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Mais Algumas Reflexões sobre Gênero e Política

O conhecimento sobre gênero e política tem sido tão fecundo e de tão longo
alcance nos últimos dez anos que é impossível resumi-lo ou sintetiza-lo de todo. Ao
invés disso eu escolhi explorar um pouco dos assuntos em destaque em parte deste
trabalho, com um olhar que provoque uma nova contribuição crítica, senão uma revisão
ou reconceitualização, dos termos que têm sido usados na maioria de nossas análises.

A DISTINÇÃO SEXO/GÊNERO: “ÚTIL EM PRINCÍPIO, MAS DE


MANEIRA ALGUMA AMPLAMENTE OBSERVADA”

A nota usada para “gênero” no American Heritage Dictionary of English


Language (3ª Ed., 1992) lê-se como segue:

Tradicionalmente, gênero tem sido usado basicamente para referir-se a


categorias gramaticais de “masculino”, “feminino” e “neutro”; mas nos últimos anos o
uso da palavra tem sido estabelecido como referência às categorias baseadas no sexo,
assim como em expressões tais como desigualdade de gênero e política de gênero. Este
uso tem como suporte a prática de muitos/as antropólogos/as que utilizam sexo como
categoria biológica, enquanto usam gênero como uma categoria cultural ou social. De
acordo com esta convenção alguém diria A efetividade da medicação parece depender
do sexo (não do gênero) do paciente, e ainda Em sociedades agrárias, os papéis de
gênero (não sexuais) são provavelmente mais claramente definidos. Esta distinção é útil
em princípio, mas de maneira alguma amplamente observada, e ocorre uma
considerável variação em seu uso em todos os níveis. (754)

Esta última frase é crucial, como um lembrete tanto da futilidade em insistir nos
usos lingüísticos precisos como da dificuldade que as feministas têm tido em discernir
as designações sociais de seus referentes físicos. Não importa quão insistentemente
os/as teóricos/as feministas têm refinado o termo “gênero” (expurgando-o de todas as
conotações “naturais” enquanto promovem seu status como uma “construção social”),
eles/elas têm sido incapazes de impedir sua deturpação. No senso comum, “sexo” e
“gênero” são muitas vezes utilizados como sinônimos e antônimos ao mesmo tempo; de
fato, algumas vezes parece que o “gênero” é simplesmente um eufemismo polido para
“sexo”. E considerando o número de livros e artigos acadêmicos que tomam “gênero” e
“mulheres” como sinônimos, os/as acadêmicos/as não estão muito melhores que o
público em geral ao manter a distinção entre o físico e o social (natureza e cultura,
corpo e mente) que a introdução do termo “gênero” pretendia alcançar.
Embora existam contínuos esforços voltados a esclarecer esta confusão de
definições – variando de apelos por uma vigilância mais cuidadosa do uso do termo a
sugestões que ele seja totalmente abandonado – eu não penso que esta seja a maneira de
abordar o problema (Bock 1989; Hawkesworth 1997; Nicholson 1986, 1994-95).
Preferivelmente, eu penso que precisamos interpretar a tendência em associar sexo e
gênero como sintomas de certos problemas persistentes (Sedgwick 1990). Um destes
problemas é a dificuldade de representar os corpos como aparelhos inteiramente sociais
dentro dos termos da oposição entre natureza e cultura. Enquanto estes dois domínios
forem considerados antitéticos, os corpos (e o sexo) parecerão inadequadamente
representados como construção social em si. O “gênero” não substituirá “sexo” em
discussões sobre a diferença sexual; ao invés disso “gênero” sempre será referido ao
sexo como o último patamar de seu significado. Quando o sexo reside no gênero desta
maneira, nada pode impedir que sua existência seja identificada com (ou como) o
gênero em si. O que então parece ser uma confusão conceitual ou terminológica é de
fato uma representação precisa da falta de uma distinção nítida entre os dois termos.
