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Teatro da Madeira do século XIX:

Sócrates entre a tragédia da morte e a saudosa memória


Elina Baptista
A tragédia é um dos géneros literários que se cultiva na Madeira, ao longo dos tempos,
especialmente no século XVIII e inícios do XIX. Manuel Caetano Pimenta de Aguiar é um dos
cultores dessa arte que, à semelhança de tantos outros pensadores, julga o teatro uma força
civilizadora da humanidade. Admirador da cultura ocidental, clássica e contemporânea, grega e
francesa, procura na catarse da tragédia compreensão para o seu tempo e modus vivendi, dados os
efeitos nocivos das revoluções liberais, nas primeiras décadas da centúria de oitocentos.
Nascido no Funchal, em 1765, parte para Lisboa, em 1778, aos 13 anos, para frequentar o
Colégio dos Nobres. Em 1785 viaja para Paris, onde segue os cursos de artes e de ciências, que
abandona para se entregar ao serviço militar. Nos primeiros anos da década de noventa, participa
nas revoltas internas do país, demonstra valentia e coragem e alcança o posto de capitão e a Cruz
da Legião de Honra. No final da guerra, demite-se do serviço militar e regressa a Portugal. Este
regresso à pátria é um momento áureo na vida do escritor, já que se entrega ao estudo e cultivo da
literatura, a sua paixão, tornando-se, segundo muitos, precursor de Almeida Garrett.
Na verdade, ainda não se tinham passado muitos anos depois de terramoto de 1755. Dado
o estado de ruina dos teatros, era ocasião propícia para se erguerem novos edifícios e uma nova
forma de arte dramática. A Arcádia e a Nova Arcádia emergem nesta conjuntura, apresentam-se
como uma alternativa ao Barroco, ao Classicismo do século XVI, para combater os seus excessos
decoratistas e dramáticos, as suas últimas manifestações, que depreciavam o teatro português. A
ação reformadora proposta pela nova geração de escritores visa a imitação dos clássicos, as fontes
mais próximas da pureza literária, por um lado, e a sua adaptação ao gosto moderno, aos
princípios do Iluminismo, por outro. Para estes artistas, as causas da decadência literária
provinham, precisamente, do abandono do antigo, do genuíno, e na imitação dos renascentistas.
Arcádia é, justamente, uma região da Grécia cujos montes e vales bucólicos, ideais para poetas
receberem a inspiração das musas, que não pode ser esquecida.
Por um lado, Pimenta de Aguiar sente que entre nós não há um verdadeiro teatro nacional
e, por outro, procura através do cultivo da tragédia alertar para as lutas internas do país,
conduzidas por caminhos sinuosos, imprudentes, que impediam o desenvolvimento e o progresso.
Efetivamente, ao regressar de França encontra a pátria mergulhada em crise profunda, política e
social, da qual só se pode sair agindo, tal como acontecera na antiga Grécia, no século V a. C..
Na verdade, nas duas primeiras décadas do século XIX, os portugueses sentem-se
abandonados pelo monarca, em fuga para o Brasil, queixam-se da constante drenagem de dinheiro

