendo a figura mítica do Rei Artur. Com origens que remontam às localidades do noroeste da
Europa continental, como as Ilhas Britânicas (Irlanda, Escócia, Inglaterra, o atual País de Gales) e os povos
celtas que ali residiram desde o século IV a.C, tais narrativas foram incorporados os elementos culturais nativos,
como o apego às personagens femininas (Isolda, Guinevere), o culto à terra (característico da religiosidade celta
traduzida nas divindades matriarcais), a busca por objetos místicos e mágicos (caldeirão da Britânia que
posteriormente foi transmutado no Santo Graal) e as incursões em busca de terras para cultivo e habitação e
comércio. c. HAYWOOD, John. Os celtas: da idade do bronze aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 14-
19.
66

agentes históricos que possibilitaram a existência das diversas formas de compreensão que
este universo possuía em seu interior.

Tratando-se sobretudo de um objeto literário, e consequentemente histórico, observa-


se que “[...] esta literatura foi aceita, [...] mas houve aceitação e, consequentemente, jogo de
reflexos, dupla refração [...]” (DUBY, 2011, p. 68), que constava na relação direta já
mencionada que as obras envoltas sob esta carga cortês deveriam ter com a situação real que
preocupava as pessoas para as quais elas eram produzidas. Visto como vestígios e
testemunhos históricos fundamentais de seu tempo, cabe ao historiador traçar um cenário
investigativo que propicie a reflexão conjunta entre as formas de conduta que foram afetadas
pela circulação de tais obras nas cortes aristocráticas feudais.

O “quadro” modelo dos romances corteses poderia ser descrito como sendo centrado
na figura de um jovem amante em uma busca quase que impossível pelo amor de sua dama.
Ao jovem cavaleiro, inúmeros obstáculos sãos postos em sua jornada pela predileção
amorosa, e não faltam exemplos de coragem, destreza e bravura que permitam que este
alcance o objetivo final que é estar ao lado de sua amada. Embora sigam traços estritamente
masculinos em suas linhas, os romances também atuavam como uma forma de literatura
“pedagógica”, onde o desenvolvimento dos personagens servia como molde e incentivo para a
nobreza copiar e reproduzir os comportamentos descritos como um meio de civilizar-se ainda
mais (ver figura 5):

FIGURA 5 – DETALHE DE UMA MINIATURA DO ROMAN DE LA ROSE


67

Manuscrito iluminado anônimo do século XIII (c. 1298) representando uma dança entre homens e
mulheres nobres dentro do Jardim do Amor (MS DOUCE 195, f. 6v, 7r. Oxford, Bodleian Library).
Fonte: <http://romandelarose.org/#read;Douce195.007r>. Acesso em: 13 out, 2017.

Nota-se na iluminura uma disposição dos pares em fileiras de frente aos outros, cada
qual usando um tipo de chapéu vermelho na cabeça, simbolizando o Amor e a cortesia para
com seu respectivo par; além da presença de outros nobres em uma espécie de tribuna acima
dos demais, denotando o caráter simbólico que a dança detinha nos meios aristocráticos. De
fato, tratava-se, nas palavras de Georges Duby de uma dança, um “jogo de homens”, porém,
voltado às mais diversas expressões do que seria o ethos aristocrático daquele período:

Prova, pedagogia, e todas as expressões literárias do amor cortês devem ser


colocadas na corrente do vigorosíssimo impulso de progresso cuja intensidade
culminou durante a segunda metade do século XII. Elas são ao mesmo tempo o
instrumento e o produto desse crescimento que liberava rapidamente a sociedade
feudal da selvageria, que a civilizava. A proposta [dos romans], a aceitação de uma
nova forma de relações entre os dois sexos só se compreende tomando por
referência outras manifestações desse fluxo. [...] Houve, de fato, promoção da
condição feminina mas, ao mesmo tempo, igualmente viva, uma promoção da
condição masculina, de maneira que a distância permaneceu a mesma [...]. (DUBY,
2011, p. 70-71, grifo meu)

Ao se analisar o roman medieval como fruto desse contexto histórico que envolveu o
desenvolvimento de uma literatura e de uma cultura escrita no ocidente medieval, percebe-se
que o conjunto de transformações históricas, sociais e culturais mencionadas envolvendo a
nobreza e a política de apadrinhamento dos artistas dentro das cortes feudais foi fundamental
68

para que uma cultura literária fosse de fato cultivada nesse período. Sendo uma literatura
direcionada, mas nem por isso menos “livre” em suas representações, não demorou para que
perfis de comportamento começassem a ser alocados dentro da narrativa romanesca de modo
a impulsionar cada vez mais o interesse por este tipo de gênero literário.

É nesse momento que os autores medievais visam diretamente seus patronos, de


modo a retratar dentro de suas obras o código de conduta da nobreza em que a figura de
donzelas, damas e cavaleiros imbuídos dos ideais de cortesia e elegância faziam-se vivos nas
aventuras romanescas que povoaram o imaginário das cortes principescas.

Aqui destaco que a figura feminina, da mulher enquanto nobre, foi cada vez
ganhando mais espaço nas aventuras cortesãs, não apenas enquanto figura idealizada para se
obter um amor impossível, mas sim como agente histórico de uma época em que a
representação feminina aos poucos foi tomando forma segundo as características do contexto
a que pertencia. Características estas, junto dos contornos e matizes específicos e contextuais,
que serão discutidas a seguir.

3. DONZELAS, DAMAS E RAINHAS: O UNIVERSO FEMININO


ARISTOCRÁTICO NA LITERATURA MEDIEVAL

Dado um primeiro instante, ao lançarmos uma luz sobre aquilo que já foi escrito e
reproduzido acerca das mulheres medievais, notava-se de imediato uma polarização vigente
sobre uma figura feminina sacra – o ideal mariano de virtude – e a imagem de uma mulher
portadora do pecado – ligada ao estigma de Eva. Estudos recentes sobre a temática feminina e
essa polarização de perfis no medievo enveredaram por análises que gradativamente foram
descontruindo tal discurso histórico. Ainda que a sociedade no medievo ocidental fosse
marcada por vestígios eventualmente misóginos, a “recusa” ao feminino não é um elemento
novo ou inaugurado na medievalidade, tendo suas bases e tradições ancoradas na filosofia da
Antiguidade e nos estudos da Patrística sobre o papel da mulher na sociedade.

O conhecimento que temos acerca da construção da imagem feminina antes do


século XII deve-se muito a autores como Aristóteles, São Jerônimo, Santo Agostinho de
Hipona e São Tomás de Aquino, dentre outros. Mesmo que a Igreja cristã seja personagem
inerente a tal processo, a mesma acaba por estimular uma maior importância à figura feminina
quando impõe gradativamente o culto mariano como meio de dotar a mulher virtuosa de certa
69

imponência e modelo a ser seguido, o que acaba por gerar um salto qualitativo, em certa
medida, nos olhares lançados até então sobre o universo feminino (LE GOFF, 2013a).

Entretanto, numa sociedade culturalmente variada como a feudal, o universo


feminino não estava preso somente a essas duas características. O lugar social das mulheres
no mundo medieval lhes era atribuído por diversos fatores como a idade, posição social, nível
de instrução e pelas atividades que podiam exercer. Portanto, outras representações femininas
fugiam dessa polarização e se apresentavam como modelos de idealização e comportamento a
serem seguidos.

Portanto, este capítulo se ocupará de delimitar, analisar e questionar - inseridas


dentro deste escopo de análise e sendo de certa maneira “privilegiadas” graças aos fatores já
referenciados - as aristocratas medievais, na figura de suas damas, donzelas, princesas e
rainhas no cenário artístico e cultural dos séculos XII e XIII como principais representantes de
um novo modo de se demonstrar a figura feminina nesta época. Devido às nuances que tais
agentes históricos possuíram durante o período medieval, suas representações na literatura,
nas artes e de um modo geral na própria cultura social da época, foram determinantes para o
esboço de características específicas relacionadas ao universo feminino.

3.1 REPRESENTAÇÕES DA ARISTOCRACIA FEMININA NA LITERATURA


MEDIEVAL

Coletar dados, examinar fontes, construir ideias, elaborar hipóteses e por fim, narrar
qualquer temática envolvendo o universo feminino na Idade Média e que não leve em
consideração a relação dessas personagens com o ambiente masculino e seu subsequente
espaço de primazia e dominação sobre o sexo feminino, é tarefa árdua e ao mesmo tempo
necessária ao medievalista.

Entretanto, a pluralidade dos discursos – principalmente os masculinos – proferidos


no Ocidente medieval sobre as mulheres acarreta uma série de análises mais cuidadosas e por
que não, sensatas sobre o status quo feminino àquela época. Interessa notar que a cristalização
de qualquer tema sobre o medievo e mais ainda sobre a condição da mulher neste período em
especial, tornou-se atenuada e atualizada, ainda que boa parte dos testemunhos históricos
produzidos no recorte estabelecido (séculos XII e XIII) atendam à lógica masculina de
composição e hierarquia.
70

Entretanto, uma outra parcela documental – escrita, também, por homens – matiza tal
concepção, estabelecendo uma relação histórica sobre a representação feminina e a sociedade
medieval, sobretudo na literatura. Diante disto, tome-se que:

O medievalista que se questiona sobre as categorias e as relações sociais dos sexos


não pode ignorar o antifeminismo da época. Se quiser compreender como a
sociedade medieval articulou o masculino com o feminino, deve considerar esses
comentários sobre a inferioridade das mulheres e sobre a natureza da mulher, a
ladainha de seus defeitos, os argumentos que os corroboram, os exemplos dados.
Tudo isto é repetido com tal insistência e tão fastidiosamente na Idade Média, que se
acaba persuadido do penoso sentimento de imobilidade, da perenidade de um
discurso. Nada mudou durante mil, dois mil anos? Deve-se aceitar a visão que sai
dali, como se fosse natural? De fato, o perigo é tratar essas ideias, essas
representações, como se a estabilidade e aquiescência que elas suscitam, até nas
mulheres, fossem verdadeiras e testemunhassem a realidade de sua prática
social. Durante muito tempo, os historiadores da Idade Média entraram nesse jogo.
(KLAPISCH-ZUBER, 2017, p. 158, grifo meu)

A advertência de Christiane Klapisch-Zuber refere-se sobretudo àquilo que a


memória coletiva adotou como “verdade” em relação à imagem das mulheres no Ocidente
medieval. Não há como negar que o período aqui estudado tenha sido majoritariamente
masculino. De dominação, discursos e representações. Ou como disse Georges Duby essa
“[...] Idade Média é resolutamente masculina. Pois todos os relatos que chegam até mim e me
informam vê dos homens, convencidos da superioridade de seu sexo.” (DUBY, 2011, p. 7).

Como afastar-se de tais pressupostos? Ou, tarefa ainda mais árdua, como trabalhar
com tais conceitos e discursos acerca da figura feminina em uma época demarcada por
preconceitos e “submissões” do feminino ao masculino? Ao pontuar que o erro de uma boa
parcela da historiografia foi justamente o não-afastamento ou contestação de tais “verdades
absolutas” acerca da condição feminina no medievo, Klapisch-Zuber expõe em seguida que o
questionamento de tais tendências deva ser feito de modo a interpretar quais construções
teóricas estiveram por trás dessas representações deturpadas.

Não é raro que os dados, relatos, imagens e números relacionados às mulheres no


medievo sejam complexos. Se por um lado a figura feminina é quase que “fantasmagórica”,
por ter sido naturalmente relegada a um segundo plano existencial, ao mesmo o é vívida, e
constantemente presente no seio social, graças às inúmeras atribuições negativas e
depreciativas imputadas ao seu sexo. Por que, então, não elucidar e demonstrar sob que
circunstâncias tais representações sobreviveram? Por que não observar as nuances dos
discursos, a relação masculino/feminino e o próprio papel desempenhado pelas mulheres à
época?
71

Ora, ao historiador, sobretudo ao medievalista, cabe o dever de interpretar


coerentemente os testemunhos históricos à sua disposição, pois “Se ele não considera mais
essas construções teóricas como um dado imóvel e uniforme, poderá se perguntar não só por
que uma sociedade inscreveu em seu imaginário o sonho da dominação de um sexo sobre o
outro [...]” (KLAPISCH-ZUBER, 2017, p. 158).

E é sobre esse imaginário mencionado que o presente tópico dedicará suas linhas a
esmiuçar as representações de uma parcela específica da sociedade medieval feminina, a
aristocracia. Por limites metodológicos e teóricos, a opção de estudar e apresentar as variadas
imagens e perfis femininos aristocráticos justifica-se por um fator simples: no medievo
Ocidental, a diferenciação entre as mulheres baseou-se sobretudo nas respectivas posições e
ocupações que desempenhavam na sociedade.

Ademais, utiliza-se para isso as fontes literárias do período pois “O único campo em
que se pode com segurança perceber traços do pensamento feminino é a literatura [...]”
(MACEDO, 2014, p. 89), pois embora elaborada pelas mãos masculinas, tais obras tiveram
como mecenas grandes damas da sociedade medieval, ansiosas de terem para si uma corte
culturalmente rica e letrada que fosse educada e representada pelos ideias do Amor Cortês
(DUBY, 2013; MACEDO, 2014):

A complexidade e o escopo do tema são bem amplos. Logo, a opção de recortar e


restringir o presente estudo à camada feminina pertencente à nobreza torna-se executável
graças aos testemunhos, vestígios e documentos históricos que se ocuparam de representar tal
grupo social. Ora, as principais personagens dos grandes romans corteses são donzelas,
damas, esposas e rainhas, resolutas de sua condição nobre, orgulhosas, fortes e para o bem ou
para mal, no contexto da época, dotadas de uma personalidade própria.

Diante disso, é oportuno enveredar-se por dentro de uma discussão mais profunda
daquilo que se imaginava acerca da figura e do universo femininos no Ocidente medieval dos
séculos XII e XIII. A perpetuação dos pensamentos e preconceitos antifemininos derivou da
necessidade ideológica que a sociedade medieval possuiu de moldar, hierarquizar e
representar no imaginário social os respectivos papéis convenientes a cada sexo.

Logo, é dentro desse imaginário que a análise documental se pautará, preocupando-


se em expor os devidos matizes e as múltiplas interpretações que cabem ao esclarecimento da
condição feminina medieval. Para isso, o primeiro passo a ser dado constitui no entendimento
72

acerca da relação entre esse imaginário e as representações das damas e donzelas medievais
apresentadas pela narrativa literária.

Primeiramente, compreender que entre os suportes teóricos de representação e


imaginário não hierarquia de valores ou distanciamento no que tange ao campo de utilização
intelectual um do outro. Jacques Le Goff ofereceu uma definição para imaginário que
operacionalizasse pontos de congruência e divergência entre este, os símbolos e as
representações, atribuindo como seus produtos as manifestações artísticas e literárias do
Ocidente medieval:

O imaginário é muito frequentemente confundido com aquilo que designamos por


meio de termos vizinhos cujos âmbitos se interpenetram parcialmente, mas que
devem, todavia, ser cuidadosamente distinguidos. Em primeiro lugar, a
representação. Este vocábulo, de uma grande generalidade, engloba todas e
quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida. A representação
está ligada ao processo de abstração. [...] O imaginário pertence ao campo da
representação, mas ocupa nele a parte da tradução não reprodutora, não
simplesmente transposta em imagem do espírito, mas criadora, poética no sentido
etimológico da palavra. [...] Mas o imaginário, embora ocupando apenas uma fração
do território da representação, vai mais além dele. A fantasia – no sentido forte da
palavra – arrasta o imaginário para lá da representação, que é apenas intelectual. (LE
GOFF, 1994, p. 12)

Embora esclareça os limites e alcances do imaginário e das representações, o grande


medievalista acabou por encerrá-los em um regime hierárquico de atribuições específicas,
pois enquanto a representação só se ocupa do campo intelectual de seus objetos, o imaginário
age como seu tradutor, expandindo os significados dos objetos culturais para o campo mental.

Porém, há uma outra opção teórica a ser considerada. Hilário Franco Júnior,
medievalista e discípulo de Jacques Le Goff, institucionaliza e reflete sobre uma outra
maneira de aproximar e utilizar tais conceitos. Pontuando que “[...] evidentemente, a
fidelidade não exclui a crítica [...]” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 68), este considera que “[...]
toda representação é imagem e toda imagem é representação, intelectual ou afetiva, portanto,
esta não pode ser entendida como ‘tradução mental de uma realidade exterior’, já que muitas
representações são de objetos internos ao sujeito.” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 68).

Logo, as representações femininas existentes na literatura cortesã dos séculos XII e


XIII podem ser articuladas em conjunto com o imaginário, uma vez que tal documentação,
para além do intuito original de seus idealizadores e mecenas, acabam por fornecer imagens
críticas do sistema de valores e das formas de pensamento dessa mesma sociedade que as
produz e consome (FRANCO JÚNIOR, 2010).
73

Partindo dessa proposição, o medievalista brasileiro fornece uma definição para


imaginário que é mais coerente com a proposta desta pesquisa. Para ele:

[...] imaginário é um sistema de imagens que exerce função catártica e construtora


de identidade coletiva ao aflorar e historicizar sentimentos profundos do substrato
psicológico de longuíssima duração. Ou, ainda mais sinteticamente, imaginário é um
tradutor histórico e segmentado do intemporal e do universal. [...] Como já se disse
com razão, ‘a relação entre a imagem e o imaginário não é um aspecto particular do
problema, é o próprio problema do imaginário.’ [...] se existe pensamento sem
linguagem, não existe pensamento sem imagens nem linguagens que não remeta a
imagens. (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 70)

Ao trabalhar com imagens, descrições e representações variadas das mulheres


medievais, a literatura fornece uma série de problemáticas que auxiliam o historiador na
construção de sua linha de raciocínio. Portanto, ao questionar os testemunhos e retratos
femininos elaborados por vozes e mãos masculinas, o historiador trabalhará com todo um
sistema imagético/representativo baseado na expressão de um contexto sociocultural
específico. O que o imaginário atribuído a esse sistema de imagens fornece nada mais é do
que uma tentativa de representar modelos, sejam sociais, psicológicas ou em nosso caso,
morais.

Quanto à “historicidade” do conceito, é necessário advertir que toda


imagem/representação contribui para a elaboração desse mesmo imaginário, seja para
construir ou desconstruí-lo, pois, o mesmo, como já demonstrado não é imutável, e
dependendo de múltiplas variações culturais (FRANCO JÚNIOR, 2010; PESAVENTO,
2008).

Desse modo, os modelos da aristocracia feminina retratados nas obras cortesãs dos
séculos XII e XIII, delegam ao historiador um esforço teórico-metodológico que leve em
consideração seu papel de reflexão sobre a sociedade da qual estava representando. As
aventuras, os perigos, as desilusões e paixões amorosas que tais mulheres perpassaram
estiveram inseridas em um campo específico de circulação: a corte. Portanto, tal espaço social
serviu como palco de uma reflexão – no caso do sentido literal do termo – em que tais
modelos refletem o outro e sobre o outro (FRANCO JÚNIOR, 2010).

Considerando o que foi exposto acima, vejamos na documentação do período


algumas das representações da aristocracia feminina medieval. O Tractatus de Amore
[Tratado do Amor Cortês] confere seu primeiro tomo um guia de orientações que os homens
devem seguir para abordarem de forma correta a mulher desejada. Em uma série de diálogos,
André Capelão buscou hierarquizar as conversas sempre em torno das classes sociais que
74

julgou serem aptas para a arte do amor, mas antes, tratou de delimitá-las de acordo com suas
posições:

Para isso, direi antes que, entre as mulheres distingo a de condição plebeia
[burguesa], a de pequena nobreza e a de alta nobreza. Assim também quanto ao
homem, distingo o plebeu do que pertence à pequena nobreza e do grande senhor.
Sabes muito bem o que entendo por mulher de condição modesta; chamo de mulher
da pequena nobreza a que descenda de um vavassalo ou de um senhor, ou que seja
casada com um deles; a mulher de alta nobreza descende dos grandes senhores.
Quanto aos homens, direi a mesma coisa, com a diferença de que o homem não
muda de condição social segundo a posição ocupada pela esposa na aristocracia.
Porque a mulher, casando-se, muda de título segundo a posição do esposo.
(CAPELÃO, 2000, p. 21-23, grifo meu)

Para compreender o grau de distinção entre as mulheres pertencentes à aristocracia,


observe-se que na descrição do autor, ele destaca apenas as mulheres pertencentes à
burguesia, à baixa e à alta nobreza. Na língua original do Tractatus, escreveu-se plebeia,
nobilis, nobilior. Embora traduzido como “plebeia”, o termo em latim refere-se às mulheres
pertencentes à burguesia, e não ao campesinato, visto que durante toda a obra de Capelão,
nada é dito sobre o amor existente nesse estrato social. De fato, apenas aos “bem-nascidos” é
que a ética comportamental do Amor Cortês foi apresentada e suficientemente compreendida.

Em um de seus primeiros diálogos, Capelão apresenta o cortejo de um homem


plebeu (burguês) a uma donzela de pequena nobreza. Embora comumente a corte devesse ser
feita em equidade de condições sociais, o autor conta que assim se iniciou a conversa. Com a
palavra, o jovem amante:

Sei muito bem que o amor não tem o hábito de diferenciar os homens por títulos,
mas força-os todos a servir de modo igual em suas fileiras, sem prestar atenção à
beleza, ao nascimento, ao sexo, às desigualdades de posição. [...] O amor calca-se na
natureza; portanto, os amantes não devem dar às diferenças entre os homens mais
atenção do que o próprio amor lhe dá: se o amor leva todos os homens, sejam quais
forem, a inflamar-se de paixão, os amantes não devem interessar-se pelas diferenças
de classes; uma única coisa deve importar: saber se quem solicita o amor foi tocado
pela paixão. [...] Sabei, portanto, que há muito tempo fui ferido pela flecha do vosso
amor e que tentei com todas as forças ocultar tal ferida; [...] Quando vos vejo, meu
espírito se perturba e minha alma se agita a tal ponto que esqueço tudo o que havia
preparado com tanto cuidado. (CAPELÃO, 2000, p. 37-38)

Embora ciente de sua posição inferior, o homem argumenta sobre as qualidades que
o amor suscita naqueles que amam, podendo até mesmo ignorar e superar obstáculos tão
grandes e reais como a fortuna e importância social. Em sua defesa, o amante diz que seu
próprio amor pela donzela é capaz de elevá-lo à uma posição de estima e valor equiparáveis
aos dela, que já nasceu com estes privilégios.
75

Respondendo-lhe em seguida, a donzela logo externa seu pensamento e toda a


importância que dá ao seu status dentro daquela realidade social, questionando os motivos e
as ações do jovem por tê-la cortejado:

Muito me espanta – e há de que se espantar! – que os elementos não se tenham


rebelado e que o universo não desabe. Se eu não estivesse decidida a ignorar o
ultraje que fazes à minha condição, responderia com a maior dureza; mas como é
pouco distinto uma mulher de minha condição usar termos ofensivos e descorteses
contra quem quer que seja, minha alma suporta com paciência tuas palavras
insensatas, e eu te respondo com calma. Quem és tu para pedires coisa dessa
importância? Conheço bem tua fisionomia, e tuas origens não são segredo para mim.
Haverá audácia maior que a de um homem que, durante toda a semana, se aplica
com todas as forças a auferir lucros de seu comércio e que, no sétimo dia, aproveita
a folga para tentar apropriar-se dos presentes de amor, transgredir prescrições e
anular diferenças sociais estabelecidas desde a Antiguidade? [...] Quem és tu, que
tentas profanar regras seculares e, a pretexto de amar, buscas subverter os preceitos
de nossos avoengos e transpor com tanto atrevimento os limites de tua classe?
(CAPELÃO, 2000, p. 39)

Tal resposta oferece um vislumbre acerca da imagem que mulher medieval


aristocrata tinha sobre si mesma. Orgulhosa, ciente de sua distinção em relação aos demais,
nunca que objetivaria a dar cabimento às propostas e desejos de um homem que fosse inferior
à sua posição.

Embora seja fruto da mais nobre das artes, o Amor por si só, segundo a donzela, não
é suficiente para que esta venha a sequer considerar o pedido do jovem burguês, pois tem
noção que “[...] embora o amor veja que todos os homens são conduzidos pelos movimentos
naturais de suas paixões a desejar uma pessoa do sexo oposto, considerou que seria indigno de
si montar imediatamente suas tendas diante daquela cujo amor é requisitado, para obriga-la a
amar de pronto.” (CAPELÃO, 2000, p. 42), além disso, a donzela completa dizendo ao jovem
que:

A todo homem apetece mais procurar amante de condição superior à sua do que de
condição igual ou inferior; inversamente, a mulher cujo amor se solicita, em virtude
do princípio acima e de sua inclinação natural, prefere um amante de condição igual
ou superior à sua: assim, não se poderá pensar estar ela excluída da regra geral do
amor. Conclui-se de tudo isso, portanto, que teu esforço é inútil, e perceberás, no
fim, que te cansaste à toa. (CAPELÃO, 2000, p. 43)

Portanto, é possível observar na documentação um certo distanciamento da


aristocracia, e obviamente, da sua parcela feminina do restante da sociedade medieval. Ainda
que o primeiro diálogo tenha sido estabelecido entre um plebeu (burguês) e uma donzela da
pequena nobreza, o simples fato de o homem de posição inferior cortejar alguém de uma
posição acima da sua já suscitava um certo desequilíbrio na tão organizada hierarquia
medieval.
76

Entretanto, quais seriam as condições, jogos, palavras e gestos esperados quando


duas pessoas de posição equivalente estivessem frente a frente na arte de amar? Um dos
diálogos que Capelão apresenta em seu Tractatus refere-se ao encontro entre um grande
senhor e uma donzela de alto nascimento. Sempre buscando advertir os interessados, o autor
começa explicando os cuidados a serem observados pelos senhores ao cortejar donzelas de tão
nobre estirpe:

Se um grande senhor estiver lutando pelo amor de uma mulher da sua classe, deverá
observar desde logo os seguintes princípios: acima de tudo, usar palavras doces e
amáveis e tomar o cuidado de nada dizer que possa ser censurável. Porque a mulher
nobre, a grande dama, mostra grande sagacidade nas críticas aos atos e às palavras
de um grande senhor; age assim sem temor e sente-se muito feliz por poder
ridiculizá-lo sem contemplação com frases mordazes. (CAPELÃO, 2000, p. 138-
139)

Dados os primeiros avisos, o autor segue na exposição do diálogo, e como de


costume, abrindo com a fala e aproximação inicial do interessado masculino, sempre
observando a retidão, paciência e recato das donzelas de nunca tomarem a dianteira do
assunto, já que isso estritamente papel do homem:

Acredito, e é pura verdade, que Deus incitou todos os homens virtuosos do mundo a
satisfazer vossos desejos e os das outras damas, e a razão disso parece-me
perfeitamente clara: os homens nada são nem podem fruir bem algum na fonte se
não forem instigados pelo incentivo que lhes é dado pelas mulheres. [...] Está claro,
portanto, que devemos aplicar todas as nossas foças a servir as damas, para
podermos receber os benefícios da claridade que elas nos queiram dispensar. [...]
Pois bem, conheço muitos homens que, podemos dizer, receberam o quinhão do
amor pleno, como também conheci outros que são sustentados apenas pelo leite
vivificante da esperança; mas eu, que nada tenho, nem a plenitude do amor nem os
favores da esperança, sou sustentado tão-somente pelo puro pensar em vós, pensar
que me habita e que, em comparação com os outros enamorados, me dá alegrias
infinitas. Que vossa piedade me leve então em consideração e venha em socorro de
meus pensamentos solitários, fortalecendo-os. E suplico-vos, senhora, de todo
coração que não procureis fugir à corte do Amor. (CAPELÃO, 2000, p. 140)

Nos pressupostos do Amor Cortês, cabe às donzelas e damas o controle exato da


situação amorosa na maioria dos casos. Nas relações entre a aristocracia feudal, a imagem
feminina retratada nos textos de época remonta ainda a uma certa estilização e idealização
dessas mulheres, pois a colocam sempre em lugar quase que inalcançável, submetendo aos
interessados as mais diversas provas de caráter, honra, bravura e cortesia para que estes
fossem considerados dignos de cortejá-las e pedir sua atenção e favores.

Logicamente, tais provas atendiam um significado simbólico dentro do contexto da


época. A civilização do Ocidente medieval foi uma civilização dominantemente marcada pelo
gesto (LE GOFF, 2005). Obviamente que os comportamentos descritos, esperados e
sobretudo, representados, deveriam suprir a necessidade de comunicar o sentido de uma ação
77

e preencher as respectivas funções para os quais foram elaborados. Tomando os diálogos aqui
reproduzidos e as respectivas representações dos homens e mulheres envolvidos, pode-se
observar em ambos expressões do cotidiano aristocrático, e do ponto de vista feminino, do
papel atribuído às grandes senhoras que constantemente eram inseridas e disputadas no
contexto social e cultural da formação das alianças por intermédio dos laços matrimoniais.

O que esperar como resposta de uma donzela da alta nobreza às súplicas de seu
pretendente? O reconhecimento de suas qualidades? Ou ainda a elevada posição social que
este ocupava, tão importante quanto a sus própria? Os gestos femininos, lembremos, não
estavam presentes apenas na linguagem corporal elaborada pelas mulheres da época, o que
seria a palavra, senão uma expressão poderosa daquilo que pensavam, desejavam ou mesmo
desprezavam? Era esperado das grandes damas medievais um refinamento, cortesia e
educação que fossem condizentes com o degrau que ocupavam nessa sociedade altamente
hierarquizada. Logo, a resposta da donzela ao seu pretende assim deveria obedecer a tais
elementos. Quando findada os lamentos e súplicas do senhor, ela lhe responde:

Embora vossas palavras sejam marcadas pela dignidade e pela profundidade e pela
profundidade, atingindo o limite extremo do refinamento em amor, vou esforçar-me,
na medida de minhas capacidades, por dar-lhes resposta apropriada. [...] Vós me
exortastes a tentar agir de tal maneira que meus atos possam aumentar meus méritos
e os dos outros; isso me enche de alegria, pois sempre tive a intenção de me
comportar assim. Pois sei bem, como afirmastes, que as mulheres dever ser móbil e
origem de todos os bens; devem, portanto, portar-se bem com todos os homens, dar-
lhes cortês acolhida, dizer palavras que coadunem com sua condição, também
precisam incitar claramente todos os homens à prática da cortesia, a evitar tudo o
que se assemelhe a trivialidade, e a não ter um senso de propriedade que possa
macular-lhes a reputação. Mas sentir amor por alguém é cometer grave ofensa
contra Deus, e para muitos, é expor-se ao risco de morrer. Ademais, parece que o
amor leva os que o sentem a sofrer inúmeros tormentos, reservando-lhes torturas
diárias e incessantes. Que bem poderíamos encontrar na ofensa ao esposo celeste e
ao próximo, sabendo-se que aqueles que assim agem expõem-se ao risco de morrer e
são atormentados por torturas ininterruptas? (CAPELÃO, 2000, p. 142)

Gentilmente, ao mesmo tempo que o agradece por suas palavras e elogios, a donzela
ao mesmo tempo externa seu pensamento sobre os perigos e infortúnios do Amor. É claro seu
posicionamento quanto à prática, notadamente quando o associa a uma ofensa contra Deus,
haja vista o pensamento na futura união dos corpos no ato sexual, sempre propenso à
liberação dos mais primitivos instintos do ser humano. Como condiz sua posição, a donzela
exorta os deveres e qualidades que o sentimento amoroso desperta nos homens, guiando-os
em direção ao caminho da honra, da distinção e das qualidades inerentes e esperadas da
aristocracia. Ademais, aponta o papel destinado às mulheres dentro dessa lógica construtiva
dos relacionamentos amorosos, deixando clara a função objetiva das mulheres de serem as
principais agentes e prêmios desse sentimento despertado nos homens.
78

FIGURA 6 – CORAÇÕES CAPTURADOS POR AMOR

Ilustração presente no Livre du couer d’Amour épris [Livro do coração comovido pelo amor, em tradução
livre], demonstrando a captura dos corações apaixonados pelas donzelas alegóricas do Desejo (em
vermelho) e Misericórdia (em azul). Escrito em 1457, a obra é um romance alegórico escrito por Renato
de Anjou (1409-1480), duque de Anjou, conde da Provença, rei de Nápoles e Jerusalém. Elaborado
duplamente em verso e prosa, o texto tem caráter alegórico e narra a busca de amor do cavaleiro Coração
que, em um sonho, parte com Desejo em busca de sua senhora, Misericórdia. MS fr 24399, f. 122v, Paris,
Bibliothèque Nationale de France. Fonte: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b60005361/f352.item.>.
Acesso em: 21 fev, 2019.

Embora os diálogos apresentados no Tractatus representem as donzelas aristocratas


como orgulhosas, cheias de si e até mesmo indiferentes aos assuntos e temas mundanos, como
o Amor, é na literatura cortesã que outras facetas femininas são visualizadas com maior
destaque. Ora, justamente por suas posições elevadas, tais mulheres têm ciência daquilo que
podem ou não querer usufruir, o que acaba dotando-as de um poder de escolha bastante
elevado até mesmo para os padrões da época. Some-se tal fator à realidade que tal “literatura
do divertimento” pretendia expor, refletir (RÉGNIER-BOHLER, 2009).

Marie de France, em seus lais, explorou constantemente a temática amorosa e o


interesse de suas personagens nas ações e características distintas de bravura, honra e beleza
dos jovens cavaleiros apresentados. Enquanto ela mesma pertencia à nobreza, decerto que
suas obras se destinaram à apreciação e ao consumo nas cortes feudais, sobretudo à época que
79

as compôs, por volta de 1167, período demarcado pelas transformações profundas de


comportamento no Ocidente medieval. Nesse cenário sociocultural, “onde se elaboram as
formas cultas de relacionamento entre os sexos, mostra-se cada vez mais necessários que os
guerreiros cessem, por um momento, ao menos, de se mostrarem devastadores.” (DUBY,
2013, p. 107), logo, as canções, poesias, lais e romans que retratavam o novo ethos
comportamental da aristocracia foram instrumentos de propagação, idealização, e ainda que
de modo contestável, de voz às damas e donzelas do período.

Em todas os seus lais, a figura feminina tem papel central no desenvolvimento das
narrativas. Central, porém, não principal. Paradoxalmente, o desenvolvimento das
personagens mulheres na obra de Marie de France atua sempre em direção na construção e
aperfeiçoamento dos personagens masculinos, em sua maioria os personagens principais de
suas histórias (MACEDO, 2014; GILBERT, 2015).

Basta ver a coletânea de lais conhecidos pelo nome que sobreviveram pelos
manuscritos compilados entre os séculos XII e XIII: Lanval, Eliduc, Milün, Guigemar, Yönec,
dentre outos, todos personagens masculinos que dão título às suas histórias, jovens cavaleiros
representados em suas aventuras em busca de fama, glória e claro, amor.

Mesmo em tais narrativas é possível encontrar informações relevantes sobre a


personalidade das mulheres ali representadas. Ora, Marie não é, antes de tudo, mulher?
Logicamente que sua narrativa irá buscar oferecer um relato crítico, não obrigatoriamente fiel
à realidade aristocrática feminina do século XII. É fato que dentro de seus escritos “[...] as
heroínas criadas por Maria de França têm vida própria” (MACEDO, 2014, p. 91).

Em seu Lanval, Marie narra a história do jovem que dá nome ao lai, sem, porém,
deixar de lado toda a construção objetiva dos papeis femininos que levaram à construção e
desenvolvimento do herói. Cavaleiro juramentando da corte e Artur, servo leal e fiel de seu
rei, o jovem é preterido por seu senhor em uma das várias celebrações que Artur fizera para
celebrar os feitos em batalha e paz no reino. Embora nascido de uma alta linhagem nobre,
Lanval foi esquecido pelo rei, não sendo agraciado por suas grandes façanhas em beneficio da
paz do reino de Artur.

Desgostoso de sua situação, o jovem deixa a corte do rei e parte em busca de uma
jornada pessoal para encontrar um verdadeiro objetivo para sua vida. Em uma parada para
descansar em um florido campo, Lanval depara-se com duas lindas donzelas que vêm em sua
direção:
80

“Sir Lanval, nossa própria senhora,


tão digna, sábia e bela,
nos enviou até aqui para encontrá-lo;
Ela lhe pede que venha conosco.
Nós iremos conduzi-lo em segurança até lá,
pois sua tenda é bem próxima.”
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 67-68, tradução minha)51

De imediato, uma notável observação. Na passagem acima, é a mulher desconhecida


quem toma a iniciativa de ir até o jovem e demonstrar interesse pelo mesmo. Ainda que
utilizando-se de mensageiras, a mulher não se priva de pedir que Lanval acompanhe suas
intermediárias e vá prontamente ao seu encontro.

Quando Lanval chega até a tenda de sua ansiosa anfitriã, depara-se com uma mulher
linda, utilizando-lhe apenas uma veste translúcida que não lhe ocultava seus atributos
naturais: face, pele, seios, todos alvos, demonstrado a pureza e o simbolismo que uma mulher
de alta posição deveria possuir. Sentando ao lado da donzela em sua grande cama, o jovem
atentamente procura ouvir o que aquela bela mulher deseja dele:

“Lanval, belo amigo”, disse a dama,


“Vim por você, vim de muito longe,
deixei minha terra, para encontrá-lo aqui.
Se és cortês, sábio e corajoso,
Prazer além da conta irás ter,
maior do que o de imperadores e reis –
pois o amo acima de todas as coisas.”
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 69, tradução minha)52

Ouvindo tais palavras, Lanval regozija-se por, enfim, sentir-se valorizado graças às
suas qualidades. Decerto, sua fama e seus feitos teriam sido levados até as terras dessa dama
tão bela, e logo ela em pessoa quis conhecer o autor de tais façanhas. O jovem então aceita o
cortejo da dama, e ele mesmo responde-lhe que irá aceitar de bom grado a proposta feita por

51
No original: “They were advancing straightaway / just up to where the young knight lay. / Now courteous
Lanval rose to greet / the women, got up to his feet. / First they saluted the young man; / and then their message
gave to him. / ‘Sir Lanval, our own demoiselle, / so worthy, so wise and beautiful, / has sent us here to find you
thus; / she bids you come to her with us. / We shall conduct you safely there, / for the pavilion is quite near.’”
52
No original: “Sir Lanval, fair friend,’ the damsel said / I’ve come for you, I’ve come from far / I’ve left my
land, to seek you here. / If you are courtly, wise and brave, / joy beyond measure you shall have, / greater than
emperors or kings - / for I love you above all things.”
81

ela, pois nada o faria mais feliz do que cumprir aquilo que fora solicitado, e assim, ambos se
entregam ao amor, consumado o sentimento ali mesmo na tenda.

Após o ato, a dama promete a Lanval que todos seus desejos seriam realizados, e que
ele teria os maiores e mais belos presentes do mundo ao seu dispor. Com uma condição: que
não revelasse a ninguém o que ali acontecido entre os dois. Caso o fizesse, perderia a amante,
os favores e todos os prazeres que ela havia prometido. Jurando obedecer a seu pedido,
Lanval se une mais uma vez à sua amada em amor, selando assim o laço que estabeleceram
sob aquela mesma cama.

Deixando a companhia de sua dama, Lanval continua sua jornada até o ponto em que
é reconhecido por seus antigos pares cavaleiros, que estavam acompanhando a rainha
Guinevere em uma de suas visitas à cidade. Envergonhados por terem esquecido de Lanval
nos festejos anteriores, logo o convidam para celebrar junto a eles o novo período de paz do
reino. Prontamente, os cavaleiros e Lanval juntam-se às damas de companhia da rainha, para
comerem, dançarem e ser divertirem no espaço que fora reservado aos membros da corte.

Notando que Lanval era o único a não desfrutar das celebrações e da companhia de
suas damas, a rainha aproxima-se do jovem e de súbito lhe diz:

“Querido Lanval”, disse a rainha Guinevere,


és muito honrado e querido –
podes ter por inteiro meu amor!
Fale comigo! Diga-me teu desejo!
Livremente dou-lhe minha afeição;
deves alegrar-te de me tomar!”
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 73, tradução minha)53

Lanval, que até o momento estivera completamente desconfortável por estar longe de
sua amada, desejoso de provar novamente de seus prazeres, mantém firme seu compromisso,
e logo responde a rainha:

“Senhora”, disse Lanval, “deixe-me em paz!”


Não me importo com sua afeição.
Servi bem meu rei, mantive minha fé –
Nunca irei comprometer meu juramento!

53
No original: “Dear Lanval,’ said queen Guinevere, / you are much honored and held dear - / you may possess
my love entire! / Speak to me! Tell me your desire! / Freely I give you my druerie. / you must rejoice in taking
me!
82

Não para o teu amor, senhora, não é a palavra –


Não irei errar com meu senhor soberano!”
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 73, tradução minha)54

Irada com a resposta que obteve, a rainha acusa Lanval:

“Lanval,” ela disse, “Eu sei, sinto


que tu não te importas com o flerte;
mas frequentes são os rumores, sir,
que tu não tens desejo por mulheres!
Mas por rapazes e escudeiros, jovens bem treinados
buscas companhia; diverte-se com eles.
Oh, covarde! Malcomportado! Não natural,
é o teu serviço para meu senhor Lanval!
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 73, tradução minha)55

Ferida em seu orgulho, a rainha calunia o jovem cavaleiro por tê-la desprezado.
Aqui, exemplificam-se mesmo na obra de Marie, as características negativas imputadas às
mulheres no medievo, como o desdém, a vaidade e principalmente, a mentira. Guinevere
acusa lanval de buscar a companhia de homens, ou seja, acusa-o de sodomia, pecado
gravíssimo dentro da estrutura religiosa que cercava o Ocidente medieval. A falta de
Guinevere demonstra ainda uma característica importante perpassada na literatura do período,
a dupla fragilidade feminina.