A aparente clareza da distinção entre sexo e gênero obscurece o fato de que
ambos são formas de conhecimento. Empregando a oposição natural x construído
perpetua-se a ideia de que exista uma “natureza” transparente que pode de alguma
forma ser conhecida apartada do conhecimento que produzimos sobre ela (Haraway
1991). Mas de fato, “natureza” e “sexo” são conceitos com histórias (Butler 1993). Eles
estão articulados pela linguagem, e seus significados têm mudado ao longo do tempo e
através das culturas. Quando a oposição sexo/gênero negligencia o papel da linguagem
na construção da natureza ela colabora para assegurar o status (prelingüístico, a-
histórico) natural do sexo – exatamente o que a introdução do “gênero” pretendia
subverter (Adams 1979). Talvez a confluência entre sexo e gênero no uso comum possa
ser considerada uma correção do “erro” que colocaria o sexo fora da linguagem. Pelo
contrário, aqueles que usam os termos de forma intercambiável parecem estar dizendo
que tanto o “sexo” como o “gênero” são atribuições de significado, formas variáveis de
diferenciar corpos nos domínios (embora diferentes) do físico e do social. Se este for o
caso, para que serve insistir na distinção entre sexo e gênero?
Ainda outra razão pela qual tem sido difícil manter a distinção clara entre sexo e
gênero são os impulsos universalizantes tanto do feminismo (um movimento político
originado no Ocidente no momento de suas revoluções democráticas do século XVIII)
como da ciência social (cujas origens são mais ou menos contemporâneas às origens do
feminismo). Os impulsos universalizantes do feminismo e da ciência social têm operado
para produzir uma visão das mulheres (ao longo do tempo e das culturas) como
fundamentalmente homogênea por tomar como autoevidente a diferença fundamental
entre “mulheres” e “homens” (Riley 1988). Ainda quando as diferenças nacionais e/ou
culturais são reconhecidas, estas são tratadas como um fenômeno de segunda ordem,
muitas variações sobre um tema universal no qual o gênero sempre significa a mesma
coisa: um relacionamento assimétrico, senão antagônico, entre mulheres e homens que
organiza as diferentes funções para cada um em espaços e atividades separadas. Mas se
o gênero – um fato invariável da diferença sexual – é universal, o que, senão a biologia,
pode finalmente explicar sua universalidade? Se o gênero significa as formas sociais
impostas nas diferenças existentes entre mulheres e homens, então a natureza (corpos,
sexo) é deixada no lugar como o fator determinante da diferença. Se o estudo das
mulheres automaticamente leva à “análise de gênero,” então uma forma de
essencialismo está dirigindo a investigação: a presença de fêmeas físicas significa que
um sistema de diferença – já conhecido por nós – existe de fato (Yanagisako and Collier
1987). Quando o “gênero” assume a existência a priori da diferença sexual, sem
problematizá-la de fato, então as distinções conceituais nítidas entre sexo e gênero são
impossíveis de serem mantidas.
Mas talvez isto não seja necessário para manter tais distinções, talvez seja mais
útil aceitar a falta de precisão que os editores do American Heritage Dictionary
identificaram. Se o sexo e o gênero são ambos tomados como conceitos – formas de
conhecimento – então eles são intimamente relacionados, se não indistinguíveis. Se
ambos são conhecimentos, então o gênero não pode ser evocado para refletir o sexo ou
para ser imposto sobre ele; melhor dizendo, o sexo torna-se um efeito do gênero. O
gênero, as regras sociais que tentam organizar as relações entre homens e mulheres nas
sociedades, produz o conhecimento que temos sobre o sexo e a diferença sexual (em
nossa cultura por igualar o sexo com a natureza). Tanto o sexo como o gênero são
expressões de certas crenças sobre a diferença sexual; eles são organizações da
percepção mais do que descrições ou reflexos da natureza (Keates 1992). Se o sexo, o
gênero e a diferença sexual são efeitos – discursivamente e historicamente produzidos –
então não podemos considerá-los como pontos de partida para nossas análises. Ao invés
disso devemos levantar as seguintes questões: Como as leis, as normas e os acordos
institucionais fazem referência e implementam as diferenças entre os sexos? Em quais
termos? Como as diferentes sociedades organizaram as relações de gênero? Em quais
termos a diferença sexual foi articulada? Como os discursos médico e legal – os
discursos do paciente e do cidadão, por exemplo – produziram conhecimentos ditos
verdadeiros sobre a natureza de mulheres e homens? (Foucault 1980; Laqueur 1990).
