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História da Loucura (1961, Michel Foucault) – Capitúlo 1: Stultifera navis

Vinícius de Oliveira Duca

Ao fim da idade média a lepra deixou de assolar o mundo ocidental como o fez outrora. Porém
não, irônicamente, sem sequelas permanentes. Na tentativa de preservar a sociedade do mal
que se espalhava criaram-se os leprosários, colônias que serviam como locais de isolamento
das pessoas afetadas.

Chegaram a haver 19.000 deles em toda cristandade. Dois mil deles recenseados na França.
Quarenta e três apenas na Diocese de Paris. A partir do século XV os leprosários foram
desaparecendo a medida que a lepra se extinguia, deixando um espaço vazio com potencial de
ser preenchido por novas causas. O desaparecimento da doença é celebrado. Chega haver
procissões em nome dele.

Logo se estabeleceu a idéia da reorganização dos bens fundiários dos inúmeros leprosários.
Esvaziaram-se os que tinham poucos pacientes, que foram transferidos para outros,
concentrando-os. As rendas são redirecionadas em sua maioria para hospitais. Alguns desses
ambientes agora vazios são povoados por incuráveis e loucos, como é o caso de Lippiglen, na
Alemanha.

O desaparecimento da doença, no entanto, não foi efeito de uma prática médica com intento
de cura, mas justamente resultado da segregação dos doentes da sociedade e a ruptura com
os focos de infecção orientais após o fim das cruzadas. A lepra sai de foco, mas os valores e as
imagens aderidos à personagem do leproso, essa figura temida, não. A figura do leproso
permanece como manifestação ambivalente do divino. Indica a cólera do Senhor ao mesmo
tempo em que marca sua bondade: é uma graça que serve como punição aos males que
alguém tenha feito na terra. Uma chance para a purificação da alma. É afastado do povo, mas
aproximado de Deus. Por um lado é excluído e abandonado, por outro, salvo. Uma espécie de
purgação terrena que garantiria sua entrada direta no paraíso após a morte.

Sem a doença, essas estruturas permanecerão. Deu-se lugar brevemente as doenças venéreas
isoladamente, tão comuns, contagiosas e estigmatizadas como esta primeira. Dois a três
séculos mais tarde, de forma sobreposta, a exclusão dos pobres, vagabundos, presidiários,
cabeças alienadas, de maneira semelhante como outrora, mas com um sentido novo.

A grande herdeira, entretanto, do modus operandi dessa segregação foi a loucura. Esta, que
até o século XVII estava ligada obstinadamente a todas experiências maiores da renascença.
Foucault então nos remete a figura simbólica da Nau dos Loucos que habitou imaginário
popular durante tal período. As Naus eram uma moda de composições literárias da época que
retratavam heróis, modelos éticos ou tipos sociais que lhes trazem a figura de seus destinos ou
suas verdades. Entretanto, ressalta que de todas essas, uma de fato existiu, A Nau dos loucos,
esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra, limpando-as de sua
mercadoria indesejável, seus rejeitos. As cidades escorraçavam seus loucos através desses
navios, costume esse mais frequente na Alemanha.
Não meramente uma medida de expurgo uma vez que havia durante toda a idade média e
Renascença um lugar de detenção reservados aos loucos. Tratava-se, provavelmente, de
excluir apenas aqueles que não eram cidadãos de origem local. Já outros lugares como
Nuremberg acolhia grande número de loucos levados pelos navios, são alojados, porém não
tratados, mas jogados a reclusão. Nesta mesma cidade os loucos são proibidos de frequentar
as igrejas. “Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: ela leva
embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à
incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é,
potencialmente, o último.”

A partir da segunda metade do século XV a loucura substitui a morte como temática de


destaque. A loucura passa a ser vista como o já-está-aí da morte. Trata-se do vazio da
existência, que antes era visto exterior, mas agora interior. Causa outra de fascinação da
loucura era, entretanto, ela ser certa forma de saber. Um saber difícil, fechado e esotérico. Um
saber proibido, que prediz ao mesmo tempo o reino de Satã e o fim do mundo.

Foucault então resume o que pensa indispensável para entender a experiência que o
classicismo teve da loucura.

Primeiro, loucura e razão se fundamentam uma vez que se recusam. “Isto é, a loucura só
existe com relação à razão, mas toda a verdade desta consiste em fazer aparecer por um
instante a loucura que ela recusa, a fim de perder-se por sua vez numa loucura que a dissipa.
Num certo sentido, a loucura não é nada: a loucura dos homens não é nada diante da razão
suprema que é a única a deter o ser; e o abismo da loucura fundamental nada é, pois esta só é
o que é em virtude da frágil razão dos homens. Mas a razão não é nada, dado que aquela em
cujo nome a loucura humana é denunciada revela-se, quando finalmente se chega a ela,
apenas como uma vertigem onde a razão deve calar-se. (...) A loucura não tem mais uma
existência absoluta na noite do mundo: existe apenas relativamente à razão, que as perde uma
pela a outra enquanto as salva uma com a outra.”

Segundo, “a loucura torna-se uma das próprias formas da razão. Ela só tem sentido e valor no
próprio campo da razão.Tal é a pior loucura do homem: não reconhece a miséria em que está
encerrado, a fraqueza que o impede de aproximar-se do verdadeiro e do bom; não saber que
parte da loucura é a sua. A verdadeira razão não está isenta de todo compromisso com a
loucura; pelo contrário, ela tem mesmo de tomar os caminhos que esta lhe traça.

Entre formas de razão e formas da loucura, grandes são as semelhanças. Como distinguir,
numa ação prudente, se ela foi cometida por um louco, e como distinguir, na mais insensata
das loucuras, se ela pertence a um homem normalmente prudente e comedido?

A loucura é um momento difícil, porém essencial, na obra da razão; através dela, e mesmo em
suas aparentes vitórias, a razão se manifesta e triunfa. A loucura é, para a razão, sua força viva.
Deixou de ser, nos confins do mundo, do homem e da morte, uma figura escatológica; a noite
na qual ela tinha os olhos fixos e da qual nasciam as formas do impossível se dissipou. O
esquecimento cai sobre o mundo sulcado pela livre escravidão de sua Nau: ela não irá mais de
um aquém para um além, em sua estranha passagem; nunca mais ela será esse limite fugidio e
absoluto. Ei-la amarrada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e segura. Não
existe mais a barca, porém o hospital. Este passa a ser o novo tema iterário. Hospital dos
Loucos. Os personagens agora são os loucos bêbados, os loucos sem memória e
entendimento, os loucos mansos e semimortos, os loucos voados e sem cérebro. A perfeita
separação da razão, aquela que rotula, e a não-razão, que é rotulada.

O início do século XVII passa então a ser estranhamente hospitaleiro para com a loucura.
Deixa-se entender que aquela que antes era expulsa, expurgada, agora é vista como aquela
que precisa ser cuidada. Porém finaliza acrescentando que novas exigências estão surgindo.

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