Após ser rejeitada por Lanval, vai até seus aposentos e põe-se a chorar. Quando
Artur encontra sua esposa em tal estado de tristeza, a indaga por qual motivo está chorando. A
rainha, por sua vez, clama que foi cortejada por Lanval, e quando negou suas investidas, o
cavaleiro a humilhou publicamente perante todos os que ali estavam presentes. Mentirosa,
ardilosa, humilhada, frágil. Ao mentir para Artur e acusar injustamente Lanval, Guinevere
demonstra mais uma vez a imagem de uma mulher difícil, trapaceira, ao ponto que a autora
faz questão de descrever que às características negativas atribuídas ao feminino podem existir
mesmo na alta camada da sociedade. De fato, “A mulher é enganadora por ser fraca. Fragilis,
[...] esse é o traço derradeiro que caracteriza sua natureza. Frágil, mas terna também, capaz de

54
No original: “Lady,’ said Lanval, ‘let me be!’ / I care not for your druerie. / I’ve served my king well, kept my
faith - / I’ll never compromise my oath! / No to your love, dame, no’s the word - / I will not wrong my sovereign
lord!”
55
No original: “ ‘Lanval’, she said, ‘I know, I sense / you do not care for dalliance; / but it is often rumored,
sire, / for women you have no desire! / But youths and squires, well-trained young men / You seek out; you
disport with them. / Oh, coward! Boor! Unnatural, / your service to my lord Lanval!”
83

derreter-se.” (DUBY, 2013, p. 110), como bem o fez a rainha quando ofereceu seus favores a
Lanval.

Entretanto, mesmo tal capacidade de amar o outro acima de todas as coisas terrenas –
pois o verdadeiro amor, o amor Divino, suplanta quaisquer outras necessidades
(CLARAVAL, 2010) – pode ser tida como uma fraqueza, já que “Apesar de tudo que há no
feminino um valor, essa pulsão cuja motivação está na carne e que leva a amar” (DUBY,
2013, p. 110).

A história desenrola-se a seguir pelo julgamento público do cavaleiro, em que o rei o


obriga a admitir sua ofensa contra a rainha ou então provar que suas palavras, sentimentos, e
principalmente, sua amante, eram reais. No dia do julgamento, Lanval está à beira de
enfrentar sua condenação, quando é salvo em último instante pela aparição de sua dama. Esta
defende-o publicamente, confirma seu envolvimento com Lanval, e a despeito deste ter
quebrado juramento de jamais revelar a natureza do seu relacionamento, perdoa-o e leva
embora consigo:

“Rei, amei teu vassalo. Veja,


ali encontra-se; é ele, Lanval!
Aqui em tua corte ele é acusado;
Lanval não deve ser condenado;
por aquilo que disse; tu, Rei, deves saber
que a rainha está enganada; não foi assim,
ele nunca procurou o amor dela!
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 81, tradução minha)56

Observou-se de acordo com excertos acima a dualidade dos papeis femininos no


desenvolvimento do personagem masculino. Como mencionado, as figuras da dama
misteriosa e da rainha Guinevere assumem um papel de destaque no desenrolar da história,
porém, nunca assumindo o protagonismo que é encontrado somente na jornada do cavaleiro
em busca de aceitação, respeito e amor.

Não somente nos lais do século XII que as donzelas são demonstradas enquanto
transformadoras ou manipuladoras dos destinos dos homens. O roman medieval, gênero
literário discutido no capítulo anterior, foi vetor essencial de propagação dos ideais corteses
na aristocracia medieval, representando nas heroínas que dividiam as linhas históricas com
56
No original: “King, I loved thy vassal. See, / there he stands; Lanval, it is he! / Here in thy court he stands
accused; / Lanval must not be here abused / for what he spoke; thou, King, must know / the queen was wrong; it
was not so, / he never sought her love at all!”
84

seus respectivos pares, os modelos de comportamento feminino a serem guardados e


reproduzidos pela sociedade de corte.

O primeiro romance arturiano composto por Chrétien de Troyes, Érec et Énide [Erec
e Enida], datado por volta de 1170, coloca em plano a jornada do protagonista Érec, dividido
entre seus deveres enquanto cavaleiro e seu amor por Énide. Durante todo o romance, o papel
de Énide é primordial. E temos aqui, um dos primeiros exemplos em que a importância da
personagem feminina é tão grande ou até de maior importância que a sua contraparte
masculina (KIBLER, 2004).

Ora, dentre todos os romances arturianos, Érec et Énide é o único a compartilhar no título o
nome das duas principais personagens da história, e não por acaso, tudo o que se passa no
romance é realizado para Énide e por conta dela. As ações de Érec são estabelecidas de modo
a sempre representar a estrutura corrente de um roman cortês, focando demasiadamente no
retrato da mulher idealizada, quase que intangível e que concentra em si todas as maravilhas
da criação divina:

[...] nunca houve uma só criatura tão bela no mundo. Em verdade, devo dizer que
Isolda, a loura não possuía tão dourado cabelo, pois comparada a esta donzela ela
nada era. Sua face e sua testa eram belas e mais brilhantes que um lírio; contrastando
maravilhosamente com a alvura, sua face era iluminada por uma cor crescente e
fresca que a natureza tinha lhe provido. Seus olhos brilhavam com uma intensidade
que lembravam duas estrelas; nunca Deus fez nariz tão belo, ou boca ou olhos. (DE
TROYES, Chrétien, 2004, p. 42, tradução minha)57

O autor procurou demonstrar toda a carga simbólica que a primeira noite de um casal
recém-casado possuía no período medieval. Em seu leito privado, lugar dos segredos, da
intimidade individual de cada cônjuge (RÉGNIER-BOHLER, 2009), ambos, Érec e Énide
compartilham seus corpos como selamento final do contrato sagrado do matrimônio.
Ademais, para Énide, a união carnal com seu esposo lhe conferiria um novo status social: esta
deixaria sua condição anterior de donzela e passaria a ser uma dama, uma senhora:

Quando deixados as sós no quarto, prestaram homenagem um ao outro. Os olhos,


que canalizam o amor e enviam a mensagem até o coração, renovaram-se com seus
olhares, pois o que quer tenham visto, agradou-lhes profundamente. Após a
mensagem dos olhos, veio a doçura, bem mais valiosa, dos beijos trazidos por amor;
ambos provaram do carinho e refrescaram seus corações com este, o que com grande
dificuldade, poderiam se separar. Beijar era seu primeiro jogo. O amor entre ambos
deixou a donzela mais ousada: ela não temia mais coisa alguma; suportou tudo, não
importasse o custo. Antes que se levantasse novamente, ela havia deixado o nome de

57
No original: “[...] never was such a beautiful creature seen in the whole world. In truth I tell you that Isolde the
Blonde had not such shining golden hair, for compared to this maiden she was nothing. Her face and forehead
were fairer and brighter than the lily-flower; contrasting marvelously with the whiteness, her face was
illuminated by a fresh, glowing colour that Nature had given her. Her eyes glowed with such brightness that they
ressembled two stars; never had God made finer nose, mouth, nor eyes.”
85

donzela para trás; na manhã, ela era uma nova dama. (DE TROYES, 2004, p. 63,
tradução minha)58

Atingindo este novo patamar, Énide distingue-se das demais damas e donzelas da
corte de Érec, provando-se cada vez mais importante, refinada, educada e bem-querida por
todos ao seu redor. Tanto que ao observar seu constante progresso, Érec não deseja outra
coisa senão a companhia de sua esposa, o que é o início para que negligencia suas outras
tarefas cavaleiro e senhor (DE TROYES, 2004). Entrando em uma espécie de crise identitária,
o jovem cavaleiro planeja uma nova jornada de autoconhecimento, primeiro para provar ser
digno de uma vez por todas do amor de Énide, segundo, para provar a si mesmo ser capaz de
conciliar os deveres de esposo e cavaleiro.

FIGURA 7 – O ROMAN DE ÉREC ET ÉNIDE

Início ilustrado do roman retirado de um manuscrito da segunda metade do século XIII (c. 1285), de
autoria de Aymon de Varennes. MS fr 1376 (c. 1285-1315), f. 95r.
Fonte: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b10549431k/f197.item.> Acesso em: 22 fev, 2019.

Paradoxalmente, Énide encontra-se no seio de toda essa querela. A dama se culpa por
ter afastado o marido de seus deveres, pois há tempos ouvira boatos na corte que Érec havia
se tornado fraco e relapso por não se interessar pelos assuntos tipicamente masculinos da
época, como a caça, as justas e a guerra em si. Ora, se contestada a virilidade ou esquecimento

58
No original: “The eyes, which channel love and send message to the heart, renewed themselves with looking,
for whatever they saw greatly pleased them. After the message from the eyes, came the sweetness, worth far
more, of the kisses that bring on love; they both sampled that sweetness and refreshed their hearts within, so that
with great difficulty they drew apart. Kissing was their first game. The love between the two of then made the
maiden more bold: she was not afraid of anything; she endured all, whatever the cost. Before she arose again,
she had lost the name of maiden; in the morning she was a new lady.”
86

dos deveres de um homem, por que não apontar como razão principal para isso a influência de
uma mulher?

Érec é impelido por um desejo pessoal de provar a si mesmo e à esposa que poderia
ser um bom combatente tanto no campo das armes (armas) como na seara do amors (amor).
Na lógica do Ocidente medieval, às mulheres casadas eram destinados o serviço de retidão
moral e o cuidado doméstico. Logicamente, dentro da estrutura privada das cortes e do leito
conjugal, as pulsões e as tensões sexuais que permeavam e teimavam em controlar os corpos
dos cônjuges, eram deixadas em um segundo plano, embora coubesse ao homem, e neste caso
específico, ao senior (senhor), estabelecer as diretrizes que deveriam ser obedecidas pela
mulher.

Qual o papel das esposas? Mesmo das grandes senhoras? É preciso educar, doutrinar
e dominar os corpos, pois mesmo sexo conjugal, se feito em demasiada intensidade e
frequência poderia levar ambos os esposos à perdição de suas almas. Logo:

É necessário tornar mais racional a mulher, particularmente sujeita ao desejo


(úmida, fria, frágil, aberta e voluptuosa, portanto, mais próxima da animalidade),
dotada de capacidade de gozos repetitivos que supera, em muito, a do macho, ela é
insaciável (supõe-se que mesmo vítima de violação, a mulher sente prazer. Cabe,
pois, ao homem, não se entregar a carícias imoderadas, a fim de evitar um estado de
agitação, impossível de refrear, ainda que convenha satisfazer a mulher
engravidando-a. (ROSSIAUD, 2017, p. 538)

O que teria acontecido à Énide e Érec, foi senão um abuso dos prazeres conjugais.
Embora jovem dama tenha cumprido exatamente sua função de esposa obediente, dedicada e
sempre presente para servir seu marido. Mesmo representada como um modelo exemplar de
virtude e retidão, Chrétien de Troyes busca ainda ressaltar em seu roman que mesmo uma
mulher tão nobre pode ser a causa da desgraça de um homem.

Tomada pelo desespero dos rumores e das notícias de difamação da honra de Érec,
Énide diz ao esposo aquilo que a atormenta, além de assumir inteira culpa pela desonra do
marido:

Por todo o reino todas as pessoas – os louros, os morenos, os ruivos – estão dizendo
que é uma grande vergonha que tenhas deixado de lado tuas armas. Tua reputação
declina-se constantemente. Antes, todos costumavam dizer que não havia no mundo
melhor ou mais bravo cavaleiro; teu igual não se encontrava em lugar algum. Agora
todos o ridicularizam, velhos e jovens, nobres e camponeses; todos chamam-no de
relapso. Acreditas em como me sinto mal ao ouvir todos falarem de ti com tanto
escárnio? Entristeço profundamente quando eles falam, e mais ainda quando põem a
culpa sobre mim. Que eu seja a culpada fere-me, principalmente, e todos bradam
87

que é porque o lacei e capturei que estás perdendo teu renome e interesse por
qualquer coisa. (DE TROYES 2004, p. 68, tradução minha)59

Observa-se no lamento da dama, a genuína preocupação desta com seu marido e


mais ainda como a perturba ser o pivô de todas as calúnias e difamações contra Érec. A faceta
da esposa preocupada revela-se com ainda mais força quando Énide junta-se ao esposo em
sua jornada de autoprovação. Quando Érec instrui sua mulher para manter-se cada durante
todo o percurso, negando a si próprio qualquer tipo de ajuda externa para enfrentar os perigos
que porventura os esperavam, a dama pacientemente aceita seu pedido calada, sem, deixar de
temer constantemente pela segurança de seu amado.

Durante três ocasiões Énide desobedece ao pedido de Érec. Mas em todas elas a vida
de seu esposo correu grave risco, e não fosse por seus avisos manifestados – e silenciosos –
Érec não teria sobrevivido às provações. Conforme tece sua narrativa, Chrétien de Troyes
coloca sua protagonista em uma situação de extrema fidelidade ao esposo, embora
representada por uma explícita sugestão de adultério e uso negativo dos atributos femininos.

À certa altura de sua jornada, o casal é convidado por um conde para cear em sua
propriedade. Invejoso com a beleza e qualidades de Érec, e tomado de desejo por Énide, o
conde logo trama para assassinar o jovem cavaleiro e reclamara para si a bela dama. Logo,
aproxima-se de Énide, cortejando-a e expondo suas verdadeiras intenções:

Tua beleza merece a mais alta honra e nobreza. Eu faria de ti a minha senhora, caso
fosse de seu agrado e prazer; serias minha amada e senhora de todas as minhas
terras. Como fiz tua corte com meu amor, não deves me rejeitar. É claro para mim
que teu senhor nem a ama e nem a estima; terás um senhor apropriado se
permanecer comigo. [...] Não me julgas merecedor do teu amor, minha senhora? És
muito orgulhosa! Nenhuma súplica ou compensação farás tu aceitar aquilo que
peço? De fato, é verdade que quanto mais se implora e estima uma mulher, mais
desdenhosa ela se torna; mas quanto mais um homem a maltrata e humilha, mais
desejosa ela se torna. Em verdade, juro a ti que se não fizeres o que desejo, espadas
serão desembainhadas. De um jeito ou de outro, terei o teu senhor despedaçado, bem
em frente aos teus olhos. (DE TROYES, 2004, p. 78, tradução minha)60

59
No original: “Throughout this land all people – the blonde, the brunette, the readheads – are saying that is a
great shame that you have laid down your arms. Your renown has greatly declined. Previously everyone used to
say that there was no better or more valiant knight know in all the world; your equal was nowhere to be found.
Now everyone holds you up to ridicule, young and old, high and low; all call you recreant. Do you believe it
does not distress me when I hear you spoken of scorn? It grieves me deeply when they speak so, and it grieves
me even more that they place the blame on me. That I am blamed for this grieves me particularly, and everyone
says it because I have so bound and captured you that you are losing your renown and your concern for anything
else.”
60
No original: “Your beauty deserves the highest honour and nobility. I would make you my lady, were it
pleasing and agreeable to you; you would be my beloved and mistress all over my land. Since I deign to court
you with my love, you must not reject me. It is obvious to me that your lord neither loves nor esteems you; you
will have a proper lord if you remain with me. […] Don’t you think me worthy of your love, my lady? You are
too proud! Would neither praise nor supplication make you do what I wish? It is indeed true that the more one
begs and praises a woman, the more contemptuous she becomes; but the man who shames and mistreats her
often finds her more compliant for it. Truly, I promise you that, if you do not as I wish, swords will be drawn.
88

Ouvindo tal cruel ameaça, Énide rapidamente elabora um plano de modo a manter a
vida de seu amado em segurança, pois até o momento, Érec não desconfiava das intenções do
conde. Receosa de que sua reação ao pedido do conde alertasse seu marido e revelasse a trama
antes do momento certo, a dama responde ao conde dizendo-lhe para se acalmar, pois o estava
apenas testando para saber a real intensidade de seu desejo por ela. Como uma forma de
ganhar tempo para contar a Érec sobre as intenções de seu anfitrião, ela pede ao conde que
espere até o outro dia, quando ambos descansados poderiam ter um combate em condições
iguais pela disputa dela mesma:

Pode tomar-me como tua; sou tua e é isso que desejo. [...] Espere até a manhã,
quando meu senhor irá desejar levantar-se; então poderás aproveitar para feri-lo sem
responder por traição ou covardia. “Sir”, ela disse, “acredite em mim! Não sejas tão
ansioso. Envie teus cavaleiros e homens-de-arma para me raptarem amanhã e
tomarem-me à força; meu senhor, que é muito orgulhoso e bravo, desejará me
defender. Quando o tiveres sobre alcance, capture-o, machuque-o ou então corte sua
cabeça. Vivi esta vida por muito tempo; não tenho apreço algum pela companhia de
meu senhor e não estou procurando esconder tal fato. Decerto, eu gostaria de te
sentir nu ao meu lado na cama. Já que estamos de acordo nisso, tu és assegurado do
meu amor. (DE TROYES, 2004, p. 79, tradução minha)61

Quais armas Énide utilizou para mentir ao conde e ganhar tempo para salvar seu
esposo? Primeiro, a dissimulação. A dama utiliza-se dos seus atributos físicos para acalmar a
ira do conde, prometendo-lhe devoção total e irrestrita quando este matasse Érec. Em
segundo, mente ao falar que não ama seu esposo, nem sente prazer quando está em sua
companhia. Ora, às mulheres no medievo Ocidental, e à literatura pode muito bem representar
tal realidade, cabia lutarem com os meios de combate à sua disposição. Qual instrumento mais
poderoso do que o próprio corpo? (BLOCH, 1995).

O mesmo corpo vilipendiado, rejeitado, esquecido. Mas objeto de prazer, luxúria e


satisfação pessoal do universo masculino. Objeto claramente definido pelo pensamento
teológico da época como invólucro do pecado, da luxúria, pois “[...] queima-as um desejo,
que, fracas demais, custam a dominar” (DUBY, 2013, p. 259), logo, a única constatação do
clero medieval girava em torno de uma imagem feminina que lançava ao ataque dos homens,
seja em benefício próprio, ou mesmo para cometerem e oporem-se à ordem natural da
Criação, baseada na perspectiva masculina.

Rightly or wrongly, I shall have your lord slain forthwith, right before your very eyes.”
61
No original: “You can take me as your own; I am yours and that is what I wish. […] Hold back until morning,
when my lord will wish to rise; then you will be better able to harm him without incurring blame or reproach.
‘Sir’, she said, ‘Believe me! Don’t be so anxious. Send in your knights and your men-at-arms tomorrow and
have me taken by force; my lord, who is very proud and courageous, will want to defend me. Whether in earnest
or in sport, have him taken and wounded or have his head cut off. I have led this life too long; I have no liking
for my lord’s company and I am not seeking to disguise the fact. Indeed, I should already like to feel you naked
beside me in a bed. Since we have agreed on this, you are assured of my love.”
89

Tais exemplificações mencionadas e discutidas ao longo das linhas pregressas apenas


vislumbram o amplo horizonte de expectativa e reflexões que podem ser feitas sobre a
condição feminina na aristocracia medieval e suas respectivas representações na literatura do
período.

De fato, foram imputados às mulheres múltiplos pecados, ofensas e desvios


considerados até mesmo antinaturais devido ao pavor e desconhecimento daquilo que
pensavam as damas e donzelas da época. Mesmo que esta literatura cortesã seja a única fonte
confiável para perceber as vozes silenciadas de tais, mesmo que por intermédio de seus
interlocutores masculinos, a presença e força das mulheres são ali representadas, para o bem
ou para o mal.

No seio da pequena e da alta nobreza, outros modelos surgem como demarcadores de


novas posturas femininas a serem imitadas e reproduzidas nas cortes medievais. Contos de
amor proibidos, de bravura, de fidelidade e inteligência, permearam os salões dos grandes e
das grandes senhoras nos séculos XII e XIII, como bem comprovam a alta popularidade e
recepção que as imagens de jovens e belas rainhas tiveram quando contadas suas histórias.

Por que não, dar voz, corpo, e vazão às personalidades que marcaram a nova forma
erudita de comportamento aristocrático? Se houve algo a ser ensinado, essa mesma literatura
do divertimento, por sua vez, também atuou como instrumento pedagógico de valorização dos
costumes cortesãos.

Logo, faz-se necessário apresentar por quê, quando, como e quem serviram de base
para tal empreendimento. Portanto, ao falar sobre tais mudanças estruturais, continuamos na
literatura para explorar devidamente quais caminhos podem ser desbravados e apresentados
sobre a figura feminina no período medieval. Hora de falar sobre rainhas e donzelas, seus
segredos, paixões, desejos e amores.
90

3.2 “O AMOR NÃO OLHA RAZÃO E NEM DIREITO”: ISOLDA E O RETRATO DA


MULHER COMO RAINHA

Há muito que conto de Tristão e Isolda ecoa no imaginário popular como um dos
exemplos notoriamente reconhecidos de uma narrativa literária que abordou desde aspectos da
vida cotidiana aristocrática no Ocidente medieval até a temática do amor, sendo esta última
uma de suas características mais marcantes.

Nela, observa-se a seguinte trama: Tristão é sobrinho do Rei Mark da Cornualha, que
em busca de uma esposa para conceber um herdeiro ordena ao jovem que vá em busca de uma
esposa para, assim, assegurar sua descendência. Tristão viaja até a Ilha da Irlanda e após uma
série de eventos, acaba por ganhar a mão da princesa Isolda em casamento no nome de seu tio
e senhor (BEROUL, 1970).

Durante a viagem de regresso à Cornualha, Tristão e Isolda acabam por provar de um


vinho adulterado por um filtro mágico (ou poção do amor, dependendo da versão), feito pela
rainha da Irlanda e mãe de Isolda, com o objetivo de fazer com que a filha e seu futuro
marido, o rei Mark, se apaixonassem imediatamente um pelo outro após sorverem do líquido
(BEROUL, 1970); (STRASSBURG, 2004). Tomados pela sede e calor que fazia durante o
regresso à terra natal de Tristão, Isolda e o jovem bebem o filtro por engano, apaixonando-se
de imediato e dando início à trágica história de seu conto.

Não há como traçar uma origem definitiva da lenda, visto que mesmo a historiografia
e boa parcela do material produzido acerca do conto ainda não foram capazes de delimitar
exatamente um texto, ou um conjunto de textos, que ligaria a história de Tristão e Isolda a
uma matriz textual definitiva. Por sua vez, nos dispomos de vestígios linguísticos, culturais e
literários existentes dentro do corpus documental existente sobre o conto dos jovens
amantes.62

Sobre o conteúdo da lenda, seus autores e versões, é sabido que o registro mais
antigo do conto está preservado em um único manuscrito datado da segunda metade do século

62
Mesmo contando com uma origem “difusa”, é possível encontrar possíveis referências na literatura medieval
de língua gaélica e galesa, ramos linguísticos pertencentes a uma matriz indo-europeia originária do conjunto de
tribos que habitaram grandes porções da Ilha da Grã-Bretanha (Escócia e País de Gales) e da Ilha da Irlanda que
também possuíam uma matriz religiosa em comum: os povos celtas. Em um primeiro momento, e por intermédio
principalmente do testemunho oral, essas origens celtas foram gradualmente se transmutando e se incorporando à
sociedade cristã existente no Ocidente medieval, passando a conter no seu núcleo narrativo características
reinterpretadas e adaptadas para o ambiente nobiliárquico que irrompeu como sendo o centro cultural e de
patronato de uma “literatura” direcionada ao entretenimento de seus consumidores.
91

XIII63, contendo o poema em verso Le Roman de Tristan. Com cerca de 4500 versos, tal
poema foi copiado do original do século XII, cuja autoria é atribuída ao poeta normando
Béroul que o compôs em francês arcaico entre 1160-1170. Embora incompleto (o manuscrito
não contém um “início” e “final” bem delimitados), observa-se no poema de Béroul um dos
primeiros registros – escritos – da história de Tristão e Isolda no Ocidente medieval.

Seguindo a trilha deixada pelos versos de Béroul, outros autores acabaram por criar
suas próprias versões para o conto dos dois amantes, como é caso de Thomas da Inglaterra,
poeta anglo-normando e contemporâneo de Béroul, que teria composto seu poema entre 1155-
1170, também em francês arcaico.64 Tal obra também se encontra em estado fragmentário,
contendo cerca de 10 fragmentos de texto em seis manuscritos preservados datando do século
XIII.

Além de Béroul e Thomas, outras três versões da lenda foram compostas no século
XII, servindo de base para os posteriores escritos que tomaram estas obras anteriores como
inspiração e sustento em suas respectivas narrativas. São elas: o Tristrant de Eilhart von
Oberg, escrito por volta de 1185 em alto-alemão médio; o La Folie Tristan [A loucura de
Tristão, em tradução livre], de autoria anônima, escrito em torno de 1175 e preservado em um
manuscrito anglo-normando da segunda metade do século XIII 65; e por fim, o Tristan en
Prose [Tristão em Prosa], cuja finalização da obra deu-se apenas na centúria seguinte, entre
1230-1235.

Para compreendermos as múltiplas facetas de Isolda, é necessário contextualizar sua


figura dentro do romance na qual a mesma é protagonista. Ainda que o conto receba o nome
de “O romance de Tristão”, veremos que jovem rainha é tão protagonista – e até mais que isso
– quanto seu amado cavaleiro. Porém, em todas as versões existentes do conto, nota-se um
destaque dado à Isolda seguindo a lógica e a ordem social da qual a história é fruto. No limiar
do século XII (1170-1180) o ímpeto cultural discutido no capítulo anterior e suas relações e
desdobramentos na literatura acabaram por reverberar nas alterações e adaptações do conto
original. Logo, os literatos, poetas e menestréis que contaram – e cantaram – a história dos

63
O MS B.N fr. 2171, manuscrito conservado na Biblioteca Nacional Francesa (BnF). Disponível em:
<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b9058945v/f3.image>. Acesso: 05 set, 2018.
64
A obra de Thomas, assim como a de Béroul, é fragmentária, restando apenas 6 manuscritos contendo o poema
original. Um destes manuscritos é o MS Fr. d. 16, encontrando na Bodleian Library, em Oxford, Inglaterra.
Disponível em: < http://image.ox.ac.uk/show?collection=bodleian&manuscript=msfrd16>. Acesso: 06 set, 2018.
65
O manuscrito MS. Douce d. 6, atualmente, preservado na Bodleian Library, em Oxford, Inglaterra. O
manuscrito também contém em sua parte final um longo fragmento do romance de Tristão por Thomas da
Inglaterra, Disponível em: <http://image.ox.ac.uk/show?collection=bodleian&manuscript=msdouced6>. Acesso:
06 set, 2018.
92

amantes desafortunados o fizeram de modo a obedecer às preferências de seus patronos


aristocratas. Fossem eles os grandes senhores feudais, ou suas dominas66:

Os poetas que trataram o tema de Tristão estavam preocupados em agradar. A seu


patrão, em primeiro lugar, depois a seu público. Assim todo se esforçaram por
apresentar por meio da personagem de Isolda uma imagem da mulher que estivesse
de acordo com os fantasmas dos homens da corte. É certo que souberam tocar
cordas sensíveis; sem isso, o que restaria de sua obra? Se podemos lê-los ainda, é
porque agradaram e porque a história que contam apaixonou os que a escutaram. [...]
E como cada um dos autores, Thomas, Béroul e os outros, imaginou Isolda à sua
maneira, atribuindo-lhes certos sentimentos, um certo tom, e utilizou ainda, para
mostrar a feminidade sob todos os seus aspectos, [...] a mulher aparece nesses
poemas sob múltiplas faces, de modo que o historiador consegue inclusive distinguir
os diferentes olhares que os homens dirigiam então a ela. (DUBY, 2013, p. 82)

A história dos jovens amantes é narrada sob uma ótica complexa que envolve “[...]
paixão e morte, amor, casamento e adultério; amizade, sexo e desejo [...]” (WISNIK, 2009, p.
221), onde a jornada de ambos é contada por intermédio de um narrador observador que tudo
presencia e descreve em seu texto. Ressalto aqui que mesmo no relato escrito e
posteriormente prosificado (século XIII), a narrativa não nega ou obscurece sua forma
original de transmissão: o relato oral:

Quereis ouvir, senhores, um belo conto de amor e de morte? É de Tristão e


Isolda, a rainha. Ouvi como em alegria plena e em aflição eles se amaram, depois
morreram no mesmo dia, ele por ela, ela por ele. (BÉDIER, 2012, p. 1, grifos meus)

A narrativa segue basicamente a seguinte trama: Tristão é sobrinho do Rei Mark da


Cornualha, que em busca de uma esposa para conceber um herdeiro, ordena ao jovem
cavaleiro que parta ao encalço de uma pretendente para assim assegurar sua descendência.
Isso muda de algumas versões para outras, como em uma em que Tristão parte em busca de
uma esposa para seu tio de modo a afastar a má impressão e inveja que os barões da corte
sentiam pelo mesmo devido à sua predileção por parte do rei Mark, sendo assim um possível
herdeiro de todo o patrimônio do rei.

Isolda, a Loura, como lhe atribui a lenda, é uma princesa do distante reino da Irlanda.
Tida como a mulher mais bela de sua época, os textos fazem incessantes menções aos seus
belos cabelos dourados e seus dotes físicos, mas acabam também por destacar suas qualidades
intelectuais e suas aptidões físicas para o canto, os números, as artes em geral demonstrando
um destaque até então inédito ao sexo feminino nos textos medievais:

[...] A instrução que ela já havia recebido estava em muito bom lugar. Ela já tinha
adquirido uma série de refinamentos e de maneiras polidas que necessitavam das
66
Esposa do senhor feudal. Senhora de fato e de direito – via matrimônio – da administração do ambiente
privado familiar. Por tal condição, muitas senhoras patrocinavam artistas e demais agentes culturais para
escreverem peças, cantá-las e dramatiza-las nas cortes senhoriais de seus maridos como uma forma de
autoafirmação de sua condição nobiliárquica e de poder.
93

mãos ou voz - a menina encantadora falava a língua de Dublin [irlandês], e francês


e latim, e tocava muito bem o violino no estilo galês. Sempre que tocava, seus dedos
acariciavam a lira mais habilmente e golpeava as notas da harpa com poder. Ela
administrava suas virtudes e cadências com destreza. Além disso, esta menina tão
abençoada com dons cantava bem e docemente. Ela prosperava com as realizações
que já tinha adquirido, e seu tutor, o menestrel, a muito melhorou (VON
STRASSBURG, 2004, p. 147, grifo meu).67

Percebe-se a predileção e o domínio de Isolda desde cedo pelas artes voltadas ao


espaço feminino: canto, lira, harpa, etc. Como esperado também de sua posição, a jovem
ainda detinha o domínio de outras línguas como o francês e o latim. Deste último, inclusive,
podemos inferir que Isolda tenha recebido o mínimo de educação eclesiástica de seus tutores,
já que a língua oficial do clero medieval permanece como sendo o latim. Tal fator é essencial
dentro da narrativa e na construção da personagem ao longo do romance, visto que a educação
moral e religiosa recebida durante sua infância entram em conflito com o sentimento proibido
professado pela mesma junto de Tristão.

As tensões de corpo e alma são matéria comum na medievalidade, e os textos


literários da época não se furtaram a explorar tão questão, seja de maneira sutil ou até mesmo
explícita como no caso das obras que envolvem o Amor Cortês como tema:

[...] De um lado, o corpo é desprezado, condenado, humilhado. A salvação, na


cristandade, passa por uma penitência corporal. [...] Abstinência e continência estão
entre as virtudes mais fortes. A gula e a luxúria são os maiores pecados capitais. O
pecado original, fonte da desgraça humana, que figura no Gênesis como um pecado
de orgulho e um desafio do homem lançado contra Deus, torna-se na Idade Média
um pecado sexual. O corpo é o grande perdedor do pecado de Adão e Eva assim
revisitado. [...] Enfim, durante a cristandade medieval, o corpo sobre a terra foi uma
grande metáfora que descrevia a sociedade e as instituições, símbolo de coesão ou
de conflito, de ordem ou de desordem, mas sobretudo de vida orgânica e de
harmonia. (LE GOFF; TRUONG, 2013, p. 11-13)

Voltando à história do conto, Tristão acaba por conquistar a mão de Isolda numa
disputa na corte, e parte com a princesa de volta a seu reino natal para vê-la desposada com
seu tio, o rei. E é justamente no regresso à Cornualha que o destino fatídico dos amantes é
determinado. De início, a princesa achou que Tristão seria seu pretendente na disputa por sua
mão (e logo simpatiza com a ideia, visto os atributos que o jovem cavaleiro possuía), mas
quando este se apresenta como representante do rei Mark da Cornualha, Isolda a contragosto
cumpre seu papel de princesa e parte com Tristão ao reino de seu futuro esposo.

67
Traduzido de: “[...] The tuition she already received stood her in very good stead. She had previously acquired
a number of refinements and polite accomplishments that called for hands or voice – the lovely girl spoke the
language of Dublin, and French and Latin, and she played the fiddle excellently in the Welsh style. Whenever
they played, her fingers touched the lyre most deftly and struck notes from the harp with power. She managed
her ascents and cadences with dexterity. Moreover, this girl so blessed with gifts sang well and sweetly. She
profited from the accomplishments wich she had already acquired, and her tutor, the minstrel, much improved
her.”
94

Aqui abro espaço para analisar a conduta de Isolda e o sentimento nutrido em relação
à Tristão com a ideia de que o jovem cavaleiro havia conseguido permissão para desposá-la.
Durante a estadia de Tristão na Irlanda, o mesmo acaba por enfrentar diversos obstáculos e
como consequência de uma dessas aventuras, tomba ferido em combate. De início, Tristão
apresentou-se à corte do rei irlandês sob o nome de “Tantris” (anagrama para Tristan), como
meio de evitar perguntas sobre a sua origem e seus interesses no reino da Irlanda. Graças ao
carisma de Tristão, tanto a corte como o rei acolheram de maneira amistosa a presença do
jovem cavaleiro, de modo que ao saberem da situação crítica deste, logo se preocupam em
oferecer-lhe os melhores médicos e cuidados para que este recupere sua saúde.

Embora tratado com atenção e esforço, nada parecia fazer efeito sobre a condição
enferma de Tristão. Então, a rainha Isolda, homônima de sua filha, encarrega a jovem
princesa dos cuidados de Tristão. A princesa logo se afeiçoa ao jovem cavaleiro doente e faz
da cura de Tristão sua maior prioridade:

[...] Isolda continuou olhando para ele [Tristão]; Ela examinou todo seu corpo e sua
aparência com um interesse incomum. [...] Olhou-o de cima abaixo; e o que quer
que uma donzela pode requerer em um homem, tudo a satisfez muito bem, e ela o
elogiou em seus pensamentos. Agora que seu escrutínio tinha mostrado tal figura de
um ser tão magnífico e à sua maneira tão principesco, seu coração falou dentro dela:
"ó Senhor, fazedor de milagres, se há alguma coisa que tu criaste caiu de alguma
forma, seria este fracasso aqui, já que este esplêndido homem, a quem Tu dotastes
de tais perfeições físicas, teve de buscar o seu sustento vagando de terra em terra tão
precariamente". (VON STRASSBURG, 2004, p. 173, tradução minha)68

Como visto, Isolda acaba impressionada pelos dotes físicos de Tristão, e embora não
saiba até o momento que o jovem ali estava para reclamar sua mão em favor de outro homem,
acaba por julgá-lo digno de atributos “principescos”, levantando em seu âmago uma
possibilidade de envolver-se com Tristão futuramente.

Após isso, Tristão, já curado de suas mazelas, acaba por convencer Isolda de sua
missão e de seu objetivo em estar ali na Irlanda diante de sua presença. Embora use palavras
de palavras delicadas, o mesmo acaba por mentir à princesa, dando a entender que estava ali
por um desejo pessoal, guiado por seu coração e com o auxílio da natureza:

[...] - Certo dia, duas andorinhas voaram até Tintagel [Cornualha] para levar um
dos teus cabelos de ouro. Acreditei que vinham anunciar-me paz e amor. Por isso,
vim à tua procura, atravessando o mar. Por isso, enfrentei o monstro e seu veneno.

68
Originalmente: “[...] Isolde kept on looking at him; she scanned his body and his whole appearance with
uncommon interest. [...] She looked him up and down; and whatever a maid may survey in a man all pleased her
very well, and she praised in her thoughts. And now that her scrutiny had shown his figure to be so magnificente
and his manner so princely, her heart spoke within her. “O Lord, Worker of Miracles, if anything that Thou hast
created falls short in any way, there is a failure here, in that this splendid man, whom Thou hast endowed with
such physical perfections, should seek his livelihood wandering from land to land so precariously”.
95

Olha este cabelo costurado entre os fios de ouro do meu casaco; a cor dos fios de
ouro estragou-se; mas o ouro do meu cabelo não desbotou.
Isolda olhou para a grande espada e tomou nas mãos o casaco de Tristão. Vendo
nele o cabelo de ouro, ficou muito tempo em silêncio; em seguida, beijou seu
hóspede nos lábios em sinal de paz e vestiu-o com ricas roupagens. (BÉDIER, 2012,
p. 25)

Após tal episódio, é chegado o dia da revelação de Tristão e de sua identidade perante à corte,
quando este expõe a todos o motivo de sua ida até as terras irlandesas:

- Senhores, matei o Morholt [tio de Isolda], mas atravessei o mar para vos oferecer
uma bela compensação. Para resgatar o mal-feito, coloquei meu corpo em perigo de
morte e livrei-vos do monstro, e foi assim que conquistei Isolda, a Loura, a Bela.
Tendo-a conquistado, levá-la-ei, pois, na minha nau. Mas, para que pelas terras da
Irlanda e das Cornualhas não se espalhe mais o ódio, mas sim o amor, sabei que o
rei Marc, meu caro senhor, irá desposá-la. Eis aqui cem cavaleiros de alta linhagem,
prontos a jurar sobre as relíquias dos santos que o rei Marc vos manda vir paz e
amor, que seu desejo é venerar Isolda como sua cara mulher desposada, e que todos
os homens das Cornualhas servi-la-ão como sua senhora e rainha. (BÉDIER, 2012,
p. 48)

Após tal discurso revelador, a subsequente reação da princesa:

Isolda, a Loura, fremia de vergonha e angústia. Tristão, tendo-a conquistado,


desse modo a desprezava; o belo conto do cabelo de ouro não passava de mentira, e
era a um outro que ele a entregava. [...] Quanto mais distanciava-se da terra da
Irlanda, tanto mais tristemente a jovem lamentava-se. Sentada sob a tenda que se
encerrava com sua serva Brangien, chorava lembrando o seu país. Para onde aqueles
estrangeiros a estavam levando? Para quem? Para que destino? Quando Tristão
aproximava-se e queria tranquiliza-la com palavras doces, ela irritava-se, repelia-o, e
o ódio enchia seu coração. Ele viera, ele, o raptor, o assassino do Morholt; com suas
artimanhas, arrancava-a à sua mãe e ao seu país; nem se havia dignado a toma-la
para si mesmo, e agora lá estava, levando-a como sua presa, sobre as ondas, para a
terra inimiga! (BÉDIER, 2012, p. 52, grifos meus)

Nessa passagem, notam-se duas características interessantes acerca da reação e do


posterior comportamento de Isolda em relação àquilo que fora revelado por Tristão. Em
primeiro lugar, a própria livre manifestação dos sentimentos da então princesa em relação ao
ocorrido. Ao invés de aceitar passivamente sua condição enquanto aristocrata de berço e de
instrumento de formação de laços e alianças com os países vizinhos via matrimônio, a mesma
não se furtou a externar e expressar seu descontentamento em ser enganada e ter de abandonar
sua vida, sua família, e suas ocupações na Irlanda. Aqui o autor coloca Isolda em uma posição
de contestação à sua condição. Embora aceite, a contragosto, a aliança e a proposta de
casamento em prol de seu país, Isolda o faz pelo bem maior de seu reino, mas nem por isso
aceita tal situação de bom grado e de forma recatada, como costumeiramente esperado das
mulheres naquele período, e principalmente das mulheres de sua condição.

O segundo aspecto é o sentimento de rejeição externado por Isolda em relação à


Tristão. Sendo anteriormente enganada pelo jovem, Isolda sente-se insultada também pelo
96

fato de que além da mentira contada sobre o seu fio de cabelo, Tristão “nem havia se dignado
a toma-la para si mesmo”, acabando assim por entrega-la a um outro homem. Enquanto
mulher, enquanto ser dotado de desejo e interesse, Isolda tem consigo uma pretensão não
atingida. Um interesse não correspondido. Ao ser, em sua visão, preterida por Tristão, Isolda
se sente ferida e desprezada por aquele homem cuja boa aparência, modos e virtudes haviam
despertado nela um vislumbre de um possível envolvimento.

Tal passagem acaba por ressonar com alguns pressupostos elaborados por André
Capelão em seu já mencionado Tractatus de Amore, onde o autor afirma que desde o primeiro
encontro entre dois amantes, há quatro estágios de envolvimento que estes devem obedecer de
modo a externar, nutrir e consumar o sentimento amoroso. Vejamos:

Desde a Antiguidade foram distinguidos quatro graus diferentes em matéria de


amor. O primeiro consiste em dar esperanças; o segundo, na oferta do beijo; o
terceiro nos prazeres das carícias; o quarto, enfim, tem por termo a doação
total da pessoa. [...] elas [as mulheres] devem em primeiro lugar dar esperanças; se
notarem que o amante assim encorajado se torna melhor, que não hesitem em passar
para o segundo grau. E assim, gradualmente, chegarão ao quarto estágio, caso lhes
pareça ser o amante digno disso sob todos os pontos de vista. [...] Até o terceiro
estágio, a mulher pode romper sem que lhe caiba censura, mas se o amor tiver
atingido o quarto grau, já não poderá, com decência, abandonar o amante a não ser
por razão muito válida, e isso não só por ter confirmado que o amava, indo até esse
ponto, como também por causa da importância que, para a mulher, tem a
doação de sua pessoa. (CAPELÃO, 2001, p. 34-35, grifos meus)

Com a lógica presente nesse excerto do Tractatus de Amore, temos que: I – Tristão
deu esperanças à Isolda ao dizer-lhe o conto sobre seu cabelo dourado e II – Isolda o beija nos
lábios como sinal de entendimento e paz, acreditando na história que Tristão havia lhe
contado. Até este momento, dentro da narrativa, ambos não chegaram ao terceiro e quarto
graus, graças à falta de Tristão perante Isolda. Já que a princesa logo demonstrou interesse e
foi acalentada com uma possível esperança de relacionamento com Tristão, tudo isso veio
abaixo quando da revelação dos ardis do jovem para conquista-la em nome de seu tio.