Qual tem sido a conexão entre gênero e política? A diferença sexual foi invocada
diferentemente em diferentes tipos de movimentos políticos e sociais? Como, e em
quais termos? Qual é a natureza do apelo? Que tipos de investimentos psíquicos são
solicitados e/ou produzidos na organização social das diferenças entre os sexos? Qual a
ligação específica feitas em articulações da diferença sexual com outros tipos de
diferença (raça, classe, etnicidade, etc.)?
Estes tipos de questões requerem leituras específicas de casos particulares. Elas
não defendem que o gênero é sempre a força motriz da política; de fato, elas levam em
consideração a possibilidade de que possa existir pouca ou nenhuma relação entre
gênero e política. Nem defendem um significado invariante para o gênero em si. Ou
melhor, tomam-no como sendo um fenômeno físico e social complexo e em
transformação. E ainda, tais leituras necessitam ser atualizadas pela teoria ou teorias,
isto é por tentativas em detectar alguma lógica (ou lógicas) subjacente nas variadas
manifestações do comportamento humano. A teoria nunca esteve ausente dos estudos
feministas; os debates entre marxistas, estruturalistas, pós-estruturalistas e aqueles que
se baseiam na psicanálise têm dado vitalidade ao campo nas últimas décadas, criando
tensões produtivas até mesmo em meio a intercâmbios animosos. Um resultado desta
atividade tem sido a pressão para complexificar as análises nos termos sugeridos por
Gayle Rubin em seu artigo de 1975 “O Tráfico de Mulheres”: “Eventualmente, alguém
terá que escrever uma nova versão de “A Origem da Família, da Propriedade Privada e
o do Estado” (de Friedrich Engels), reconhecendo a interdependência mútua entre
sexualidade, economia e política sem subestimar o significado pleno de cada um na
sociedade humana (Rubin 1975:145).
O tipo de síntese convocada por Rubin requer um pensamento sobre sexualidade
nos mesmos termos da economia e da política, ou seja, como uma atividade humana
complexa mais do que o reflexo ou o cumprimento de um fato físico. Teorizar a
sexualidade humana tem sido a província da psicanálise neste século. “É essencial,”
escreveu Sigmund Freud, “compreender claramente que os conceitos de „masculino‟ e
„feminino‟, cujo significado parece tão evidente para as pessoas comuns, está entre o
que de mais confuso ocorre na ciência.” “Nos seres humanos,” ele continuava, “a
masculinidade ou a feminilidade pura ainda não foi encontrada nem no sentido
psicológico nem no biológico. Cada indivíduo, ao contrário, apresenta uma mistura de
traços de caráter pertencentes ao seu próprio e ao sexo oposto; e ele mostra uma
combinação de atividade e passividade e se estes traços de caráter correspondem ou não
com seus traços biológicos” (Freud 1905:125-172). Para Freud, a auto-identidade de
uma pessoa enquanto homem ou mulher é um processo complexo – cultural, físico e
psicológico – girando em torno do mito da castração. O psicanalista francês Jacques
Lacan foi mais longe, insistindo que “homem” e “mulher” não são descrições
biológicas, mas significantes de posições simbólicas assumidas por sujeitos humanos
(Lacan 1977). E para ambos Freud e Lacan, a identidade sexual nunca foi estável, nunca
finalmente estabelecida; assegurada apenas através de sua repetida performance
(necessariamente em relação aos outros).