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para aquele país, em forma de rendas e de contribuições, lamentam o declínio comercial, o
permanente desequilíbrio do orçamento, ressentem-se da influência britânica no exército e na
regência, circunstâncias que culminam com a execução do tenente-general Gomes Freire de
Andrade, acusado de conspiração contra a vida do Marechal Beresford, contra o governo e contra
as instituições vigentes.
Esta execução tem profunda influência no surto de uma consciência liberal entre o
exército e a burocracia que, longe de evitar futuras rebeliões, serve para as estimular. Realmente,
os opositores ao regime, e com eles muitos outros até então indiferentes, convencem-se da tirania
dos governantes e da dificuldade de conseguir por meios pacíficos quaisquer modificações no
status quo e avançam para a ilustração por meios pacíficos, culturais e intelectuais, uma
alternativa de índole superior à violência.
Com o Brasil na mira, Liberais e Absolutistas travam lutas frequentes, com avanços e
recuos de ambas as partes, que ora mostram as dificuldades dos Liberais, ora o poder dos
Conservadores. Os momentos determinantes deste meio século tumultuoso mostram um Portugal
abatido em lutas internas constantes tão diferente do de outrora, do apogeu das descobertas, dos
tempos áureos, assim como a Grécia tivera o seu. O país está longe de unido, balança como um
barco à deriva, e os principais momentos dessa desunião ficam conhecidos na história como
Vilafrancada, Abrilada, Sinédrio, entre outros, assim como os da Grécia ficam conhecidos, por
exemplo, como Guerra do Peloponesso e Imperialismo.
Neste clima de dúvidas e de incertezas, o teatro é Manuel Caetano Pimenta de Aguiar um
meio de anunciar a crise e de repensar o impasse que se vive no país. Seguindo a orientação dos
trágicos gregos e também franceses, escreve várias tragédias, em verso como era tradição no seu
tempo, e compreende que os problemas do homem se repetem na história e que o passado ajuda a
compreender o presente. É precisamente no cultivo da tragédia que se distingue como autor, é
com ela que pretende fazer uma revolução, semelhante à que Sócrates pretendera fazer na
antiguidade através do diálogo.
Num país em que reina a tirania, em que os homens que estão no poder enveredam pela
linha radical: executam quem se mostrar contra o regime, é preciso cautela no agir. O potencial
catártico do teatro, entendendo catarse como o aumento do conhecimento e da capacidade de
reflexão é, na realidade, um espaço ao qual afluem assuntos que preocupam o homem como a
emigração, a política, dado retratar a vida. Na verdade, tal como escreve Luisa Paolinelli, neste
“movimento em direção ao real do leitor/espectador, o dramaturgo reflete sobre a realidade que o
envolve, torna-se atento aos problemas políticos, sociais e culturais e faz do seu texto e da sua
encenação forma privilegiada de comunicar. Realiza a Comédia Humana de Balzac, que aspirava

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captar a infinita multiplicidade do humano, cm forma dramática, não raras vezes guiado por
intenções pedagógicas e interventivas que se unem à função de entretenimento do público.” (in
Baptista, Elina, Emigração e Teatro em Portugal no Século XIX. Retratos da Madeira e de
Madeirenses).
A forma e a profundidade com que Pimenta de Aguiar retrata conceitos de elevado cariz
ético-político são reveladoras de conhecimentos históricos e filosóficos e também de elevadas
aptidões de escritor dramático, tal como atestam os autores do Elucidário Madeirense e também
Sousa Bastos, um dos maiores vultos do teatro português do século XIX, que lhe reconhece um
estilo muito original.
Em boa verdade, o contacto com os ideais do Iluminismo e da Revolução Francesa, que
bebera em França, já sopravam e faziam eco em Portugal, desde finais do século XVIII, e
impulsionam as revoluções liberais que marcam o primeiro quartel do século XIX português em
que o madeirense está envolvido. Apesar das perseguições dos emissários miguelistas, que não
poupam quem seja partidário entusiasta da Constituição de 1820 e da Carta Constitucional de
1826, a chama do liberalismo jamais se apagará e o contributo de homens como Pimenta de
Aguiar jamais será esquecido. Embora tenha residido fora da Madeira a maior parte da vida, os
madeirenses reconhecem-lhe grande talento e ilustração, têm conhecimento da sua passagem por
França, e escolhem-no para seu representante nas cortes gerais, de 1822 a 1823, e para deputado
pela ilha, para a sessão legislativa de 1826 a 1828, demonstrando assim que é necessário
introduzir em Portugal novas formas de pensar e de agir. Entre as comissões parlamentares que
está presente, Pimenta de Aguiar apresenta um projeto que permite a livre exportação do vinho da
Madeira, dando, assim, um impulso à economia da ilha. Devido à coragem e determinação do
político e escritor, os madeirenses atribuem o seu nome a uma rua no Funchal, para não deixarem
cair no esquecimento o conterrâneo.
As notas biográficas sobre o autor seriam supérfluas caso não aproximassem o seu projeto
de vida do de Sócrates, ao que dele se conhece através das suas fontes, da época em que viveram,
das contradições e guerras internas dos seus países que os viram nascer. Conhecedor da trágica
morte de Sócrates, da determinação com que trata as questões antropológicas, das contradições do
seu tempo, Pimenta de Aguiar resolve recriar, à boa maneira madeirense, o processo e a
condenação de que o filósofo é vitima injusta, que tantas semelhanças ostenta com a sua trajetória
de vida e com o seu tempo.
Publicada em 1816, a Morte de Sócrates, tragédia de Manual Caetano Pimenta de Aguiar,
é apresentada, a título de prólogo, com um soneto da autoria de João Braz Vidal, advogado da
Casa da Suplicação, autor muito enaltecido pelo poeta Elphino Duriense, que reza assim:

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SONETO
A Musa da Tragédia, rociada
De puro nectar, entra em fausto dia
No Findo, das Irmãs em companhia,
Fallando assim a Apollo magoada:
Se o Mestre de Platão abriu a estrada
Da sã moral, que os homens alumia,
Se o premio foi armar-se a tyrannia
Contra a vida de Socrates honrada:
Como consentes que a exemplar história
Não ganhe no Cothurno igual grandeza
A deste Heroe, que vive na memoria?
Entre os Genios da gente Portuguesa
(Phebo lhe diz) Nação de eterna gloria,
Meu Aguiar venceo tão ardua impresa.
---------------------------------
Não de trope lisonja bafejado,
Mas da rara amizade vem dictado.
Do auctor

Efetivamente, se João Braz Vidal considera Manual Caetano Pimenta de Aguiar um


verdadeiro herói, Elphino Duriense, que nas suas poesias faz várias referências a Sócrates, é uma
das principais fontes de conhecimento do filósofo grego. Elphino Duriense, pseudónimo do
árcade António Ribeiro dos Santos, é um dos homens mais relevantes cultura do século das luzes
português, precisamente por ser um dos poetas fundadores da Arcádia Lusitana, cujo propósito era
a renovação do teatro nacional.
O argumento da tragédia mostra que Pimenta de Aguiar conhece as poesias que Elphino
Duriense dedica a Sócrates, um poema que dedica “Às Musas em Louvor da Virtude da
Constância” e um outro que dedica a “Francisco de Borja Garção Stockler” (1759-1829), figura
que destaca pela atividade científica na área da matemática que passamos a citar:
Soou-te n’alma a voz celeste, e logo
Firme a seguiste, ó Sócrates sublime, Nem joelho dobraste ante os Tyrannos,
Nem medo houveste à morte.
---------------------------------
Tu nunca dás descanço
Aos severos estudos; de continuo
Lidas com Locke e Newton,
E a fysica e a moral natura sondas;
Porem Sócrates sábio
Não era assim: c'os moços, que ensinava,
Como se fosse hum d’elles.
Corria em ledos jogos prasenteiro.

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Quanto à peça, a cena é representada em Atenas e os personagens são: Sócrates, Xantipa, a sua
mulher, Xenophonte, Platão, Appolodoro e Críton, amigos de Sócrates, Licon, Anyto, Mélito,
areopagitas e acusadores, Phromio e Devo, areopagitas e defensores, Lysias, orador de Atenas,
Micio, oficial militar, e alguns areopagitas e soldados.
Tudo começa no dia em que um amigo do virtuoso Sócrates, tal como o caracteriza o
escritor, lhe faz queixa dos Trinta Tiranos, tão bem conhecidos a partir da Carta VII de Platão,
que faziam correr sangue, sem cessar, entre os Magnates de Atenas, ao qual o sublime filósofo,
com a fina ironia que o distingue, lhe responde: “Consolemo-nos de não sermos, como os
Grandes, Heróis de Tragédia”.
A modéstia de Sócrates, própria do caráter, “maravilhosa”, segundo Pimenta de Aguiar, a
vida repleta de sabedoria, de heroísmo e de virtude, a injusta morte a que foi condenado pelo
corrompido e perverso Areopago, antigo supremo tribunal de justiça de Atenas, o alto respeito que
consagra ao primeiro filósofo, levam-no a escolhê-lo para protagonista da tragédia que agora
consagra à sua saudosa memória. A catarse reside, precisamente, em trazer Sócrates de volta,
recordá-lo para purgar os tempos conturbados que se vivem em Portugal, no dealbar da centúria
oitocentista. Efetivamente, segundo Cícero, Sócrates pouco conhece da Física, que se ensina nas
escolas, mas faz descer do céu a Filosofia e a Moral para ensinar os homens a serem justos e
virtuosos. O ideal político do filósofo assenta na razão, no conhecimento de si mesmo, porque só
este homem sabe o que é bom para si e para a sua cidade.
Atenas tem a honra de ser a cidade de Sócrates. O pai, Sophronico de nome, escultor
de profissão, quando o vê em idade própria, começa a ensinar-lhe a arte. O jovem discípulo cedo
revela talento, nessa e noutras áreas, dá grandes esperanças ao insto mestre, sendo-lhe atribuída a
autoria da escultura “Três Graças”, obra prima estimada como superior. Entretanto, é chamado às
armas. Enfrenta a estranha carreira com entusiasmo, realiza prodígios. Em tempos de paz cultiva
os talentos naturais. Estuda Physica, nas escolas de Anaxágoras e de Archeláo e, conhecendo a
magreza da Filosofia do seu tempo, dedica-se todo ao estudo da Moral útil aos homens, disciplina
que os anteriores filósofos mal conhecem e que os homens do seu tempo abominam.
Crítias e Chariclés, dois dos Trinta Tyranos, indignados contra ele, por repreender os
vícios públicos, investem sobre ele a primeira perseguição. Acusam-no de corromper a mocidade
e proíbem-no de comunicar com os homens de menos de trinta anos de idade. Anyto e Mélito,
membros do Areopago, atentos aos movimentos do filósofo, acusam-no nesse perverso tribunal de
blasfémia das antigas Divindades da Grécia, já que dizia que um Génio o inspirava e lhe falava ao
coração, de depravar com os seus discursos e trato a mocidade de Atenas, de ser declarado