A conduta e a reação de Isolda estão em consonância com os postulados do Amor


Cortês, haja vista que se sentindo rejeitada e humilhada enquanto mulher, Isolda nega-se a
estar na companhia de Tristão, constantemente reprimindo-o e sendo hostil com aquele que a
enganou. Não por acaso, André Capelão pontua o grau de importância que a doação de corpo
e alma de uma amante ao seu pretendente tem sobre a mulher.

De modo a tentar resolver este impasse e preocupada com a felicidade de sua filha
em seu iminente matrimônio, a rainha da Irlanda, cujo nome também é Isolda, prepara um
filtro “mágico” à base de ervas e flores que misturado ao vinho é capaz de fazer nascer o amor
97

naqueles que o provam. Como presente no romance, a rainha delega a uma serva a tarefa de
fazer com que Isolda e o rei Mark - somente ele na condição de esposo - provem da bebida
visto que nas palavras da rainha “[...] a virtude dela é a seguinte: os que a beberem juntos
amar-se-ão com todos os seus sentidos e com todo o seu pensamento, para sempre, na vida e
na morte [...]” (BÉDIER, 2012, p. 29).

Durante o trajeto da Irlanda até a Cornualha, sedentos por conta do calor que fazia
durante todo o dia, Tristão e Isolda bebem do filtro (figura 6). O motivo? Um engano dos
jovens que pensaram em saciar a sede com vinho. Após sorver do líquido mágico, seus
destinos são selados: ambos estão apaixonados a partir desse instante.

FIGURA 8 – ISOLDA E TRISTÃO BEBEM DO FILTRO MÁGICO

Iluminura do manuscrito de Tristan en prose, datado do século XV (c.1470) Isolda e Tristão (ao centro do
navio) tomam do filtro mágico. À esquerda, o rei Mark aguarda-os para celebração do casamento com
Isolda. (MS 103, f. 8v, 5r, Paris, BnF). Fonte: < http://expositions.bnf.fr/arthur/grand/073.htm>. Acesso em: 17
abr, 2017.

Por ser um momento chave na narrativa, as representações iconográficas do


momento em que os jovens amantes provam do filtro mágico são bastante significativas
quanto ao simbolismo do fato. No detalhe dessa iluminura, observa-se que todos os agentes
envolvidos pelo ato de Isolda e Tristão encontram-se representados em lugares específicos da
imagem: o jovem casal ao centro; as damas de companhia de Isolda observando o fatídico
instante ao fundo; o rei Mark, seus barões e um clérigo às margens do porto, esperando o
navio que traz sua futura esposa e seu sobrinho. Essa disposição não é por acaso, visto que de
98

maneira direta e concisa, acaba por resumir o desenrolar da história, projetando o cenário para
os futuros acontecimentos na narrativa a partir desse instante.

Graças ao efeito do filtro, Isolda começa a questionar-se mais uma vez sobre os
sentimentos dúbios em relação à Tristão:

Isolda amava-o. No entanto, queria odiá-lo: ele não a tinha desdenhado de modo tão
abjeto? Queria odiá-lo e não podia, irritada, em seu coração contra essa ternura mais
dolorosa que o ódio. [...] Infelizes quando separados, penavam, mais infelizes ainda,
quando, reunidos, estremeciam diante do horror da primeira declaração. (BÉDIER,
2012, p. 31)

Antes de chegarem ao seu destino, Isolda e Tristão resistem de início ao impulso que
os ronda, ao desejo de se entregarem à paixão, ao corpo e ao espírito um do outro. Vejamos o
diálogo entre ambos:

- Rainha – disse Tristão -, porque me chamar senhor? Não sou eu ao contrário, vosso
homem de lígio e vosso vassalo, para vos reverenciar, vos servir e vos amar como
minha rainha e minha senhora?
Isolda respondeu: - Não, tu o sabes; sabes que és meu senhor e meu amo! Sabes que
tua força me domina e que sou tua serva! Ah! Porque não avivei faz pouco tempo as
chagas do trovador ferido! Porque não deixei perecer no capinzal do pântano o
matador do monstro! Porque, quando estava no banho, não vibrei sobre ele o golpe
da espada já no ar! Ai de mim! Então eu não sabia o que hoje sei!
– Isolda, que é então que sabeis hoje? Que é então que vos atormenta?
- Ah! Tudo o que sei me atormenta, e tudo o que vejo. O céu me atormenta, e este
mar, e meu corpo, e minha vida!
Pousou o braço no ombro de Tristão. Lágrimas apagaram o brilho dos seus olhos,
seus lábios tremeram. Ele repetiu:
- Amiga, que é então que vos atormenta?
Ela respondeu:
- O amor por vós. (BÉDIER, 2012, p. 31-32)

Porém, numa noite diante de tamanho sacrifício, ambos sucumbem às suas pulsões e
terminam por satisfazer suas vontades mútuas, afinal “[...] nessas condições que culpa têm
aqueles que a paixão arrebata e quem pode razoavelmente condená-los? [...] (DUBY, 2013, p.
85).

Após consumarem seu amor, chegando assim ao quarto grau na escala de amor
segundo André Capelão, quando os amantes aportam à corte de Mark, é chegado o momento
das maiores provações. Ambos passam por uma sorte de contratempos que por hora os
aproxima cada vez mais, mas também os afasta, culminando até na separação do casal e no
consequente casamento de Tristão com uma outra Isolda, a de Mãos Brancas.
Impossibilitados de assumirem e desfrutar livremente de seu amor devido ao compromisso
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vassálico e familiar de Tristão para com seu tio e o voto sagrado do matrimônio de Isolda com
Mark, a angústia, o medo e a até mesmo o espectro da morte ronda o pensamento dos
amantes.

A figura de Isolda, a partir deste instante narrativo, nos oferece um olhar mais
abrangente sobre os papéis desempenhados pelas mulheres no medievo ao ser retratada no
romance como sendo uma dama instruída, rainha e uma amante (DUBY; PERROT, 1993).
Isolda de antemão teve destaque nas várias obras cujo seu nome foi ressaltado como sendo
dona de uma beleza ímpar e singular, mas também pela profundidade que os autores buscaram
ao descrever sua personalidade e condutas:

Seja como for, não conheço nenhuma obra literária datada do século XII em que a
mulher ocupe tanto lugar na intriga, em que a personagem feminina seja descrita
com tanto discernimento, sutileza e, cumpre mesmo dizer, delicadeza, acariciada
pelas palavras que o autor escolheu. [...] Isolda é bela. É a mais bela daqui até as
fronteiras da Espanha. Seu rosto irradia luz: claridade dos olhos, brilho dos cabelos
dourados, frescor da pele. Do corpo, os poemas celebram a elegância, mas não o
mostram. Pudicos, não descrevem os detalhes de seus encantos, jamais. (DUBY,
2013, p. 81)

A jovem rainha, por sua vez, nunca se privou de viver toda a sorte de expectativas,
paixões e frustrações que sua relação proibida – e pecaminosa - com Tristão vieram a
desencadear. Isolda acaba por representar em suas ações e pensamentos o ideário feminino
medieval em que a dama anseia por estar na presença de seu amado, em que elabora planos de
encontro e lugares furtivos para consumar o amor entre os dois, além de suportar com
dignidade e altivez os augúrios de tristeza e saudade que a acometem na ausência do ente
querido e desejado.

Na condição de rainha, goza dos privilégios de sua posição, demonstrando por isso
um destaque maior à figura feminina em condições de poder graças a um status social elevado
na sociedade daquele período. Ao mesmo tempo, Isolda encarna um outro perfil feminino. O
da sofreguidão, da desconfiança e da solidão. Além da constante dúvida e medo de ter sua
relação com Tristão exposta perante ao rei e a todo reino. Isolda sofre por si mesma. Mas
também sofre por seu amado, caracterizando uma tensão que atravessa corporal e
espiritualmente tal como descrito e esperado das mulheres pecadoras que acabaram por ceder
às tentações do desejo e do prazer:

Isolda é rainha e parece viver em júbilo. Isolda é rainha e parece viver em tristeza.
Isolda tem a ternura do rei Mark, os barões a veneram, o povo lhe quer bem. Isolda
passa os dias em seus aposentos ricamente decorados e juncados com flores. Isolda
tem as joias nobres, os lençóis de púrpura e os tapetes vindos da Tessália, os
cânticos dos harpistas e os cortinados onde são lavrados leopardos, aleriões,
papagaios e todos os bichos do mar e das matas. Isolda tem seus vivos, seus belos
100

amores, e Tristão junto dela, à vontade, de dia e de noite; pois, assim como é
costume entre os grandes senhores, ele dorme no aposento real, entre os íntimos e os
fiéis. Isolda, no entanto, treme. Por que tremer? Não mantém ela secretos seus
amores? Quem suspeitaria de Tristão? Quem, pois, suspeitaria de um filho? Quem a
vê? Quem a espia? Qual a testemunha? (BÉDIER, 2012, p. 34)

A condição da dúvida pairava e permanecia em Isolda. E os autores que cantaram e


escreveram sua lenda se aproveitaram de sua relação proibida, e juntamente com as dúvidas
que qualquer relacionamento afetivo comum possui, incrementaram o conto dando uma nova
faceta à rainha: o retrato da mulher enquanto ser vingativo e paranoico. Mesmo com todas as
atribuições, luxos, requintes e prazeres mencionados no trecho anterior, os literatos também
buscaram expor Isolda como sendo a figura de um reflexo dos comportamentos negativos
comumente atribuídos ao sexo feminino. A inveja, a desconfiança, o medo, a insegurança, etc.
Não por acaso que:

Desde os primeiros tempos do cristianismo, partindo desses fundamentos teológicos


do masculino/feminino que carregaram positivamente o primeiro polo e
negativamente o segundo, foram se aglomerando qualidades e defeitos, vícios e
virtudes, condutas fastas e nefastas, considerados específicos de um ou outro sexo.
Aliás, a literatura medieval deleitou-se em detalhar o inventário das características
femininas mais do que o das masculinas. Isso porque, desde o início a mulher foi
definida por suas deficiências em relação à natureza humana, que fora realizada de
forma mais completa no homem. [...] Os defeitos do feminino foram reunidos em
torno de algumas noções-chave: o corpo e seu ornamento, a palavra e seus abusos, a
virgindade e as milhares de maneiras de violar o estado perfeito. As prescrições
morais que elaboraram os meios de controlar as deficiências e os excessos
cotidianos das mulheres concentraram-se em também nesses alvos. [...] elas
preconizaram desde cedo a castidade e as privações sensoriais que seriam as únicas
a poderem dar corpo – um corpo aceitável – à abstração que a mulher se tornara.
(KLAPISCH-ZUBER, 2017, p. 166)

Entretanto, segundo os pressupostos do Amor Cortês, a conduta de Isolda pode ser


explicada se levarmos em conta que:

Fácil é ver que o amor é uma paixão. Isto porque angústia nenhuma é maior que a
provocada por ele, pois o enamorado está sempre no temor de que sua paixão não
atinja o resultado desejado e de que seus esforços sejam baldados. Teme também o
falatório da multidão e tudo o que, de uma maneira ou de outra, possa
prejudicar o seu amor [...]. Uma vez correspondido o amor, as angústias não que
surgem não são menores; porque cada um dos dois amantes teme perder, pela
ação de um terceiro, aquilo que conquistou com tanto esforço; [...]. (CAPELÃO,
2001, p. 6-7, grifos meus)

Considerando as duas fontes históricas, e ambos os discursos heterogêneos,


visualiza-se um impasse em relação à condição feminina representada aqui por Isolda.
Estariam estes comportamentos seguindo a “ordem natural” de desmerecimento da figura
feminina no medievo ou apenas sendo reflexo de atitudes tomadas de forma passional devido
à condição de estupor e deslumbramento que o sentimento amoroso causa? Na lógica social e
histórica dos séculos XII e XIII, ambos os discursos estariam de acordo com situação
101

apresentada. De fato, o caráter negativo de tal conduta associado intrinsicamente à condição


feminina possuiu mais e força e legitimidade dentro da sociedade e da vida cotidiana
medieval. Como? Pelo fato de que as nuances de comportamento que envolviam o sentimento
amoroso o ideal cortesão, lógico e racional instituído por André Capelão em sua obra
circulava em estratos e lugares sociais muitos específicos naquela temporalidade.

A noção cortês para a arte de amar, nasceu dentro do seio aristocrático - como já
mencionado no capítulo precedente -, logo suas imbricações, desdobramentos e
representações mantiveram-se restritas por um longo tempo até familiarizarem-se com o
ambiente externo às cortes palacianas e posteriormente atravessarem as grandes amuradas
senhorias para chegarem à população comum como um todo. Tal movimento de expansão
teve início apenas no século XIV, mas para o objetivo desse trabalho o que importa de fato é o
caráter literário assumido por essas condições.

Delimitando tal questão, voltemos à Isolda e a seus infortúnios. Como supracitado,


logo a rainha passou a desconfiar de tudo e de todos que pudessem ameaçar sua condição de
esposa/rainha/amante. E não tardou para que a mesma encontrasse em quem expiar e atribuir
a culpa que carregava: sua criada Brangien:

Sim, uma testemunha a espia, Brangien; Brangien a espreita; só Brangien sabe da


sua vida, Brangien a tem nas mãos! Ó Deus! Sim, cansada de preparar a cada dia
como uma serva o leito onde foi a primeira a se deitar, ela os denunciaria ao rei!
Sim, Tristão morreria por sua felonia!...
Assim o medo enlouquece a rainha. Não, não é de Brangien a fiel, é de seu próprio
coração que vem seu tormento. Escutai, senhores, a grande traição que ela imaginou;
mas Deus, como vós ouvireis, teve compaixão dela; vós também, sede com ela
compassivos!
Naquele dia, Tristão e o rei caçavam ao longe e Tristão não soube deste crime.
Isolda mandou virem dois servos, prometeu-lhes a liberdade e sessenta besantes de
ouro, se jurassem fazer a sua vontade. Fizeram o juramento.
- Eu vos darei, então, disse ela, uma jovem; vós a levareis para a floresta, longe ou
perto, mas a um local onde ninguém possa descobrir jamais a aventura. Lá a
matareis e me trareis sua língua. Gravai na memória as palavras que ela disser,
para me repetirdes depois. Ide. Ao voltardes, sereis homens livres e ricos. (BÉDIER,
2012, p. 34, grifos meus)

Isolda ordenou a morte de sua própria serva, pedindo inclusive que os servos
encarregados de realizar tal missão cortassem a língua de Brangien como uma última forma
de segurança. Desse modo, a serva não poderia contar e assombrar Isolda mesmo se voltasse
dos mortos, já que não teria como evocar e professar tudo aquilo que sabia sobre a conduta
delituosa da rainha. Após tal ordem, os servos levam Brangien para a floresta de modo a dar
cabo da tarefa. No entanto, acabam compadecendo-se da jovem serva e poupam sua vida. Em
102

seguida, prendem-na em uma árvore e matam um cachorro, arrancando a língua deste de


modo a levar como prova para a rainha:

- Ela falou? – perguntou Isolda, ansiosa


- Sim, rainha, ela falou. Disse que ficastes irritada por causa de um único agravo:
havíeis rasgado em viagem uma camisola branca como a neve, que trazíeis da
Irlanda, ela vos emprestou a dele na noite de vossas núpcias. Aí estava, dizia ela, seu
único crime. Elas vos rendeu graças pelos muitos benefícios de vós recebidos desde
a sua infância, pediu a Deus que protegesse a vossa honra e a vossa vida. Mandou-
vos a sua saudação e o seu amor. Rainha, aqui está a sua língua que vos trouxemos.
- Assassinos! – gritou Isolda. – Devolvei-me Brangien, minha serva querida! Nâo
sabíeis que ela era minha única amiga? Assassinos, devolvei-a para mim!
- Rainha, com razão dizem: “mulher muda em poucas horas: ao mesmo tempo,
mulher ri, chora, ama, odeia.” Nós a matamos porque assim ordenas-tes! (BÉDIER,
2012, p. 36)

Arrependida e abalada por ter ordenado tal coisa, Isolda reflete sobre sua decisão.
Havia agido por impulso, tomada pela loucura e pela febre que o amor por Tristão lhe
causava. Após lamentar-se pela suposta morte de Brangien, os servos então contam a rainha
que a serva estava viva e Isolda parte ao encontro de Brangien para suplicar-lhe o perdão por
tal atitude impensada. As reações de Isolda ao ordenar a morte de Brangien e ao saber de seu
suposto falecimento denotam – dentro da lógica literária do Amor Cortês – que o sentimento
nutrido pela rainha por Tristão a fazia cometer os atos mais impensáveis, porém, ela os
realizava como modo de proteger a si, seu amor e acima de tudo, seu amado. Nos
pressupostos cortesãos, tudo aquilo realizado de forma abnegada em prol do bem e da
segurança do ente amado, era perdoado não somente aos olhos do homem, mas também aos
de Deus. Ainda que o sentimento fosse demasiado proibido e pecaminoso, só quem poderia
julgá-los era Deus, pois não havia sido Ele o responsável por criar forma tão pura de
sentimento?:

[...] o amor Tristão e Isolda não os afasta de Deus – pelo contrário, já que Ele é
Amor e não importam os caminhos para atingi-lo. Dessa forma, negava-se o caráter
pecaminoso da relação extramatrimonial, valorizando-se apenas a intenção, a
sinceridade do sentimento, de acordo com a postura menos formalista da época [...].
Atitude aliás, presente na religiosidade popular, que via muitos milagres da Virgem
beneficiarem pessoas que haviam pecado, mas que lhe tinham uma devoção
genuína. (FRANCO JR, 1996, p. 143)

Não demorou até que a relação muito próxima de Isolda com o sobrinho fosse
assunto na corte, inclusive chegando até os ouvidos do rei os sussurros, as intrigas e demais
assuntos que envolviam sua rainha e seu amado sobrinho. O rei Mark, consumido pela
suspeita e ciúmes, bane temporariamente Tristão de sua corte, de modo que a ausência do
sobrinho se provasse um remédio eficaz contra as intrigas palacianas de sua relação com
103

Isolda. Apaziguado o coração do rei, este ordena que Tristão retorne à corte, mas seus barões,
com a ajuda de um anão feiticeiro, conseguem apanhar os dois amantes em flagrante graças a
uma artimanha bem elaborada:

- Senhor, ama-nos ou odeia-nos, a escolha é tua: mas queremos que expulses


Tristão. Ele ama a rainha e não o vê quem não quer, mas nós, nós não o suportamos
mais. [...] Não, rei, não o suportaremos, pois sabemos que esta notícia, estranha não
faz muito tempo, agora não te surpreende mais e consentes no crime deles. Que farás
tu? Delibera e toma decisão. Quanto a nós, se não afastares definitivamente teu
sobrinho, nós nos retiraremos para nossas baronias e levaremos conosco também
nossos vizinhos para fora da tua corte, pois não podemos suportar que eles
continuem habitando aqui. Tal é a escolha que te oferecemos; escolhe pois!
[...] – Senhores, uma vez acreditei nas horrendas palavras que dizíeis de Tristão e
disso arrependi-me. Mas sois meus fiéis e não quero perder o serviço dos meus
homens. Aconselhai-me pois, peço-vos, que me deveis o conselho. Bem sabeis que
evito todo o orgulho e todos os extremos.
- Então, senhor, mandai vir aqui o anão Frocin.
[...] O corcunda maldito veio. Escutai a traição que ele ensinou ao rei:
- Sire, ordena a teu sobrinho que amanhã, ao romper da aurora, galope até Carduel
para levar ao rei Arthur um breve em pergaminho, bem selado com lacre. Rei,
Tristão dorme perto do teu leito. Sai do teu quarto na hora do teu primeiro sono e,
juro por Deus e pela lei de Roma, se ele ama Isolda com louco amor, quererá falar-
lhe antes de partir: mas se ele for sem que eu o saiba ou sem que tu o vejas, então
mata-me. Quanto ao mais, deixa-me levar a aventura a meu talante e evita somente
de falar a Tristão dessa mensagem antes da hora de deitar.
- Sim – respondeu Mark-, que assim se faça!
Então o anão fez uma péssima felonia. Foi a um padeiro e comprou-lhe por quatro
dinheiros polvilho de farinha de trigo, que escondeu no regaço de suas vestes. [...] O
anão dormia, habitualmente, no quarto do rei. Quando pensou que todos dormissem,
levantou-se e espalhou entre o leito de Tristão, levantou-se e espalhou entre o leito
de Tristão e o da rainha o polvilho de farinha: se um dos dois amantes fosse procurar
o outro, o polvilho ficaria marcado com a forma de seus pés. Mas enquanto ele o
salpicava, Tristão viu-o.
[...] À meia-noite o rei levantou-se e saiu, acompanhado pelo anão corcunda. Estava
escuro no quarto: nem círio aceso, nem candeia. Tristão ficou de pé no leito dele.
Deus! Por que teve ele este pensamento? Juntou os pés, calculou a distância, saltou e
caiu sobre o leito do rei. Infelicidade! No dia anterior, na floresta, a tromba de um
javali de tamanho acima do normal fizera grande chaga em sua perna e, para seu
azar a ferida não tinha sido enfaixada. No esforço desse pulo, ela se abriu e sangrou;
mas Tristão não viu o sangue que saía e manchava de vermelho os lençóis. Fora, ao
luar, o anão, por sua arte de bruxaria sabia que os amantes estavam juntos.
Estremeceu de alegria e disse ao rei:
- Vai, e se agora não os pegares juntos manda enforcar-me!
Então foram para o quarto, o rei, o anão e os quatro biltres. Mas Tristão ouviu-os:
levantou-se, saltou, chegou ao seu leito... Infelicidade! Na passagem, o sangue por
desgraça escorreu do ferimento para a farinha de trigo.
Lá estavam o rei, os barões e o anão com uma luz. Tristão e Isolda fingiam dormir,
tinham ficado sozinhos no quarto com Perinis, que se deitava aos pés de Tristão e
não se mexia. Mas o rei viu sobre o leito os lençóis manchados de vermelho e no
chão, o polvilho molhado de sangue fresco. (BÉDIER, 2012, p. 49-52)
104

Não havia mais escapatória ou ardil que desse cabo ao flagrante forjado pelos barões
do rei e pelo anão feiticeiro. Ao serem apanhados, Tristão logo suplica piedade ao seu tio.
Mas não por ele próprio, e sim à Isolda. Tristão é condenado à morte juntamente com Isolda
sem possibilidade julgamento. Cada um iria ser executado após o outro, não dando espaço ou
tempo para que viessem a se encontrar novamente diante de tudo o que já haviam feito nas
costas do rei. Chegado o dia da execução, Tristão é levado pela guarda real até o local de sua
morte. Enquanto percorre o caminho até seu suplício final, avista uma capela à beira de uma
montanha, e pede para fazer suas últimas preces e confessar seus pecados antes de morrer. Os
guardas, concedem à Tristão este último desejo, mas não contavam que o jovem cavaleiro
tentasse um último ardil para ver-se livre de seu trágico destino:

Deixaram-no entrar. Ele correu pela capela, transpôs a nave central, chegou à
vidraça da abside, segurou a janela, abriu-a e atirou-se... Antes essa queda que a
morte na fogueira, perante aquela assembleia!
Mas sabeis, senhores, que Deus lhe concedeu bela graça: o vento prendeu-se em
suas vestes, levantou-o e colocou-o sobre uma grande pedra ao pé do rochedo. A
gente das Cornualhas ainda chama essa pedra o “Salto de Tristão”. (BÉDIER, 2012,
p. 58)

Isolda logo sabe da fuga de seu amado, e regozija-se por Tristão estar a salvo e em
paz. É a vez da rainha de ir em direção ao seu fim iminente. Ao chegar na presença do rei, a
multidão logo grita por piedade e clemência para a rainha, graças à fama, ao prestígio e às
boas ações da rainha para com o povo. O rei determina que não haverá julgamento e nem
misericórdia, com Isolda sendo condenada de forma sumária à expiação de seus pecados pela
morte na fogueira. Contudo, a rainha é “salva” de última hora graças a um grupo de leprosos
que assistiam à sua condenação. Logo, o líder destes propõe ao rei Mark um castigo diferente
para Isolda:

- Sire, queres lançar essa mulher neste braseiro, é boa justiça, mas breve demais.
Este grande fogo tê-la-á queimado rapidamente, este grande vento depressa
espalhará suas cinzas. E logo que estas labaredas se apagarem sua pena estará
terminada. Queres que te ensine um castigo pior, de maneira que ela viva, mas com
grande opóbrio e sempre desejando a morte? Rei, queres?
O rei respondeu:
- Quero, sim, a vida para ela, mas com grande opóbrio e pior que a morte... Quem
me ensinar um suplício desses terá minha predileção.
- Sire, dir-te-ei meu pensamento em breves palavras. Vê, tenho ali cem
companheiros. Dá-nos Isolda, e que ela seja de todos nós! O mal atiça nossos
desejos. Se a deres aos teus leprosos, nunca mulher alguma terá tido pior fim. Vê,
nossos andrajos estão colados a nossas chagas, que ressumam. Ela que, junto a ti, se
regalava com ricos tecidos forrados de veiros, com as joias, as salas ornadas de
mármore, ela que se deliciava com os bons vinhos, com as honrarias, as alegrias
quando ela vir a corte dos teus leprosos, quando tiver que entrar sob nossos casebres
105

baixos e deitar conosco, então Isolda, a Bela, a Loura, reconhecerá seu pecado e terá
saudade deste belo fogo de espinheiros! (BÉDIER, 2012, p. 60-61)

O rei assente com a proposta feita e entrega Isolda às mãos do cortejo de enfermos. A
rainha é levada para fora da cidade pela mesma estrada em que Tristão encontrava-se
escondido após sua milagrosa fuga. Ao avistar sua amada na companhia dos leprosos, o
jovem prontamente os enfrenta para salvar e recuperar a companhia da rainha. Juntos mais
uma vez, Isolda e Tristão resolvem viver em fuga, estabelecendo-se na floresta mais próxima,
de modo a aproveitaram a companhia e o amor um do outro, longe das artimanhas dos barões
e das intrigas palacianas que por tanto tempo atrapalharam seu relacionamento.

Neste momento, há uma cena descrita no conto que demonstra o simbolismo da


relação carnal e espiritual de Isolda com Tristão (figura 9)

FIGURA 9 – O REI MARK ENCONTRA ISOLDA E TRISTÃO

A iluminura representa o encontro de Isolda com Tristão na floresta e o adormecimento do casal com a
espada separando os corpos, enquanto são observados pelo rei Mark. Iluminura do século XIII (c. 1275)
de um manuscrito parisiense do Roman de la Poire (MS Fr 2186, f. 5v, BnF, Paris). Fonte:
<http://expositions.bnf.fr/arthur/grand/079.htm.> Acesso em: 17 abr, 2018
106

O jovem cavaleiro sai para caçar, como o faz habitualmente, deixando Isolda aos
cuidados da cabana improvisada onde ambos estavam vivendo. O papel feminino delegado
aqui à rainha é o de dona de casa, provedora dos cuidados familiares e das tarefas domésticas.
Tristão é o reflexo masculino do homem provedor, que sai em busca do alimento para ele e
sua companheira. E o episódio é narrado da seguinte maneira:

Quando Tristão voltou da caçada, oprimido pelo calor sufocante, tomou a rainha em
seus braços.
- Amigo, onde estiveste?
- Fui atrás de um cervo que me deixou morto de cansaço. Vê como o suor escorre
dos meus membros, eu gostaria de me deitar e dormir.
Debaixo da choupana de ramos verdes, atapetada de ervas frescas, Isolda foi a
primeira a se estender. Tristão deitou-se depois dela e depôs a espada sem a bainha
entre seus corpos. Para a felicidade deles, conservaram suas roupas. A rainha
tinha no dedo o anel de ouro com as belas esmeraldas que o Mark lhe dera no dia de
suas núpcias; seus dedos tinham ficado tão magros que o anel mal se segurava.
Dormiam assim, um dos braços de Tristão passado pelo pescoço de sua amiga, o
outro jogado por cima de seu belo corpo, estreitamente abraçados; mas seus lábios
não se tocaram. (BÉDIER, 2012, p. 69, grifos meus)

Tanto na descrição textual, quanto na representação iconográfica do episódio, o


destaque direcionado à separação dos corpos é claro. Na miniatura representada, o jogo de
cores utilizado para descrever o momento é significativo: na primeira imagem, temos Isolda e
Tristão vestidos com as cores da realeza (azul) e as cores que simbolizam o Amor (vermelho)
(SCHMITT, 2001). Ademais, notemos a disposição das roupas. Enquanto o vestido da rainha
é vermelho e sua capa azul, a vestimenta de Tristão inverte as cores, fato que denota que o
casal completa um ao outro valendo-se de uma alegoria que se refere ao vestuário.

Na imagem seguinte, temos o rei Mark observando o casal adormecido. Ambos os


jovens se despiram da cor vermelha, adotando apenas o azul (Tristão) e o dourado (Isolda).
Como a espada entre os dois amantes representa o não-envolvimento carnal, e a pureza
espiritual, o uso da cor dourada por Isolda é pontual, pois “[...] o uso largamente atestado do
dourado, que reflete a luz, não fazia mais do que sublinhar que a imagem operava entre o
visível e o invisível [...]” (SCHMITT, 2001, p. 14). O “visível” é a separação carnal dos
amantes representada pela espada entre os dois. O “invisível”, a reflexão luminosa que a cor
dourada provém de uma significação religiosa/espiritual que denota a interferência divina na
história dos jovens amantes.

Voltando ao episódio, o casal havia sido descoberto por um dos serviçais do rei que
fazia ronda habitual nas florestas de domínio real. Descobrindo o paradeiro dos amantes, o
servo logo pôs-se em direção à corte para avisar ao rei que os traidores estavam ali,
107

escondidos bem perto do castelo. Mark prontamente se colocou ao encalço dos amantes,
determinado de uma vez a pôr um fim nesta história que só lhe trouxera dor e humilhação:

Ele [Mark] penetrou sozinho sob a cabana, a espada desembainhada, e ergueu-a...


Ah! Que lástima se vibrasse esse golpe! Mas notou que suas bocas não se tocavam e
que uma espada nua separava seus corpos:
- Deus! – disse ele consigo mesmo. – Que vejo aqui? Será preciso que os mate? Há
tanto tempo vivem nesta floresta; se eles se amassem com amor louco, teriam
colocado esta espada entre eles? E não se sabe que uma lâmina nua que separa
dois corpos é garantia e guarda de castidade? Se eles se amassem com amor
louco, repousariam com tanta pureza? Não, não os matarei. Seria grande pecado
feri-los. E, se eu acordasse dorminhoco e um de nós fosse morto, disso falariam por
muito tempo, para vergonha nossa. Mas farei com que, ao despertarem, saibam que
os encontrei dormindo e que não quis sua morte, e que Deus teve compaixão deles.
(BÉDIER, 2012, p. 71, grifos meus)

O simbolismo do gesto de Mark e do significado da espada desembainhada


separando os corpos é claro: a espada, como objeto fálico, acaba por representar a virilidade
masculina. A lâmina que separa os corpos dos amantes demonstra que o homem possui o
poder sobre as relações conjugais na relação, determinando por intermédio de um instrumento
de uso bélico, quando o ato sexual deveria ou não ser consumado pelo casal. A separação
física de Tristão e Isolda o é também de forma espiritual. Estão juntos. Mas separados.
Separados fisicamente pelo simbolismo da espada. Juntos espiritualmente pelo amor nutrido
um pelo outro, e abençoados pela graça divina – mais uma vez – que os poupou da vingança
do rei quando este os encontra.

São tais detalhes que permitem ao historiador buscar e trazer à tona aspectos ainda
obscuros sobre o pensamento e o imaginário medievais. Sabemos que o amor de Isolda por
Tristão é um amor adúltero, logo passível de condenação pelo clero e pela doutrina cristã
regente na sociedade feudal. Ao mesmo tempo, a lírica cortesão apelava constantemente ao
universo e à intervenção do elemento divino que protegeria os amantes de todos os sortilégios.

O impasse, ou as interpretações estariam em como lidar com a “literalidade” das


situações, onde o simbolismo dos gestos, das falas, dos objetos tinha muito mais a dizer do
que o simples discurso clerical contra a sexualidade dos corpos. Hilário Franco Júnior, sobre
as formas simbólicas e históricas que o conto de Isolda e Tristão advogaram, pontua que “[...]
o ambiente essencialmente religioso da psicologia coletiva medieval, de aguçada sensibilidade
diante das coisas de caráter sagrado, expressava-se através de símbolos.” (FRANCO JR.,
1996, p. 139).

Ademais, “[...] Para o pensamento oficial cristão, o amor de Tristão e Isolda era
considerado culposo. Já que incestuoso, adúltero e perjuro. Havia ali, para a Igreja, um duplo
108

incesto.” (FRANCO JR., 1996, p. 140). Quais os crimes simbólicos do casal? Primeiro, o
“incesto” a qual os críticos, os clérigos e a doutrina cristã como um todo consideravam,
residia no parentesco entre Tristão e o rei. Tio e sobrinho. Logo, ao relacionar-se com Tristão,
Isolda estaria relacionando-se com um parente tão próximo quanto um filho de seu marido, e
esta, na condição de senhora, quase como uma mãe para Tristão.

O crime de adultério, em segundo lugar. Este talvez o mais óbvio. Ainda que o
romance trate a história trágica de como ambos se apaixonaram e consumaram seu amor, a
carga negativa cai sobre a figura feminina durante a maior parte da narrativa. Na condição de
adúltera, o crime de Isolda é logo determinado perante a lei dos homens e perante a lei de
Deus, já que a rainha deliberadamente partilhou seu corpo com mais de um homem mesmo na
condição sagrada e indissolúvel do matrimônio. Desse modo, o perfil feminino da mulher
promíscua e lasciva, acabou por cristalizar-se no discurso clerical que era contra a
disseminação das obras de caráter cortesão ao longo dos séculos XII e XIII.

Por fim, o crime de perjúrio ou felonia.69 Este é um crime essencialmente vinculado à


figura masculina, já que além de parente de sangue do rei, Tristão é seu vassalo, armado
cavaleiro, tendo prestado juramento de fidelidade e boa conduta em relação ao seu tio e acima
de tudo, seu senhor.

Portanto, diante as considerações acima, é fortuito pensarmos como a discussão das


obras de caráter cortesão encontraram resistência fora do ambiente nobiliárquico. Não por
acaso as cristalizações de pensamento historiográfico tanto sobre esse tipo de literatura, mas
também sobre a figura feminina sobreviveram por um longo tempo. Entretanto, ainda segundo
Hilário Franco Júnior, não caiamos no erro de pensar que:

Interpretações deste tipo não levam suficientemente em conta o simbolismo e a


religiosidade laicos contidos no mito e nas suas literalizações. É fundamental
considerar que o público a que Tristão e Isolda se destinava não era menos religioso
por ser laico, mas apenas de uma sensibilidade diversa da eclesiástica. Na realidade,
[...] Tristão e Isolda fundem o amor profano no sagrado, porém isso só pode ser
percebido através da análise da linguagem simbólica, que nos revela o substrato
espiritual comum à mitologia céltica e ao cristianismo [...]. Assim, por exemplo,
aquilo que à primeira vista parece ser perjúrio era tão somente desrespeito a um
formalismo social. As falsas garantias de inocência não partiam dos amantes, pois,
como apaixonados entregues totalmente ao seu amor, eles estavam literalmente em
éktasis, isto é, fora de si. (FRANCO JR., 1996, p. 142)

Após o episódio narrado anteriormente, o rei concede o perdão a Isolda e Tristão. De


volta à corte, e na ausência do rei, a rainha presidia as assembleias na corte e era responsável

69
Traição ou descumprimento dos deveres vassálicos, tratando-se do período medieval.
109

por proferir as sentenças e demais obrigações que a realeza possuía para com seus súditos
(figura 10):

FIGURA 10 – ISOLDA E SUAS DAMAS

Iluminura do manuscrito de Tristan umd Isolde, de Gottfried Von Strassburg e datado do século XIII (MS
BSB 51, f. 3, 5r, Baviera). Fonte: <https://www.wdl.org/pt/item/18407/view/1/77/>. Acesso em: 17 abr, 2018.

A imagem acima retrata a rainha recebendo presentes e oferendas ao fim de uma


sessão na corte presidida por ela ao lado de suas damas de companhia. Graças à sua educação
e seu estatuto enquanto nobre, Isolda possuía noção exata de sua condição como mulher na
corte do rei Mark, pois como bem representado imageticamente, a mesma assumia o lugar
central nas audiências (Isolda encontra-se ao centro da mesa, em uma posição de destaque),
utilizava os símbolos de distinção e autoridade (Isolda é representada com uma coroa em sua
cabeça) e além disso, a rainha é uma figura passível de respeito, culto e adoração (visualizado
pela postura dos peticionários em ajoelharem-se perante a rainha e oferecer-lhe presentes).
Ademais, o simbolismo era claro, pois:

A todos, jovens ou velhos, casados ou solteiros, e também às mulheres da corte,


Isolda apresentava uma imagem exemplar de feminidade. Isolda é uma dama. Mais
que isso: é uma rainha. Cumpriu de maneira régia sua carreira de mulher. Filha de
um rei, herdeira de uma de um reino; seu pai e mãe a deram a um outro rei. Na flor
de sua juventude, senta-se no trono ao lado do senhor, nesse lugar central da corte
principesca para o qual convergem todos os olhares, todas as devoções, todas as
coisas. [...] Com efeito, quando a rainha desfila entre os cavaleiros para a alegria da
corte, seu corpo deixa adivinhar apenas sua graça sob as esplêndidas vestes, estas
amplamente descritas, e que, encobrindo suas formas, avivam ainda mais seus
poderes de sedução. (DUBY, 2013, p. 82-83)

Em um outro episódio do conto, ao ser novamente acusada de cometer adultério com


Tristão, Isolda rapidamente propõe ao rei um meio definitivo de provar sua inocência, mas
110

também de afrontar a petulância dos homens invejosos de sua influência no reino. Os barões
de Mark anunciaram ao rei:

Rei, ouve nossa palavra. Tinhas condenado a rainha sem julgamento, e fora um
crime abominável. Hoje a absolves sem julgamento: não é incidir no mesmo crime
também? Ela nunca se justificou, e os barões do teu país reprovam a vós ambos. É
melhor que lhe aconselhes que ela mesma peça o julgamento de Deus. Que lhe
custará, sendo inocente, jurar pelos ossos dos santos que nunca pecou? Inocente,
segurar um ferro em brasa? Assim o quer o costume, e por esta prova fácil estarão
para sempre dissipadas as suspeitas antigas. (BÉDIER, 2012, p. 87)

Isolda então diz ao rei que aceita o julgamento da ordália 70 de ferro, sob testemunho
do Rei Arthur e toda sua corte de cavaleiros. No dia marcado para a prova, Isolda valendo-se
de sua influência com a corte de Arthur, manda convocar Tristão para estar próximo ao local
onde seria julgada, este que estava afastado da corte de Mark devido à inveja de alguns
conselheiros reais, faz-se presente de modo seguro, ocultando sua identidade com um manto
vestido por leprosos. Chegando ao local, Isolda reconhece o amado mesmo por entre o
disfarce, e quando convoca a algum cavaleiro que a ajude a descer de sua montaria,
rapidamente Tristão a toma nos braços e a leva para onde estão o rei e as testemunhas:

A rainha, tendo suplicado a Deus, retirou as joias do pescoço e com as suas mãos
deu-as aos pobres mendigos. Desprendeu seu manto de púrpura e seu escapulário
fino, e deu-os; deu seu chintz e seu casaco e seus sapatos enriquecidos de pedrarias.
Conservou somente sobre o corpo uma túnica sem mangas e, com os braços e os pés
descalços, colocou-se à frente dos dois reis. Em volta, os barões contemplavam-se
em silêncio e choravam. Perto das relíquias ardia um braseiro. Trêmula, ela estendeu
a mão direita na direção das ossadas dos santos e disse: - Rei de Logres e vós, rei
das Cornualhas, e vós sires Gauvain e Ké e Girflet, e vós todos que sois minhas
testemunhas, por estes corpos santos e por todos os corpos santos que estão neste
mundo, juro que jamais homem algum nascido de mulher me teve em seus braços a
não ser o rei Mark, meu senhor, e o pobre peregrino que, ainda há pouco, se deixou
cair aos vossos olhos. Rei Mark, este juramento é adequado? – Sim, rainha, e que
Deus manifeste seu verdadeiro julgamento! – Amém! – disse Isolda. Ela aproximou-
se do braseiro, pálida e cambaleando. Todos mantinham-se calados, o ferro estava
em brasa. Então mergulhou seus braços nus na brasa, agarrando-a e depois, tendo-a
rejeitado, estendeu seus braços em cruz, com as palmas das mãos abertas. E cada um
viu que sua carne estava mais são do que ameixa tirada do pé de ameixeira. Então de
todos os peitos um grande brado de louvação elevou-se para Deus. (BÉDIER, 2012,
p. 92)

Ao prestar e jurar tal testemunho, usou da verdade em seu julgamento, tinha a


confiança do povo e por ventura demonstrou que soube construir estratégias para preservar
sua vida e seu amor. Ainda que suas palavras sejam dotadas de um explícito duplo sentido, a
rainha não faltou com a verdade perante os olhos dos homens e de Deus. A justiça divina a
absolveu, logo, não deveria mais nada à justiça terrena. Tal comportamento revela uma face

70
Também conhecida no período medieval como judicium Dei (juízo de Deus), foi um tipo de prova judiciária
utilizada para determinar a inocência ou culpa de um indivíduo por meio da participação de elementos naturais
(fogo, chuva, ventos, etc.). Seu resultado, favorável ou não, ao acusado era interpretado como uma decisão
divina e irrevogável.
111

muito especial da mulher/rainha, aquela que é astuta e que não se prende ou muito menos se
rende às malhas da rede da submissão masculina.