Para Freud, foi a função repressiva da civilização que, em nome da reprodução
da espécie, direcionou as energias sexuais difusas para a monogamia, o caminho
heterossexual. (O requisito... de que deveria existir um tipo único de vida sexual para
todos, ignora as disparidades, quer sejam inatas ou adquiridas, na constituição sexual
dos seres humanos; isto aparta um número razoável destes seres do prazer sexual, e
torna-se então fonte de grave injustiça” (Freud 1930:104). A diferença entre os sexos,
então, é um feito social (o preço da “civilização”) embora não no sentido que a oposição
entre gênero e sexo (cultura e natureza) implica. O cultural não é uma operação
planejada, racionalmente imposta sobre os corpos físicos e então “internalizada” pelos
sujeitos. De uma perspectiva psicanalítica, o psicológico, o social e o físico não existem
independentemente de um ou de outro; eles estão, ao invés disso, inextricavelmente
combinados, constituídos nos e pelos processos psíquicos que são crucialmente
atualizados pelo inconsciente.
A grande contribuição de Freud para o estudo da psique humana (e através desta
o estudo da produção da diferença sexual) foi a teoria do inconsciente. De acordo com
Freud, o inconsciente é o lugar dos instintos reprimidos e dos desejos que se seguem
deles. Embora não seja diretamente acessível à consciência, o inconsciente, todavia, tem
uma influência discernível nas ações humanas. Os desejos inconscientes são expressos
em lapsos de linguagem, piadas, sonhos e fantasias; estas expressões tomam forma
simbólica – elas são condensações e deslocamentos de significado, não representações
diretas, e elas devem ser interpretadas como tais. As fantasias expressam os desejos
inconscientes e decretam sua realização (e as complicadas conseqüências de tal
realização); elas atualizam a memória, reconstruindo e redefinindo imaginativamente o
passado.
Ao se reconhecer que a fantasia modela representações, ações e memórias, ela
torna-se um componente crucial do comportamento humano. Ao se reconhecer que ela
oferece explicações gerais para a origem dos sujeitos humanos e suas características
definidoras da sexualidade e da diferença sexual, a fantasia não é apenas um
componente da vida psíquica dos indivíduos. Ela compartilha da estrutura mítica da
cultura ocidental. J. Laplanche e J-B. Pontalis definem como fantasias primárias ou
originais aquelas que “relacionam-se a problemas de origem que se apresentam para
todos os seres humanos: a origem do indivíduo (cena primária), a origem da sexualidade
(sedução), a origem da diferença entre os sexos (castração)” Laplanche e Pontalis
1968:19).
Estas histórias de origem não são restritas à sexualidade como se fosse um
departamento separado da existência humana. A fantasia espalha-se em todos os
aspectos da vida: em culturas patriarcais a masculinidade é significada não apenas pela
posse de um pênis e pela paternidade, mas (dependendo do tempo e do espaço) pelas
posições de soldado, dono de propriedade, cientista e cidadão, posições das quais as
mulheres estão necessariamente excluídas, porque para inclui-las deveria se reconhecer
que o sexo biológico, de um lado, e a identificação subjetiva com posições simbólicas
masculinas ou femininas, de outro, não são a mesma coisa. A imaginação humana
(impulsionada ao menos em parte pelo desejo inconsciente) atua rápido e perde com as
fronteiras que cientistas sociais poderiam estabelecer: a esfera da economia nunca é
simplesmente a satisfação de necessidades básicas, que a política nunca é apenas
combates entre atores racionalmente motivados, auto-interessados. Estes domínios são
também infligidos pelas projeções fantasmáticas que mobilizam os desejos individuais
em identificações coletivas. É neste sentido que Freud sugere que a fantasia está
crucialmente implicada na política. Em seu ensaio “Fetichismo,” por exemplo, ele faz
uma conexão explícita entre a ansiedade de castração e o medo político. Depois de
sugerir que a visão dos genitais de sua mãe terrifica o jovem garoto, que então reage
pela negação de que falta um pênis nela, continua: “Pois se uma mulher foi castrada,
então sua própria posse de um pênis estava em perigo; e contra isso ergueu-se em
revolta a parte de seu narcisismo que a Natureza, como precaução, vinculou a esse
órgão específico. Na vida posterior, um homem adulto talvez possa experimentar um