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inimigo do governo popular, dizendo que o escrutínio pelo qual se elegiam os Magistrados era um
absurdo político, dado que era feito por sorteio.
Xantipa não se conforma que o esposo se dedique inteiramente à instrução dos atenienses,
ao ensino da Moral e lhes inspire o amor da sabedoria e da virtude. - É um louco! Lamenta. Vendo
aproximar-se a sentença final lembra-lhe que a morte é o prémio dos que querem reformar os
homens e dar à Divindade estranhos cultos. - Não se iluda com isso da Virtude, com isso da Moral.
- Mais vale entrar na prática corrente, prostituir a lisonja, estudar a arte de manejar a intriga,
esgrimir as armas do moderno egoísmo, em vez de seguir o falso pendor, de declamar austero, de
inventar novas seitas. - Apesar de tratar temas nobres, como a Moral e a Virtude, os grandes
desprezam-no, riem-se dele quando passa, chamam-no esquentado e frenético, lançam sobre ele
esse riso insensível em que a indiferença é o seu ambiente natural, tal como nota Henri Bergson.
(V. BERGSON, Henri, O Riso, Ensaio sobre o significado do cómico). – O melhor é queimar os
velhos volumes da antiga Atenas e a voltar à arte da escultura, de onde provém o sustento. - Que
pegue no malho, que esculpa Deuses e Heróis de pedras broncas, porque um bom filho não deve
ser orgulhoso nem desprezar a profissão que o pai lhe ensinara na infância. Essa sim é a pura
Moral.
Efetivamente, Sócrates reconhece que essa arte é muito querida, tem o seu valor, mas o
trabalho de polir os corações..., de trazer à luz o verdadeiro conhecimento....., à semelhança da
ação da mãe, que era parteira, de fazer com que os homens amem a virtude....., de ensinar a
marcha segura para o bem do Estado...., eternizada na máxima “conhece-te a ti mesmo!”, é dos
empregos mais gratos e nobres que pode exercer.
Quanto aos tiranos, a sua alma nobre não os teme nem o assustam. Sabe que os seus
escritos da Moral são ousados, que lhes revolta as paixões, mas são o caminho da Virtude! O seu
dever é amar os homens, instruí-los, seguindo o espírito celeste. O velho mundo, esse, deve seguir
o seu curso, porque as reformas nascidas nos tumultos são funestas, mais funestas do que milhões
de vícios. Tudo o resto são quimeras.
Esta é a época de Sócrates, uma época envolta em contradições, em sobressaltos, assim
como a de Pimenta de Aguiar. Atenas é herdeira daqueles que sob a aba da democracia tinham
merecido ser chamados os salvadores da Grécia, mas herdeira também de antagonismos que
dividem a opinião pública em duas fações, uma de tendência democrática e imperialista, outra de
tendência aristocrática. Num tempo em que a esperança de vida é escassa, devido à peste, os
costumes tradicionais são abandonados e a vida moral entra em convulsão. É precisamente neste
mundo que Sócrates está sob suspeita.