Se o perfil de Isolda foi analisado de acordo com os feitos, gestos e ações desta
personagem, pode-se observar um caráter feminino que ao menos tentou escapar da noção
cristalizada de “submissão” da mulher no mundo medieval. Embora o traço misógino e
antifeminista seja indissociável ao cenário cotidiano e à literatura no medievo, as ações de
Isolda, por sua vez, demonstram uma personagem específica – a rainha (senhora) – envolvida
nas diversas tramas concernentes à sua posição social dentro da aristocracia. As diferenças de
um estrato social para outro, sobretudo dentro do “universo feminino”, são perceptíveis à
medida que os grandes poemas, romans, lais e outras produções literárias destacam as
mulheres ricas, bem-nascidas e ocupantes de um lugar de destaque dentro da estrutura
hierárquica dos séculos XII e XIII no Ocidente medieval.

Embora grande parte dessas obras privilegiem tal grupo minoritário de mulheres, e
mais especificamente, as mulheres casadas, as donzelas, ou seja, mulheres prometidas em
casamento ou ainda solteiras, também são exploradas por essa mesma literatura e graças à sua
condição de nobreza – além da questão pré-matrimonial – as representações, estratégias e
sentimentos expressados por esse grupo de mulheres tornam-se passíveis de análise em
contraposição às suas contrapartes desposadas. Notemos, então, que:

Estas não são damas. Não o são ainda, vão ser. Donzelas, são capturadas pelo amor.
Por amor se tornam damas, e o amor, o belo amor, permanece. Essas duas imagens
de mulheres, em realidade, formam apenas uma; da primeira, simples esboço, a
segunda vem precisar os traços, avivar as cores. (DUBY, 2013, p. 100, grifo meu)

Portanto, é possível observar na literatura do período diferentes configurações e


representações dos padrões de comportamento feminino no Ocidente medieval. Se em um
ambiente letrado, com acesso à educação, leitura e logicamente, orientação pedagógica por
intermédio da leitura e a performance desse gênero cortesão que é o roman, depreende-se que
os perfis femininos podem deslocar-se de uma estrutura aparentemente cristalizada em
direção à uma manifestação mais complexa e rica das mulheres aristocráticas dentro dessa
mesma literatura. Tal é o caso da donzela Fenice, objeto de análise do próximo tópico, tida na
literatura do período como uma antítese da supracitada e discutida Isolda, a loira.
112

3.3 “MEU CORAÇÃO É TEU E MEU CORPO, TAMBÉM, É TEU”: FENICE E A


FIGURA DA DONZELA

De fato, o retrato da donzela medieval, devota e ciente de seus deveres aristocráticos,


correspondia às imagens descritas nos contos e romances? Partir de uma premissa tão
instigante – e ampla – denota uma série de possibilidades de abordagem quando o assunto é a
condição e a representação da mulher aristocrática nos romans medievais durante os séculos
XII e XIII.

Se anteriormente o escopo de análise pautou-se na figura da mulher inserida dentro


da lógica matrimonial, com as múltiplas representações e significações de Isolda, é
interessante expandirmos o foco de observação para um viés analítico que demonstre, dentro
da lógica cultural e simbólica do Ocidente na Idade Média Central, a possibilidade de
exaltação e confirmação de um “amor puro” fora do claustro da instituição do matrimônio na
literatura do período.

No caso do roman Cligès (c. 1176), este acabou por lançar em sua narrativa uma
jornada dupla de seus protagonistas: se por um lado o perfil masculino (representando pelo
jovem cavaleiro que dá nome à obra) mantém-se fiel e condizente com os pressupostos de
honra, altivez, elegância e cortesia propagados pelo ideal do Amor Cortesão, é no retrato da
donzela Fenice que as “malhas da submissão masculina” supracitadas “afrouxam-se” e saltam
aos olhos do historiador pelo papel determinante que a personagem assume dentro do próprio
roman.

FIGURA 11 – O ROMAN DE CLIGÈS


113

Detalhe do início do roman Cligès em verso, presente no MS Français 1450, f. 188 v (c.1235-1245). Fonte:
<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8415202d/f386.image>. Acesso em: 30 jan, 2019.

Mencionar a questão matrimonial – inserida ou não no âmbito literário – é também


levar em conta a questão e a problemática das estruturas de parentesco no medievo, pois tal
“[...] exercício do parentesco não se pratica tanto no imaginário quanto no ‘real’ propriamente
(e pobremente) dito?” (BARTHELÉMY, 2009, p. 101). Embora o foco narrativo de Cligès
não seja a união matrimonial do jovem com sua amada Fenice, o desenrolar da história e das
ações perpetradas pela donzela desenvolvem-se a partir de uma questão parental e
matrimonial: a promessa do tio de Cligès feita ao pai deste, consistindo de não desposar-se
para que o sobrinho se tornasse no futuro imperador de Constantinopla.

Para uma melhor compreensão do enredo, ressalta-se que Cligès tem como narrativa
principal o conto de amor entre Cligès e sua dama Fenice, mas também narra mostra como
Alexandre e Soredamors, pais de Cligès, vieram a se conhecer. Um dos únicos romances de
Chrétien de Troyes a contar duas histórias de amor, Cligès distingue-se dos demais por
justamente ditar os tons que cada relação possui, focando se primeiramente na construção
narrativa da história dos pais do protagonista para enfim demorar-se na figuração do mesmo e
de sua própria aventura.

Logo, é durante os eventos ocorridos após o nascimento de Cligès que seu pai,
Alexandre, envolve-se em uma disputa dinástica como seu irmão Alis pelo trono de
Constantinopla, ocupado indevidamente por este último graças a um mal-entendido que
envolvia a falsa notícia da morte de Alexandre – Alis era o irmão mais novo, então o trono
pertencia por direito à Alexandre como herdeiro mais velho (DE TROYES, 2004, p. 151-154)

Ambos irmãos chegam a um acordo de paz, com Alexandre “desistindo” de sua


posição como legítimo ocupante do trono, enquanto Alis compromete-se de honrar a
promessa de nunca se casar para dar lugar a seu sobrinho Cligès quando este assumisse a
idade adequada de assumir o trono (DE TROYES, 2004, p. 154). Porém, como bem menciona
o poeta Chrétien, “[...] não há corte alguma no mundo que esteja livre de maus conselhos, e
barões frequentemente desviam-se dos caminhos da lealdade acreditando em maus
conselhos.” (DE TROYES, 2004, p. 155)71 e Alis, influenciado pelas más línguas, acaba
acatando o pedido de seus conselheiros de buscar para si uma esposa.

71
No original: “[...] there is no court in all world that is free of wicked counsel, and barons often stay from the
paths of loyalty in believing wicked counsel.”
114

Diante de tal trama, enfim somos expostos ao núcleo da narrativo do roman. Ora,
lembremos que no medievo a manutenção das linhagens aristocráticas fora assegurada pelo
matrimônio, e Alis, enquanto imperador do Oriente, desejava assegurar uma descendência que
carregasse o seu nome. Logo, quando Alis insiste que sua esposa e futura imperatriz seja “[...]
graciosa, bela, sábia, rica e nobre.” (DE TROYES, 2004, p. 155) 72, seus conselheiros tomam
como escolha óbvia a filha do imperador do Sacro Império Romano Germânico, pois essa era
“[...] tão bela que nenhuma donzela em toda Cristandade poderia rivalizá-la em beleza.” (DE
TROYES, 2004, p. 155)73.

Se atentarmos aos adjetivos e condições impostas para a ocupação do “cargo” de


imperatriz, os termos “rica” e “nobre”, destacam-se dentre os demais. No mundo feudal de
início do século XII, os traços de linhagem começam seu processo de acentuação na
aristocracia, muito por conta do aperfeiçoamento do sistema patrilinear instituído no Império
Carolíngio.

Portanto, a nobreza, enquanto estrato social dominante, construiu em torno de si uma


verdadeira rede de parentelas e parentescos múltiplos, pautada sobretudo pela característica
do berço: "[...] uma pessoa é nobre pelo nascimento e pelo trabalho (cavaleiresco) de
manutenção dos laços familiares, uma pessoa é homem de ‘franc lin’ [de linho puro], uma
dama de ‘haut parage’ [de alta paragem] (ambas expressões sinônimas de ‘parentesco
nobre’), sempre solidário(a) ou rival dos(as) outros(as).” (BARTHELÉMY, 2009, p. 157,
grifos do autor).

Torna-se então claro o desejo de Alis em confirmar o matrimônio com uma donzela
que suprisse todas essas demandas. Desse modo, pode-se depreender que o papel feminino,
sobretudo das filhas das grandes linhagens aristocráticas, configurou-se em um perfil de “[...]
corpos dados, tomados, postos como reserva para a qualidade de seu sangue, postos de lado
quando não se podia tirar mais nada deles.” (DUBY, 2013, p. 146). Qual era, então, a
identidade da eleita por Alis? Chrétien nos dá a resposta:

A moça se chamava Fenice, e não sem motivo, pois assim como a fênix 74 é a mais
bela das aves e única de seu tipo, era Fenice, assim me parecia, sem igual em beleza.
Ela era um milagre e uma maravilha daqueles cuja Natureza jamais criaria
novamente. Embora minhas palavras jamais estejam aptas para a tarefa, não desejo
descrever seus braços ou corpo ou face ou mãos; mesmo que tivesse mil anos para

72
No original: “[...] the future empress of Constantinople must be graceful, beautiful, wise, rich and noble.”
73
No original: “[...] his daughter was so fair that no maiden in all Christendom could rival her in beauty
74
No original em francês arcaico a grafia do nome é “Fenyce”, um recurso linguístico que se aproxima de
“phénix”, ou seja, fênix, no francês moderno. Tal escolha de nome é simbólica devido à ação da donzela durante
o desenrolar do roman, como símbolo de resistência e sobretudo, ressureição.
115

viver e minha habilidade dobrasse a cada dia, ainda assim meu tempo seria em vão
tentando descrevê-la como ela realmente era. Sei que se tivesse tentado esgotaria
toda minha habilidade e gastaria todo meu talento, e meus esforços seriam em vão.
(DE TROYES, 2004, p. 156, tradução minha)75

Enfim, somos apresentados à protagonista do roman. Note-se que na descrição da


donzela pelo poeta, a atenção pelos atributos físicos é bastante realçada, sobretudo porque nos
escritos de Chrétien o retrato das damas e donzelas são sempre focados nas características que
realçam a beleza, a doçura e a elegância das mulheres descritas. Fenice, enquanto filha do
imperador do Ocidente, não poderia fugir ao perfil estereotipado da donzela aristocrática,
chamando para si toda a atenção e admiração daqueles que puseram os olhos sobre sua
pessoa.

Portanto, o contato visual e a admiração causada por Fenice em Cligès também é um


instrumento narrativo explorado pelo autor, principalmente quando o relato de tal encontro
insere-se dentro do campo temático do Amor Cortês. Ora, o cenário literário medieval
europeu, sobretudo a partir da segunda metade do século XII, era representado como sendo
um receptáculo das principais manifestações sociais e culturais que despontavam à época.
Logo, não era incomum que os autores buscassem uma verossimilhança com o “real” vivido
cotidianamente com o universo criado e posteriormente compartilhado com seu público.

Observemos a descrição do encontro entre Fenice e Cligès:

[...] Cligès, por amor, lançou seus olhos secretamente sobre ela [...] Ele a olhou
ternamente, mas não notou que ela estava oferecendo-lhe uma troca justa: em
verdadeiro amor, sem enganação, ela ofereceu-lhe seu olhar e tomou o dele. [...] Ela
concedeu-lhe seus olhos e seu coração e ele, por sua vez, prometeu-lhe o seu. (DE
TROYES, 2004, p. 156-157, tradução minha)76

A força do contato visual e das promessas e juramentos silenciosos feitos pelos dois
amantes estão em consonância com os pressupostos estabelecidos no Tractatus de Amore
[Tratado do Amor Cortês] de André Capelão, embora Chrétien tenha escrito seu roman no
período entre 1170-1176. Entretanto, como autores contemporâneos – cujo auge de sua
produção teria sido situado entre 1180-1190 – não seria errôneo inferir que Chrétien tivesse

75
No original: “The girl was named Fenice, and not without reason, for just as the phoenix is the most beautiful
of birds an unique of its kind, so Fenice, it seems to me, had no equal for beauty. She was a miracle and marvel
whose equal Nature could never again create. Since my words would never be equal to the task, I do not wish to
describe her arms or body or head or hands; even if I had a thousand years to live and my skill doubled each day,
still my time would be wasted in trying to describe her as she truly was. I know that if I tried I would exhaust all
my skill and waste all my talent, and my efforts would be in vain.”
76
No original: “Cligès, for love, cast his eyes upor her secretly […] He gazed upon her most tenderly, but he did
not notice that she was offering him fair exchange: in true love, without deceit, she offered him her gaze and
then took his. […] She bestowed on him his eyes and her heart, and he in turn pledged his to her.”
116

tido contato com o Tractatus, visto que suas representações e retratos sobre as relações
amorosas vão ao encontro das ideias estabelecidas na obra.

Mencionou-se anteriormente o breve, porém de suma importância, encontro entre os


dois amantes. Em sua obra, Capelão acabou por delimitar uma condição que faça e dê sentido
para o sentimento amoroso:

Amor é uma paixão natural que nasce da visão da beleza do outro sexo e da
lembrança obsedante dessa beleza. Passamos a desejar, acima de tudo, estar nos
braços do outro e a desejar que, nesse contato, sejam respeitados por vontade
comum todos os mandamentos do amor. (CAPELÃO, 2000, p. 5-6)

Desse modo, a escolha por representar o vínculo afetivo entre Fenice e seu amado
por intermédio de uma troca de olhares ressoa perfeitamente com o objeto de estudo
desenvolvido até o momento. Se o Amor Cortês influenciou o desenvolvimento de uma
literatura sensível ao trato aristocrático das relações entre o masculino e feminino no medievo,
não nos esqueçamos que estamos lidando especificamente nesta pesquisa das mulheres.

Embora o que conhecemos e entendemos como “crítica literária” propriamente dita


tenha se estabelecido como área de estudo independente apenas no século XIX, não é leviano
levar em consideração que o “padrão” feminino exigido e representado na literatura ocidental
segue um modelo de apresentação ainda eminentemente masculino, no passo do que Naomi
Wolf afirma que “Esse padrão, que descarta as mulheres enquanto indivíduos se estende
desde a cultura de elite até a mitologia popular.” (WOLF, 2018, p. 92).

A idealização das damas e donzelas medievais, imbuídas desse pano de fundo cortês,
refinado e elegante, acaba por ser também um retrato masculino, uma representação daquilo
que Georges Duby chamou de “Idade dos homens”, referindo-se à época dos romances,
poemas e canções medievais que buscavam apresentar tais temáticas. Ainda que obras de
ficção, e inseridas dentro do contexto específico de transformações socioculturais do Ocidente
medieval nos entre os séculos XII e XIII, tais obras e, principalmente, as mulheres ali
representadas não fogem ao fato de que são descritas, idealizadas, amadas, desprezadas e
sobretudo julgadas pelo raio de visão masculino. Fato ainda mais presente quando se fala do
período em questão.

Portanto, mesmo que Fenice não tenha vacilado diante do olhar de Cligès e por sua
vez o tenha retribuído com igual ou até maior intensidade, o que se pode e se deve apreender
de tudo isso é que “ ‘Os homens olham as mulheres. As mulheres se observam sendo olhadas.
Isso determina não só as relações entre os homens e as mulheres, mas também a relação das
117

mulheres consigo mesmas.’ ” (BERGER apud WOLF, 2018, p. 92), o que acaba por
demonstrar que a afirmação do crítico literário John Berger pode ser aplicada
independentemente do período temporal do qual se fala.

No que então Fenice poderia acrescentar de novo quando se pensa na representação


literária feminina da aristocracia medieval? Decerto que a imagem da mesma é inteiramente
construída pelo autor Chrétien e fruto das experiências individuais deste nas cortes
principescas nas quais viveu (LE GOFF, 2013c), logo em qual aspecto a sua história, o seu
conto de amor com Cligès difere-se do retrato feminino habituado quando se fala de mulher
na Idade Média?

Fenice é exemplo único na literatura medieval por ser construída e representada


como a antítese de uma outra personagem literária famosa por seu conto amoroso: Isolda.
Embora os romans Cligès e Tristan sigam estruturas narrativas de desenvolvimento e
construção de personagens similares, apenas em Cligès é que de fato temos a distinção real
entre as duas e aquilo que representam nos atuais estudos históricos sobre a figura feminina
no medievo: embora prometida a outro homem em casamento e enamorada de Cligès, Fenice
não cede à tentação carnal e nem comete o pecado do adultério.

O que Chrétien nos conta sobre o compromisso e os sentimentos de Fenice em


relação a isso faz-se presente em:

[...] ela estava sendo forçada a casar-se com alguém que não a traria prazer nenhum
[Alis, tio de Cligès], o que a deixava ansiosa e perturbada, e não sabendo quem
consultar acerca de seu amor [por Cligès] ela é deixada a sós com seus próprios
pensamentos e noites sem dormir. (DE TROYES, 2004, p. 154, tradução minha,
grifos meus)

Importante comentar que embora nutrindo paixões por Cligès graças ao encontro
silencioso mencionado anteriormente, Fenice não sabia qual a identidade de seu amado. Tal
característica de mistério em torno da figura do pretendente é utilizada nos romans medievais
como parte da jornada específica em torno da afirmação masculina de merecer o amor de sua
donzela/dama por intermédio da realização de feitos heroicos que façam o cavaleiro digno da
atenção, respeito e reciprocidade em relação à mulher cortejada. Por isso que o Amor Cortês
pode ser interpretado não apenas como um código de conduta da aristocracia medieval, mas
também com um jogo muito específico de sedução e comportamento amoroso.

Por desconhecer a identidade do amado, Fenice padece da aflição causada pelos seus
sentimentos por Cligès, descrevendo-os como “[...] uma dor diferente de qualquer outra”, uma
dor que a fazia sofrer, ao mesmo tempo em que sentia “[...] prazer no meu desconforto” (DE
118

TROYES, 2004, p. 160, tradução minha)77. Em uma tentativa de amenizar seu sofrimento,
Fenice pede ajuda à sua governanta Thessala, que ao ver e ouvir os lamentos de sua ama logo
atesta a natureza de seus “males”, além de revelar a identidade de Cligès:

[....] Eu direi a você ambos o nome e a natureza de sua dor. Você disse-me, acredito,
que o sofrimento que a aflige parece-lhe tão prazeroso e revigorante: a dor do amor
é exatamente dessa natureza, pois advém da alegria e do sofrimento. Portanto, você
está apaixonada, e eu posso provar isso a você, pois não há doçura alguma na dor,
exceto apenas a dor do amor. Todos os outros tipos de dor são deveras horríveis e
cruéis, mas o amor é doce e prazeroso. (DE TROYES, 2004, p. 160, tradução
minha)78

Tal sentimento, fator comum na maioria dos romans da época, já foi sumariamente
descrito no Tractatus com sendo a fonte de todas as alegrias e possíveis decepções do homem.
Capelão escreveu que “Fácil é ver que o amor é uma paixão. Isto porque angústia nenhuma é
maior que a provocada por ele, pois o enamorado está sempre no temor de que sua paixão
não atinja o resultado desejado e de que seus esforços sejam baldados.” (CAPELÃO, 2000, p.
6-7, grifos meus), o que visto na fala de Thessala acaba demonstrando mais uma vez a
influência e suporte dos pressupostos cortesãos na narrativa literária durante o século XII.

No seguir da narrativa, Chrétien dá voz a Fenice, e a donzela, ciente agora da


natureza e da razão dos seus sentimentos, professa e dá voz ao seu medo e ao seu desejo mais
íntimo:

[...] o imperador está casando-se comigo, o que me deixa triste e brava, pois aquele
que amo é o sobrinho do homem que devo casar-me. E se o imperador tirar o seu
prazer de mim, então terei perdido toda minha própria felicidade e não posso esperar
por mais nenhuma. (DE TROYES, 2004, p. 161, tradução minha)79

Seguindo enfim, para a referência crítica mais direta à sua contraparte:

Prefiro ser dilacerada membro a membro do que ter nosso amor lembrado como
aquele de Tristão e Isolda, que se tornou motivo de zombaria e me faz envergonhar
de falar sobre o mesmo. Eu nunca poderia concordar em levar a vida que Isolda
levou. O amor foi muito intenso sobre ela, pois seu coração foi dado inteiramente a
um só homem, mas seu corpo foi compartilhado por dois; logo ela passou sua
vida inteira sem negar ambos. Seu amor era contrário à razão, mas o meu amor
sempre será constante, pois nada irá causar a separação de meu coração e corpo. De
fato, meu corpo nunca será prostituído, e nunca será compartilhado. Que aquele que

77
No original: “My pain is different for any other for, if I’m to tell you the truth, it pleases me though causes me
to suffer, and I take pleasure in my discomfort.”
78
No original: “I’tell you both the name and the nature of your pain. You’ve told me, I believe, that the suffering
you fell seems both joyful and invigorating: the pain of love is of this nature exactly, for its comes from joy and
suffering. Therefore you’re in love, and I can prove it to you, because I find no sweetness in any pain except the
pain of love alone. All other sorts of pain are always horrible and cruel, but love is sweet and pleasant.”
79
No original: “[...] the emperor is marrying me, which makes me sad and angry, for the one I love is the nephew
of the man I must wed. And if the emperor takes his pleasure of me, then I will have lost my own happiness and
can expect no other.”
119

possuir meu coração possua também meu corpo, pois abjuro todos os demais.
(DE TROYES, 2004, p. 161, tradução minha, grifos meus)80

Aqui está o cerne da análise e originalidade do roman Cligès e da história de Fenice:


a recusa do pecado, a manutenção da honra. A busca por um amor racional. Vejamos que as
palavras são duras quando esta se refere a Isolda: “zombaria”, “corpo compartilhado”, e até
mesmo a insinuação ao dizer que não teria seu próprio corpo “prostituído” como o fizera a
rainha mencionada. Embora Fenice reconheças os traços e a forte presença do Amor nas ações
de Isolda, ainda assim é enfática ao dizer que “seu amor [de Isolda por Tristão] era contrário à
razão”.

No tópico anterior, observamos que o perfil feminino de Isolda, embora dotado de


questões e representações que fugiram à estereotipagem exacerbada atribuída à mulher no
medievo, não encontra-se totalmente deslocado do ímpeto masculino de ressaltar as
vicissitudes femininas em detrimento de suas qualidades, o que acabou por ser retratado nas
ações de Isolda, efetuadas quase que por inteiro sob influência do passional sobre o racional.
Isolda não pensava com a cabeça, com a razão – que embora persona feminina, apenas no
século XV, na obra de Christine de Pizan, viria a ser dotada como característica também
pertencente ao universo feminino – e sim com o coração, com o corpo e com o seu amor por
Tristão.

Retomar a relação entre Fenice e Isolda de modo a compreender as nuances das


representações femininas torna-se relevante pelo fato de que o autor de Cligès familiarizava-
se com o conto de Isolda, ao ponto de mencionar em uma de suas obras – um comentário
alegórico sobre as Metamorfoses de Ovídio preservada em um manuscrito da segunda metade
do século XIV81 – que compôs um poema sobre “del roi Marc et d’Iseut la blonde” (KIBLER,
2004).

Tal motivo leva-nos a dissertar e discutir sobre a circularidade dos escritos e de um


determinado “alcance” que a literatura cortesã possuiu durante o recorte estabelecido por este
trabalho. Ademais, próprio Chrétien retoma seu interesse pela lenda de Isolda em seus outros
romans, mencionando-o em Erec et Enide e no prólogo de Lancelot, le chevalier de la

80
No original: “I’d rather be torn limb from limb than have our love remembered like that of Tristan and Isolde,
which has become a source of mockery and makes me ashamed to talk of it. I could never agree to lead the life
Isolde led. Love was greatly abased in her, for her heart was given entirely to one man, but her body was shared
by two; so she spent all her life without refusing either. Her love was contrary to reason, but my love will always
be constant, because nothing will ever cause my heart and body to be separated. Truly my body will never be
prostituted, nor will it ever be shared. Let him who possesses my heart posses my body, for I abjured all others.”
81
Disponível em: <http://www.e-codices.unifr.ch/fr/list/one/bge/fr0176>. Acesso em: 30 jan, 2019.
120

charrete, culminando em seu Cligès, escrito quase como se fosse uma “resposta” ao conto
trágico de amor e loucura entre Isolda e Tristão (KIBLER, 2004).

Desse modo, retornamos à questão mencionada na introdução sobre aquilo que se


chame de energia social dos escritos, qual sua relação com a literatura e o papel de suas
representações históricas. Se definimos energia social anteriormente como o conjunto de
características audiovisuais, físicas e mentais expressas por experiências individuais e
coletivas (GREENBLATT, 1988), a força e o campo de ação de tal energia acabam por gerar
uma prática cultural que envolve um determinado tipo de troca e negociação entre a obra e o
público-alvo:

[...] 2. Não pode haver criação sem motivo.


3. Não pode haver representação transcendente, intemporal ou imutável.
4. Não pode haver artefatos autônomos.
5. Não pode haver nenhuma expressão sem uma origem e objeto, um “de” e um
“para”.
6. Não pode haver arte sem energia social. (GREENBLATT, 1988, p. 12)82

Estabelecidas tais abjurações, eis os princípios generativos aos quais estas estão
vinculadas:

Esta circulação [da energia social] depende de uma separação de práticas artísticas
de outras práticas sociais, uma separação produzida por um trabalho ideológico
sustentado, uma classificação consensual. Ou seja, a arte não existe simplesmente
em todas as culturas; é composta junto a outros produtos, práticas, discursos de uma
determinada cultura. (Na prática, “composta” significa herdada, transmitida,
alterada, modificada, reproduzida muito mais do que significa inventada: como
regra, há muita pouca invenção pura na cultura) (GREENBLATT, 1988, p. 12-13,
tradução minha, grifo meu)83

Logo, de acordo com o citado, depreendemos que as estruturas, motivos, enredos, e


sobretudo a construção das personagens de Fenice e Isolda dentro de seus respectivos romans
obedecem às características de um cenário e de uma produção cultural que conversa, dialogo e
negocia com o social, ou mesmo com o chamado “real”, espelho dessa literatura cortesão. O
que Stephen Greenblatt quer dizer com “não pode haver representação imutável ou
atemporal” comporta-se na questão de que mesmo um roman escrito no século XII, narrando
a história de um amor proibido (vejam a semelhança entre o conto de Isolda e a história de
82
No original: “[...] 2. There can be no motiveless creation. 3. There can be no transcendent or timeless or
unchanging representation. 4. There can be no autonomous artifacts. 5. There can be no expression without an
origin and an object, a from and a for. 6. There can be no art without social energy.”
83
No original: “This circulation depends upon a separation of artistic practices from other social practices, a
separation produced by a sustained ideological labor, a consensual classification. That is, art does not simply
exist in all cultures; it is made up along with other products, practices, discourses of a given culture. (In practice,
"made up" means inherited, transmitted, altered, modified, reproduced far more than it means invented: as a rule,
there is very little pure invention in culture).”
121

Fenice), torna-se por sua vez motivo de reformulação – ou adaptação – por parte de outro
autor.

A mutabilidade dos conceitos, dos cenários e da motivação dos agentes conversa


diretamente com o cenário social no qual a história e seus atores estão inseridos. Durante a
Idade Média Central (séculos X-XIII), o Ocidente medieval sofreu com as diversas alterações
políticas, econômicas e sobretudo culturais que afetaram o modo de viver, pensar e
representar dos homens e mulheres que vivenciaram tal época. A “renascença do século XII”
revitalizou o comércio urbano até então resguardado aos interiores da Europa, sobretudo ao
sul do que hoje é a França, ao norte da Alemanha e centro-oeste da Inglaterra. Com o
comércio vieram as artes, os livros, as traduções do árabe, do grego e os conhecimentos sobre
a medicina e filosofia antigas, de Avicena à Aristóteles, que posteriormente foram
incorporados ao locus espacial das universidades e dos programas universitários no século
XIII estabelecidos pelo advento da Escolástica.

Se Chrétien construiu e concebeu Cligès como uma resposta ao amor malfadado,


adúltero e pecaminoso de Isolda e Tristão, logo percebe-se que “não há criação sem motivo”,
como pontuou Greenblatt. E se não podem existir “expressões sem origem e objeto”, a origem
de Cligès pautou-se pela escolha de Chrétien de contar uma história de amor – proibido –
porém puro, sensato e racional em que ambos os protagonistas, Fenice e Cligès, estejam
cientes de seus papéis sociais a serem mantidos e respeitados, embora sem negar-lhes as dores
e as conquistas que o amor lhes preserva quando enfim se juntarem. O objeto? O amor em si.
Dessa vez não o amor louco de Isolda, o que “não olha razão, nem direito”, mas sim o que o
explora e indica a possibilidade de encontrar os louros deste sentimento fora da instituição
que é o matrimônio, um dos sacramentos mais valorizados – e constantemente subvertido –
durante o período medieval.

Por isso, constantemente em Cligès Chrétien utilizou-se da ironia ao descrever


situações e críticas, como pode ser percebido no comentário de Fenice sobre Isolda. Isso pode
ser ainda mais perceptível quando Fenice explica à sua governanta Thessala que embora
apaixonada por Cligès, jamais ousaria desobedecer a seu pai, o mesmo que a havia dado em
casamento a Alis, tio de seu amado:

Não posso entender como aquele que detém meu coração possa ter meu corpo, já
que meu pai está me entregando a outro homem e não ouso opor-me a ele. E quando
este homem se tornar senhor do meu corpo, se ele o usar de um modo que não
122

desejo, então não será certo para eu acolher outro [senhor]. (DE TROYES, 2004, p.
161, tradução minha)84

Fenice toma o caminho contrário de Isolda, mais uma vez deixando claro que seu
papel enquanto donzela, filha imperador é suficientemente importante para que esta não pense
sequer em desobedecer ao acordo de casamento que seu pai fez em nome dela. Se Isolda,
mesmo casada com Marc, compartilhava seu corpo entre este e Tristão, Fenice tem plena
consciência que tal prática traria vergonha não apenas para ela, mas também para Cligès se
fossem descobertos.

Crítica poderosa ao adultério e ao amor profano, a metáfora utilizada por Fenice


também o é. Vejamos o termo utilizado por esta quando se refere ao ato de consumação do
casamento: “senhor do meu corpo” [lord of my body, na tradução inglesa]. Ou seja, a donzela
toma a terminologia e o vocabulário feudal para descrever sua própria relação e o papel a ser
desempenhado pelas mulheres após o matrimônio: posse do marido, propriedade, serva de
seu senhor. Logo, mesmo nessa literatura poética, direcionada ao entretenimento das cortes,
os papéis masculinos e femininos não devem ser esquecidos. Eis então a força, as trocas e as
negociações estabelecidas entre o espelho do real que é a literatura e a energia social destes
mesmos escritos existentes no regime senhorial do período.

Negadas as possibilidades de ter Cligès em detrimento de suas reputações, a narrativa


do roman e as ações de Fenice agora aproximam-se um pouco do conto de Isolda. Lembremos
que na lenda da rainha, esta acabou bebendo por engano, junto de Tristão, o filtro/poção
mágico(a) que a faria se apaixonar pelo rei Marc, ação que deu início à história trágica dos
dois amantes. Tal líquido de propriedades mágicas havia sido preparado pela mãe de Isolda
com o intuito de auxiliar a filha no cumprimento de seus deveres enquanto princesa do reino
da Irlanda, prestes a ser entregue em casamento ao rei de uma terra distante.

Fenice, como se sabe, recorreu à sua governanta em busca de ajuda para lidar com o
dilema de amar Cligès e estar prometida a outro homem. Logo após relatar toda sua angústia e
preocupação também com o futuro de seu amado, Fenice pede que Thessala busque um meio
de manter intacta sua castidade, mesmo casada com o tio de Cligès. Eis a saída encontrada por
Thessala, uma poção mágica, semelhante à que Isolda tomou, desta vez com propriedades e
objetivos diferentes: manter tanto o coração, mas principalmente o corpo de Fenice
resguardado para Cligès:

84
No original: “But I cannot understand how the one to whom my heart yields can have my body, since my
father is giving me to another and I dare not to oppose him. And when he becomes lord of my body, I he uses it
in a way I don’t wish, then it is not right for me to welcome another.”
123

[...] então sua governanta a assegurou que iria desenvolver vários feitiços, poções, e
encantamentos que a fariam não se preocupar ou temer qualquer coisa sobre o
imperador: logo que ele tomasse a poção que ela lhe desse para beber, eles iriam
dividir a mesma cama, mas não importasse quanto tempo ela passasse junto dele, ela
estaria a salvo como se houvesse um muro entre ambos. “Mas não se aborreça caso
ele tire prazer de você nos sonhos dele, pois quanto mais rápido ele dormir, mais
terá seus prazeres com você, e irá acreditar firmemente que terá aproveitado o
bastante quando acordar. Ele nunca suspeitará que era um sonho, ardil ou mentira.
Assim será como ele terá seus prazeres com você: enquanto estiver dormindo, ele
acreditará que está desperto e fazendo amor com você. (DE TROYES, 2004, p. 161,
tradução minha)85

Embora se apresente como a anti-Isolda, Fenice acaba por recorrer ao mesmo


artifício que sua contraparte: o uso de um elemento mágico que a faça atingir seu objetivo.
Interessante notar que em ambas as histórias apenas as mulheres detêm o conhecimento de
tais artes mágicas, seja pelo domínio das ervas, da relação telúrica com a terra/mar, seja pela
identificação com as práticas ditas “ocultas”.

Ora, Thessala mencionou também que buscaria toda uma sorte de “feitiços e
encantamentos” para ajudar Fenice, portanto, o epíteto de “bruxa”, de agente das forças
ocultas, de serva do Diabo, é um rótulo comum dado às mulheres medievais, sobretudo as
camponesas, que lidavam com práticas e unguentos medicinais considerados desviantes pela
cúpula eclesiástica medieval. E próprio Chrétien não estava imune a tal estereótipo, visto o
modo que apresenta Thessala no roman, citando inclusive outra feiticeira famosa pela boca da
própria governanta:

Sua governanta, que tinha a amamentado [Fenice] quando criança, era chamada
Thessala e era versada em necromancia. Ela chamava-se Thessala pois havia nascido
na Tessália, onde encantamentos diabólicos floresciam e eram ensinados. As
mulheres dessa terra praticam feitiços mágicos e maldições. [...] “Sei como curar
hidropsia e sarar a gota, tosse e asma. Sou tão habilidosa em ler a urina e o pulso que
você erraria se fosse procurar outro médico; e, se ouso dizer, estou mais
familiarizada com feitiços e encantamentos verdadeiros que Medeia jamais
esteve86. (DE TROYES, 2004, p. 159, tradução minha, grifo meu)87
85
No original: “Then her nurse assured her that she would devise so many conjurings, potions, and enchantments
that she need have no cause to fear or worry about this emperor: as soon as he has drunk the potion she will give
him to drink, they will share the same bed, but no matter how often she is with him she will be as safe as if there
were a wall between them. ‘But don’t let it upset you if he takes his pleasure of you in his dreams, for when he’s
fast asleep he’ll have his sport with you, and will firmly believe he took his pleasure while awake. He’ll never
suspect it was dream, deceit, or lie. This is how he’ll have his sport with you: while he’s asleep he’ll believe that
he’s awake and making love with you.”
86
Feiticeira e personagem do ciclo mitológico grego relativo ao mito de Jasão e os Argonautas, sendo esposa
deste. O mito de Medeia é conhecido por envolver práticas xamanísticas em benefício próprio e de Jasão, além
do retrato psicológico profundo de uma mulher que chegou a cometer o infanticídio de seus próprios filhos para
se vingar da infidelidade de Jasão. Tal versão ficou mais conhecida pela tragédia grega homônima de Eurípedes,
datada de 431 a.C.
87
No original: “Her governes, who had nursed her as a child, was named Thessala and was skilled in
necromancy. She was called Thessala because she had been born in Thessaly, where diabolical enchantments
flourish and are thaught. The women of this land praticse magic spells and bewitchments […] I know how to
cure the dropsy and heal the gout, quinsy, and asthma. I am so skilled in reading urine and the pulse that you’d
be wrong to seek another doctor; and, if I dare say so, I am more familiar with true and proven spells and
124

Tal representação de Thessala pelas palavras de Chrétien, a relacionando com tais


práticas consideradas “escusas”, ressalta que Fenice, embora dotada de virtudes tão distintas e
valorizadas pela sua posição, acaba por recorrer à uma outra faceta do universo feminino, à do
oculto, dos mistérios, práticas desviantes que durante milênios intrigaram e intrigam o mundo
masculino.

Não por acaso que as mulheres já foram associadas diretamente à figura de Satã,
atuando como seus “agentes” no plano físico, seja por intermédio da ação direta ou indireta de
seus feitos. Quando Jean Delumeau pontou que “A atitude masculina em relação ao ‘segundo
sexo’ sempre foi contraditória, oscilando da atração à repulsão, da admiração à hostilidade”
(DELUMEAU, 2009, p. 462), este põe como elemento central de sua análise o medo, o
verdadeiro pavor que os homens e as sociedades patriarcais nutrem em relação ao
desconhecido e daquilo que não podem controlar. A aproximação entre Fenice e Thessala, o
vínculo que mantêm desde a infância da primeira, serve como ponte para a donzela sinta-se
segura em confiar à governanta seus desejos mais secretos e buscar ajuda para resolver seus
problemas em relação ao que sente por Cligès.

Em um modo de dotar a narrativa de elementos fantásticos, ao mesmo tempo que


procura manter as similaridades com a história de Isolda, o autor intervém colocando nas
ações de Thessala o recurso que servirá de base para que todas as angústias se dissipem: a
poção mágica que enganará o futuro marido de sua protegida.

É chegado o momento da noite de núpcias, e após as festividades do matrimônio real,


Cligès é encarregado de preparar seu tio para a consumação do casamento. O jovem, então,
entrega uma taça contendo a poção mágica para seu tio beber, pois havia sido instruído por
Thessala que assim o fizesse, ocultando, porém, o real efeito que tal filtro teria sobre o
imperador. Após beber do líquido, os efeitos da poção são imediatos, e assim nos conta
Chrétien o que sentiu e sonhou o imperador Alis:

Dormiu e sonhou e pensou que estava acordado, e em seu sonho procurou e


esforçou-se em acariciar a donzela. Porém, ela resiste firmemente e defende sua
virgindade. Entretanto, ele a acalma e gentilmente a chama de sua querida amiga; ele
estava convencido de que a havia possuído, mas não havia. Ele teve sua satisfação
de nada: não havia abraçado nada, beijado nada, segurado nada, acariciado nada,
visto nada, dito nada, lutado contra nada, se contentado com nada. (DE TROYES,
2004, p. 163, tradução minha)88

enchantments than Medea ever was.”


88
No original: “He slept and dreamed and thought he was awake, and in his dream, he strove and endeavoured
to caress the maiden. But she resisted him steadfastly and defended her virginity. Meanwhile he entreated her
and gently called her his sweet friend; he was convinced he possessed her, but he did not. He received his
satisfaction from nothing: he embraced nothing, he kissed nothing, he held nothing, he caressed nothing, he saw
125

Fenice conseguiu o que queria: manteve intacta sua castidade e seu dever de casar-se
para honrar a aliança e promessa de seu pai. Qual o próximo passo? Declarar seu amor
diretamente para Cligès. Sobre este sentimento, André Capelão pontuou sobre os medos
existentes que os amantes têm em relação ao ser amado:

[...] suportamos bem menos a perda de coisas que acreditávamos obter do que a
privação de um ganho que apenas esperávamos. O amante também tem medo de
ofender a amada de uma maneira ou de outra, e seus temores são tão numerosos que
é bem difícil relacioná-los. [...] Quando esses pensamentos chegam a tomar conta
dele por inteiro, já não há como frear o amor, e ele passa de pronto à ação; o
enamorado procura obter um apoio, descobrir um mensageiro. Começa a cismar
modos de vir a estar nas boas graças de quem ama, busca lugar e momentos
propícios à conversação, e um breve instante é para ele interminável, pois nada é
feito com suficiente presteza para seu espírito impaciente; e muitas coisas, como se
sabe, assim se passam com ele. (CAPELÃO, 2000, p. 7-8)

Logo, mesmo enamorada de Cligès, Fenice apenas encarou seu amado uma única vez
e não ousou dirigir-lhe a palavra por receio de que este fosse recusar e rejeitar seus
sentimentos. Embora sendo representada como uma donzela extremamente fiel e abnegadora
ao que sentia, Fenice também compartilha das dores que o sentimento não-declarado infligia
aqueles sob seu domínio. Logo na primeira chance a sós com Cligès, a donzela estava
permeada de receios em professar ao amado toda a natureza de seus pensamentos e ações:

Ambos estavam tão receosos de serem rejeitados que não ousaram abrir seus
corações. Ele tinha medo de que ela o rejeitasse; e ela teria aberto seu coração se não
houvesse medo de rejeição por parte dele. Mas apesar disso, os olhos de cada
revelavam seus pensamentos secretos, se soubessem observar! Cuidadosamente,
conversavam com seus olhos, mas tinham tanto medo de suas línguas que não
ousavam colocar em palavras o amor que tanto os atormentava. Não era surpresa
que Fenice não ousasse começar, pois uma donzela deveria ser reticente e recatada.
Mas por quê Cligès hesitava? O que ele estava esperando? [...] Qual era a razão
desse medo, que o acovardava diante de uma donzela, uma criatura fraca e medrosa,
simples e recatada?