pânico semelhante, quando se eleva o clamor de que o Trono e o Altar correm perigo e
conseqüências ilógicas semelhantes decorrerão disso” (Freud 1927:153). Embora o
exemplo tomado pareça relacionar-se ao desenvolvimento de um sentido de diferença
sexual do menino individual, Freud estende-o para a experiência coletiva da política. A
implicação é que, como Neil Hertz sugeriu, as ameaças políticas podem ser
experimentadas como ameaças sexuais (e vice-versa) (1983). Hertz aponta que
inúmeras gerações de comentadores representam as revoluções francesas dos séculos
XVIII e XIX como harpias e Medusas, “as fúrias do inferno, na forma violenta da
vilania das mulheres,” no inglês conservador das palavras de Edmund Burke (Hertz
1983:27). Na leitura de Hertz, a agitação social era entendida como a perda daquilo que
os homens mantinham de forma mais cara: propriedade, poder, posição social, prestígio
familiar, integridade corporal. E a masculinidade estava associada neste discurso
político conservador com a manutenção do status quo; a proteção da ordem significava
proteger o trono, o altar e os limites da diferença sexual. Os significados estão
inextricavelmente ligados: o fantasmático (neste caso o medo da perda do falo) atualiza
os significados da propriedade e da família; as realidades do poder social e econômico
tornam-se suportes para o falo simbólico. A fantasia tem manifestações tangíveis,
conseqüências materiais.
Não há resolução para a ambigüidade do relacionamento entre imaginação e
realidade, nenhuma garantia, Freud argumenta em outra parte (1909:206-8), que a
memória (um “complicado processo de remodelagem”) literalmente reconta a realidade
objetiva externamente vivida, não escapa do fato que a fantasia é em si uma forma da
realidade (realidade psíquica) e que está poderosamente enredada na percepção. A
percepção da diferença sexual está ao mesmo tempo limitada pelas regras da
“civilização” e animada pelas fantasias inconscientes que excedem todos os limites. Isto
desafia a clara separação entre as categorias de “sexo” e “gênero,” que – por estabelecer
dois conjuntos de oposições fixas: natureza versus cultura e homens versus mulheres –
oblitera os modos pelos quais o inconsciente recusa oposições de qualquer tipo. “O que
chamamos nosso „inconsciente‟ – a camada mais profunda de nossas mentes, feita de
impulsos instintivos – sabe que nada disto é negativo, e sem negação; nele as
contradições coincidem” (Freud 1915:296).
Eu argumentaria, então, que a distinção sexo/gênero, que as feministas usaram
para ampliar o campo de observação do sexo e da sexualidade do físico para o social e
cultural, de fato teve um efeito mais limitador. Não apenas dividiu o físico do social
(concedendo o status “natural” no processo), mas também removeu toda a ambigüidade
que a fantasia empresta às identidades subjetivas “homem” e “mulher”, e para as
maneiras nas quais o corpo materializa a psique (Shepherdson 1999). Estudar a “política
do gênero” tornou-se uma questão de rastrear a legislação e a inculcação de “papéis” (a
organização definitiva do masculino e do feminino no homem e na mulher) mais do que
documentar um projeto cuja verdadeira impossibilidade (criando uma oposição fixa e
duradoura, homem-mulher) definiu os termos de suas operações. Estes tipos de análises
dos papéis de gênero e a política de sua produção deram suporte para o empreendimento
das ciências humanas como Michel Foucault criticamente as descreveu: dedicadas a
negar as operações do inconsciente produzindo o homem como um sujeito racional e
instalando a “sobrevivência da consciência (dele),” cujas verdadeiras qualidades que
tinham “incessantemente escapado dele por mais de cem anos” (Foucault 1972:14).
Estas análises, em outras palavras, eram um aspecto da produção ideológica do
“homem” como um ser inteiramente racional e da política como a atividade de agentes
totalmente racionais.
Insistir que a “construção” da diferença sexual envolve processos inconscientes
não é, entretanto, dizer que a psicanálise seja a única teoria que podemos utilizar. De
fato, o tipo de historicização de gênero que estou sugerindo é muitas vezes rejeitado
pelos teóricos/as psicanalistas que consideram a diferença sexual como sendo fixas, uma
relação imutável – o ponto de onde a história emana ou onde sujeitos entram na história.