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Lysias, o mais famoso orador de Atenas, chama a si a defesa da causa. Escreve sobre o
assunto um patético discurso, cheio de eloquência, para Sócrates recitar na presença dos Juízes. O
filósofo escuta-o com atenção, mas a seguir rejeita-o, alegando que o “discurso é sublime, cheio
de erudição: porém é para [ele] o mesmo que se me oferecesses uns sapatos Sicyoniena (- moda
em voga entre a mocidade - Sicyonia ......sapatos)", são impróprios da dignidade de um Filósofo.
Conduzido ao Areopago, Sócrates escuta os acusadores. Depois, convicto de inocência e
com firmeza de espírito, refuta as caluniosas invetivas dos adversários e, com um discurso
simples, modesto, abranda os Juízes. Recolhe grande número de votos a favor, deixa Anyto e
Mélito mal vistos e em apuros, prestes a ser condenados a uma multa de mil dracmas como
caluniadores. Mas, nesse momento, entra em ação o detestável Licon, que goza de grande
reputação popular. Levanta-se, fala com entusiasmo e veemência a favor dos acusadores, e o seu
crédito atrai grande número de sufrágios. O resultado da votação é desproporcionado, de 280
contra Sócrates e 220 a favor. Os Juízes declaram Sócrates um criminoso, e dão-lhe liberdade de
se auto condenar: “Como sou livre para escolher a pena dos delitos de que falsamente me acusam,
eu me condeno, por ter instruído os Atenienses, e por ter feito constantemente grandes serviços à
minha Pátria, a ser nutrido o resto de meus encanecidos dias no Prytaneo à custa da Republica.”
Esta resposta, sublime e determinante, segundo Pimenta de Aguiar, revolta o Areopago que
logo resolve prendê-lo e delibera que beba “o çumo da cigude”. Ditada a sentença, Sócrates,
marcha com imperturbável serenidade para a prisão e responde, sem se alterar, “vós, no instante
em que nascestes, fostes condenados pela natureza”.
Os discípulos e os amigos não se conformam. Querem libertá-lo, comprar Mício, o
carcereiro, mas Sócrates rejeita. Se fugisse, então sim, seria criminoso e, com firmeza de caráter,
bebe a cicuta. Depois, passeia tranquilamente pela prisão, e quando as pernas começam a
enfraquecer deita-se, convicto que só após a morte se fará justiça, e depois expira. Tinha então
setenta anos de idade.
Na verdade, as semelhanças entre a vida de Sócrates e a de Manual Caetano Pimenta de
Aguiar são manifestas, assim como as dissemelhanças. Um e outro possuem ideias e princípios
dos quais abdicam para se dedicar à guerra. Recolhem triunfos, mas acabam por se retirar de cena
política devido à entrada em cena de homens que, no seu entender, não guiam o Estado pelos
melhores caminhos.
Sócrates é um homem desmoralizado que vive simultaneamente numa época de esplendor e
de decadência, perturbado por lutas intestinas e expedições militares, ora vitoriosas, ora desastrosas,
assim como a de Pimenta de Aguiar. Inconformados com os principais acontecimentos o seu tempo,
propõem-se ultrapassá-los através da Filosofia e da Arte. Sócrates fá-lo pelo diálogo e cai em

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tragédia e Pimenta de Aguiar fá-lo pela escrita, pela tragédia, pela arte. Ao propor Sócrates para
protagonista da peça, o autor procura através da catarse uma explicação para a onda de execuções a
que se assistia no país, medida adotada pelos governantes para por cobro à revolução, à luta pela
liberdade, ideal muito procurado pelos portugueses.
Pimenta de Aguiar apresenta Sócrates como um homem da tradição, um aristocrata, de
valores tradicionais, que prefere morrer em nome de verdades sagradas do que viver de acordo com
as leis emergentes de tempos novos, mas tumultuosos. Tal como Platão retrata na Alegoria da
Caverna o homem esclarecido prefere viver como servo da gleba, sujeitar-se aos mais árduos
trabalhos, do que voltar ao mundo inferior e viver na ignorância. O homem livre age de acordo com
os seus princípios, com os princípios genuínos embora, paradoxalmente, se submeta às leis dos
homens, ainda que perversas. Foi, precisamente, o que aconteceu com o filósofo. Um homem livre,
justo, virtuoso, nada tem a temer, por isso, sem hesitar marcha para a finamento, para
tranquilamente ocupar o seu lugar no reino dos céus, espaço da verdade, da paz, da santidade. Para
Sócrates e para o seu discípulo Platão, filosofar é, precisamente, uma preparação para a morte, é
aprender a morrer. Ao invés, Pimenta de Aguiar apresenta-se como um homem novo, que luta
contra ideais caducos que não fazem evoluir a nação nem orientar-se pelos caminhos Liberdade, da
Igualdade e da Fraternidade, princípios que adquirira na França, que são imperiosos a Portugal.

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