Observa-se no trecho acima que Chrétien preocupou-se em resguardar as ações mais


diretas para a figura masculina, inclusive, ressaltando que não caberia à mulher, ser “medroso,
fraco, simples e tímido”, a tomada imediata da dianteira em um diálogo. Cligès inclusive é
descrito como um covarde, pelo simples fato de que o Amor o fez assim diante do receio tão
grande da rejeição por parte de Fenice.

Entretanto, tais reações de Cligès e Fenice podem ser corroboradas pelos


Mandamentos do Amor descritos por André Capelão em seu Tractatus, especificamente os

seguintes: “[...] XV – Todo amante deve empalidecer em presença da amante. XVI – Quando

nothing, spoke to nothing, struggled with nothing, contended with nothing.”


126

um amante avista de repente a mulher amada, seu coração deve começar a palpitar. [...] XX –
O enamorado sempre tem medo.” (CAPELÃO, 2000, p. 261)

Após mais uma oportunidade desperdiçada, os amantes passam por um período


separados, uma outra característica habitual nos romans corteses. A separação momentânea
serve como instrumento narrativo para dar ênfase ao valor do sentimento nutrido, ou seja, se
este for tão puro e verdadeiro quanto ambos, donzela e cavaleiro, julgam ser, este deverá
sobreviver às custas da distância e de uma série de provações que o colocará à prova. Como
então Fenice procederia diante de tal impasse? Como as mulheres, sobretudo as damas e
donzelas da aristocracia deveriam portar-se em relação a mais essa prova?

André Capelão mencionou que:

A mulher deve, pois, informar-se com cuidado se o seu pretendente merece ser
amado; e, se concluir ser ele perfeitamente digno disso, não deverá recusar-lhe seu
amor de modo algum, a menos que, por acaso, já esteja comprometida com outro.
(CAPELÃO, 2000, p. 48)

Ora, não estava Fenice já casada com o tio de Cligès? De que modo então poderia
não recusar o amor de Cligès segundo a ideia proposta por Capelão? O que torna o conto de
Fenice distinto dos demais, e sobretudo da história de Isolda, é o cumprimento absoluto das
promessas da donzela ao amado e a si mesma: manter sua castidade, casar-se como o dever
exigia e nunca dividir seu corpo, alma e coração com alguém que não fosse o jovem
cavaleiro. A ausência do elemento adúltero, da consumação carnal antes do matrimônio e da
manutenção da pureza virginal, mesmo nutrindo um amor considerado proibido, põe em
xeque o ideal de sacralidade, amor e pureza absolutos que apenas seriam encontrados no
matrimônio.

Quando finalmente voltam a se encontrar, após as perguntas formais dispensadas por


suas respectivas posições, Fenice toma a iniciativa e logo indaga a seu amado se este veio a
amar ou não outra mulher no período em que estiveram afastados (DE TROYES, 2004, p.
185-186). O diálogo que segue nos foi assim descrito por Chrétien:

“Minha senhora”, disse ele, “eu amei enquanto estive lá, mas não amei ninguém que
fosse de lá. Meu corpo estava na Britânia sem meu coração, com um pedaço de
madeira sem seu núcleo. Não sei o que se tornou do meu coração depois que deixei
a Germânia, apenas que este lhe seguiu até aqui. Meu coração estava aqui e meu
corpo estava lá. [...] E tu – [...] quais felicidades experimentou aqui? Gosta do seu
povo? Gosta da terra?” “Não gostava antes, mas agora sinto uma certa felicidade e
satisfação [...] Nada de mim que não seja a casca restou, pois, meu coração partiu e
estou vivendo sem ele. Apesar de nunca ter me encontrado na Britânia, meu coração
tinha alguns assuntos a resolver por lá sem mim.” “Minha senhora, quando o seu
coração esteve lá? Diga-me o tempo e a estação que ele foi, [...] Esteve lá enquanto
127

eu me encontrava?” “Sim, apesar não saberes. Esteve lá enquanto tu permaneceste, e


então partiu junto a ti.” (DE TROYES, 2004, p. 186-187, tradução minha)89

FIGURA 12 – O ENCONTRO DE FENICE E CLIGÈS

Iluminura do Roman de la Poire, presente no MS fr. 2186, f. 3v, BnF (c. 1275), com o detalhe de Fenice (à
esquerda na figura) segurando seu coração enquanto conversava com seu amado.
Fonte: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b9059053m/f5.item>. acesso em: 30 jan, 2019.

Após tal jogo de palavras e sentimentos, ambos enfim confessam seu amor um pelo
outro, visto que finalmente perceberam a reciprocidade do que nutriam. Não havia mais
medo, ou temor pela rejeição:

“Então, minha senhora, de acordo com que dizes, nossos corações estão aqui
conosco, pois o meu é inteiramente seu.”
“E tu, meu amigo, tens o meu, já que estamos em perfeito acordo. E deves saber
que, Deus me provenha, seu tio jamais teve parte alguma de mim, pois isso não me
agrada e nem ele teve ocasião. Ele nunca me conheceu como Adão conheceu Eva.
Sou chamada erroneamente de esposa, mas sei que aquele que me chama de sua
esposa não percebe que continuo uma donzela.”
“[...] Meu coração é teu e meu corpo, também, é teu; e não serei exemplo de vilania
para ninguém. Pois quando meu coração se entregou a ti, deu-lhe consigo meu
corpo, e prometi que ninguém mais iria partilhá-lo. [...] Se eu o amo e se tu me

89
No original: “ ‘My lady’, he said, ‘I loved while there, but I loved no one who was from there. My body was in
Britain without my heart, like a piece of bark without its heartwood. I don’t know what became of my heart
when I left Germany , except that I followed you here. My heart as here and my body was there. […] And you
[…] what happiness have you experienced here? Do you like the people? Do you like the land?” “It did not
please me before, but now I sense a certain joy and satisfaction […] Though I have never been to Britain, my
heart has had some sort of business there without me.” “My lady, when was your heart there? Tell me the time
and season that it went […] Was it there when I was there?” “Yes, though you did not know it. It was there as a
long as you were, and then it left with you.”
128

amas, tu nunca será chamado de Tristão e nem eu de Isolda, o que iria sugerir que
nosso amor não era honroso.” (DE TROYES, 2004, p. 187, tradução minha)90

Pode-se observar no excerto acima o teor da promessa que os amantes haviam feito
um para o outro. Ambos entregaram por completo seus corações ao outro, além do
compromisso, quase pacto vassálico, de partilharem entre apenas entre si o corpo e os desejos
nascidos de tal paixão. Fenice, como já supracitado, volta ainda a mencionar Isolda como
forma de desligar-se da imagem adúltera, irracional e desmedida da rainha que deixou-se
levar pelo amor a seu querido Tristão. A proposta de Chrétien em estabelecer uma relação
crítica e ao mesmo tempo oferecer uma alternativa a seus personagens de viverem a plenitude
do Amor sem a mancha do adultério e da felonia é clara.

Logo, “A fim de que a contradição fique evidente, Chrétien retomou para seu
romance certos esquemas do Tristão. Os dois poemas tratam de um sobrinho, da esposa de
um tio, da paixão amorosa entre mulheres casadas e cavaleiros solteiros [...]” (DUBY, 2013,
p. 103). Se os esquemas se repetem, ainda assim conservam suas especificidades, haja vista
que o elemento da poção mágica, presente em ambos, é fator de diferença fundamental no
desenrolar da narrativa de Cligès. Se o sentimento amoroso no Tristan nasce graças ao efeito
do filtro mágico, em Cligès, o amor entre Fenice e o jovem cavaleiro não advém dos
sortilégios, feitiços e encantamentos preparados por Thessala, e sim pela troca de olhares
entre os dois.

Ademais, a poção mágica preparada por Thessala teve como objetivo impedir que
Alis consumasse o casamento com Fenice, mantendo-a virgem e casta para poder partilhar seu
corpo apenas com o homem que já era dono de seu coração: Cligès. Porém, mais um
obstáculo estava à frente; embora professado, o amor entre os jovens não poderia burlar as
regras do matrimônio. Enquanto presa ao laço do matrimônio, Fenice só poderia reunir-se
com seu amado se tal vínculo fosse dissolvido. Como se o pacto conjugal era vitalício,
sacramentado pela Igreja, responsável pela aliança entre os impérios e ainda mais diretamente
relacionado ao parentesco entre Cligès e seu tio Alis?

90
No original: “Then, my lady, according to what you say, our two hearts are here with us, for mine is wholly
yours.’ “And you, friend, have mine, so we are in perfect accord. And you must know, so help me God, that your
uncle has never had a part of me, for it did not please me and he did not have the occasion. He has never yet
known me as Adam knew his wife. I am wrongly called a wife, but I know those who call me his wife do not
realize that I am still a maid. […] My heart is yours and my body, too, is yours, and I will be an example of
villainy to no one. For when my heart settled on you, it gave you my body as well, and promised that no one else
would share in it. […] If I love you and you love me, you will never be called Tristan nor I Isolde, which would
suggest that our love was not honourable.”
129

Fenice, então, lança uma promessa e um pedido à Cligès quando confrontada diante
de tal situação:

Prometo a ti que não terás mais consolo do meu amor do que já tens a menos que
descubra um modo de encerrar meu casamento e levar-me para longe de vosso tio de
maneira que ele nunca me encontre novamente, de modo que ele nunca lhe culpe ou
saiba quem acusar. Tu deves pensar sobre isso esta noite e me dizer amanhã qual o
melhor plano que elaboraste e eu também irei refletir sobre. Venha ter comigo cedo
pela manhã, logo que eu estiver de pé, e iremos discutir nossos planos e decidir o
que faremos de melhor. (DE TROYES, 2004, p. 187, tradução minha)91

Das maneiras de conservar o Amor e fazê-lo crescer, está escrito no Tractatus que
“[...] quando a bem-amada passa por momento de necessidade, todo amante é obrigado a
socorrê-la, compartilhar suas penas e concordar com todos seus desejos razoáveis.”
(CAPELÃO, 2000, p. 211). Ora, o pedido de Fenice a Cligès decerto se encaixa nessas
características: ambos só poderiam estar juntos, livres e desimpedidos se Cligès encontrasse
uma forma de libertá-la dos grilhões do matrimônio.

De acordo com a etiqueta do Amor Cortês, Fenice tem consciência de que é


indecente às mulheres que tomem a iniciativa no amor, motivo pelo qual delega à Cligès a
tarefa de vir com um estratagema que possa enfim reuni-los na plenitude de tal sentimento.
Entretanto, como visto, Fenice impacienta-se com a recusa e a demora de Cligès em
apresentar-se diante dela, mesmo este sendo tomado pelo medo da rejeição, e acaba ela
mesma se manifestando, apresentando-se e revelando sua paixão.

Logo, a donzela não procurou obedecer rigidamente aos “papéis” tradicionalmente


delegados aos homens e mulheres nobres na chamada arte de amar. Consciente de sua
posição, Fenice buscou sempre um modo de agir com educação e elegância, usando-as de
modo racional e sensato, como Chrétien quis demonstrar em todas suas ações. Por isso que
valorização do matrimônio, e mesmo a possibilidade de encontrar a felicidade total fora de tal
instituição é feita de modo que o curso narrativo e a natureza do plano elaborado pelos
amantes para se libertarem seja posto de maneira fluida ao leitor/ouvinte de tal história,
causando um sentimento de empatia, identificação e sobretudo, pela circulação de tais
características – pelo fator da energia social – nas cortes aristocráticas onde tais obras tiveram
seu berço e audiência.

91
No original: “But I promise that you have no more solace from my love than you have now unless you can
discover how to end my marriage from my love than you have now unless you can discover how to end my
marriage and secrete me away from your uncle to where he could never find me again, in a way that he could not
blame you or me or know whom to accuse. You must see this tonight and tell me tomorrow the best plan you
have devised, and I too will reflect on it. Come to speak with me early tomorrow, as soon as I am up, and we will
lay out our plans and set about doing whichever we deem better.”
130

Qual seria então a saída encontrada pelos amantes? No dia seguinte à conversa com
Fenice, Cligès diz a sua amada sobre o que pensou durante a noite:

“Minha senhora”, ele disse, “Estou convencido que não faríamos nada melhor que
não fosse ir para a Britânia; pensei de levá-la até lá. Por favor, não recuse, pois a
alegria em Tróia quando Páris trouxe Helena não seria nada em comparação à
alegria sentida por mim e vós na terra de meu tio-avô, o rei. Mas caso não seja de
seu agrado, diga-me o que pensas, pois estarei pronto, não importa quais sejam as
consequências, para apoiar seu plano.” (DE TROYES, 2004, p. 187-188, tradução
minha)92

Ao passo que Fenice o responde de tal maneira:

Devo lhe dizer: não irei fugir contigo dessa maneira, pois todos iriam falar de nós
depois que partíssemos, como o fizeram com Isolda, a loura e Tristão, e homens e
mulheres de toda parte iriam condenar nossa paixão. Ninguém iria acreditar no que
realmente aconteceu, nem deveriam. Quem iria acreditar que enquanto donzela
enganei e fugi de seu tio? Isso seria considerado vergonhoso e você seria tomado
como tolo. (DE TROYES, 2004, p. 188, tradução minha)93

Porém, é no comentário seguinte que a donzela justifica sua decisão:

É melhor manter e seguir o conselho de São Paulo: se não podes permanecer puro,
São Paulo ensina como comportar-se com discrição, de modo que ninguém critique,
culpe ou reprove a ti. É melhor silenciar uma língua má, e, se não tiveres objeção,
acredito que conheço uma maneira de fazer isso. (DE TROYES, 2004, p. 188,
tradução minha)94

Por que Fenice teria invocado os conselhos de Paulo para justificar seu
comportamento em relação a Cligès? Ora, o medo do pecado, de macular o corpo e a alma
imortal, perpassava por todo os estratos sociais no medievo. Ademais, se o situarmos no
contexto da época, não seria errôneo percebê-lo como fator de influência quase que
primordial na construção das relações sociais, na simbologia, nas instituições, na visão de
mundo e nas práticas rituais dos homens e mulheres da medievalidade (CASAGRANDE;
VECCHIO, 2017).

Se passarmos da esfera coletiva para a individual, e sobretudo, a que tange ao


universo feminino, as tensões entre corpo/alma, sexualidade/castidade estabelecem dinâmicas
de comportamento passíveis de discussão em se tratando das formas de representação
92
No original: “ ‘My lady’, he said, “I am convinced that we could not do better than go to Britain; I thought I
would take you there. Now please don’t refuse, for the joy in Troy when Paris brought Helen there could not
compare to the joy that will be felt for you and m throughout the land of my great-uncle, the king. But if this
does not suit you, tell me your thought , for I am ready, no matter what the consequences, to support your plan.”
93
No original: “I shall tell you: I will not run off with you like that, for then everyone would speak of us after we
had left as they do of Isolde the Blonde and Tristan, and men and women everywhere would condeem our
passion. No one would ever believe what really happened, nor should they. Who would believe that while still a
maid I stole away and escaped from your uncle? It would be considered shameless and loose and you be taken
for a fool.”
94
“It is best to keep and observe the advice of Saint Paul: if you cannot remain pure, Saint Paul teaches you to
conduct yourself with discretion, so that no one can criticize, blame or reproach you. It is best to silence an evil
tongue , and, if you have no objection, I believe I know a way to do so.”
131

feminina. Se o corpo na Idade Média “torna-se uma metáfora” (LE GOFF, 2010, p. 155),
todas suas respectivas ações automaticamente possuem significados e simbolismos muito
próprios.

Com base nisso, qual o papel da mulher dentro deste prisma de análise? Ou melhor, a
quais características o feminino está intrinsicamente ligado? Partindo de uma dupla
perspectiva – espiritual e corporal – o que se observa, via de regra, é uma subordinação do
feminino em relação ao masculino, pois se o mundo medieval é, em sua essência,
hierarquizado, “[...] a mulher só pode ocupar uma posição secundária, procurar o apoio
masculino. Homem e mulher não se equilibram, nem se completam: o homem está no alto, a
mulher embaixo.” (KLAPISCH-ZUBER, 2017, p. 157).

Graças a tal “necessidade” de organização, e por ser, em tese, mais suscetível aos
pecados da luxúria e concupiscência, o corpo feminino foi duramente vigiado e vilipendiado,
segundo uma ideologia que o considerava fraco, impuro e pecaminoso por natureza: “[...] aqui
a carne concupiscente, fonte de impulsos dificilmente refreáveis; ali um espírito enfraquecido,
assolado pelas paixões, incapaz de governar sozinho o corpo que habita e tolhido em seu
desejo de se voltar para o bem. [...]” (CASAGRANDE; VECCHIO, 2017, p. 379). Segundo
essa “antropologia do pecado”, não era surpresa que o vínculo matrimonial por si só
configurasse uma salvação para as contradições existentes e impostas ao corpo das mulheres.

Quando Fenice menciona que “é melhor manter e seguir o conselho de São Paulo”,
faz referência indireta às epístolas do apóstolo em que este exorta e aconselha sobre temas
como adultério, fornicação e, claro, celibato. Ora, se o apóstolo diz que “vossos corpos são
membros de Cristo” (I Coríntios 6, 15) e que também o “é templo do Espírito Santo, que
habita em vós” (I Coríntios, 6, 19), logo procura estabelecer o caráter sagrado da criação
máxima de Deus: o homem.

De modo a exortar as virtudes de devotar direta e totalmente seu corpo a Cristo,


Paulo nos diz que “[...] seria bom ao homem não tocar mulher alguma. Todavia, considerando
o perigo da incontinência, cada um tenha sua mulher e cada mulher tenha seu marido.” (I
Coríntios, 7, 1-2), e alerta “Isto digo como concessão, não como ordem. Pois quereria que
todos fossem como eu [celibatário]; [...] (I Coríntios 7, 6-7), ou seja, livres da luxúria e das
tentações da carne.

Fenice também menciona que “São Paulo ensina como comportar-se com discrição”,
o que pode ser vislumbrado quando o apóstolo diz que “Aos solteiros e às viúvas, digo-lhes
132

que é bom permanecerem assim, como eu. Mas se não podem guardar a continência, casem-
se. É melhor casar do que abrasar-se.” (I Coríntios, 7, 8-9).

Portanto, Fenice assim escolhe. Permanece casada, sob o voto indissolúvel do


matrimônio, com o tio de Cligès, mesmo sendo apaixonada por este último. Ao optar não
“abrasar-se” com o amado, macular seu corpo e sua alma com o pecado do adultério, resta à
donzela elaborar uma saída que a liberte do vínculo conjugal. Se desgostosa da ideia de fugir
com Cligès, ela então propõe o seguinte:

Meu plano é fingir morrer; porém, antes, fingir estar doente, e quanto a ti, no que lhe
cabe, deverás lidar com a construção de minha tumba. Use tua habilidade e atenção
para que minha tumba e caixão sejam construídos de modo que eu não sufoque ou
morra em seu interior, e para que ninguém note quando tu vieres à noite retirar-me
deles. Encontre um lugar para me esconder depois onde ninguém, exceto tu, irá
poder me ver, e não deixe que nenhuma pessoa atenda minhas necessidades, exceto
tu mesmo, para quem me dou e confio totalmente. (TROYES, 2004, p. 188, tradução
minha)95

Se o rito matrimonial, até indissolúvel, era eterno, não seria a morte uma maneira de
pôr fim à sua existência? Entretanto, quando se fala do período medieval, deve-se atentar para
dois possíveis erros de interpretação que incutem o historiador ao equívoco, fazendo-o
elucidar uma “advertência metodológica”, sobretudo, no que diz respeito à natureza dos
documentos por ele utilizados (DUBY, 2011).

Primeiramente, segundo a análise de Georges Duby, recai sobre a atenção demasiada


ao que o medievalista francês chama de “[...] enunciados normativos, aos termos de
regulamentação, às fórmulas dos atos jurídicos [...]” (DUBY, 2011, p. 12), em suma, àquilo
que concerne a documentação oficial, jurídica e canônica sobre a realização do casamento na
medievalidade. O mesmo ainda alerta que “[...] todo preceito de lei ou de moral constitui
apenas um elemento entre outros de uma construção ideológica edificada para justificar certas
ações, e para, numa certa medida, mascará-las [...]” (DUBY, 2011, p. 12). Portanto, seu
caráter sacro, indissolúvel e ritualístico pode – e foi – utilizado como sustentáculo das
estruturas hierárquicas sociais e de parentesco que dominaram todo o recorte temporal aqui
estudado.

Tal risco cai justamente em uma “hiperinterpretação” de tais preceitos, pois nada
mais natural que entre o elemento teórico contido em tais regulamentos e sua real validade e

95
No original: “My plan is to pretend to die; before long I shall pretend to be sick, and you for you part should
see to the construction of my tomb. Use your skill and attention to see that my tomb and coffin are built in such a
way that I do not suffocate or die inside, and that no one will take any notice when you come at night and lift me
from them. Find a place for me to hide afterwards where no one but you will see me, and let no one provide any
of my needs except you, to whom I give and entrust myself.”
133

aplicação na prática, exista um vácuo de transgressões, desvios e ações que competem


diretamente ao historiador suas determinações.

Já o segundo erro, em sintonia maior com o objeto dessa pesquisa, relaciona-se com
a adoção imediata da visão eclesiástica sobre o casamento. Seus postulados, pontos de vista, e
sobretudo, pelo testemunho do clero medieval acerca do papel dos cônjuges em tal instituição.
Logo, a veia antifeminista, misógina e punitiva salta aos olhos do estudioso que pode “[...]
involuntariamente, a partilhar do pessimismo ou então do irenismo desses homens, a tomar
por certo o que eles, na maioria celibatários ali que fingem sê-los, exprimiram sobre as
realidades conjugais.” (DUBY, 2011, p. 12)

Existe uma terceira via? Uma alternativa existente no âmbito dessa disputa
civil/eclesiástica? Por que não estender aos domínios da literatura, mas da literatura cortesã, a
problematização estabelecida? Se tomadas como “emergência do privado” e “consideração do
indivíduo”, tal documentação convida o historiador ao seu uso “prudente” (RÉGNIER-
BOHLER, 2009).

Tomando as narrativas literárias como sendo dotadas daquilo que entendemos por
“regimes de verossimilhança” (PESAVENTO, 2007), ali pode-se observar determinadas leis
que sejam coerentes com o elemento do real que desejam espelhar, pois “[...] A simples
esboços do espaço real ou sonhado, alguns protagonistas privilegiados, a literatura sabe dar
vida: de um lugar ao outro, de um conflito às conciliações, a literatura preenche o que em
aparência apagara.” [RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 314). Desse modo, o ardil proposto por
Fenice representa a visão de seu autor, Chrétien, de uma situação até o momento
insustentável, presidindo uma forma de alento para que sua protagonista obtenha a liberdade,
sem, porém, macular sua estimada reputação.

Diferentemente dos documentos oficiais/jurídicos, e da visão do prelado medieval, a


narrativa cortesã procurou oferecer possibilidades de “escape”, realização e identificação,
principalmente ao público feminino desejoso de desdobramentos narrativos mais flexíveis do
que a realidade da época de fato permitia.

Voltando ao centro da narrativa do roman, Fenice parte em busca de realizar o mais


rápido possível seu plano. E, novamente, vai até Thessala em busca de ajuda, suplicando à
governante que a auxilie mais uma vez em sua empreitada. Lembremos uma vez mais que
Fenice pretendia fingir-se de doente, antes de fabricar sua própria morte, logo a saída
encontrada por Thessala voltou-se novamente para a fabricação de uma poção que deixasse a
134

donzela “[...] fria, sem cor, pálida e rígida, e que mascarasse a força de sua voz e respiração,
apesar do fato de que ela estaria viva e saudável e em nada sentiria tais efeitos.” (DE
TROYES, 2004, p. 189, tradução minha)96.

Logo, o plano foi posto em ação. Enquanto Fenice convalescia de sua falsa condição,
Cligès fazia os demais preparativos, e toda a corte sofria junto com males que haviam
cometido sua imperatriz. Quando Thessala ministra a segunda dose da poção a Fenice, esta
logo sente seu corpo paralisar, perder as forças e a capacidade de falar, entrando em um
estado de falsa morte que deixa o imperador e todo o povo em estado luto profundo. Restava
agora a parte final do plano: Cligès resgatar Fenice de sua tumba escondida na torre mais
afastada e alta do castelo.

FIGURA 13 – A DOENÇA DE FENICE

Iluminura presente no MS fr. 2186, f. 3v, BnF (c. 1275), representando Fenice sendo examinada pelos
médicos da corte após tomar a poção.
Fonte: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b9059053m/f5.item>. acesso em: 30 jan, 2019.

Quando enfim reúnem-se, Fenice diz ao seu amado “[...] Meu querido, doce amor,
um pomar onde eu pudesse relaxar me faria bem. [...] Se fosse possível, eu realmente adoraria

96
No original: “[...] cold, colourless, pale and stiff, and that woul mask her power of speech and breathing,
though she would in fact be quite alive and healthy and would feel no ill effects.”
135

ir até lá fora: me sinto confinada nessa torre. Faria muito bem a mim se houvesse um pomar
próximo onde eu pudesse caminhar” (DE TROYES, 2004, p. 200, tradução minha)97.

Atenção para os dois lugares mencionados anteriormente: a torre e o pomar. No


centro das narrativas romanescas, tais localidades possuem funções simbólicas tanto para o
feminino quanto para o masculino. A torre, por si só, pode ser evocada na literatura cortesã
como o espaço da conquista, símbolo do poder masculino sobre a mulher, não por acaso seu
formato fálico. A escolha de Cligès por esconder Fenice no alto da torre do castelo denomina
o espaço defensivo do jovem cavaleiro de proteger sua amada, sendo ele, e somente ele, o
responsável por guardar tal habitação e o segredo que esta encerra em suas paredes. Logo, a
torre assume uma “função protetora”, inserida no “[...] quadro de uma arquitetura imaginária
favorável aos amantes, tem um papel inteiramente benéfico” (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p.
324).

Se Fenice determinou que somente Cligès pudesse atender seus pedidos e ser
responsável por sua vigília, é porque o segredo da torre é mais um a ser partilhado pelo
sentimento amoroso. Em uma ordem privada, pois “[...] A jovem mulher e seu amante vivem
seus amores no impedimento... e na proximidade” (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 324).

Segundo espaço, idílico, o pomar tem por sua vez o papel simbólico de local ideal
para as manifestações do amor entre os enamorados. Seja nas reuniões escondidas –
preferencialmente noturnas –, seja como local de sedução e desnudamento da mulher, “[...] o
pomar dos amantes é sobretudo um lugar protetor” (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 325). Ali
encerram os mais secretos desejos, angústias, carícias e realizações do Amor.

Quando Fenice é levada até o pomar mais próximo, logo todas as suas palpitações,
angústias e questionamentos dão vazão ao sentimento de pertencimento e segurança que esta
enfim sente ao lado de Cligès, representados assim segundo Chrétien:

Quando Fenice viu a porta aberta e o sol brilhando, o qual não via há muito tempo,
seu sangue urgiu em felicidade e ela disse estar perfeitamente feliz: agora que não
estava mais confinada em sua cela subterrânea não poderia desejar estar em outro
lugar que não este. Cruzou a porta para um prazeroso e maravilhoso pomar. No meio
deste havia uma árvore coberta de folhas e flores, com uma longa e espaçosa copa.
[...] Era tudo o que Fenice poderia desejar! Sob a árvore, a grama espalhava-se
macia e bem-feita e mesmo quando sol estava o mais quente possível ao meio-dia,
nenhum raio de luz era capaz de penetrar o arco feito pela árvore [...]. Fenice ia até
lá para repouso, e, durante o dia, eles colocavam a cama embaixo da árvore, onde os
amantes tiravam sua felicidade e prazeres. O pomar era cercado por altos muros

97
No original: “My dear, sweet love, an orchard where I could relax would do me good. […] If it were possible,
I really would like to go outside: I feel confined within this tower. It would often do me much good if there were
an orchard nearby where I could go and walk.”
136

ligados à torre e ninguém poderia entrar sem antes passar pela torre. Fenice estava
muito contente, com nada a interromper seus prazeres e todos os seus desejos enfim
estavam se realizando agora que ela podia abraçar seu amor quando quisesse
debaixo das flores e folhas. (DE TROYES, 2004, p. 201, tradução minha)98

Portanto, foi no pomar onde os jovens amantes puderam enfim juntar seus corpos e
corações de vez, uma vez que Fenice agora não estava mais ligada ao imperador pelo laço
matrimonial. Como visualizado, Chrétien procurou representar nas reações de Fenice a ideia
de um porto seguro, um espaço de amor, onde nada e ninguém, além dos dois, fosse o centro
das atenções um do outro. Desse modo, o simbolismo é mais uma vez observado neste lugar
que “[...] oferece a imagem de uma felicidade sem ameaça de ruptura, e diz respeito
evidentemente ao problema da permanência ilimitada, em sua duração, pelo inesgotável
afluxo de sensações [...]” (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p. 326).

Durante todo o roman, o que se observa nas múltiplas nuances de Fenice, bem
representadas por Chrétien de Troyes, é, ao mesmo tempo um novo olhar analítico sobre a
figura feminina que escape da tentadora polarização discutida nos tópicos anteriores.
Colocando a donzela no centro da narrativa, das ações e de toda construção temática da
história, Chrétien de Troyes induz, ou faz crer ao historiador a possibilidade de que as
relações sociais e as representações femininas já a partir da segunda metade do século XII
estiveram se transformando gradualmente.

Como poeta, fazia bem ao ouvir seu público, e mais ainda, entregar-lhes o que estes
desejavam. Por qual motivo, então, não seria o público feminino aristocrata um de seus
principais, e por que não, sua principal audiência? É preciso cuidado para não cair no
simplismo, ou na exacerbada idealização da condição feminina na medievalidade, mesmo
dentro da aristocracia. O medievo foi um período marcado por traços misóginos,
controladores e estritamente masculino. Porém, não o foi apenas isso.

Discutir e apresentar outras facetas femininas, sejam nas representações por


intermédio da literatura ou não, é tarefa de suma importância para a derrubada de estereótipos,
visões de mundo e hierarquizações ainda banais quando se fala de “Idade Média”. Embora tal

98
No original: “When Fenice saw the door open and the sun come shining in, which she had not seen for a long
while, her blood surged with joy and she said that she was perfectly happy: now that she was no longer confined
to her underground cell she could not wish for another place to stay. She stepped through the door into the
pleasant and delighful orchard. In the middle. In the middle of the orchard stood a grafted tree, covered with
leaves and flowers, with a wide-spreading top. […] It was all that Fenice could want! Beneath the tree grass
grew fair and soft, and even when the sun was at its hottest at noon no ray could penetrate the bower […]. Fenice
went there for her repose, and by day they set up her bed beneath the tree where the lovers had their joy and
pleasure. The orchard was surrounded by high walls connected to the tower and no one could enter there without
first passing through the tower. Fenice was very contented, with nothing to disrupt her pleasure and all her
desires fulfilled no that she could embrace her lover whenever she wished beneath the leaves and flowers.”
137

caminho historiográfico venha ganhando espaço nos estudos sobre a condição feminina e sua
ligação com a literatura do período, já na segunda metade do século passado os primeiros
alertas foram feitos. Georges Duby foi um dos que fizeram coro à tal problemática, ao afirmar
que “[...] Por muito tempo combati, e duramente, a hipótese de uma promoção da mulher na
época feudal porque os argumentos propostos para sustentar essa hipótese não me pareciam
convincentes” (DUBY, 2013, p. 106).

Porém, em um breve ensaio sobre os romances de Chrétien de Troyes presente em


seu As damas do século XII, o medievalista acaba por reconhecer que em boa parte de sua
obra, Chrétien de Troyes traz à tona figuras femininas que solapam a importância masculina e
que ainda controlam toda a estrutura narrativa de suas tramas (DUBY, 2013), nos dizendo
ainda que “[...] somos portanto obrigados a pensar que aqueles que o escutavam se
representavam de uma nova maneira as relações entre o masculino e feminino” (DUBY, 2013,
p. 106).

Desse modo, as facetas de Fenice – a fiel, a racional, a apaixonada, a ardilosa, a


donzela – servem como um interessante ponto de partida para analisar tais características
muitas vezes dinâmicas, que durante longo tempo estiveram presas à condição de imaginação,
ou mera ficção. Os paralelos estabelecidos entre Fenice e sua contraparte, Isolda, forncem ao
historiador um novo prisma de análise para compreender o universo feminino dentro de uma
literatura medieval tão rica e simbólica, que solapam a ideia de um período de trevas, infértil
culturalmente.

Embora a ideia principal deste capítulo tenha recaído sobre essas duas personagens
literárias e suas relações, a questão dos desejos, da sexualidade intermitente e da relação
corpo/desejo/pecado foi diluída entre os tópicos. De modo a continuar de modo mais
específico tal discussão, o capítulo seguinte terá por objetivo elucidar e discutir cenários,
situações e espaços de uma possível “liberdade” sexual feminina, suas implicações e
logicamente, suas condenações e combates.
138

4. AMOR, SEXO, PAIXÃO: REPRESSÕES E “LIBERDADES” DO FEMININO NO


CONTEXTO MEDIEVAL

Segundo as análises realizadas no capítulo anterior, é possível notar a existência de


uma pluralidade de discursos – ainda que predominantemente masculinos – proferidos no
medievo sobre as mulheres, que trazem às lentes do historiador uma série de investigações
mais cuidadosas e por que não, sensatas sobre o status quo feminino àquela época.

Embora a cristalização de qualquer tema sobre o medievo e, mais ainda sobre a


condição da mulher neste período em especial, tenha se tornado atenuada e atualizada pela
historiografia, boa parte dos testemunhos e documentos históricos produzidos à época
atenderam uma lógica masculina de composição e hierarquia.

Se essa “Idade Média masculina” vem sendo gradativamente desconstruída ou


mesmo “recontada” pelos medievalistas, torna-se oportuno explorar sob quais dinâmicas
culturais o papel da mulher enquanto indivíduo foi interpretado e representado pela sociedade
medieval. Sob o prisma analítico das dualidades que envolvem desde a perseguição/exaltação
e as possíveis liberdades em contraposição ao elemento repressivo existente pelos setores
dominantes a discussão estabelecida no presente capítulo priorizará as diversas manifestações
sociais que envolvem, sobretudo, a “disputa” secular pelo corpo feminino.

Abordando as temáticas do amor, da sexualidade e das paixões femininas, as fontes


selecionadas para tal estudo oferecem uma visão plural das relações sociais entre o universo
masculino predominante e tudo aquilo que supunha-se estar sob sua órbita. Ora, já foi
mencionada a necessidade e a verdadeira “obsessão” do medievo pelo sentido de “ordem” que
deveria reger todas as estruturas sociais, culturais e políticas no período, ao passo que todos os
testemunhos documentais aqui elencados inserem-se em tal lógica de observação.
139

Entretanto, sob pena de cair no erro vital do historiador de tomar como verdade
inquestionável tais testemunhos, por que não delimitar, apontar e questionar sob quais
pressupostos teóricos e ideológicos tais visões sobre o feminino foram construídas
historicamente? O que os fabliaux anônimos do século XII relatavam sobre os vícios, falhas e
perigos do corpo e da mente femininos? Ou então o que o tratado teológico de São Bernardo
de Claraval (1090-1153) sobre as diferentes formas de amor nos diz sobre a influência
teológica nas relações entre o corpo perene e alma imortal? São questionamentos e reflexões
discutíveis sob tal alternativa historiográfica de perceber e apontar diferentes visões e
representações da condição feminina entre os séculos XII e XIII no medievo Ocidental.

4.1. CORPO MACULADO, ESPÍRITO CONDENADO: AS ESTURURAS DO PECADO


FEMININO

Quando Georges Duby escreveu em seu a Eva e os padres que “Ao longo do século
XII, a Igreja do Ocidente começou a levar seriamente em conta a expectativas das mulheres”
e que assim o fazendo poderiam enfiam tais mulheres que “Sentiam-se abandonadas e pediam
que melhor as ajudassem a caminha rumo à salvação” (DUBY, 2013, p. 255), o detalhe
importante a se notar é o curso e o uso da palavra/noção de salvação.

Durante todo o período medieval, como supracitado, a dinâmica social esteve envolta
na relação entre o pecado, a coletividade e os indivíduos que eram constantemente
assombrados por essa realidade que tanto se fazia presente nos constantes sermões do clero.
Palavra de ordem: controle. Seja o controle institucional, intelectual, e principalmente, o
corporal, foi assim que a Igreja medieval acabou por moldar toda uma ética comportamental
que solidificou e ajudou a construir a ideia de um período de excessiva repressão, combate,
desvalorização e condenação do corpo.

Desde a existência do Pecado Original, o curso da humanidade, em sua óbvia


teleologia – segundo a Igreja cristã –, deveria seguir rumo ao advento final da salvação da
alma, e do arrependimento de todos os pecados cometidos em vida. Ora, o esboço temporal,
teológico e histórico no medievo girou em torno de uma divisão cronológica que levou em
consideração as diferentes fases históricas do pecado e sua relação com a humanidade:

[...] o ato de desobediência a Deus de Adão e Eva assinala a passagem de um estado


original de perfeição para uma condição dominada pela presença do pecado; a
Encarnação desencadeia um processo de salvação, de libertação do pecado; o fim
dos tempos assinala a condenação definitiva dos pecadores e a glória eterna dos não
pecadores. O tempo individual situa-se no interior desse tempo histórico e começa
no erro, quando, com o nascimento, o homem contrai o Pecado Original; continua
140

após o batismo, quando o homem, liberto da mancha original, adquire a capacidade


de lutar contra os numerosos pecados que o cercam; e termina com a morte física,
quando, dependendo dos pecados cometidos, ele será salvo ou condenado para a
eternidade. (CASAGRANDE; VECCHIO, 2017, p. 378)

Tais temporalidades desenvolveram-se dentro de espaços muito bem delimitados


segundo a teologia medieval, que variaram desde uma terra livre de pecados (Paraíso
terrestre) ao lugar terreno criado especialmente para a expiação destes (mosteiro). Ademais,
seguindo a rígida necessidade de hierarquização, o Além medieval e seus múltiplos setores
(Paraíso, Inferno, Purgatório, etc.) também foram estruturados de acordo com a tipologia e a
gravidade dos delitos cometidos pela humanidade (CASAGRANDE; VECCHIO, 2017).

Como, então, viver dentro de tal cenário social, envolto em constantes discussões,
disputas e castigos seja pela natureza corporal dos indivíduos ou do destino de suas almas
imortais?

Sabemos que a mulher, tradicionalmente subordinada às estruturas masculinas de


dominação, foi a primeira a sucumbir perante os tribunais simbólicos perpetuados pela Igreja
cristã, e tomada como ré pela nova ordem imposta graças aos Pais da Igreja e sua filosofia
teológica que imputou à mulher a culpa e razão do Pecado Original. Foi o cristianismo que
transmutou este em pecado sexual (LE GOFF; TRUONG 2010).

Tal feito só foi possível mediante o caráter simbólico existente nas Escrituras que
atestam a possível “validade” de tal fundamento, pois a “tríade de reprovação sexual dos
clérigos” entre os séculos V e XII no Ocidente medieval constituiu-se na observação dos
pecados da fornicação, concupiscência e luxúria observados em grande medida no Novo
Testamento (LE GOFF; TRUONG, 2010).

Logo, coube à Igreja a dupla função de condenar e salvar as mulheres envoltas nessa
teia contraditória de vícios e virtudes relacionados ao seu sexo. E por que os clérigos? Não
constituía um profundo paradoxo que estes indivíduos celibatários se ocupassem de advogar,
aconselhar, relatar e refletir sobre os assuntos de natureza sexual que envolvessem terceiros, e
mais ainda, indivíduos que não pertenciam ao seu próprio gênero?

Façamos um retorno ao Tractatus de Amore e a natureza daqueles que podem amar.


Capelão escreve no tomo I de sua obra que três são as classes existentes para o desfrute do
amor: plebe, pequena nobreza e alta nobreza. Sejam homens ou mulheres pertencentes a cada
um desses estratos sociais, o clérigo aponta e alerta para a existência da “[...] mais nobre de
todas as classes, a dos eclesiásticos”, buscando esclarecer o “[...] modo como eles devem
141

comportar-se em amor” e elucidar “[...] qual a origem da nobreza dos homens da Igreja”
(CAPELÃO, 2000, p. 194-195). Ele então diz que:

O eclesiástico é considerado de uma nobreza superior em virtude do privilégio


conferido pelo estado sagrado. Essa distinção, com se sabe, provém de Deus, e pela
vontade divina foi concedida ao clérigo. [...] Mas, por mais longe que vá essa
nobreza, um eclesiástico não pode ter pretensões ao amor, pois, em respeito a ela
não deve dedicar-se à sua prática. Ao contrário, é obrigado renunciar absolutamente
a todos os prazeres da carne e manter-se puro da profanação carnal para dedicar-se
aos serviços de Deus, segundo nossa fé. (CAPELÃO, 2000, p. 195)

Se o clérigo é, utilizando a terminologia medieval, armado diretamente por Deus


com os instrumentos e virtudes da nobreza, logo deve-se respeitar seu estatuto. Segundo essa
lógico, o próprio Capelão afirma que não há sentido em dedicar mais linhas do seu tratado
para falar sobre a natureza do amor clerical, pois graças aos altos cargos e elevada posição na
hierarquia social, tais agentes históricos se abstêm de provar das tentações e dos prazeres do
corpo, sob pena de perderam tal distinção social e zelo por sua condição sagrada. Porém, o
autor ainda dedica mais algumas reflexões sobre o amor clerical. Talvez, em uma mea culpa,
Capelão pontuou que:

No entanto, não há, por assim dizer, ninguém que passe pela vida sem cometer o
pecado da carne, e os eclesiásticos estão mais sujeitos que os outros homens às
tentações do corpo, pois têm sempre muito tempo disponível e mesa farta. Se,
portanto, algum deles quiser se entregar às justas amorosas, que faça sua corte e se
esforce por realizar o serviço religioso segundo a classe ou a situação social de seus
pais. (CAPELÃO, 2000, p. 196)

Quando menciona “segundo a classe ou situação social de seus pais”, o autor refere-
se à condição social das mulheres cortejadas pelos clérigos. Seria um insulto às donzelas e
damas da pequena e alta nobreza que um cônego, padre ou até mesmo um bispo lhes fizessem
corte. Não raro que a literatura medieval, sobretudo a satírica e erótica, tenha múltiplos
exemplos dessa conduta amorosa de clérigos relacionando-se com mulheres plebeias.