Mas me parece que o pleno apelo de Rubin por uma teorização da interdependência
entre a economia, a política e o sexual não pode ignorar as operações da fantasia nestes
domínios outrora restritos inteiramente a questões de necessidade, auto-interesse, razão
e poder. O que concretamente significaria para o estudo do gênero, compreendido como
a articulação e a implementação do conhecimento sobre as diferenças entre os sexos?
Primeiro, significaria descartar a ideia (inerente na noção de gênero como uma
“categoria”) que não existe nada fixo ou conhecido no avanço sobre o tema “homens” e
“mulheres” e o relacionamento entre eles. (“Mulheres não podem ser tomadas como um
nome transparente para um objeto eterno” [Adams e Minson 1978:82]). As novas
questões a serem feitas são: Como estes termos estão sendo utilizados em contextos
particulares nos quais eles são invocados? O que está em jogo nas tentativas para
reforçar os limites entre os sexos? Que tipos de diferenças estão sendo implementadas?
Segundo, “homens” e “mulheres” são ideais estabelecidos para regular e
canalizar comportamentos, não descrições empíricas de pessoas reais, que sempre irão
satisfazer ou não os ideais. Como as instituições sociais e políticas oferecem a
possibilidade (a ilusão, a fantasia) de satisfação dos ideais? Como são asseguradas as
identidades sexuais e/ou decretadas através da identificação com várias posições ou
ocupações sociais? (Reynolds 1996; Roberts 1994)? Por outro lado, como as relações de
poder são consolidadas pelos apelos da diferença sexual? Como o apelo ao desejo
inconsciente figura nas articulações de poder? Existe uma erótica do poder?
Terceiro, existe discrepância, até mesmo contradição, nas normas culturais e
papéis sociais oferecidos para articular a diferença entre os sexos (mesmo se a diferença
sexual em si seja um tema recorrente). Isso significa uma leitura de significados
específicos mais do que presumir a uniformidade em todas as esferas e aspectos da vida
social. E significa abdicar de avaliações simplistas da posição “das mulheres” em
termos de avanço e retrocesso, em vez de limitar estas caracterizações a arenas
específicas tais como o mercado de trabalho ou a lei. Em quais esferas a performance
dos papéis sexuais normativos importam? Em quais esferas a diferença sexual é uma
consideração irrelevante? Quais são as manifestações da contradição? Como elas são
expressas? reguladas? compensadas? reprimidas? Como as mudanças em uma esfera
têm influenciado mudanças em outra? O voto, por exemplo, significou o aumento das
oportunidades de emprego ou uma mudança nas práticas de relacionamento?
Estas questões avançam em direção a diferentes tipos de análise daquelas que
tentaram avaliar o impacto de regimes específicos ou políticas para mulheres (A
condição das mulheres melhorou ou deteriorou com a Revolução Francesa?) ou o efeito
emancipatório do voto para as mulheres ou do aumento da participação na força de
trabalho. Elas não assumem a existência duradoura de uma coletividade homogênea
chamada “mulheres” sobre a qual experiências mensuráveis são visitadas. Ou melhor,
elas interrogam a produção da categoria “mulheres” em si mesma como um evento
histórico ou político, cujas circunstâncias e efeitos são o objeto da análise. A menos que
o feminismo seja definido como uma empreitada para marcação de pontos, esta
abordagem me parece estar bem dentro da alçada dos assuntos feministas. Ao invés de
reinscrever os termos naturalizados da diferença (sexo) sobre os quais sistemas de
diferenciação e discriminação (gênero) foram construídos, a análise começa em um
ponto anterior no processo, perguntando como a diferença sexual é em si articulada
como um princípio e prática de organização social.

GÊNERO E POLÍTICA: FORMAÇÕES DA FANTASIA

Muitas vezes a relação entre política e gênero é concebida como processos ou


sistemas independentes interagindo entre si. Há a mobilização política (nacionalismo,
luta de classes, solidariedade étnica ou religiosa) e a transformação política (revolução,
reforma legal, democratização) e há o gênero (os papéis normativos atribuidos a homens
e mulheres, as construções sociais da realidade biológica), e a questão a ser feita é:
Como um afeta o outro? Pesquisas recentes sugerem que esta forma de colocar o
problema obscurece a interdependência dos dois sistemas ou processos. As
características que marcam as diferenças entre os sexos (que importam ou não importam
em nossa constituição física e psíquica) não existem separadas, ou melhor, são
produzidas através de teorias e das práticas políticas – entendidas não apenas como a
mobilização de força para atingir certos interesses, mas como possibilitadas pelo apelo à
fantasia. (“A política sem a fantasia,” sem a manipulação dos modos inconscientes de
gozo, “é uma ilusão,” escreve a filósofa eslovênia Renata Salecl [1990:52]).
Uma abordagem feminista do estudo de revoluções sociais e políticas ocorridas
entre séculos XVIII e XX tem se dedicado a demonstrar que a exclusão das mulheres da
cidadania foi discriminatória (Nelson e Chowdhury 1994). A recusa de cidadania
posicionou as mulheres em desvantagem comparada aos homens aos olhos da lei,
privando-as do tipo de papel público influente desfrutado por uma pequena elite de
mulheres durante os regimes pré-revolucionários (p.e. Landes 1988). A conclusão de
muitos destes estudos ecoa no agora famoso comentário da historiadora Joan Kelly
sobre a Renascença. Pode ter havido uma Renascença no século XIV, ela disse, mas em
relação ao grau de progresso, não houve renascença para as mulheres (Kelly-Gadol
1977). Da mesma maneira, isto foi apontado, as mulheres não desfrutaram os benefícios
da democracia como cidadãs em 1776 ou 1789 (embora isto não tenha as impedido de
se engajarem na ação política). E embora mais tarde as revoluções socialistas tenham
trazido o reconhecimento de direitos formais para as mulheres, elas não acabaram com
as hierarquias baseadas no sexo ou foram traduzidas em igualdade genuína. O impacto
da maior parte das agitações revolucionárias para as mulheres, em outras palavras, não
foi progressivo (Boxer e Quataert 1978).
Estas contestações a narrativas simplificadoras de progresso foram úteis como
uma maneira de contestar os clamores universalistas de alguns movimentos socialistas e
democráticos (Taylor 1983). Elas também têm insistido na complexidade da ação
política das mulheres e documentado as muitas formas que tomaram (Kerber 1980,
1997; Norton 1980, 1996). Ao mesmo tempo, entretanto, elas normalmente não têm
problematizado os termos da diferença sexual em si; “gênero” significa um conjunto de
categorias opostas e fixas, masculino e feminino, e a “política” altera ou perpetua as
relações entre mulheres e homens. A questão de como diferença sexual é constituída
pela política (como, para colocar de outra maneira, a masculinidade é assegurada por
atribuir sua antítese à feminilidade e em que termos) não é diretamente tratada.
Já em momentos cruciais na articulação da política democrática têm surgido
discussões sobre os termos que estão sendo usados para distinguir os sexos, assim como
a relevância em usar quaisquer oposições masculino/feminino de qualquer forma.