Dentro desse universo literário, um dos gêneros de escrita que mais abordou os temas
mencionados foi o fabliau (com o plural fabliaux). De teor geralmente cômico e erótico,
consistia em uma narrativa curta e elaborada em versos octossilábicos, muito característica da
região norte da atual França. Seus autores e intérpretes, os trouvères99, versaram comumente
sobre a vida cotidiana dos diversos estratos sociais do medievo Ocidental, utilizando da sátira,
ironia e de uma linguagem escatológica para tecerem críticas e representações de suas
realidades históricas:

99
A língua francesa distingue trouvères de troubadours. Os primeiros são os trovadores característicos da região
norte da França, enquanto os últimos são os cantores-poetas da região da Provença, no sul do território francês.
142

Os fabliaux são um espelho social do seu tempo. Essa importante primeira expressão
do realismo literário europeu representa uma fonte extremamente valiosa de
informações sobre a vida cotidiana em uma época da qual poucos documentos
sobrevivem, e aqueles que sobrevivem lidam com domínios de pensamento e
imaginação muito distantes da experiência cotidiana. Apesar do exagero, do absurdo
e do escândalo [...], essa narrativa cômica testemunha o grande renascimento urbano
do século XII, bem como o que se passava no campo. (BLOCH, 2013, p. XXII,
tradução minha)100

Logo, tal documento auxilia o historiador a balizar e compreender seu horizonte de


expectativas e problematizações. Embora a autoria de grande parte de tais fontes fosse
desconhecida, é conhecido o fato de que os fabliaux pertencem a uma parcela da literatura
latina vernácula que objetivou tanto o entretenimento quanto a instrução de seu público-alvo.
Sua linguagem sexual, cômica e exagerada diferiu dos outros gêneros contemporâneos, como
as canções de gesta, a lírica trovadoresca e o próprio roman. Suas ações e lições encontraram-
se na descrição e celebração dos apetites corporais: o sexo, o riso, a gula e a ganância
(BLOCH, 2013).

Retornando à análise anterior, pode-se destacar o elevado interesse dos clérigos pelas
mulheres de baixa condição. Mulheres plebeias, porém, casadas. Quase todos os exemplos
existentes nos fabliaux dos séculos XII relatam as aventuras amorosas do baixo e do alto clero
com mulheres casadas, muitas vezes em situações absurdas que expõem as contradições
existenciais da rígida estrutura hierárquica imposta no medievo. É possível observar ainda nos
fabliaux, a narrativa da criação das três ordens – clero, nobreza e campesinato –, e as funções
e deveres imputados a cada uma., como fabliau anônimo do século XII intitulado Des putains
et des lecheors [As putas e os pantomimeiros, em tradução livre], que assim narra tal
momento:

Quando Deus primeiro fez e preencheu a terra


com pessoas e em todo o seu perímetro
com as criaturas que lá pertenciam, Ele
então estabeleceu três ordens de homens
para viver na terra pelo seu decreto:
o clero, cavaleiros e campesinos.
Cada tinha seu lugar. Ele deu os direitos
de posse e governo aos cavaleiros,

100
No original: “The fabliaux are a social mirror of their time. This first important expression of European
literary realism represents an extremely valuable source of information about daily life in an age from which few
documents survive, and those which do survive deal with domains of thought and imagination far removed from
everyday experience. Despite the exaggeration, the absurdity, and the scandal […] the comic tale bears witness
to the great urban renaissance of the twelfth century as well as to what went in on the countryside.”
143

e ao clero dízimos e esmolas,


e por último Ele deu fazendas
aos camponeses para serem semeadas e lavradas [...].
(THE FABLIAUX, 2013, p. 9, tradução minha)101

Após o advento da criação e da divisão das tarefas, duas “classes” sociais questionam
Deus por não levar em conta seus desejos e considerações: os artistas de rua e as donas de
bordel. Quando indagado por estes o motivo de não os prover e assisti-los de acordo com suas
necessidades (vv. 22-29), Deus, então, dirige-se imediatamente à suas três ordens,
considerando o pedido feito por seus outros rebentos. O Criador assim os ordena:

“Vós senhores a quem dei todas as terras


para governar, coloco agora em vossas mãos
os pantomimeiros a comandar
para junto dos seus viverem.
Sejam generosos e abertos
com eles, pois Eu, teu Deus, assim comando,
e não os tratem com desdém.
E vós, Meu clero, deve manter
as prostituas sob sua proteção
de acordo com a minha direção.”
Mantendo o decreto do Senhor,
O clero apoiou a prostituição,
mantendo essas mulheres em estima
e se assegurando que estas teriam o melhor
de todas as riquezas da Igreja Mãe.
(THE FABLIAUX, 2013, p. 11, tradução minha)102
101
Todas as traduções dos fabliaux utilizados a partir desse momento são de autoria própria do autor, sendo
baseadas na tradução para o inglês dos textos originais em francês arcaico por Nathaniel Dubin. A edição aqui
utilizada contendo os fabliaux é a edição bilíngue (francês arcaico-inglês), de autoria do autor supracitado. C.
DUBLIN, Nathaniel E (ed.). The fabliaux: a new verse translation. [Translated by Nathaniel E. Dubin;
introduction by R. Howard Bloch]. New York; London: Liveright Publishing Corporation, 2013. No original:
“Quant Dieus ot estoré lo monde (When God first made and filled the earth) / si com il est a la reonde (with
people and throughout its girth) / & quanqüe il convit dedenz, (all creatures that belong there, then) / .iii. ordres
establi de genz (He set up three orders of men) / & fist el siècle demoranz (to live on earth by his decree) / clers,
chevaliers & laboranz. (the clergy, knights and peasantry.) / Les chevaliers toz asena (Each has his place. He
gave the rights) / as terres, & as clers dona (to own and govern to the knights,) / les aumosnes & les dimages,
(and to the clergy tithes and alms,) / puis asena les laborages (and last of all He gave the farms) / as laboranz por
laborer (to peasants to be sown and tilled […].”
102
No original: “Vos cui les terres abandoi [n], (You lords to whom I gave all lands) / les lecheors vos bail &
doin (to rule, I now place in your hands) / que vos d’aus grant cure preigniez (the entertainers as your charge) /
que il n’aient de vos soufraite; (to live among your entourage). / ne ma parole ne soit fraite (Be generous and
openhanded) / mes donez lor a lor demant. (with them, for I, your God, command it,/& a vos, saignor clerc,
commant (and do not treat them with disdain) / les putains molt bien a garder; (And you, My clergy, shall
144

Na passagem acima, o autor do fabliau buscou denotar a associação e aproximação


do clero com as mulheres, em evidência, as prostitutas. As ações e os espaços destinados a
estas mulheres foram sumariamente controlados e vigiados pelo sistema eclesiástico do
período, como um modo de marginalizar sua condição existencial, e controlar os impulsos
sexuais e viris masculinos. Ora, a própria Igreja encarava a prostituição como uma mácula,
mas ainda assim um “mal necessário” principalmente pelo fato de as prostitutas atuarem como
agentes “reguladoras” da sociedade medieval, ainda que sendo reguladas por esta (LE GOFF;
TRUONG, 2010).

FIGURA 14 – CASA DE BANHO PÚBLICA

Ilustração de uma casa de banho pública, onde os serviços de banho, alimentação e prostituição são
oferecidos. Detalhe para o canto superior direito da figura, mostrando um casal sob o leito; e para o canto
inferior direito, onde outro casal compartilha um banho enquanto são servidos por uma mulher.
Manuscrito iluminado do livro IX do Des faits et des paroles mémorables, de Valério Máximo (c. 1470-

maintain) / issi le vos voil commander.” (the harlots under your protection) / Selonc cestui commandement (In
keep with the Lord’s decree) / ne font il nul trespassement (the clergy supports harlotry) / car il les tienent totes
chieres (holding these women in esteem) / si les tienent a beles chieres (and making sure they get the cream) / del
miaus qu’il ont & del plus bel. (of all Mother Church’s riches.)”
145

1475), Bibliothèque de l'Arsenal, MS 5196, f. 372r. Fonte:


<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b55007803g/f834.item.>. Acesso em: 21 fev, 2019.

Ainda sobre a questão das prostitutas e sua relação com o clero medieval, é
importante ressaltar que a classe eclesiástica se consistiu em uma clientela valiosa dos
prostíbulos medievais. Quando o fabliau citado diz que “[...] o clero apoiou a
prostituição/mantendo essas mulheres em estima/e se assegurando que estas teriam o melhor
de todas as riquezas da Igreja Mãe” (vv. 45-49), pode-se perceber uma certa condescendência
no discurso narrativo, uma “denúncia”, da hipocrisia clerical de regular a tudo e a todos
enquanto boa parcela de seu corpo eclesiástico desfrutava dos prazeres mundanos que tanto
combatiam. Logo, o que se percebia já na época era a tendência de uma aproximação da
Igreja com o sexo mundano, ao mesmo tempo tão distante e tão próximo das realidades
sociais do período:

[...] se esperava que todos os homens não-casados fornicassem, e os pais e maridos


preferiam que clérigos jovens e bonitos usassem as prostitutas em vez das mulheres
de suas famílias. Em consequência, o clérigo lascivo se tornou uma fonte de humor
na cultura popular. Camponeses, mercadores, peregrinos, trabalhadores migrantes,
soldados em visita a uma cidade, assim como os homens em geral que estivessem
longe de sua casa e família figuravam também na clientela habitual dos bordéis.
(RICHARDS, 1993, p. 122)

Sobre tal clero lascivo, até membros da alta hierarquia eclesiástica não escaparam
das críticas contundentes dos fabliaux. Tome-se de exemplo o relato do fabliau L’evesque qui
beneï le con [A boceta abençoada pelo bispo, em tradução livre], em que as aventuras
amorosas de um bispo que vivia perto da cidade normanda de Bayeux, ao norte da França, são
descritas e expostas. Logo somos apresentados ao cotidiano do clérigo:

Em dias passados viveu um bispo


que muito prontamente deitaria
com qualquer mulher, casada ou solteira.
Das amadas tirava proveito;
generosamente as dava presentes,
e elas faziam tudo o que ele
pedia, pois todas as mulheres anseiam por riqueza,
e quem não tem nada além de si mesmo
para dar nunca ganhará os favores delas.
(THE FABLIAUX, 2013, p. 67, tradução minha)103
103
No original: “Uns evesques jadis estoit (A Bishop lived in days gone by) / qui molt volantiers s’acointoit
(who very readily would lie) / de dames & de damoiseles (with women, married and unmarried), / qu’il en
trovoit asez de beles (of lovely ones he founds his share; he’d) / & ill or donoit largemant (give gifts to them
generously); / por ce faisoient son commant (and so they’d do whatever he), / car totes beent mais au prandre
(asked, for all women long for wealth,) / & cil qui ne lor a que tandre (and he who’s nothing but himself)/ n’en
146

O fabliaux continua sua narrativa, apontando para o fato de o clérigo manter sua
moradia distante do centro urbano, como um modo de escapar dos olhares curiosos da
população que já desconfiava e desgostava de seu modo de vida (THE FABLIAUX, 2013, vv.
11-18, 2013, p. 67). De modo a acentuar a crítica ao comportamento desviante do clero
medieval, o autor do fabliau coloca no centro da narrativa um outro clérigo, desta vez um
padre que vivia em regime de concubinato com uma camponesa (THE FABLIAUX, 2013, vv.
19-23, 2013, p. 67-68). Sabendo de tal condição, e tomado pelo desejo de ter para si a mulher
do colega de batina, o bispo impõe uma série de proibições ao padre para que este separe-se
desta, como proibi-lo de beber vinho e de se alimentar de aves (THE FABLIAUX, 2013, vv.
30-63, p. 67-69).

Porém, a mesquinhez e luxúria do bispo direcionam-se a uma outra mulher que havia
conhecido em uma de suas viagens. Cortejando-a e dando-lhe vários presentes, o clérigo
ansiava seduzir e satisfazer-se com ela o mais rápido possível (THE FABLIAUX, 2013, vv.
111-114, p. 71). Mas a mulher de quem o bispo havia se enamorado era engenhosa,
provavelmente pertencente à nobreza, ao que a narrativa assim nos diz:

Sem falta, toda noite


ele ia à sua casa deitar-se com ela
pois ela não ia até ele, quaisquer
súplicas que fizesse ou presentes que desse
tão vaidosa e orgulhosa que era
desdenhando sempre dele.
(THE FABLIAUX, 2013, p. 73, tradução minha)104

O bispo e a mulher, enfim, chegam a um acordo e resolvem consumar a relação, após


tanta insistência e dedicação por parte do clérigo para tal. Entretanto, chega aos ouvidos do
padre a história dessa aventura amorosa envolvendo seu superior, o que prontamente o leva a
elaborar um plano de vingança contra o bispo hipócrita que tanto o ameaçou e condenou por
viver em regime de pecado com uma mulher. Indo até a casa da mulher desejada pelo bispo, o
padre lhe diz sobre a verdadeira natureza luxuriosa deste, pedindo-lhe que o ajude a se
esconder em seus aposentos e desmascarar o clérigo pecador quando este chegasse para
deitar-se com ela (THE FABLIAUX, 2013, vv. 119-155).
avra jamais bon servise (to give will never win their favors).”
104
No original: “Une borjoise en la vile ot (there in town a woman dwelt) / que li evesques molt amot (for whom
the am’rous bishop felt) / q’a chascune nuit sanz faillir (great love. Without fail every night) / aloit avoque li
gesir (he went to lie down by her side,) / qu’el ne voloit a lui aler (for she’d not go to him, whatever) / por
prometre ou por doner (pledges he’d make or gifts he’d gives to her) / tant estoit fiere & orgoillose (she was so
very proud and vain) / envers l’evesques & desdaignose (and acted toward him with disdain).”
147

Quando chegado o momento do ato, o bispo é surpreendido com um desejo peculiar


de sua amada:

Mal podia esperar para nela montar,


porém, ela não iria permiti-lo
fazer tudo o que quisesse fazer.
“Senhor”, ela o disse, “não tão rápido.
Se desejas fazer o que pediu de mim,
antes de mexer com meu corpo e boceta, uma prece
deves pronunciar e bem fazer
o sinal da cruz, pois lhe digo
que ela nunca foi assim consagrada.
Agora erga sua mão direita”, ela começou,
“e dê-me sua benção imediatamente [...]”.
(THE FABLIAXU, 2013, p. 77, tradução minha)105

Mesmo surpreendendo-se com o pedido, o bispo logo trata de fazer o que foi pedido,
deitando a mulher de frente para ele e lhe abençoando as partes íntimas:

O bispo acatou seu pedido:


não encostaria uma mão nela
enquanto não a abençoasse.
[...] Sobre sua boceta o bispo fez
o sinal da cruz e então disse,
“Benedico. Per omnia
in seculorum secula106”
(THE FABLIAUX, 2013, p. 77, tradução minha)107

O padre, que a tudo assistia escondido, responde a oração com um “Amém”,


assustando o bispo com sua presença em momento tão solene. Questionando o padre do
porquê se fazer ali presente, este responde dizendo-lhe que:

105
No original: “Sire, fait el, ne vos hastez (Father, she tells him, not so fast) / se vos volez vos volantez (if you
want to do what you asked) / faire de moi ne de mon con (of me, before you turn to messing),/ i covient que
beneïçon (ith my body and cunt, a blessing)/ li doigniez & si lo seigniez (you must pronounce and make as
well) / ençois que vos i adessez (the sign of the cross, for I tell) / qu’il ne fu onques ordonez (you, it’s never been
consecrated)./ La destre main en haut levez (Now raise your right hand high, she started) / sel beneïsiez
maintenant (and give your blessing right away).”
106
A expressão correta em latim corresponde a “In saecula saeculorum”, que literalmente quer dizer “para
sempre e todo o sempre”. O bispo do fabliau o diz “Assim abençoo. Para sempre e todo sempre.”
107
No original: “L’evesques ot qu’el li sarmone (The Bishop takes in what she orders)/que ja a li n’avra tochié
(that lay a hand on her he won’t) / tant qu’ençois ait son con seignié (unless he first has blessed her cunt). […] Li
evesque lo con seigna (Over her cunt the bishop made) / & puis a dit: ‘Per onnia qan qu’il fait la beneïçon’ (the
sign of the cross and the said) / dit, secula seculorum’ (Benedico. Per omnia in seculorum secula).”
148

“Hoje ouvi a notícia de que


o senhor faria uma ordenação.
Eu gostaria de testemunhar isso, pensei comigo.”
O bispo gargalhou calorosamente
e disse, “Tu lançaste uma armadilha para mim
e capturou-me em sua esperteza.
Dou-lhe minha permissão
para beber vinho, comer aves temperadas
e jantar gansos o quanto desejar,
bem como de manter sua mulher, também.
Apenas suma da minha frente.”
E assim o fez o padre em grande deleite.
(THE FABLIAUX, 2013, p. 79, tradução minha)108

O episódio do bispo serve de reflexo do ambiente medieval comumente vigiado pelo


clero, em que mesmo seus membros não estavam imunes à corrupção moral da carne. Afinal,
devido à riqueza e posição social na conjuntura do período, a classe eclesiástica agiu de dupla
forma enquanto controladora e perpetuadora dos costumes e práticas que tanto lutava para
extirpar do restante da sociedade.

Ainda no que tange à condição feminina e sua relação com o prelado medieval, cabe
destacar que embora o clero condenasse a prática da prostituição e os demais atos que
envolvessem o ato sexual fora dos limites matrimoniais, havia uma distinção entre tal prática
e o regime do concubinato.

No século V, São Jerônimo havia postulado seus comentários acerca da prostituição


feminina, argumentando que tal prática consistia no fato de uma mulher saciar e atender os
desejos de vários homens. Logo, incorporando tal definição na lei canônica, o que se retirava
disso era o fator “promiscuidade” como elemento central que definia a prostituta medieval
(RICHARDS, 1993).

108
No original: “Des hui matino ï retraire (Today I heard the information) / que tu voloies ordres faire (that you’d
perform an ordination) / si i voloie ester, biau sire (I’d like to witness that, I thought). / Li evesquez commence a
rire (The bishop heartily guffawed) /& dit: ‘Or m’as tu espié (and said, ‘You laid a trap for me) / & bien sorpris
& engignié! (and caught me by your trickery.) / Or te doin je congié de boivre (I henceforth give you my
permission) / & de magier poucins au poivre (to drink wine and eat peppered chicken) / & oës qant tu en
voudraus (and dine on goose as much as you) / & avoc toi ta fame avras (would like, and keep your woman
too). / Si garde que mais ne voie (Just you keep well out of my sight). / Lors s’an torne cil a grant joie (Off goes
the priest in delight).”
149

Tal lei canônica distinguia o concubinato, isto é, a prática sexual com apenas um
parceiro (a) fora do casamento, da prostituição pela ausência de tal elemento de
promiscuidade. Fato comum no medievo, os regimes de concubinato serviam como válvula de
escape das tensões sociais e sexuais masculinas, que assim como prostituição, auxiliava na
manutenção da “ordem social” e dos padrões “estáveis” de comportamento no período
medieval.

Embora funções reguladoras, tanto o concubinato como a prostituição encontraram


nos penitenciais condenações e castigos de acordo com o grau e a natureza do ato sexual
praticado fora do matrimônio. Socialmente toleradas, tais práticas foram costumeiramente
vigiadas de modo a condenar, talvez, bem mais o flagrante que o ato em si.

Escrito por Burcardo de Worms (c. 950/65-1025)109, o Corrector Sive Medicus,


também conhecido por Decretum Burchardi ou ainda De Poenitentia, foi um dos mais
famosos tratados e penitenciais canônicos circulados durante o medievo. Datado por volta de
1000-1025, a obra detalha em seu interior todo o esforço do clero medieval em controlar as
ações condizentes ao âmbito das práticas disciplinares que envolvessem a moral e os hábitos
da época, versando sobre assassinato, perjúrio, adultério e fornicação, dentre outros.

No que diz respeito aos dois últimos, Burcardo escreveu uma série de medidas e
penitências a serem respeitadas e cumpridas caso o acusado fosse apanhado em flagrante ou
então confessado ao seu pároco, cônego ou autoridade religiosa equivalente quais as
extensões e natureza de sua transgressão. Sobre os casos de adultério, o Decretum menciona
“Cometeste adultério com a esposa de outro e tu não tens esposa? Farás penitência de 40 dias
a pão e água, o que em língua comum é chamado de carina, pelos próximos sete anos.”
(WORMS, 2016, p. 296)110, seguido por:

Se tu és casado e cometeste adultério com a esposa de outro, de modo que


satisfizeste tua libido, deves penitência de duas carinas, com quatorze anos

109
Burcardo foi bispo de Worms de 1000 a 1025, e é reconhecido como o principal canonista a escrever entre
1012 e 1023 uma coletânea de vinte livros sobre direito canônico intitulada originalmente de Collectarium
canonum ou Decretum. Nesse conjunto de textos, destaca-se especialmente o livro XIX, chamado "Corrector
Burchardi", que funciona como uma espécie de guia para o confessor (penitencial). Os temas abordados neste
livro são diversos, como o homicídio, o incesto, a fornicação, o furto, os juramentos, os abusos contra o cônjuge,
as superstições, as supostas feitiçarias, além de provações demoníacas (JÚNIOR; BIRRO, 2016).
110
Os trechos do Decretum aqui utilizados referem-se à tradução dos 4 primeiros capítulos do livro de
penitências e da introdução realizadas pelos professores Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFF) e Renan
Marques Birro (UNIFAP/USP), como consta no trabalho O Corrector Sive Medicus (ou Corrector Burchardi, ou
ainda De Poenitentia, c.1000-1025) de Burcardo De Worms (c. 965-1025): apresentação e tradução dos capítulos
1-4, além das “instruções” de penitência 001 a 095. In: Revista Signum, v. 17, n. 1, p. 266-309, 2016.
Disponível em: <http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum/article/view/188/195.>. Acesso: 21 fev,
2019.
150

sequenciais: uma por ter tido outra à revelia de tua esposa, e outra por adultério, que
nunca deve existir sem penitência. (WORMS, 2016, p. 296)

Note-se que em ambos excertos, as punições são direcionadas aos indivíduos do sexo
masculino. Ademais, tais castigos restringem-se apenas à privação de alimentos, baseando-se
em uma dieta restrita de pão e água pelo período de quarenta dias. Penas muito brandas para
indivíduos que sucumbiram ao pecado da luxúria e concupiscência, mesmo sendo casados, o
que em tese, configuraria um delito ainda maior devido à natureza sacra do matrimônio.

Às mulheres, restava todo o resto. Segredas, excluídas, marginalizadas do convívio


social. Simples objetos e receptáculos da luxúria e do pecado, não importa se fossem solteiras,
casadas, violadas ou violentadas. Havia a mancha e a culpa perene do Pecado Original, quase
que marcados a ferro e fogo em seus corpos pela misoginia do período. Disciplinadas por um
medo que as julgavam até pela própria condição natural da menstruação, reafirmando os
pressupostos dos Pais da Igreja sobre as impurezas do sangue menstrual:

Segundo eles, esse sangue carregado de malefícios impedia a germinação das


plantas, fazendo morrer a vegetação, corroía o ferro, provocava a raiva nos cães.
Penitenciais proibiram a mulher que estivesse menstruada de comungar, e até de
entrar na Igreja. Daí, por extensão, as mulheres serem proibidas de servirem à missa,
tocarem os vasos, terem acesso às funções rituais. (DELUMEAU, 2009, p. 473)

Tal aversão ao sangue feminino pode ser explicada, juntamente a outros fatores,
graças ao tabu dos fluidos corporais no medievo: o esperma e o sangue. Desde o advento do
cristianismo, a relação dos homens em relação ao sangue é de dubiedade.

Por conter no seio de sua doutrina o elemento do sacrifício individual de Cristo para
salvar a humanidade, representando constantemente pelos horrores sangrentos de sua Paixão.
Ademais, é Cristo quem fala durante a Santa Ceia “Tomai e comei, isto é o meu corpo” (Mc
14, 22), partindo o pão e distribuindo aos apóstolos, em seguida tomando o cálice de vinho
para pronunciar “Isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que por muitos é
derramado” (Mc 22, 24).

Ritual simbólico, a Sagrada Comunhão fez-se ainda mais presente no medievo em


relação às duas ordens criadas segundo os mandatos divinos para orientarem e governarem os
homens: clero e nobreza, estratos sociais nominalmente e profissionalmente opostos entre si.
Aos primeiros, oratores, cabe o respeito às escrituras, e a guarda do Dogma Cristão, enquanto
que os bellatores, devem lutar pela manutenção da paz e da segurança de toda a cristandade.
Combater, lutar. Em suma, derramar sangue. Logo, o que se tem é a seguinte relação:

Cristo é contradição e paradoxo, visto que a prática cristã é fundada sobre o


sacrifício de uma vítima, santa, mas ensanguentada. De resto, a eucaristia renova
151

sem cessar esse sacrifício [...]. A liturgia fundamental do cristianismo, missa e


eucaristia, em parte um sacrifício do sangue. Assim, o sangue se torna o pilar da
hierarquia social. Entre clérigos e leigos, já que a nobreza, pouco a pouco, se
converte a essa concepção, essa invenção que constitui o único elemento de
permanente e consubstancial de seu grupo social é adotada. (LE GOFF; TRUONG,
2010, p. 39)

Logo, não é de se admirar que um ser totalmente secundário e marginalizado dentro


dessa rígida hierarquia social – a mulher – tenha em seu período menstrual um dos motivos
para todas as impurezas existentes e decorrentes imputadas ao seu sexo.

Mediante o que foi apresentado, o que se fazer quando o homem não respeita o
período de regras da mulher? Não seria uma dupla infração? Ao sangue impuro feminino,
junta-se o esperma masculino, outro fluido corporal é associado imediatamente à depravação
máxima do espírito e do corpo de um indivíduo, pois o sexo só deveria ser realizado com o
único intuito de procriar. O Decretum oferece um vislumbre da mácula e da penitência a ser
obedecida quando trespassada tal proibição:

Uniste-te a tua esposa no período da menstruação? Se tu o fizeste, farás penitência


por dez dias a pão e água. Se tua mulher adentrar a igreja antes de purificar-se do
sangue do pós-parto, ela fará penitência por tantos dias quantos dever como carência
à igreja. Se tu copulaste com ela nesses dias, farás penitência por vinte dias a pão e
água. (WORMS, 2016, p. 299)

Sob pena de não cumprir tais determinações, a principal consequência da cópula


seria o nascimento de uma criança marcada pelo pecado. À época, o principal estigma
corporal era a lepra. A mulher sofreria triplamente: pelo ato, muitas vezes não-consensual, por
dar luz à uma criança estigmatizada por seu pecado (pecado individual, em sua maioria
atribuído à suposta natureza sedutora feminina), e pela culpa do Pecado Original.

Outras das vicissitudes associadas ao feminino na Idade Média são a soberba e


orgulho. Seguindo a lógica matrimonial da época, supracitada no capítulo anterior, em que as
filhas são entregues a futuros cônjuges de uma posição social inferior à delas, havia uma
contestação, uma resistência feminina em aceitar a autoridade de um desconhecido que mal
conhecia (KLAPISCH-ZUBER, 1989; DUBY, 2013; PILOSU, 1995)

Embora arranjados, desde o século XII há relatos de uma consensualidade conjugal


em torno do matrimônio, perpetuados ao longo de uma literatura jurídico-canônica e
genealógica. Logo, a mulher poderia escolher casar-se ou não com aquele no qual estava
sendo, literalmente, entregue. Teria uma última palavra (?) de protesto. Porém, como disse
Duby, “ela a diz?” (DUBY, 2011, p. 35):
152

As damas, indóceis, agressivas, são naturalmente hostis a esse macho a quem seu pai
ou irmão, ou filho primogênito as entregou. Não lhe suportam a necessária tutela.
Assim, no seio do par conjugal, trava-se uma luta, surda, tenaz, cruel. Diante do
esposo, que se irrita de a encontrar tão distante quando se dispõe ao amor, a esposa
se faz cada vez mais “pesada”, mais “renitente”, “taciturna” [...]. (DUBY, 2013, p.
259)

Vaidosas, até mesmo os cuidados com o corpo e aparência são condenados pelo clero
observador, o qual associa toda e qualquer prática de “disfarce” à feitiçaria e ação diabólica.
Nas palavras de Jean Delumeau, as “agentes preferidas de Satã” buscavam falsear e mascarar
sua aparência, de modo a seduzir, controlar e condenar os homens (DELUMEAU, 2009). Na
visão da Igreja, “[...] todas sendo mais ou menos feiticeiras, as damas preparam entre si
misturas suspeitas, a começar pelas maquiagens, os unguentos, as pastas depilatórias de que
se servem [...]” (DUBY, 2013, p. 258), sempre com intuito de dissimular suas verdadeiras
intenções.

Sobre o pecado do orgulho mencionado anteriormente, um outro fabliau anônimo da


segunda metade do século XII (c. 1156-1160), nos fala sobre uma donzela que tinha o sonho
de voar. Intitulado La damoisele que vost volez [A donzela que queria voar, em tradução
livre], esse fabliau faz um relato crítico da vaidade feminina, em que disputada por todos os
homens mais distintos e ricos da cidade onde morava, dispensava todos os presentes dados a
ela, pois nenhum aplacava seu desejo de subir aos céus (THE FABLIAUX, 2013, vv. 1-9, p.
338-339).

Alguns até tentarem fabricar asas feitas com cera e penas, colocando-as ao redor do
corpo da donzela, na esperança de realizar seu sonho e garantir para sempre seus favores
(THE FABLIAUX, 2013, vv. 10-18, p. 340-341). Vendo tal situação, um jovem e esperto
estudante se propõe a resolver o dilema da donzela. Ele a diz que todos os esforços anteriores
foram inúteis, pois o que ela realmente precisava era um bico e uma cauda para poder içar-se
aos céus (THE FABLIAUX, 2013, vv. 19-34).

Encantada com a proposta, a donzela prontamente aceita a ajuda do jovem estudante,


comprometendo-se em obedecê-lo durante todo o período de tempo necessário para que este
lhe entregasse o bico e a cauda. Eis que enfim a sós, o seguinte acontece:

Sob a cama o estudante a coloca


e mais de trinta vezes a beija.
Ele disse, quando ela o indagou qual a razão disso,
que estava fazendo o bico para a mesma.
“Então é assim que os bicos são feitos, certo?”
153

“Sim. Vire-se para outro lado


e eu irei entalhar a cauda em ti.”
“Estudante”, ela diz, “Irei alegremente fazer
qualquer coisa que tu me mandes fazer,
mas tenha certeza de que tenhas sucesso.”
A donzela se virou e engatinhou
de quatro. Ele até as bolas
estocou o membro em sua boceta,
enquanto ela desejava saber
como andava todo aquele trabalho.
(THE FABLIAUX, 2013, p. 342-343, tradução minha)111

Ora, o tal estudante quis pregar uma peça na vaidosa donzela. O “bico” que lhe deu,
na verdade, foram bicadas, beijos amorosos para acalmar a excitação da donzela de ter,
enfim, seu sonho tornado realidade. Sobre a cauda que lhe prometera, a metáfora não poderia
ser mais explícita: a penetração em si, dissimulada por ser feita de quatro, por trás, tal como
os animais o faziam, e acima tudo, sendo prática condenada pela Igreja, como bem diz o
Decretum: “Copulaste com tua esposa ou com outra mulher por trás, à maneira dos cães? Se
tu o fizeste, farás penitência por dez dias a pão e água.” (WORMS, 2016, p. 299).

Extasiada pela emoção, a donzela ainda clama que seu “benfeitor” não cesse suas
ações, e fala ao jovem “[...] dê o seu melhor! / meta-lhe fundo, para que não caia/e mantenha-
se firme [...]” (THE FABLIAUX, 2013, vv. 52-55, p. 343, tradução minha) 112. O jovem
continua o ato e quando terminado, diz à donzela que que não seria hoje que o trabalho estaria
terminado.

Ouvindo tal notícia, a donzela rapidamente suplica ao jovem que não desista e que
retome o trabalho imediatamente, de modo que ambos, bico e cauda, principalmente esta
última, estejam prontos o mais rápido possível. Assim, o jovem atende os desejos da donzela,
manifestados em uma metáfora sexual poderosa, pós-desvirginamento, na qual a mulher

111
No original: “Li clers em .i. lit la cocha (Upon a bed the student placed her), / plus de .xxx. fois la besa; (and
more than thirty time embraced her.) / ele demande que c’estoit (He said, when she asked what this was) / Il dit
que lou bec li faisoit (for, he’s making that beak of hers). / Fet lo l’en donc en tel manière? (So that’s how beaks
are made, you say?) /- Oïl. Tornez vos par derriere (Yeah. Turn around the other way) / que la coë i enterai (and
I will graft the tail on you). / - Danz clers, fet ele, je ferai (Student, she says, I’ll gladly do) / tot ce que vos
m’ensaigneroiz (whatever you tell me I need) / mes gardez que vos n’I failloiz (to do, but make sure you
succeed) / Cele se torne a estupons (The damsel turns around and crawls); / il li enbat jusqu’as coillons (on all
fours. Right up to the balls) / lo vit el con sanz contredit (he rams his peter in her cunt)/& la damoisele li dit
(while she wants to be told up front)/ & demant comment ce vet (exactly how his work advances).”
112
No original: “Danz clers, fet el, or esploitiez! (Student, she says, give it your all!) / Botez parfont, si l’atachiez
(Stick it in deep, so it won’t fall) / si fermement qu’ele ne chiee! (off but hold firmly).”
154

nunca estaria satisfeita o suficiente depois de provar das tentações carnais (THE FABLIAUX,
2013, vv. 66-78).

Repetindo tal “empreendimento” diariamente, a donzela acaba por ficar grávida. E ao


ver o que lhe ocorreu durante todo este tempo, vai confrontar o jovem estudante:

[...] Fui enganada!


Graças a ti, penso que concebi a razão:
Aquela tua cauda germinastes!
Eu fui cruelmente manipulada!
Quando mal posso caminhar em pé
que chances terei de voar?
Vi minhas terras deteriorarem rapidamente.
Tu certamente consegues enganar alguém! (FABLIAUX, 2013, p. 345, tradução
minha)

Quando exposto em toda sua trama, o jovem estudante prontamente reage e assim
responde à donzela enganada:

Por que virar-se contra mim? O que queres?


Tu não diminuis em nada tua estatura
quando larga e grávida – isso é apenas a natureza.
Tens minha palavra, entretanto,
que isto foi orgulho em grande medida,
pensar que poderias voar pelo céu,
que vergonha a sua! Como te atreves?
Agora estás um pouco menos planável.
(THE FABLIAUX, 2013, p. 2013, P. 345, tradução minha)113

Lição de moral apresentada. O destino natural da mulher no medievo não deveria


alçar voos altos, para utilizar a metáfora contida no fabliau, e sim contentar-se com sua
obrigação de cuidar da casa, do esposo e dos filhos vindouros. Quando fugia a essa ordem
pré-estabelecida, contos como este serviam de alerta do que viria a acontecer caso as mulheres
fossem desobedientes, insubmissas e sobretudo, não castas. O autor do fabliau é ainda mais
contundente em sua mensagem final, afirmando que:

113
No original: “[...] vos m’alez a grant tort blasmant (why turn on me? What do you want?), / que, par la foi que
je vos doi (You’re not diminished in your stature) / n’iestes pas descreüe en moi (when big with child – that’s
only nature)/se grosse iestes – ce est nature (you take my word for this, however,) / mes ce estoit grant
desmesure (that it was prideful beyond measure)/que par l’air volïez volez (to think you could fly through the
air); / par trop en faites a blasmer (more shame to you! How did you dare?) / De poi estes apesantie (Now you be
a bit less flightly).
155

Quanto mais procuras


Subir, mais difícil irás cair,
E só consigo nela pensar
Cuja ousadia e arrogância
Estavam em tão alta escala
Que ela acabou presa com uma cauda.
(THE FABLIAUX, 2013, p. 345, tradução minha)114

Embora tais características sejam associadas quase que de imediato como a figura
feminina, a mentira e a dissimulação também são outras comumente atribuídas às mulheres no
medievo. Aos relatos de desobediência e insubmissão, há os de pura malícia, inteligência e
esperteza direcionadas para ações moralmente questionáveis. Se os fabliaux explicitam de
maneira crua e direta os vícios e os perigos do convívio feminino entre os séculos XII e XIII,
outros textos partem por um caminho menos visceral, expondo quase que de modo
pedagógico uma mensagem de alerta para quem ouvia e lia tais histórias.

Denominam-se “contos de prevenção” – do inglês cautionary tales –, essas


narrativas curtas, escritas em verso e muito comuns em toda a Europa setentrional, sobretudo
a partir da segunda metade do século XII em diante. Tais histórias, fossem elaboradas em
formas de poemas, contos ou fábulas apresentavam a mesma crítica às rígidas hierarquias
impostas na sociedade medieval, embora sob uma faceta mais “suavizada” que os fabliaux,
que apostavam no erotismo, no riso e no absurdo das situações para apresentaram os múltiplos
paradoxos que persistiam coexistindo junto dos homens e mulheres da época.

Marie de France, supracitada anteriormente graças aos seu lais, acabou por escrever
um número bastante expressivo de pequenas fábulas, versando sobre temas que iam do amor,
cavalaria e casamento ao adultério e folclore medievais (GILBERT, 2015). Duas destas
fábulas trazem à tona o tema do adultério, mais precisamente a forma como duas camponesas
conseguem ludibriar seus esposos de suas traições, inclusive, em pleno flagrante.

Intituladas A mulher que enganou o marido e Pela segunda vez, uma mulher engana
seu marido115, as duas breves narrativas expõe como as mulheres podem ser dissimuladas e

114
No original: “En tel manière l’a servie (As you can hear, it served her right. He) / com vos poëz ici oïr (gave
her a lesson for her cheek), / & ce l’en doit bien avenir – (which she deserved. The more you seek) / qui otage
quiert, il li vient (to rise, the harder you will fall,) / Por ce de ceste me sovient (and so I think of her whose gall) /
qui trop estoit desmesuree (and hubris were on such a scale). / Issi li fu la qeue entee (she ended up stuck with a
tail).
115
Traduzidas a partir das versões em inglês das fábulas “The Woman Who Tricked Her Husband” e “A Second
Time, a Woman Tricks Her Husband”, respectivamente. Tais traduções para o inglês diretamente do francês
arcaico se encontram na edição crítica e comentada da obra de Marie de France, da professora Dorotthy Gilbert.
156

enganadoras, sendo capazes de fabricar toda uma história fictícia que as dê vantagem sobre
seus cônjuges.

Na primeira, Marie nos conta que um camponês ao chegar em casa, depara-se com a
visão de sua mulher partilhando a cama com outro homem. Logo, explode em fúria e
questiona a esposa o que havia acontecido:

“O que vi”, ele disse, “Ai!”


Sua esposa imediatamente lhe responde assim:
“Amado coração, o que há de errado contigo?”
“Outro homem! Eu vi, eu sei –
Eu a vi com ele, em nossa cama!”
Irada, a esposa do camponês então disse,
“Oh, de novo não! Quando irei aprender!
Sabia que essa loucura iria retornar!
Ilusões, mentiras! Tu pensas que são verdade!”
“Esposa, sei o que vi de ti.”
“És louco se tomar”, disse ela,
“como verdade essa coisa que clama ter visto.”
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 191, tradução minha)116

Em seguida, a esposa toma o marido pelas mãos e o guia até um vaso com água.
Confuso por tal atitude, o camponês logo indaga a mulher qual a razão para tal ato. Ela, por
sua vez, o pede para que olhe dentro da bacia e diga a ela o que ali vê (MARIE DE FRANCE,
2015, vv. 17-22, p. 191). A resposta obtida é “[...] apenas ele mesmo, um reflexo ali.”
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 191, tradução minha)117.

Percebendo a resposta do marido e aproveitando a oportunidade, a esposa então lhe


diz “[...] Certamente, querido, não estás / com todas as tuas roupas, dentro deste vaso;/
enxergas uma semelhança vazia que/não deve confiar – afasta este pensamento! / Teus olhos
o enganam; representam mal!” (MARIE DE FRANCE, 2015, p. 192, tradução minha)118.

As traduções para o português aqui encontradas seguirão tal edição. C. MARIE DE FRANCE. Poetry.
[Translated and edited by Dorothy Gilbert]. New York: Norton Critical Editions, 2015.
116
No original: “What have I seen’, he said, ‘Alas!’/His wife at once responded thus: /’Dear heart, whatever’s
wrong with you?’/’Another man! I saw, I knew - / I saw him take you, on our bed!’/Furious, the peasant’s wife
the said/ ‘Oh, not again! When will I learn! / I knew this madness would return!/Ilusions, lies! You think them
true!’/ ‘Wife, I know what I saw of you.’/ ‘You’re crazy if you take’, said she, / ‘for truth this thing you’ve
claimed to see.’”
117
No original: “Just his own self. An image there.”
118
No original: “Surely, dear, you’re not / with all your clothes, inside that vat; / you see an empty likeness that /
you must not trust – dismiss the thought! / Your eyes lie; they mispresent!”.
157

E é assim que Marie narra a resposta do marido à sua esposa, maravilhado por tal
“descoberta”:

O marido disse: “Oh, me arrependo!


Certamente, para prosperar, um homem deve
ter como verdade tudo aquilo que sua esposa diz,
e não o que seus falsos olhos veem. –
a visão faz o tolo, facilmente!”
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 192, tradução minha)119

Nessa primeira fábula, a esposa do camponês de fato não mentiu para o esposo.
Marie colocou as ações da mulher sob a linha tênue do disfarce e da dissimulação, pois a
personagem apenas demonstra ao marido uma outra forma dele perceber e compreender
aquilo que seus olhos demonstraram. De todos os sentidos, a visão deteve a maior importância
durante o período medieval justamente por conta poder catártico que causa nos homens.

“Ver”, no Ocidente medieval, não estava ligado pura e simplesmente à mera


observação de um fenômeno, símbolo ou indivíduo. Levando em consideração o modelo
interpretativo comum às chamadas culturas “erudita” e “popular”, a reflexão em torno daquilo
que se enxergava, giravam em torno de uma lógica de dedução, ou então, em um modo de
pensar que os auxiliava na compreensão de elementos semelhantes ou contraditórios entre si.
No Ocidente medieval, tal denominador cultural compartilhado é compreendido como um
pensamento analógico, ou seja:

[...] forma de pensamento baseada em analogias, [...] pensamento analógico é


método extensivo que depende mais das propriedades sintáxicas do conhecimento
do que de seu conteúdo específico. Ele busca similitudes entre seres, coisas e
fenômenos, todos articulados em uma totalidade que os ultrapassa e é comum a cada
elemento. [...] É por isso que o pensamento analógico privilegia a busca de
semelhanças, sem negar, contudo, as diferenças entre os elementos comparados,
sejam eles sociais, naturais ou supranaturais. É por isso, igualmente, que as
sociedades pré-industriais, inclusive a do Ocidente medieval, fazem relativa
indistinção entre os eventos daquelas esferas. (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 96-97)

Portanto, a primeira fábula de Marie de France joga com tais elementos teóricos e
narrativos, ainda que tenha como objetivo claro e direto alertar para aquilo que os olhos veem.
A autora, ao finalizar a fábula, brinca uma vez mais sobre o fato do marido tomar como
verdade absoluta aquilo que sua esposa o havia demonstrado. Ela diz, “Nós, graças a este
conto moral, podemos ver / como o bom senso e sagacidade / são de grande utilidade na vida

119
No original: “The husband said: ‘Oh, I repent! / Surely a man, to prosper, must / give what his wife says all
his trust, / rather than what his false eyes see - / sight makes the fool, so easily!’”.
158

das pessoas / mais do que as posses, mais do que parentes – ou esposas!” (MARIE DE
FRANCE, 2015, p. 192, tradução minha)120.

No que tange a segunda fábula, Marie nos apresenta outro casal de camponeses,
seguindo a mesma linha narrativa em que o esposo apanha a mulher e o amante em pleno
flagrante. Dessa vez, o marido observa sua esposa sendo levada para dentro da floresta por um
homem desconhecido. Irado, persegue a ambos e perde o rastro do homem, que amedrontado,
foge e se esconde atrás de um arbusto (MARIE DE FRANCE, 2015, vv. 1-18, p. 192).

Vendo o esposo em tal estado de fúria, a mulher o indaga qual a razão para tanto, e o
que ela poderia ter feito para deixá-lo tão irado. O homem prontamente responde que havia
visto ela e o amante irem juntos até a floresta, onde foram desonrá-lo e envergonhá-lo sob a
luz da noite, onde as sombras iriam escondê-los em sua devassidão. Ouvindo atentamente o
esposo, a mulher logo pergunta se ele tinha certeza de tê-la visto acompanhada de um homem
e quando seu marido confirma, a esposa lhe fala:

‘Ai, estou morta!’, ela disse, “Irei morrer


amanhã, possivelmente hoje.
Minha avó morreu dessa mesma forma,
minha mãe – Eu vi aquilo, eu digo!
Pouco antes de suas mortes, cada uma delas
(isso que falo é bem sabido!)
foi levada embora por um homem jovem
em que, caso contrário, não teriam ido.
Eu sei muito bem que meu fim está próximo!”
(MARIE DE FRANCE, 2015, P. 192-193, tradução minha)121

Indo além, a mulher pede ao marido que reúna seus parentes o mais rápido possível,
para que possam dividir entre si as posses, além de pedir que o marido vá até o convento mais
próximo em busca de freiras para fazerem seu cortejo fúnebre (MARIE DE FRANCE, 2015,
vv. 28-32). Desesperado com a atitude e as palavras que acabara de ouvir da esposa, o marido
lhe diz para se acalmar, não sucumbir à tristeza e desespero, e que não fosse para longe dele.
Completa dizendo ainda que havia mentido para ela, pois não viu homem algum a levando
para longe.
120
No original: “We, by this moral tale, can see / how plain sense and sagacity /are of great worth in people’s
lives; / more than goods, more than kin – or wives!”
121
No original: “Alas, I’m dead!’, she said, ‘I’ll die / tomorrow, possibly today. / My grandmother died this same
way, / my mother – I saw that, I say! / A bit before their deaths, each one / (this I am saying is well known) /
were led away by a young man / where, otherwise, they’d not have gone. / I know so well my end is near!’”
159

Ouvindo e vendo o desespero profundo do marido, a mulher logo trata de tranquilizá-


lo, ao mesmo tempo que o repreende:

Ela disse, “Não posso me atrasar, não ouso,


pois de minha alma devo cuidar,
agora, mais especialmente, tu sabes,
pois me envergonhastes publicamente.
Envergonhada e condenada para sempre estaria
de pensar que o havia enganado tão vilmente,
a menos que um juramento faças a mim
– um que todos meus parentes possam ver –
que nunca me vistes com homem algum.
Jure pela sua fé; nem uma vez mais
irás me criticar ou repreender, e nunca
mais mencionará esse assunto de amante.”
(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 193, tradução minha)122

Ditas tais palavras, o esposo logo aceita as condições e ambos vão para uma igreja,
de modo a jurar sob Deus, mais uma vez, o compromisso e validade de sua união.
Observemos, então, a exigência da esposa de conclamar um juramento público por parte do
marido, exigindo que este jure pela fé, diante de todos os familiares de sua mulher, que esta
não é culpada do crime e do pecado de adultério.

Novamente, faz-se presente o caráter “reflexivo” da literatura medieval sobre a


imagem do real na qual estava disposta a fornecer. Reflexivo no sentido de demonstrar e
representar contextual e historicamente as implicações e as estruturas sociais a qual pertencia.
A razão para tal fenômeno, dentro da lógica medieval, referia-se a uma conjuntura em que o
sentido do termo “público” denotava “[...] o que depende da soberania, do poder de regalia, o
que é da alçada da magistratura encarregada de manter a paz e a justiça no povo [...]” (DUBY,
2009, p. 18).

Logo, seria necessário também a figura de um agente que manifestasse e fizesse


valer tais pressupostos jurídicos, a quem chamamos de “[...] publicus é o agente do poder
soberano, a persona publica, aquela que tem o encargo de agir em nome do povo para
defender os direitos da comunidade.” (DUBY, 2009, p. 18).
122
No original: “Said she, ‘I can’t delay, don’t dare, / for of my soul I must take care, / now, most especially, you
see, / for you have shamed publicly. / Shamed and condemned I’d always be, / thought to have wronged you
vilely, / unless an oath you swear to me / - one all my relatives can see - / you never saw me with a man. / Swear
on your faith; not once again / will you lambaste or scold me, ever, / or raise this matter of a lover.’”
160

Ora, ainda que subordinada à autoridade masculina, não era a mulher membro de tal
comunidade? Em tese, seus direitos, sobretudo em relação ao cônjuge, deveriam ser
observados, desde que levados até a instância pública de averiguação de possíveis problemas.
Embora o matrimônio medieval fosse considerado em si uma célula de caráter privado,
concernente apenas ao senhor (marido) e sua posse (esposa), o contrato conjugal especulava e
permitia contestações sobre a união, sobretudo se houvesse suspeita – e confirmação – de
adultério de uma das partes.

Quando exige do marido a promessa do juramento público, a esposa baseia-se na


prerrogativa jurídico-canônica de que um cônjuge só poderia desfazer sua união caso o outro
admitisse publicamente a relação adúltera. Menciona assim tal fato o Decretum Burchardi:

Não é permitido devolver sua esposa, exceto em razão de fornicação, isto é, se ela
perpetrou adultério com outro. Neste caso, é permitido devolvê-la em virtude da
fornicação, mas, enquanto viver, não te casarás com outra. Mas se permanecer em
regime privado por própria vontade e se ambos não proclamarem a separação, que
permaneçam assim. Contudo, se ambos proclamarem a separação [o divórcio?],
perante o bispo eles devem penitência, isto é, após o sétimo ano da penitência, se
pedirem, ele deve reconciliá-los. A mesma lei serve para o marido contra a esposa;
se ela perpetrou adultério, e se ela desejar, pode devolver o marido em virtude da
fornicação, pela mesma razão supracitada da esposa que está perpetrando adultério.
(WORMS, 2016, p. 297, grifo meu)

Logo, a saída encontrada pela esposa foi o testemunho público e pessoal do marido
para inocentá-la perante seus parentes e a comunidade na qual pertenciam. Além de obedecer
aos mandamentos da lei do homem e da lei divina, daí o fato de ambos terem ido até uma
igreja para jurarem novamente um ao outro seu compromisso mútuo.

Engenhosa, tal alternativa baseada no improviso rápido da esposa de evitar uma


possível condenação e penitência severas, entra em consonância com a imagem distorcida
pelo discurso eclesiástico e em boa medida, encontrada na literatura do período. Novamente,
Marie de France é irônica ao terminar sua fábula, desta vez sendo ainda mais direta ao citar
nominalmente as características negativas atribuídas à mulher:

Assim, os homens culpam as mulheres; dizem que veem


Como as mulheres utilizam de chicanice123.
Geniosas, desonestas, astutas, más –
Elas têm mais artes que o próprio Diabo!

123
Adjetivo derivado da palavra chicana, cujo sentido, no vocabulário jurídico, está basicamente atrelado à
existência de uma dificuldade criada, no decorrer de um processo judicial, pela apresentação de um argumento
com base em um detalhe ou ponto irrelevante, valendo-se do abuso dos recursos, sutilezas e formalidades do
sistema jurídico.
161

(MARIE DE FRANCE, 2015, p. 192, tradução minha)124

Luxuriosas, sedutoras, perigosas, pecadoras. O retrato feminino no período medieval


teimou-se em cristalizar-se perante tais características. Não há como ignorar o sentimento
misógino existente no Ocidente medieval. Embora o alerta de Christiane Klapisch-Zuber de
indagar e criticar sob quais pressupostos teóricos tais modelos foram perpetuados no senso
comum deva sempre ser levado em alta estima pelo medievalista (KLAPISCH-ZUBER, 1989;
2017).

De modo a problematizar tal discurso e atenuar consideravelmente seu tempo de


vida, é necessária uma reconstrução da figura feminina inserida dentro desse contexto de
análise, com o objetivo final de descontruir ou, pelo menos, balizar boa parcela daquilo que se
sabe atualmente da condição feminina no Ocidente medieval. Portanto, a discussão
empreendida ao longo do presente tópico pautou-se nesse esforço de apresentação e
problematização documental sobre face “pecadora” da mulher medieval.

Entretanto, torna-se inconcebível sucumbir à tentação e às facilidades de aceitar


como único possível tal discurso pertencente à ideia dessa “longa noite de mil anos”. Sabemos
que a ordem medieval se pautou em um claro desequilíbrio envolvendo as relações entre o
masculino e feminino, porém, enquanto interesse e objeto da História, as ações destes homens
e principalmente, destas mulheres no tempo é o que torna possível problematizar tal
hierarquia social.

Se durante séculos a ideia de uma “subordinação natural” do feminino foi lugar


comum dentro da historiografia, tal herança é marcadamente fruto de uma produção histórica
masculina com traços e perspectivas puramente positivistas de análise. Tratando-se do
Ocidente medieval, onde a importância dos símbolos deve ser levada em consideração, há de
se respeitar um outro alerta que diz respeito a tal dinâmica de relacionamentos e
representações da mulher:

[...] os deslocamentos do plano da interpretação simbólica para a justificação das


relações sociais de dominação, os recursos constantes aos paralelos exegéticos ou à
alegoria, procedimentos de pensamento desestabilizantes para o leitor moderno,
podem também mascarar momentos críticos de reflexão, seu embaraço diante de
situações históricas concretas. A adequação à realidade que os clérigos atribuem às
suas constatações intelectuais não significa que os sistemas de representações que
propõem estejam de acordo com outros sistemas que eles recuperam, nem os deles
sejam aceitos por todos, nem que sejam eficientes no campo do real. (KLAPISCH-
ZUBER, 2017, p. 168)

124
No original: “Thus man fault women; say they see / how women use chicanery. / Ingenious, devious, crafty,
evil - / they’ve more art than the very devil!”
162

Portanto, dentro do mesmo escopo histórico e literário discutido ao longo do presente


trabalho, é possível observar matizes de interpretação e problematização que venham a somar
esforços historiográficos no campo da medievalística envolvendo a questão feminina no
Ocidente medieval. Trazendo para o campo literário, cuja documentação tem sido o principal
suporte metodológico desta pesquisa, é possível observar que essa mesma literatura de traços
misóginos, satíricos e eróticos foi também capaz de produzir e representar imagens femininas
complexas, ricas, idealizadas e afastadas deste retrato antiquado de uma mulher puramente
diabólica e pecadora.

No contexto estudado, principalmente a partir do final do século XI, o culto mariano


surge como um dos principais fenômenos de valorização, cuidado e elevação da figura
feminina no Ocidente medieval. Embora tal fato tenha-se desenvolvido em um regime de
médio-longo prazo, não é errôneo afirmar que as mulheres, principalmente as aristocratas,
gozaram de certas “liberdades”, principalmente em relação ao comportamento no decorrer dos
séculos seguintes.

Baseando-se nas problemáticas e justificativas apresentadas até o momento, o tópico


seguinte retomará a proposta de reconstrução e equilíbrio da temática estudada, desta vez
valendo-se da abordagem das representações femininas que escaparam ao estereótipo
apresentado e discutido neste tópico. No limiar de tal abordagem, o tema da sexualidade,
voltará a ser abordado, desta vez por um prisma analítico que a observa como sendo
representada de maneira racional e “controlada” devido às ações de suas protagonistas.
163

4.2. “RAZÃO E SENSIBILIDADE”: “LIBERDADES” FEMININAS E O OLHAR


ALÉM DO CONFLITO EVA VS MARIA

Conscientes do primado masculino na estrutura social do medievo, observamos como


os discursos ideológicos e as teorias misóginas construíram um completo – e complexo –
inventário de defeitos ligados especialmente às mulheres. Seja pela condenação primal graças
à suposta fragilidade inata do corpo feminino, ou pelas representações literárias das damas,
donzelas e camponesas, o cenário resume-se à quase completa recusa àquilo que é feminino.

A tensão envolvendo a polaridade hierárquica entre o masculino/feminino é sentida e


refletida nas diversas produções intelectuais do período, o que, logicamente, ajudou por
sedimentar uma série de preconceitos ligados ao senso comum quando se falou ou pensou
acerca da condição feminina no medievo.

Embora atraentes, tais concepções devem ser matizadas como uma forma de evitar a
manutenção e generalização tão comuns a este tema. Não seria negar de modo algum a veia
misógina e repressiva corrente durante o período estudado, apenas fornecer caminhos,
hipóteses e direcionamentos alternativos condizentes e responsáveis de acordo com o
contexto, agentes e forças históricas da época. Durante o período que recobre os séculos X ao
XIII, o Ocidente medieval reconhece, absorve e reproduz um novo ethos:

Nos séculos XI-XII o Ocidente adquire uma unidade e uma vitalidade até então
desconhecidas. Poupado pelas invasões que, no passado, muitas vezes lhe tinham
confundido os traços, ele dilata-se. Do ponto de vista ideológico, os valores cristãos
dão-lhe coesão. [...] A Igreja não se contenta em ganhar territórios e almas. Tomada
de um ardor incoercível, ela purifica-se e quer cristianizar em profundidade;
paróquias e mosteiros multiplicam-se. Ao mesmo tempo, a população aumenta, as
terras cultivadas expandem-se, cidades e comércio reanimam-se enquanto se
estabelecem os novos quadros do poder político. (PERROT, 1990, p. 273)

Ora, é senão no século XII que a figura da mulher é alçada à sua mais pura condição
natural, exemplificada no maior e mais destacado modelo feminino a ser imitado. O culto
mariano atinge seu apogeu no mesmo século da denominada “Renascença do Século XII”,
164

além de ser fruto das reformas eclesiásticas do papa Gregório VII no século anterior (1073-
1085), em que gradativamente a figura da redentora foi associada à purificação de uma
sociedade mergulhada em constante pecado e degradação (RÉGNIER-BOHLER, 2006).

Maria, mãe do Cristo, o é também reconhecida enquanto “Mãe espiritual” de toda


cristandade, zelando e intercedendo por seus filhos terrenos junto ao Criador. Ainda no século
V, Santo Agostinho conclama as virtudes marianas e sua elevada condição e distinção entre as
demais mulheres, associando sua figura ainda com o papel e relevância da Igreja para os
homens:

Maria deu à luz corporalmente a Cabeça do corpo. A Igreja dá à Luz espiritualmente


os membros dessa cabeça. Nem em Maria nem na Igreja a virgindade impediu a
fecundidade. E nem em uma nem em outra fecundidade destruiu a virgindade.
Portanto, se a Igreja universal é santa de corpo e de espírito, sem contudo ser virgem
universalmente pelo corpo, mas pelo espírito, quanto mais excelente deve ser a
santidade naqueles seus membros em que ela é virgem, pelo corpo e pelo espírito.
(SANTO AGOSTINHO, 2000, p. 102)

O trecho acima pertence à obra De santa virginitate [A santa virgindade], escrita


pelo bispo de Hipona em 401. Apresentando como elemento central a defesa da castidade, da
virgindade e de seu principal modelo (Maria), Santo Agostinho ainda é responsável por
estabelecer e apresentar a noção de “corpo místico” no cristianismo, no qual a cabeça pertence
a Cristo como líder, e os demais membros são compostos pela Igreja e pelo restante da
cristandade. Logo, se a Igreja é tida como “esposa de Cristo”, Maria, enquanto mãe deste,
também é reconhecida como “mãe de todos”.

A associação entre a virgindade mariana e o culto à Santa Igreja não é realizada por
acaso na obra de Agostinho. Se o corpo humano, mais notoriamente o feminino, é receptáculo
e invólucro de todo o pecado na Idade Média (PILOSU, 1999; SCHMITT, 2014), a figura de
Maria tornou-se rapidamente um elemento duplo de expressão social e cultural: por um lado,
representava o processo de humanização do cristianismo medieval e por outro a principal
expressão de uma feminilização do sentimento religioso no período (FRANCO JÚNIOR,
2010).

Desse modo, como perceber, um possível – ou viável – progresso da condição


feminina no medievo Ocidental dos séculos XII e XIII a partir da emergência do culto
mariano? Se interpretações progressistas e feministas da literatura cortesã buscaram uma certa
emancipação da mulher na Idade Média (CARVALHO, 2009), quais outras “liberdades”
gozaram as mulheres à época? Fornecendo-nos um horizonte teórico, Robert Fossier
argumentou em seu Ce gens du Moyen Âge [Pessoas da Idade Média, em tradução livre] que
165

por uma situação demográfica favorável, as mulheres são menos numerosas do que os homens
(FOSSIER, 2007).

Logo, os sistemas jurídico, econômico e social lhes são favoráveis – sobretudo às


camponesas, maioria populacional. Graças à tal situação, as mulheres gozaram de uma certa
liberdade incomum, sobretudo em relação aos costumes. O historiador francês ainda
prossegue em sua ideia, argumentando que os testemunhos a serem considerados não advém
dos bancos de réus e dos processos canônicos envolvendo as grandes damas e senhoras dos
séculos XII e XIII, porém dos estratos menos abastados, vigiados e constantemente
esquecidos pela rígida hierarquia moral do medievo (FOSSIER, 2007).

Ainda sobre o horizonte de expressões simbólicas do culto mariano, e de uma


possível “promoção” feminina no período, é necessário objetivar e refletir sob quais
condições o culto à Virgem foi sedimento. Em um nível cultural, tratando-se especialmente
sobre o que se compreende por cultura popular/erudita na Idade Média, coube à cultura
dominante estabelecer os parâmetros de aproximação e afastamento dos mitos antigos acerca
das figuras matriarcais, pois de início:

Objetivando evitar analogias com as diversas deusas-mães, o pensamento clerical


inicialmente recusou a Maria o título de “Mãe de Deus”. Título que possuía claras
ressonâncias pagãs, apesar de utilizado por várias comunidades cristãs orientais [...].
Em 431, “com receio que se faça da Virgem uma deusa”, diz a ata do Concílio de
Éfeso, Nestório, patriarca de Cosntantinopla, propôs que ela fosse chamada
Christotókos (“mãe de Cristo”) e não Theotókos (“mãe de Deus”), como após longas
e acirradas polêmicas Maria foi canonicamente reconhecida. (FRANCO JÚNIOR,
2010, p. 308)

Ademais, coube também ao clero medieval fundar uma nova perspectiva de


observação que desvinculasse às mulheres do pecado inerente ao seu sexo. Se de um lado do
prisma os vícios e defeitos de Eva tinham levado a humanidade a padecer eternamente na
terra em que habitavam, sua contraparte, a mãe do Cristo Salvador, veio para salvar as
mulheres, já que tornou-se lugar comum a ideia de que “[...] se Eva é no nome mãe de todos
os viventes, pelo pecado tornara-se mãe de todos os que morrem, enquanto Maria resgatou o
sentido original da mulher” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 310).

Portanto, o pensamento que sobreviveu ao longo de toda a Idade Média Central


(séculos XI-XIII) orbitou em torno do conceito de que “[...] Maria aceitou gerar o filho de
Deus para que as filhas de Eva fossem redimidas” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 310). Graças
a isso, o clero medieval forjou suas novas concepções teológicas acerca da identidade e da
figura femininas, atribuindo a salvação das almas, a remissão dos pecados e a garantia de
166

absolvição às criaturas anteriormente condenadas por sua própria natureza desde o Pecado
Original.

Ciente das estruturas as quais também pertencia, o clero medieval buscou aprofundar
tais prerrogativas nos estratos sociais qualitativamente homônimos em relação à condição.
Nada mais óbvio que a valorização dos discursos e dos ensinamentos proferidos aos grandes
senhores – e senhoras – serem engendrados no seio da aristocracia feudal, cuja influência e
alcance do clero havia perdido força desde a derrocada no Império Carolíngio no século X:

No último quartel do século XII, os pregadores, conscientes da complexidade da


sociedade, consideravam bom falar em um tom apropriado aos diversos “estados”
que a constituíam. Sem dúvida, uma imagem simples demais de uma sociedade
perfeita, conforme ao desígnio do Criador. [...] Primeiro, todavia, o autor fala dos
dominadores, reis, clérigos, cavaleiros. Em seguida, passa aos dominados,
camponeses, burgueses e, por fim, às mulheres. [...] O prelado, de fato, não
considera todas as mulheres. Suas funções fazem com que se atenha a velar
especialmente pelo topo a sociedade, pelos dirigentes, pelas casas nobres, e é lá que
ele fala, aos nobres, não ao povo. Por conseguinte, mantém sob seu olhar as
mulheres que habitam as grandes moradas. (DUBY, 2013, p. 257)

De acordo com a prerrogativa lançado pelo clero ao longo do medievo, observou-se


na historiografia tradicional uma tendência de analisar a figura feminina limitada ao plano
secundário: normalmente desprovida de poderes e de autonomia, as mulheres foram relegadas
à condição de “moeda de troca” nos acordos políticos entre os detentores do poder, realidade
visualizada no tópico anterior quando comentado sobre a construção das estruturas
matrimoniais e de parentesco.

Entretanto, mesmo condicionadas por tal hierarquia, as noções de “submissão


natural” das mulheres ao mundo masculino são colocadas em discussão graças a emergência
do culto à Maria. Embora atraídas entre si e diametralmente opostas, obtém-se uma nova
conjuntura em que a pecadora Eva, transmuta-se na figura da Virgem Maria: Mãe, Redentora,
Intercessora, Mediadora, Rainha125, dentre outras denominações e títulos comumente
associados à Virgem.

Embora tal dualidade exacerbada não seja a regra geral dos matizes comportamentais
no medievo – como este trabalho busca apresentar –, é sabido que, paradoxalmente, é graças
ao seu maior elemento de condenação – a mulher –, que o cristianismo buscou resgatar a
humanidade. Por intermédio da figura da Virgem que a Igreja se aproximou e ajuntou cada
vez mais os fiéis segregados e esquecidos em busca de redenção.
125
A partir do século XI, o hino Salve Rainha estabelece essa relação imediata entre Eva e Maria: “Salve Regina,
Mater misericordiae: Vita, dulcedo et spes nostra, salve! Ad clamamus, exsules, filii Hévae” [Salve Rainha, Mãe
de Misericórdia, vida e doçura esperança nossa, salve! A vós clamamos, degredados filhos de Eva, em tradução
livre].
167

Logo, a gradativa expansão do culto mariano pelo mundo cristão no Ocidente


medieval teve como desdobramento uma sensível mudança no papel das mulheres na
sociedade medieval a partir do século XII, na qual a misoginia foi em parte reduzida ou
transmutada, permitindo um maior destaque e prestígio para as mulheres, algo que segundo a
ótica de Jacques Le Goff, acabou por “salvar as mulheres” do Ocidente medieval (LE GOFF,
2013a).

Cabe mencionar ainda a repercussão do culto mariano nos estratos sociais mais
afastados da condição aristocrática. Falar sobre a Virgem, pregar o culto à figura redentora de
Maria, sobretudo ao público feminino, denotou um esforço constante e considerável da Igreja
desde o início do século XI. Quando se fala em Ocidente medieval, sobretudo dentro recorte
temporal estabelecido, observa-se que o teor das obras, pregações e publicações “comuns”
tanto à nobreza quanto ao campesinato seguiram de pensamento teológico e cultural que
muitas vezes os aproximaram entre si.

Embora a discussão sobre os níveis de alinhamento, pedagogia e discurso sejam


antagônicos em suas camadas mais profundas de análise, o que se convém chamar de cultura
intermediária no medievo nada mais é do que o conjunto de obras e discursos comuns a todos
os segmentos sociais que coexistiam dentro desse contexto histórico. Falando sobre
religiosidade e sua relação com o mundo feminino na medievalidade, tornou-se claro que as
abordagens tradicionais de estudar os fenômenos religiosos na Idade Média (reformas,
Cruzadas, Inquisição, heresias) de maneira isolada não contemplariam a ampla complexidade
do tema em conjunto da discussão sobre as condições de vida da mulher no medievo.

Desse modo, em busca de um maior fôlego teórico/metodológico, a historiografia


tomou emprestado da Antropologia abordagens e perspectivas que levaram os estudos
históricos a problematizarem as expressões culturais dessa religiosidade, por exemplo, visto
que a noção de “religiosidade popular” nada mais é do que a pura expressão de um sentimento
religioso enraizado que só pode ser alcançado graças à própria existência e manifestação de
uma “cultura popular” (FRANCO JÚNIOR, 1996), logo, observa-se a emergência de setor
mediador entre os polos de expressão cultural considerados afastados entre, cuja função é
tornar perceptível as aproximações e semelhanças existentes entre estes:

Não somente uma cultura de elite, livresca, construída em alguns locais especiais
por algumas grandes personalidades, mas também e sobretudo uma cultura dos
campos, das praças, das tavernas, das estradas, cultura oral, anônima, na qual todos
são elaboradores, receptores e transmissores. Cultura “popular”, portanto. Para esse
estudo o historiador recorre a um instrumental variado, tomado de empréstimo ao
168

sociólogo, ao linguista, ao psicólogo, ao folclorista, ao antropólogo. E se vê assim


envolvido nas águas agitadas da discussão sobre o conceito de cultura. Mas percebe
então claramente que cultura erudita e cultura popular não podem ser vistas como
elementos opostos e impermeáveis. (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 33-34)

Tensionando a problemática para além desses dois polos, e visando o conjunto de


relações entre os níveis de cultura e os vários grupos sociais do medievo, torna-se mais
coerente com a proposta da pesquisa e da temática em si, optar por um encaminhamento
teórico que a direcione para uma análise da documentação apresentada até o momento que
leve em consideração as interações e produções culturais dos estratos sociais estudados sobre
as mulheres no medievo, valorizando, principalmente, a zona de interseção entre esses grupos
sociais, não apenas as eventuais e particulares trocas culturais também estabelecidas.

Portanto, ao tomar de exemplo o culto mariano, propagado, pensando e reproduzido


por um segmento social tradicionalmente ligado ao campo do que se entende por “cultura
erudita” (letrados, nobreza, clero) e vincular sua absorção nos grupos sociais ligados à
“cultura popular”, o que pode se obter é a visualização de um sistema pedagógico – e de
controle – alcançou de maneira significativa a percepção das mulheres – nobres ou não –
acerca de seus comportamentos.

Some-se isso a ideia de que, desassociando o termo “cultura popular” como a noção
equivocada de que tudo aquilo que é rústico, ilógico e, principalmente, iletrado, ao se falar de
Idade Média, é vinculado imediatamente às camadas populares, o que temos é a ideia de que
há um componente erudito na construção de toda cultura popular (CERTEAU; JULIA;
REVEL, 1970; FRANCO JÚNIOR, 1996). Desse modo, a alternativa encontrada baseia-se no
conceito de uma manifestação cultural “[...] praticada, em maior ou menor medida, por quase
todos os membros de uma dada sociedade, independentemente de sua condição social.”
(FRANCO JÚNIOR, 1996).

Portanto, isso acarretaria na hipótese de que a “[...] cultura popular seria o


denominador cultural comum, o conjunto de crenças, costumes, técnicas, normas e
instituições conhecido e aceito pela grande maioria dos indivíduos da sociedade estudada.”
(FRANCO JÚNIOR, 1996).

E é dessa maneira que a opção pela terminologia do conceito de cultura


intermediária torna-se acessível para tratar das “liberdades” femininas existentes na sociedade
medieval dos séculos XII e XIII, expressões culturais, individuais e coletivas de mulheres que
169

ligadas ou não à aristocracia gozaram de certa autonomia para exercerem de modo ativo
diferentes papéis na estrutura social do período.

Se tal cultura intermediária é a responsável por ser o denominador comum entre os


grupos sociais, a mesma torna-se definível por manter consigo:

[...] áreas culturais específicas, grupais, classistas, sociais enfim, que se inter-
relacionam exatamente porque têm um imenso repertório de pontos comuns. E é
através dessa área de intersecção que determinados pontos podem migrar num
sentido ou noutro, alargando essa zona de identidade grupal (étnica, religiosa,
linguística, artística etc.) e de intermediação cultural (a partir da qual ocorrem
eventualmente mudanças sociais). (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 35)

Logo, afere-se que:


[...] talvez melhor que a consagrada e ambígua expressão “cultura popular” seja
chamarmos aquele denominador cultural comum de cultura intermediária.
"Intermediária" qualitativamente, por estar colocada entre a cultura de elite e a dos
demais segmentos; "intermediária" espacialmente, por ser o ponto de convergência
de dados provenientes dos polos culturais. (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 35)

Retornando, então, ao culto mariano e à condição da promoção feminina nos séculos


XII e XIII, o que se sabe é que no seio dessa cultura intermediária, como bem definida
anteriormente, as aproximações entre a Redentora e a Pecadora eram muito mais comuns que
suas diferenças. Como? Ora, em detrimento do esforço clerical de condenar constantemente a
figura de Eva, não há como negar, mesmo em termos teológicos, as verossimilhanças entre
esta e a Virgem:

Como filhas, ambas tiveram nascimento imaculado, sem a mancha do Pecado


original. Como mães, uma teve filho “com a ajuda do Senhor”, outra teve “porque
grandes coisas fez em mim o Poderoso”. Como esposas, uma ligou-se ao primeiro
Adão, outra, ao segundo Adão. A essa homologia mítica aproximou-se outra,
também antiga, entre Eva e a Igreja, cujo ponto comum para Justino, Irineu e
Agostinho era a maternidade, pois com Adão a primeira engendrou a velha
humanidade, com Cristo a segunda engendrou a nova humanidade. (FRANCO
JÚNIOR, 2010, p. 316)

Um outro ponto de discussão entre Eva e Maria relaciona-se aos arquétipos de beleza
femininos estabelecidos no medievo. Tendo em mente a suposta oposição intrínseca entre
ambas as figuras, é mais óbvio transfigurá-las em sentidos opostos quando se fala da natureza
de suas representações. O ideal mariano, logicamente, remete à uma beleza sacra, em
contraposição à beleza profana e luxuriosa representada por Eva. Ademais, há de levar-se em
conta a reprodução, sobretudo pela iconografia medieval, de ambas as mulheres, notadamente
descrevendo-as entre a dupla concepção do nu/vestido.
170

Nessa civilização dos gestos e dos costumes, como garante Jean-Claude Schmitt, há
uma “encenação dos corpos”, um teatro estabelecido pelas tensões do corpo feminino,
constantemente atravessado pela dinâmica que encara a representação da nudez feminina
sobre o pêndulo oscilante entre a inocência do homem enquanto indivíduo antes do Pecado
Original – o presente de Deus dado ao homem e à mulher, sua beleza divina – e a volúpia
insidiosa que recai sobre a mulher após a expulsão do Paraíso (SCHMITT, 2014). Sobre tal
aspecto, convém mencionar que a nudez para homem medieval, não se constituía em um tabu.
Mesmo condenada dentro do círculo eclesiástico, o corpo nu encontrou-se no centro de uma
promoção e de uma desvalorização de seus aspectos (LE GOFF; TRUONG, 2010).

FIGURA 15 – A VOLÚPIA

Escultura do século XIII (c. 1230), representando a Volúpia. Boa parte do simbolismo da obra reside na
imagem feminina sendo coberta por um manto feito a partir da pele de um bode, animal tradicionalmente
associado ao Diabo. A Volúpia ainda demonstra toda sua malícia ao instigar a curiosidade dos
171

observadores ao ocultar seu sexo com uma das patas presente no manto, deixando apenas os seios
desnudos como que um convite à luxúria. Fonte: <https://www.ricardocosta.com/artigo/donzela-que-nao-
podia-ouvir-falar-de-foder-e-da-mulher-quem-arrancaram-os-colhoes-dois>. Acesso: 22 fev, 2019.

No conceito binário medieval de corpo e alma, visualiza-se uma concepção dialética


entre ambos, que se justificou pela ideia de unidade humana existente no Ocidente medieval
que remetia às tradições religiosas estabelecidas desde a Antiguidade. De fato, depreende-se
dessa dialética uma “[...] atenção dada ao corpo como modo de ‘expressão’ exterior (foris)
dos movimentos interiores (intus) e invisíveis da alma, dos estados psíquicos, das emoções e
do próprio pensamento.” (SCHMITT, 2017, p. 292), o que traduzido nas representações de
Adão e Eva quando cometem o Pecado Original, transmutam-se em figuras de análise que
podem ser estudadas sobre a dicotomia do pecado e da inocência.

Logo, quando se fala sobre os tipos de beleza feminina, remetemo-nos às concepções


tradicionais em que:

Adão e Eva são a encarnação da ambivalência da nudez humana na Idade Média. De


um lado, são representadas tentando esconder sua nudez, punição pelo pecado
original. Mas de outro, seus corpos – que evocam tanto a inocência original quanto o
pecado – devem ser a ocasião de figurar a beleza dada por Deus ao homem e à
mulher. A partir do século XII, a frequência das representações de Adão e Eva
testemunha essa atração da nudez física humana sobre os medievais. [...] Entretanto,
o nu está em geral do lado perigo, se não do mal. Ele está do lado da selvageria e da
loucura. [...] O nu é também uma das principais manifestações de risco moral, que
são a falta de pudor e o erotismo. A roupa, ao contrário é não somente adorno, mas
também proteção e armadura. (LE GOFF; TRUONG, 2010, p. 140-141)

Dentro do leito conjugal, deveriam ser observadas as colocações supracitadas: cabia


ao marido vigiar pelo comportamento da esposa. Mesmo entre os cônjuges, não cabia a visão
completa um do outro em seu estado natural. Representações do nu dentro do leito
matrimonial advogavam a presença da luxúria e da concupiscência dentro do casamento,
geralmente trazidas à casa pelas más ações da esposa. Se o casal se entregasse às pulsões
sexuais, certamente o desprezo pelo pudor seria apresentado nas ações exageradas de ambos
os cônjuges, tendo, novamente, o destaque negativo voltado para a ação da esposa que
provavelmente teria convencido o marido de profanar a união sagrada.

A literatura cortesã, discutida nos capítulos precedentes, soube como representar a


complexa dinâmica da relação entre a nudez dos corpos e principalmente dos corpos
femininos. Estabelecendo uma espécie de “jogo” entre nus e vestidos, visualiza-se na
literatura do Amor Cortês uma idealização e descrição máxima dos atributos físicos de suas
personagens. Tratando-se da mulher, todas as personagens são descritas como sendo as
mulheres mais belas já vistas: elegantes, educadas, nobres, refinadas, com traços e trejeitos
172

delicados. Tais representações são ambíguas, pois podem “[...] ser um hino à beleza física,
mas também um aguilhão da sexualidade e da luxúria” (LE GOFF; TRUONG, 2010, p. 142).

Desse modo, os despojos e adornos femininos na Idade Média entram em cena como
expressões individuais tanto de uma individualidade pungente quanto de uma sexualidade
constantemente reprimida, porém professada do que é ser mulher em tal período. A vaidade
feminina, comumente associada às mais diversas formas de ofensa ao Criador, é colocada em
xeque pelos escritos da época que alertaram homens e mulheres em relação ao uso e abuso de
ferramentas artificias para disfarçar, modificar ou até mesmo enganar os outros.

André Capelão em seu Tractatus de Amore faz um apelo aos homens que prestem
bastante atenção ao se depararem com mulheres demasiadamente “disfarçadas” pelos
cosméticos da época:

Mas se vires uma mulher com excesso de arrebiques, não te deixes seduzir por sua
beleza antes de teres certeza de que ela não frequenta lugares de prazer, pois a
mulher que só conta com o poder de sedução dos seus arrebiques não costuma ser
ornamentada por muitas virtudes. [...] Cuida então, [...] de não seres enganado pela
beleza vã das mulheres, pois elas são tão argutas e têm a palavra tão fácil que,
quando tiveres começado a usufruir de seus favores, será bem difícil renunciar a
amá-las. (CAPELÃO, 2000, p. 18-19)

A associação que o autor faz do uso de maquiagem pelas mulheres com a suposta
ocupação delas enquanto cortesãs é bastante explícita. Em contraposição aos adornos
corporais, Capelão postula que o ornamento moral de tais mulheres não é digno da atenção
masculina e nem apto para desfrutar da corte do Amor. Ainda em seu tratado, o mesmo dedica
algumas linhas para falar acerca do “amor das cortesãs”:

Alguém poderia perguntar o que pensamos do amor das cortesãs. Diremos que é
absolutamente necessário fugir delas, pois é uma ignomínia frequentá-las, e em
companhia delas sempre cometemos o pecado da impudicícia. Além disso,
raramente uma cortesã se entrega a alguém sem antes ter recebido um presente que
lhe agrade. Aliás, mesmo ocorrendo que uma mulher dessas se apaixone, não resta
dúvida que seu amor é funesto para os homens: todos os que tenham bom senso
reprovam o comércio íntimo das cortesãs, e quem as frequenta perde a boa
reputação. Por isso, não queremos expor os meios de conquistar o amor delas, pois,
seja qual for o sentimento que as leve a entregar-se a quem o solicite, sempre o
fazem sem necessidade de muitos pedidos; portanto, não deves procurar conhecer a
técnica do amor nesse campo. (CAPELÃO, 2000, p. 208)

Os manuais de beleza feminina não eram artigos tão raros assim no medievo.
Entretanto, poucos sobreviveram às intempéries do tempo, aos desmandos dos governos e até
mesmo às intervenções clericais, que consideravam o adorno feminino, o embelezamento
pessoal e a vaidade como sendo artigos de luxúria voltados para o prazer carnal e mundano.
173

Embora desaprovados, os cuidados exteriores com o corpo feminino foram comuns


no Ocidente medieval, sobretudo graças a existência de numerosos manuais médicos
circulados entre os séculos XII e XIII que ensinavam às mulheres como cuidar de suas peles,
cabelos e dentes (MACEDO, 2014). Existentes fora da esfera de influência eclesiástica, tais
escritos foram elaborados justamente com o fim de transmitir ensinamentos e experiências
concernentes aos cuidados necessários visando o realce da beleza feminina.

Um destes escritos é o texto anônimo do século XIII denominado Ornatus mulierum


[Ornamento das mulheres, em tradução livre], pertencente ao Manuscrito Ashmole 1470 da
Biblioteca Bodleian de Oxford126, em que se destacam receitas de maquiagem e cuidados com
o corpo em geral.

Logo no prefácio da obra, o autor procura expor os motivos que o levaram a compor
tal obra. Segundo ele, Deus em sua infinita sabedoria deu à mulher beleza eterna no momento
da Criação. Porém, graças a pecado de Eva, todas as mulheres foram condenadas a pagar um
preço físico pelo Pecado Original: além de conhecer a dor do parto, teriam que conviver com
o envelhecimento, tendo no auge de sua juventude a pele macia e clara; e após o decurso dos
anos, seriam marcadas pelo peso da idade e do casamento (ORNATUS MULIERUM, 1967,
p. 32)

Desse modo, como uma forma de garantir os favores e as boas graças das mulheres,
o autor procura em sua obra ensiná-las como preservar a beleza e os cuidados com a aparência
mesmo com o passar dos anos. Uma outra preocupação do autor em sua obra, talvez ainda
imbuído pela moral cristã ou então pelo ideal da cortesia, é de preocupar-se em descrever os
cuidados com o corpo apenas do busto feminino até a cabeça. O mesmo afirma no prefácio da
obra que:

Falarei primeiro dos cabelos


e pouco a pouco, do resto do corpo:
da fronte, olhos, sobrancelhas,
do rosto, dentes, do queixo,
e de todas as partes
que é necessário falar.

126
Contendo ao todo 319 fólios, o manuscrito foi grafado em dialeto anglo-normando, com rubricas e títulos
sendo escritos em latim. Devido a tais características incomuns, Pierre Ruelle, cuja tradução do manuscrito
original em para o francês moderno é aqui utilizada, determinou o tempo de confecção da obra entre a segunda
metade do século XIII, na parte meridional da Inglaterra, sendo posteriormente copiada para outros manuscritos
a partir do século XV em diante.
174

Finalizarei nos seios.


Deste assunto tratarei em outro momento.
(ORNATUS MULIERUM, 1967, p. 33, tradução minha)127

No decorrer do texto, é notória a preocupação do autor em esmiuçar o cuidado com


os cabelos: seja com receitas para fazê-los crescer, ou torná-los mais sedosos, seja com
elaborado passo-a-passo para mudá-los de cor. Símbolos do cuidado e da vaidade femininos,
os cabelos representam a principal forma de expressão e representação da feminilidade,
sobretudo na iconografia do período que buscava a todo custo representar até mesmo o status
civil de cada mulher ali presente. Notoriamente, que os cuidados destinados à manutenção do
visco e da pilosidade capilar seriam assuntos de seríssimo interesse feminino, visto que, as
grandes heroínas dos romances corteses eram sempre representadas com longos cabelos
brilhosos, esvoaçantes e geralmente da cor do ouro, simbolizando o grau de pureza e nobreza
de suas donas.

Se no ambiente aristocrático tais modelos eram copiados, lembremo-nos que no


conceito de cultura intermediária aqui utilizado, não seria incomum que até mesmo as
mulheres camponesas, ao ter um vislumbre das grandes donzelas e damas, buscasse um
cuidado a mais com sua própria aparência. Corroborando tal hipótese, o manuseio e o teor dos
ingredientes utilizados ao longo de todo o texto são de origem do campo, denotando que a
sabedoria popular e os conhecimentos de medicina femininos eram levados em alta estima
pelo autor do documento.

O cuidado com os cabelos, desse modo, estava diretamente ligado com a condição na
qual as mulheres estariam ou não apresentáveis para o convívio social, seja de qual segmento
pertencessem. Como então fazer para que estes mesmos cabelos não caiam e mantenham-se
longos e fortes? O autor nos responde:

Contra a queda de cabelos


Pegue rosas frescas ou secas; mirtilos, banana, casca de bolotas e castanhas. Ferva-
os na água da chuva e com esta água, lave a cabeça pela manhã e à noite. Em
Pouille, vivia uma senhora que, todos os anos, perdia seus cabelos. Trotula de
Salerno tratou-os desta forma: pegou um chifre e o queimou a partir da casca de
salgueiro, das folhas de figueira e das cinzas de castanha, vinho e espuma. Misturou
tudo em azeite de oliva e, depois que a cabeça foi lavada com água da chuva, a
esfregou quatro vezes com esta receita. Desde então, o cabelo nunca mais caiu.
(ORNATUS MULIERUM, 1967, p. 34, tradução minha)128
127
No original: “A prime des chevoilz dirai. / E par tut le cors decenderai ; / del frunt, dels oilz, des surcilz dirun,
/ de la face, des dens, del mentun, / des autre choses tut a munt, / de tut celes que mester unt. / A la mamele fin
en frai, / De la matire alliurs dirai.”
128
No original: « Contre le chute des cheveux – Prenez des roses fraîches ou séchées, du myrte, du plantain et de
l'écorce de glands et de châtaignes, bouillez-les dans de l'eau de pluie et, au moyen de cette eau, lavez la tête
175

Para conservar o comprimento dos cabelos, por sua vez, tal era a receita prescrita:
Para conservar o cabelo
Se desejas que teu cabelo cresça longo e firme, pegue uma boa quantidade de cevada
junto de carne de toupeira. Queime-os em um vaso não utilizado e reduza-os à pó.
Pegue um pouco de mel branco para ungir o local onde queres que o cabelo cresça.
Coloque o pó em cima e espere por dois dias. Ao terceiro dia, enxágue sua cabeça
com água fervida com hortelã e sálvia. (ORNATUS MULIERUM, 1967, p. 34,
tradução minha)129

Dentro da preocupação central existente no medievo de disciplinar o corpo feminino,


a circulação de obras tais como o Ornatus Mulierum oferece ao historiador a oportunidade de
perceber as interseções culturais existentes entre os vários grupos sociais que compunham a
sociedade medieval.

Especificamente, permite que este observe as particularidades, anseios, angústias e


dúvidas das mulheres da época em torno da condição de seus corpos. Certamente, graças ao
teor quase que enciclopédico do manual de beleza aqui mencionado, convém-se refletir cada
vez ais sobre a natureza das convenções íntimas partilhadas entre as mulheres no Ocidente
medieval, tendo em mente quais tipos de relações sociais foram estabelecidas dentro desse
contexto emergente de uma suposta valorização e proposição dos cuidados físicos
relacionados à aparência.

Além do cuidado específico aos cabelos, o Ornatus Mulierum ensina às mulheres


preocupadas com o estado da tez como eliminar manchas, espinhas e outras erupções cutâneas
capazes de macular a beleza divina atribuída ao sexo feminino por Deus. O manual assim o
faz:

Você irá remover manchas marrons do rosto desta forma: alguns pegam dois ovos
de galinha e coloca-os no vinagre até a casca amolecer. Então, pegam um bom
punhado de farinha de mostarda selvagem e mistura tudo com os ovos e um pouco
do vinagre. Coe a mistura com um pano e esfregue seu rosto com o preparo,
deixando assim pela noite inteira. Pela manhã, lave com água limpa. Prossiga com
isso várias vezes e assim as manchas desaparecerão. Porém, não utilize esta receita
com uma mulher grávida, caso contrário ela perderá sua criança. (ORNATUS
MULIERUM, 1967, p. 55, tradução minha)130

matin et soir. Je vis en Pouille une dame qui, chaque année, perdait ses cheveux. Trote de Palerme les soigna de
cette manière : elle prit de la nielle, quelle calcina, de l'écorce de saule, des feuilles de figuier et de la cendre de
châtaigne, de vigne et d'euphorbe ; elle fit macérer le tout dans de l'huile d'olive et, après que la tête fut lavée
d'eau de pluie, elle la frotta quatre fois de cette préparation. Depuis lors, les cheveux ne tombèrent plus jamais. »
129
No original: « Pour conserver les cheveux - Si vous voulez que les cheveux repoussent longs et serrés à
suffisance, prenez une bonne quantité d'orge et une taupe, calcinez le tout dans un récipient qui n'ait pas encore
servi et réduisez en poudre. Prenez du miel blanc et oignez l'endroit où vous voulez que les poils poussent, puis
jetez-y la poudre et attendez deux jours. Dans le courant du troisième jour, lavez avec de l'eau où l'on aura fait
bien chauffer de l'orcanète, de la menthe et de la sauge. »
130
No original: « Il survient parfois au visage mainte chose désagréable, comme les taches de rousseur et bien
d'autres maladies. Vous ferez disparaître les taches de rousseur de cette manière : d'aucuns prennent deux œufs
de poule et les mettent dans du vinaigre jusqu'à ce que les coquilles soient amollies, prenez ensuite une bonne
176

A higiene bucal também era levada em consideração, pois há uma breve passagem
no texto que menciona os cuidados para clarear os dentes. Mesmo dentro do seio aristocrático,
os cuidados com a boca eram escassos, logo, não há surpresa quando o autor do Ornatus faz
indicações de como preservar a alvura dos dentes por mais tempo. Basta que as mulheres
obedeçam desta maneira “[...] Se queres clarear os dentes, pegue farinha de cevada muito
limpa, alume em pó fino e sal aquecido; misture-os com um pouco de mel derretido. Se
esfregares os dentes frequentemente com tal preparação, eles irão embranquecer.”
(ORNATUS MULIERUM, 1967, p. 73, tradução minha).131

Embora o apreço feminino pelos cuidados estéticos existisse no medievo mesmo


dentro de um contexto de repressão à vaidade das mulheres, a popuaridade de tais escritos
pode ser atestada graças ao próprio conteúdo de suas suas linhas: lá encontram-se
conhecimentos tradicionais relativos à fitoterapia e à botânica, domínios há muito tempo
pertencentes ao âmbito da “cultura popular”, setor no qual as mulheres, sobretudo as
campesinas, exerceram papel de primeiro plano (MACEDO, 2014).

Embora essenciais para se compreender a dinâmica dos comportamentos femininos


fora do padrão binário Eva/Maria, os manuais de beleza não são os únicos testemunhos
históricos acerca das expressões femininas consideradas fora do “padrão” socialmente
aceitável. Na trilha deixada pelo sucesso do culto mariano desde sua emergência no limiar do
século XI, as mulheres do Ocidente medieval distinguiram-se graças às suas auto-definição,
auto-representação e auto-autorização, incluindo-se neste movimento esfera religiosa, e se
definindo-se como parceiras em posição equivalente à dos líderes poderosos do sexo
masculino no campo político e religioso (TROCH, 2013).

Dentro da seara religiosa, percebe-se o surgimento de um movimento feminino


ligado ao pensamento filosófico caracterizado como “cristianismo místico”, cujas origens
remontam à obra de Pseudo-Dionísio, o aeropagita. Tal “mística cristã” consiste na
vertente mística do cristianismo que advoga experiências espirituais inacessíveis por meio do
intelecto apenas, em que tais “verdades” são aprendidas por intermédio de técnicas de

poignée de farine de sénevé, délayez avec les oeufs et avec un peu de vinaigre et passez dans une étoffe,
frictionnez le visage avec cette préparation et laissez-y la toute la nuit, le matin lavez à l'eau pure. Procédez ainsi
de manière répétée et les taches de rousseur s'en iront, mais n'appliquez pas ce remède à une femme enceinte, car
elle perdrait l'enfant. »
131
No original: « Pour blanchir les dents, prenez de la farine d'orge bien propre, de l'alun en menue poudre et du
sel décrépité, mélangez en ajoutant un rien de miel fondu, frottez-vous fréquemment les dents de cette
préparation et cela vous les rendra blanches. »
177

meditação e oração, como a oração contemplativa, oração da união, a lectio divina, oração de
quietude e a oração de Jesus (NOGUEIRA, 2013):

A mística faz parte da história da filosofia (ou pelo menos nela está presente) desde
suas origens até os dias hodiernos. Para verificarmos tal assertiva, basta revisitarmos
a obra ou o pensamento de alguns filósofos. Assim, por exemplo sem entrarmos em
detalhes em relação às grandes divisões ou classificações da mística (fiquemos com
a do Ocidente e com as vertentes chamadas pagãs e cristãs), temos desde os órficos e
pitagóricos, passando por Platão, Plotino e o Neoplatonismo na Antiguidade. [...] Na
Idade Média um nome se destaca como elemento propulsor das especulações
místicas: Dionísio, o pseudo-areopagita. Depois dele ou por causa dele (da
repercussão de sua obra), a filosofia medieval, na sua vertente cristã, se vê enredada
numa mística que une elementos pagãos e cristãos e que termina por estabelecer a
estrutura e a terminologia do que chamamos de mística cristã. (NOGUEIRA, 2013,
p. 156-157)

As mulheres, logicamente inseridas dentro do turbilhão cultural e religioso que foi o


Ocidente medieval dos séculos XI ao XIII, especificamente, começaram a impor suas vozes e
relatar por meio de suas experiências relatos proféticos e alegóricos, que embora não fossem
considerados como teologia pelo prelado masculino medieval, foram atribuídos a alcunha de
“mística”. Logo, essas “místicas” medievais nada mais eram do que mulheres pertencentes ao
clero, que desejaram afirmar, com seu estilo próprio de falar, uma maneira distinta da religião
proveniente da teologia clássica, principalmente graças o emprego de uma linguagem
predominantemente alegórica, poética e altamente interpretativa (TROCH, 2013).

Logo, o que se encontra na mística medieval feminina é senão a vocalização escrita


(ZUMTHOR, 1999) de um esforço dessas mulheres pertencentes ao clero medieval de
denunciar os vícios e desvios de uma religião da qual permanecem membros, porém sem se
calarem diante -se diante de hábitos tão introjetados nas estruturas do prelado medieval
(NOGUEIRA, 2013).

Místicas famosas como a santa Hildegarda de Bingen (1098-1179) e as beguinas 132


Hadewijch de Antuérpia (1200-1260) e Margarite Porete (1250-1310) , foram exemplos
notáveis de uma expressão religiosa feminina que queria ser ouvida e devidamente
reconhecida por ter algo de relevante a dizer sobre a natureza divina do amor à Deus, sobre as
vicissitudes do clero medieval e sobre a organização social na qual elas mesmos estavam
inseridas. É nesse contexto de propagação religiosa que o misticismo feminino atua como
agente revelador de uma faceta feminina até então escamoteada pelo restante da sociedade: a

132
As beguinas foram mulheres leigas católicas que praticavam uma vida ascética em comum, semelhante com
a monacal, atuando na maior parte das vezes nos chamados beguinários, na área da atual Bélgica. Suas ações
foram contemporâneas ao surgimento das Ordens Mendicantes no século XIII (franciscanos e beneditinos), o que
decerto influenciou no fato de que as beguinas dedicaram-se ao cuidado dos doentes e dos pobres, assim como às
tarefas caritativas e piedosas, sem estar contudo vinculadas a regras de clausura nem a de votos monásticos.
178

capacidade intelectual de construir, elaborar e formalizar experiências pessoais no âmbito da


teologia pedagógica (TROCH, 2013).

As formas utilizadas por tais mulheres traduzem-se basicamente em três aspectos: o


amplo relato de visões, de alegorias e de metáforas construídas de modo poético para
envolver seu público-alvo. De qual maneira? Quanto às primeiras infere-se que:

As visões – compreendidas como contato imediato com o divino – são um meio, um


estilo, uma forma para aumentar a importância do conteúdo. Não chega a ser
surpreendente que as mulheres façam uso desta forma literária, afinal, no campo
teológico, os homens normalmente eram aqueles que determinavam “a verdade”.
Para as mulheres ratificarem e afirmarem a importância de sua voz, precisaram
articular seus conteúdos dizendo que a palavra provinha diretamente de Deus. A
visão, portanto, é um conceito estratégico para garantir à voz teológica feminina
uma dimensão divina e, consequentemente, sua autoridade. As mulheres querem
afirmar que sua voz não é o resultado de uma emoção descontrolada, mas que vem
do próprio Deus. Trata-se, pois, de uma maneira de contestar a voz dominante.
(TROCH, 2013, p. 4)

Em relação às últimas, o que se observa é que:

As alegorias e a poesia fornecem, ao mesmo tempo, chances para (I) experiências


pessoais, bem como (II) para uma multiplicidade de interpretações. Também é, por
vezes, um modo de não precisar ser muito cauteloso para falar com clareza a
respeito de posições políticas e religiosas. Com efeito, místicas femininas
exercitaram de forma muito inteligente um poder dentro dos limites do que era
possível para pessoas “de natureza feminina”. (TROCH, 2013, p. 5)

Na obra de Hildegarda de Bingen, conhecida e respeita abadessa do século XII, seus


escritos demonstraram a capacidade da autora em denotar uma concepção mística e integrada
do universo, ainda que essa concepção não excluísse o realismo e encontrasse no mundo
muitos problemas.

A solução destes problemas, de acordo com suas ideias, devia advir de uma união
cooperativa e harmoniosa entre corpo e espírito, entre a real natureza humana e a graça
Divina, como visto na sua principal obra, o Liber scivias Domini, abreviação de Scito vias
Domini [Conhecei os caminhos do Senhor, em tradução livre], escrito entre 1141-1150. Nela,
a abadessa dirige-se diretamente às camadas indolentes do clero medieval, exortando-os e
repreendendo-os a retomarem o reto caminho da fé e das obras de Deus.

Um outro escrito notável de Hildegarda foi o Liber vitae meritorum [Livro dos
méritos da vida, em tradução livre], um tratado sobre a ética comportamental e a descrição
dos vícios e virtudes comumente reproduzidos na sociedade medieval da qual a abadessa
convivia.
179

Embora críticas do papel social da Igreja e, principalmente, de seus agentes, as


místicas medievais também versaram sobre a natureza das relações amorosas, sobretudo
àquelas concernentes ao amor devotado diretamente para o Criador. Durante o século XII, em
boa medida graças à chamada “Renascença” que ali teve sua emergência, os modelos, as
fórmulas e as estruturas sociais transmutaram-se gradualmente para um sistema múltiplo de
interpretações culturais que colocavam em perspectiva uma ideia diferente do homem
medieval e das suas relações com a natureza e com o mundo que o cercava.

Obviamente, a própria concepção de amor havia sido alterada, haja vista que os
principais teólogos – e místicas – do período foram levados por esse conjunto de
transformações a elaborarem novas perspectivas sobre o mesmo:

Estes o imaginavam como uma avidez. Ou esse desejo projeta-se para o alto, para o
espiritual, para Deus, e era denominado caritas. Ou então para baixo, para as coisas
terrestres, e era denominado cupiditas. Sobre essa simples clivagem baseava-se a
moral do bem e do mal e, especialmente, o julgamento sobre o comportamento dos
machos com relação ao outro sexo: o amor era visto como uma pulsão egoísta, um
apetite: é por mim, para saciar minha cobiça que me lanço sobre tal objeto, sobre tal
ser. [...] No começo do século XII, nas escolas parisienses, desenha-se uma
reviravolta. O amor, o bom amor, não é mais visto como uma captura, mas como um
dom. (DUBY, 2013, p. 345)

São Bernardo de Claraval133 foi um dos primeiros teorizar sobre as atribuições e


características desse devotado ao Divino. Em 1126, o abade escreve o tratado De diligendo
Dei134 [Deus há de ser amado, em tradução livre], em que confere quais são as maneiras de
justificar, compreender e por em prática o amor a Deus. Logo no início do tratado, São
Bernardo conclama “Vós quereis ouvir de mim por que e em que modo Deus há de ser
amado? E eu vos respondo: a causa pela qual Deus há de ser amado é o próprio Deus; o modo
é amar sem modo. (CLARAVAL, 2010, p. 9).

Nesse primeiro estágio, o homem estima a si próprio. Tal estima provém do interesse
intrinsicamente carnal da natureza humana, logo, é sabido que Deus criou a carne do homem,
e o salvou por intermédio desta mesma carne. Quando o homem se eleva para além das
preocupações carnais – vide o sexo – , ele ama a Deus são por puro egoísmo, para apropriar-
se da ideia de recompensa advinda do Criador, já que “[...] seu fruto é ele próprio [o amor].
‘Amo porque amo, amo por amar’. Amor gratuito, amor ‘puro’, ‘tanto mais suave e doce
133
São Bernardo de Claraval (1090-1153) foi um abade francês da ordem cisterciense e um dos doutores da
Igreja. Responsável pela reformulação da Ordem de Cister, ajudou na consolidação dos ideais monásticos e
ascéticos no âmbito das ordens religiosas cristãs.
134
O tratado eclesiástico aqui escrito por São Bernardo por objetivo refletir sobre sua experiência espiritual
durante a II Cruzada e para incitar a Cristandade sobre as maneiras de amar à Deus sobre todas as coisas. No
tratado, São Bernardo distingue sete maneiras distintas do amor ao divino, tecendo críticas ao amor material e
mundano em detrimento da experiência religiosa que o amor direcionado à Deus proporciona.
180

quanto aquilo de que se pode tomar consciência é todo divino.’” (DUBY, 2013, p. 346, grifo
meu):

De fato, pode-se duvidar se Deus há de ser amado por mérito dele ou para nossa
vantagem. Na realidade, eu responderia o meso em ambos os casos, quer dizer, não
há por mim outra razão digna de amar a Deus a não ser Ele mesmo. Primeiramente
vejamos o mérito da questão. Ele mereceu muito por nós, pois entregou-se por nós
que não merecíamos. O que Ele podia dar de melhor do que si mesmo? Portanto, se
se procurar a causa pela qual Deus há de ser amado, se busca o mérito de Deus, e
aquele é o fundamenta: que Ele por primeiro nos amou. Por isso, Ele é digno de ter
seu amor de volta, especialmente quando observa-se quem amou, quem foi amado e
quanto tenha amado. (CLARAVAL, 2010, p. 9)
Devido à tal prerrogativa, e absorvendo os estudos, as obras e as manifestações das
místicas medievais, o clero medieval se viu obrigado a falar às mulheres. No século XII, por
intermédio dos tratados morais, penitenciais e cartas, em um primeiro momento “[...] a
maioria das mulheres a quem os homens da Igreja escreveram eram religiosas, embora fossem
também esposas, mas de Cristo [...]” (DUBY, 2013, p. 308). À época em que o Pecado
Original fora transformado em pecado sexual, intensificaram-se o cerco, a zombaria, o
desprezo e o medo que os homens – do claustro ou não – sentiam pelas mulheres.

É notório que o teor dos escritos direcionados aos mosteiros, abadias e conventos
difere-se daqueles voltados ao público leigo, ou então ao público das grandes casas senhoriais.
Cientes do papel cada vez maior das mulheres dentro do seio estrutural da hierarquia
eclesiástica, o clero masculino dirige-se à essas mulheres com uma linguagem
condescendente, procurando lembrá-las de que “[...] ninguém se esqueça de que eles
dominam, paternalmente por certo, mas com firmeza, as que não chamam suas damas, mas
suas irmãs, e, com mais frequência, suas filhas” (DUBY, 2013, p. 308).

Embora absortas dentro deste contexto, as místicas femininas travam uma batalha em
diferentes polos das instituições eclesiásticas do Ocidente medieval. Se por um lado estão
completamente distantes da figura pecadora de Eva, por outro, aproximam-se um pouco da
representação da Virgem, negando-lhe, porém, a subserviência, retidão e sacralidade
comumente impostas à imagem de Maria.

Um paralelo que pode ser estabelecido entre tais mulheres nesses diferentes
contextos é o apelo ético e teológico para uma nova forma de compreender o mundo em que
vivem: como lidar com visões, seus corpos, o uso de seu intelecto, seu próprio poder e
autoconfiança para dar forma para sua própria vida (TROCH, 2013).

Entretanto, tais “estratégias de combate” sofrerão uma forte ofensiva que se inicia
sob uma dupla face a partir dos séculos XV e XVI: a um primeiro instante graças à ação da
181

própria Igreja e posteriormente a partir do crescimento urbano e dos emergentes Estados


nacionais (ANDERSON, 2016).

A ofensiva proveniente do clero é dupla: por um lado, as mulheres que se unem em


grupos são colocadas sob controle do prelado masculino: terciárias e beguinas são controladas
e limitadas em seu comportamento. Por outro lado, a demanda por uma crescente
“purificação” dos costumes acaba por concentrar a atenção do clero no julgamento das
mulheres que seriam ou não sólidas na doutrina cristã. Caso contrário, estas – religiosas ou
leigas – precisariam ser condenadas como bruxas ou hereges (TORCH, 2013).

Por sua vez, a ofensiva que parte dos centros urbanos se concentrou no poder e na
influência exercidos pelas universidades. O surgimento das universidades mantém o
conhecimento sob controle, logo, o saber intelectual das místicas estava diretamente sob o
jugo das autoridades escolásticas.

Nesse ínterim, o conhecimento trazido pelas intelectuais mulheres é visto como


perigoso, o que acarreta no aumente do controle e da repressão. Se anteriormente a existência
de visões e os relatos pessoais de encontro e conversas com Deus redigidos nas obras
teológicas dessas mulheres era considerado como prova inquestionável do alcance da missão
divina, agora o era considerado heresia:

Logo, suas vozes e suas escritas soam como uma espécie de transgressão, aliás, de
uma quádrupla transgressão: uma transgressão de gênero (mesmo que não deva ter o
peso do sentido moderno do termo); uma transgressão da ortodoxia da Igreja
(quando criticam explicitamente ou veladamente alguns dos seus hábitos); uma
transgressão linguística – ou de expressão – (posto que escrevem em língua
vernácula e não em latim – língua oficial da igreja) e uma transgressão dos limites
da relação entre o humano e o divino (quando a alma e Deus se tornam um só). Ora,
se os escritos dessas mulheres nos espantam, não só pela vivência que eles refletem,
mas também, como afirmam alguns estudiosos, pelo enraizamento de um fundo
sólido de conhecimentos; o que dizer da reação de muitos dos seus contemporâneos:
um assombro que alguns consideraram maravilhoso e outros, perigoso.
(NOGUEIRA, 2013, p. 162-163)

Se tomarmos o termo “transgressão” como o fio condutor de análise do presente


tópico, isso seria deveras diminutivo e limitante acerca do real e profundo alcance dos
testemunhos históricos aqui elencados. Embora a ideia de se estudar como as mulheres
medievais foram representadas pela literatura, pelo direito canônico e pela própria ideologia
eclesiástica tenha se mantido uma constante ao longo de toda esta pesquisa, é preciso admitir
os limites impostos por essa mesma documentação.

Tratando-se de um tema ainda “espinhoso” nos estudos históricos, a condição


feminina na Idade Média, como qualquer outro tema relacionado ao período, está envolta em
182

constantes atualizações e desdobramentos historiográficos. Já foi discutido e brevemente


apresentados os fatores que levam o historiador a incutir no erro das generalizações acerca de
uma suposta valorização e idealização da figura feminina e de sua completa anulação e
subserviência aos grilhões da dominação masculina.

As facetas femininas apresentadas ao longo do presente tópico e da pesquisa como


um todo, inserem-se nos mais atuais esforços de equilibrar concepções anteriormente
indiscutíveis e matizar um horizonte de expectativas acerca dos estudos envolvendo a
problemática feminina e o campo da literatura medieval. Como visualizado, não se trata de
um trabalho fechado em si, deveras impermeável ou disposto a oferecer soluções definitivas
para tantos problemas.

O contexto das “liberdades” femininas aqui discutido está alocado na simples


perspectiva e hipótese teórico/metodológica que impõe ao medievalista a consideração dos
fenômenos e dos grupos sociais no medievo expostos em relação à sua própria realidade
histórico-cultural. Não se trata de visualizar intercursos literários sobre as damas e donzelas
corteses isoladas dentro do ambiente fictício que era propagado por tal literatura, e sim
observar sua influência dentro do imaginário coletivo (FRANCO JÚNIOR, 2010) do
Ocidente medieval e suas respectivas representações (CHARTIER, 1990) no âmbito social de
uma cultura intermediária (FRANCO JÚNIOR, 1996).

Desse modo, oferece-se aos leitores, aos especialistas, aos leigos e demais entusiastas
da Idade Média, um vislumbre modesto acerca de um pequeno recorte do universo feminino,
calcado na análise responsável dos testemunhos históricos legados até nós, sobretudo pela
literatura, como forma de apreender, criticar e refletir sobre a realidade das relações e tensões
sociais que demarcaram posturas, discursos e representações comportamentais tão ricas e
complexas de serem analisadas pelo historiador do medievo.
183

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O vigor cultural demonstrado durante a Idade Média Central (séculos XI-XIII), e


sobretudo no século da narrativa romanesca, o XII, trouxe o tema do Amor Cortês ao limiar
dos estudos medievais direcionados aos aspectos culturais considerados até então “mundanos”
que a tradicional historiografia medieval relegava a um segundo plano sobre as principais
reflexões do período.

A literatura, ou melhor, a cultura literária produzida sob as temáticas cortesãs no


Ocidente medieval, trouxe à tona um universo sobre histórias de heroísmo, drama, fantasia,
redenção e principalmente, sobre o amor. Este cosmos, que inicialmente apresentado e
performado graças ao recurso narrativo, pela presença e necessidade do relato vocal, acabou
condensando os elementos de uma cultura de oralidade tradicional com os usos e ferramentas
de uma cultura escrita que preservou as principais estruturas e objetivos daqueles relatos que
até então só ganhavam vida pelo uso da voz.

A discussão em torno dessa literatura e da cultura escrita construída ao seu entorno


como meio de circulação social do elemento da escritura, acabou por fornecer as bases
necessárias para que determinado tipo de narrativa surgisse como forma de representar os
desejos suplantados e existentes dentro do imaginário coletivo do Ocidente medieval.

Enfim, surge o roman, que embora não fosse o pioneiro no tratamento dos temas
sobre o Amor Cortês, irrompe na vanguarda de um curso literário agora disposto a delimitar,
representar e exemplificar o que era, como podia nascer, como se manifestava e como
circulava esse ideal para o Amor. Produto das forças históricas que moldaram o cenário
político, econômico e cultural da Europa e, sobretudo da França, durante a época feudal esse
gênero acabou por aglutinar as especificidades tanto de seus autores como também de seus
184

receptores, aqueles que de início apenas ouviam, mas que agora poderiam ouvir e ler ao
mesmo tempo.

Jogando com tais premissas, os heróis e heroínas – além, claro, de seus algozes –
representados nesse meio literário ajudaram na construção histórica de si mesmos enquanto
agentes de compreensão do real. As figuras imaginárias, os lugares, as aventuras e decisões
tomadas servem como elementos de decodificação da fonte literária enquanto produtora
narrativa de um “regime de verdade” e de construção social sobre as relações entre homens e
mulheres sob a influência dos códigos de comportamento corteses.

Embora inicialmente restritos aos ambientes palacianos e às cortes reais, os romans


foram gradativamente expandindo seu campo de propagação, principalmente a partir do
século XIII, onde passa-se a observar a presença de elementos notórios de uma cultura tida
como “popular”, dotando-os de uma liberdade criativa bem maior, já que une os vestígios
anteriores das narrativas criadas para a aristocracia, mas que ao mesmo tempo imbuíram-se de
temas comuns a ambos os ambientes, como a questão do casamento, das intrigas sociais, da
vida cotidiana, da vida econômica, etc.

Entretanto, coube ressaltar que não se tratavam, obviamente, de espaços e condições


de produção cultural homogêneos. O que está em jogo é justamente a fratura teórica que
rompe com a noção de um “erudito” dominante em contraposição ao “popular”, visto que
aspectos significantes das narrativas circundam o quadro maior que é o da cultura literária
medieval e suas representações, daí a opção por uma abordagem que levasse em conta a ideia
de uma cultura intermediária que fizesse a ponte de interseção entre todos os segmentos
sociais do medievo Ocidental.

A circularidade dos escritos, a carga simbólica manifestada pela energia social, e,


tratando-se especificamente desta pesquisa, as representações coletivas das damas e donzelas
aristocratas, foram problematizadas em conjunto de uma abordagem teórica do imagináro, em
que acabaram por apontar os horizontes metodológicos que os elementos inicialmente
distintos (oral/escrito; culto/popular), porém complementares, são delimitados para criação de
um universo em que tais noções sejam dispostas das acepções vulgares e ultrapassadas que
outrora tomaram posição nos trabalhos historiográficos anteriores.

Temos então, no século XII, os romans arturianos de Chrétien de Troyes e seus


exemplos de cavalaria, de elegância, doçura e civilidade, com personagens femininas que até
a presente época, destoavam dos retratos sociais comuns acerca da idealização e da imagem
185

da mulher enquanto objeto imóvel, carente de tom e até mesmo, autonomia. É aqui que se
encontra Isolda, rainha cuja inteligência e sagacidade destaca-se durante seu conto.

Ademais, é dentro de tal narrativa que visualizamos Fenice, protagonista de Cligès,


cuja história fornece um relato ímpar acerca das condições que as mulheres aristocratas eram
obrigadas a obedecer dentro da complexa estrutura social que envolve matrimônio, parentesco
e as alianças forjadas em nome das grandes casas senhoriais.

Personagens e protagonistas amplamente mimetizadas durante os séculos XII e XIII,


tanto Fenice quanto Isolda demonstram facetas sensíveis para se questionar a suposta
inferioridade e submissão exacerbada das mulheres no medievo Ocidental. Embora
privilegiadas graças à condição de seu nascimento, ambas fornecem ao historiador a
oportunidade de observar e elaborar uma problemática de pesquisa que sirva como matiz
teórico-metodológico para oferecer uma visão mais “humana” sobre a condição e a posição
das mulheres no medievo.

Embora fossem figuras vinculadas ao ideal do Amor Cortês, ambas atuaram em uma
esfera de influência para além da vida literária, estimulando uma dupla reflexão na sociedade
medieval que por um lado absorveu a mensagem, os perfis e as características de tais modelos
femininos e por outro soube criar e representar nesse mesmo tipo de literatura outras facetas,
vícios e virtudes de um segmento social tão preocupado com seu status quo na sociedade: a
aristocracia.

Os modelos de cortesia representados nas figuras literárias de Isolda e Fenice, em


primeiro momento, puderam demonstrar o alcance e o propósito de refletir os
posicionamentos, os hábitos e a conduta que as mulheres detinham quando enamoradas.

O conto de Isolda versa sobre amor, paixão, adultério e sobre uma irracionalidade da
rainha ao arriscar sua vida e a de seu amante para satisfazer os desmandos de um amor
proibido. Irracionalidade nascida de um desejo, de uma expressão feminina que desafiou
convenções sociais e hierárquicas para viver tal experiência tantas vezes taxada de louca ou
irresponsável. Isolda, valendo-se de sua posição como rainha soube articular situações que a
fizeram escapar dos grilhões do jugo masculino e misógino para viver seu amor proibido com
Tristão.

Embora o núcleo narrativo do roman seja centrado na relação amorosa entre Isolda e
Tristão, diversas passagens da obra retratam a rainha ocupando posições de destaque e
186

autoridade na corte devido à ausência de seu esposo. Até mesmo na passagem onde é acusada
de adultério com Tristão, a própria rainha defende a si mesma e aceita passar pelo julgamento
da ordália, como forma de atestar seu caráter e sua autoconfiança no resultado.

Atitudes assim são muito mais comuns na literatura cortesã – e sobretudo no conto
de Tristão e Isolda – do que simples subserviência feminina ao mundo masculino. É dessa
forma que a contraparte de Isolda nesta pesquisa se apresenta. Fenice, donzela de nascimento
real, se mantém fiel aos arranjos do pai, porém, não se furta de expressar sua tristeza e
descontentamento com a situação na qual fora colocada.

Diferentemente de Isolda, cuja paixão voraz por Tristão quase a denunciou múltiplas
vezes, Fenice é representada como a anti-Isolda, já que optou pela recusa da tentação carnal e
enveredou pelo uso da inteligência e astúcia para enfim consumar seu amor com Cligès.

A própria antítese narrativa das duas figuras escolhidas para a análise central desse
trabalho configurou-se pelos desdobramentos significativos que esta pesquisa tomou. Ora,
embora histórias de amor, os romans trabalhados jogam com elementos e gestos simbólicos
muito particulares do Ocidente medieval. A própria autonomia e liberdade de Isolda
contrastam com a astúcia e elegância de Fenice, estabelecendo um paralelo reflexivo de como
a posição social e o status quo das mulheres alterou de modo significativo suas condições de
vida dentro – e até mesmo fora – da sociedade de corte.

Desse modo, optou-se por trabalhar de modo sistemático a literatura do período pela
sua capacidade singular de exprimir manifestações e expressões vívidas de uma cultura tão
ímpar quanto a medieval. A mesma literatura que idealizou de modo exacerbado a figura
feminina, acabou por promover de modo direto ou indireto uma promoção social das
mulheres naquela temporalidade.

Este trabalho não compactua com a teoria de Jacques Le Goff quando o grande
medievalista afirmou categoricamente que “o cristianismo salvou as mulheres” (LE GOFF,
2013b) ou que ainda o universo feminino tenha sido alijado e marginalizado do seio social
naquilo que o mesmo denominou de a “recusa do prazer”. Embora saiba-se sobre o traço
misógino e repressivo do clero medieval ansioso por controlar e punir as mulheres por sua
simples posição de ser quem são, não há como negar o papel imprescindível que a literatura
cortesã teve durante os séculos XII e XIII na educação das cortes e sobretudo na
“domesticação” de uma cavalaria totalmente bélica e dada à arroubos de violência contra as
mulheres.
187

Tal dicotomia entre “sombras e luz” no medievo Ocidental (BASCHET, 2010; LE


GOFF, 2013b), e sobretudo aos papéis femininos dentro deste contexto, foi colocada e
discutida de modo responsável apoiando-se nos testemunhos históricos aqui apresentados e
discutidos ao longo da pesquisa. O esforço teórico e metodológico da pesquisa pautou-se mais
em uma apresentação de hipóteses e alternativas viáveis e plausíveis – apoiadas na
documentação existente – sobre as múltiplas facetas do feminino no Ocidente medieval dos
séculos XII e XIII, do que solucionar de modo definitivo uma problemática tão rica quanto
essa.

Sabendo da dinamicidade dos estudos históricos, a problemática deste trabalho


apoiou-se no estudo sistemático das representações (CHARTIER, 1990) sociais dessas
mulheres dentro do imaginário (FRANCO JÚNIOR, 2010) coletivo medieval, valendo-se da
força singular de uma energia social (GREENBLATT, 1988) intrínseca dos escritos literários
dentro da cultura escrita (FISCHER, 2010; FERNANDES 2016) produzida e circulante nesta
sociedade.

Desse modo, o que se pode admitir é que a virada do século XII para o XIII trouxe
consigo uma transformação estrutural, estilística e conjuntural dentro da narrativa romanesca
e do modo de como a mulher era representada em tal tipo de literatura. O modo, a forma de
narrar as histórias, havia mudado. O foco esteve senão, além da veiculação dos ideais
corteses, na propagação das variantes sociais contraditórias, na representação dos elementos
vinculados ao saber universitário e no uso dos valores comuns tanto à cultura “erudita” quanto
à cultura “popular”, em se tratando da posição e do alcance que as mulheres poderiam ter
naquela época.

Desse modo, os escritos oriundos a partir dessa mudança de paradigma romperam,


em certa medida, a barreira translúcida que separava os castelos e as cortes senhoriais do
restante da sociedade, o que em termos de cultura intermediária no medievo Ocidental
(FRANCO JÚNIOR, 1996), acaba fornecendo outros padrões e modelos femininos que
escapam da cristalização e do engessamento tradicionais de limitar as ações e representações
femininas às figuras de Eva e Maria.

Importante relembrar que a cultura literária do medievo Ocidental formou-se a partir


do amálgama da oralidade com o escrito, posteriormente passando a acompanhar as
transformações sociais que permitiram um maior desenvolvimento do ideal cortesão para o
Amor, seguindo as premissas do imaginário coletivo sobre o alcance da circulação desses
188

“artefatos culturais” produzidos dentro desse cenário histórico sobre o florescer da cultura
escrita e da manifestação cada vez mais comum dos assuntos femininos no Ocidente
medieval.

Portanto, a escolha temática do Amor Cortês e das representações femininas dentro


da literatura influenciada por tal ideal justifica-se pela própria aplicabilidade do presente tema
para análise. Logo, o que se almejou ao longo desta pesquisa foi a possibilidade de contribuir
com o desenvolvimento do campo de estudos em História medieval a nível local (Ceará) e
regional (Nordeste), demonstrando a plausibilidade e viabilidade de uma pesquisa de pós-
graduação que faz uso e crítica da documentação específica produzida no período, e dialoga
abertamente com os mais recentes trabalhos e perspectivas teórico-metodológicas sobre o
pensar e fazer medievalística no Brasil.

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ANEXOS

ANEXO A - MANDAMENTOS DO AMOR [TRACTATUS DE AMORE]

I – O casamento não é desculpa válida para não amar.

II – Quem não tem ciúme não pode amar.

III – Ninguém pode ligar-se a dois amores ao mesmo tempo.

IV – É certo que o amor sempre aumenta ou diminui.

V – O que o amante obtém sem assentimento da amante não tem sabor algum.

VI – O homem só pode amar depois da puberdade.

VII – Depois da morte do amante, quem sobreviver deverá esperar dois anos.

VIII – Ninguém deve ser privado do objeto de seu amor sem a melhor das razões.

IX – Ninguém pode amar de verdade se a isso não for incitado pelo amor.
196

X – O amor sempre abandona o domicílio da avareza.

XI – Não convém amar mulher que nos envergonhe desposar.

XII – O verdadeiro amante não deseja estar em outros braços que não sejam os de sua amante.

XIII – Quando o amor é divulgado, raramente dura.

XIV – A conquista fácil torna o amor sem valor; a conquista difícil dá-lhe espaço.

XV – Todo amante deve empalidecer em presença da amante.

XVI – Quando um amante avista de repente a mulher amada, seu coração deve começar a
palpitar.

XVII – Amor novo expulsa o antigo.

XVIII – Só a virtude torna alguém digno de ser amado.

XIX – Quando diminui, o amor desaparece depressa e raramente se revigora.

XX – O enamorado sempre tem medo.

XXI – O verdadeiro ciúme sempre aumenta o amor.

XXII – Quando se suspeita do amante, aumentam o ciúme e a paixão.

XXIII – Quem é atormentado por cuidados de amor come menos e dorme pouco.

XXIV – Todo ato do amante tem como finalidade o pensamento da mulher amada.

XXV – O verdadeiro amante não acha bom nada daquilo que não lhe pareça agradar a amante.

XXVI – O amante não sabe recusar nada à amante.

XXVII – O amante nunca se sacia dos prazeres que encontra junto à mulher amada.

XXVIII – A menor desconfiança leva o amante a suspeitar do pior na bem-amada.

XXIX – Quem é excessivamente atormentado pela luxúria não ama de verdade.

XXX – O verdadeiro amante é obcecado ininterruptamente pela imagem da mulher amada.

XXXI – Nada impede que uma mulher seja amada por dois homens e um homem por duas
mulheres.
197

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