Tomem o caso da cidadania na Revolução Francesa. Os revolucionários, que se diziam
inspirados por Rousseau, reivindicavam que as mulheres não poderiam ser cidadãs por
causa de sua diferença em relação aos homens: elas eram dependentes, carentes de razão
e autonomia, mais adaptadas para a domesticidade e a criação dos filhos, incapazes de
ações criativas que a auto-representação requeria (Zerilli 1994). Alguns homens
revolucionários, como o Marquês de Condorcet, discordava, insistindo que as diferenças
físicas ou de qualquer tipo eram considerações irrelevantes para a política. “Por que
aquelas expostas à gravidez ou outras indisposições passageiras, não poderiam exercer
os direitos que ninguém imaginaria negar àqueles que têm gota todos os invernos ou
que se resfriam rapidamente? (Condorcet 1790:98). E a feminista Olympe de Gouges
solicitou aos legisladores: “...procura, escava e distingue, se puderes, os sexos na
administração da natureza. Em toda parte tu os encontrarás mesclados (ou confundidos
um pelo outro – confondus)” (De Gouges 1791:89). A decisão política que associava
cidadania como masculinidade, ambos estão sugerindo, introduziram a diferença sexual
onde ela não existia nem deveria existir. As mulheres tornaram-se visíveis em sua
diferença na esfera da política apenas quando elas foram banidas para o terreno de seu
sexo. A diferença sexual foi, então, o efeito, não a causa, da exclusão das mulheres. Ver
isto como a causa é aceitar a explicação “natural” oferecida pelos revolucionários para
justificar suas ações. (“Desde quando é permitido abrir mão de seu sexo e intrometer-se
nos assuntos do governo?” questionava o político jacobino Chaumette em resposta a
uma demanda das mulheres por direitos políticos. “Desde quando é decente ver as
mulheres abandonarem os pios cuidados de suas casas, os berços de seus filhos, para
virem a espaços públicos, discursarem nas galerias, nos foros do Senado? Foi aos
homens que a natureza confiou os cuidados domésticos? Foi a nós que ela deu seios
para amamentar nossas crianças?” [Chaumette 1793:220]).
Como então devemos levar em consideração a exclusão das mulheres do
exercício daquilo que foi anunciado como um direito universal humano? Houve
sugestões oferecidas que se direcionaram ao tema da representação, apontando o que os
revolucionários contrastavam como estilos aristocráticos “femininos” de artifício e
ilusão com o os estilos burgueses “masculinos” de objetividade e racionalidade. O
ataque à aristocracia então era casado com o repúdio de influências femininas na esfera
pública. Ao longo da revolução, esta interpretação conclui, às mulheres e aos
aristocratas foi negado o direito da auto-representação por razões semelhantes (Landes
1988). Outros invocaram a discussão de Freud do complexo de Édipo para caracterizar a
Revolução Francesa como a revolta coletiva dos filhos contra o poder de seu pai (o Rei).
Nesta interpretação, o solo comum que garantia a fraternidade democrática foi
estabelecido pela posse e troca das mulheres (Hunt 1992). Ainda outra interpretação
identifica as maneiras pelas quais as noções de “corpo” (na verdade de corpos
marcados) foram usadas para reconfigurar imaginativamente ideias do espaço público
(Outram 1989). Outra versão sustenta que a introdução da ideia de igualdade formal
através da figura do indivíduo abstrato estabeleceu um novo problema para a
organização social e a identidade individual. Quando se presumiu que a hierarquia era a
forma natural da sociedade, papéis sociais e identidades subjetivas coincidiam; um
nasceu no lugar do outro. A ideia de igualdade entre indivíduos autônomos levantou a
questão da identidade de uma nova maneira. “Apenas quando as pessoas foram
percebidas como formalmente iguais, a diferença sexual como tal tornou-se pensável”
(Salec 1994:117, Sonenscher 1987:10). Os indivíduos foram considerados autônomos,
ainda que suas identidades dependessem do reconhecimento de outros. Sem a
confirmação externa, sem um senso de separação de um outro ou de outros, a
individualidade não tem limites definidos, portanto sem existência distinguível (Warner
1992). Mas a igualdade entre os indivíduos significava que cada um era independente
dos outros. Como reconciliar a aparente contradição entre dependência e
independência? Os revolucionários desenvolveram muitas soluções: distinções entre
cidadãos ativos e passivos, entre aqueles que eram economicamente e socialmente
dependentes e independentes, e entre mulheres e homens. Redefinindo as regras
patriarcais existentes nos termos da diferença sexual biologicamente definida foi
mantida a ficção de uma individualidade autônoma que era imediatamente universal e
masculina. Os “outros” cujo reconhecimento confirmava a individualidade dos homens
não eram em si considerados indivíduos – eles eram mulheres (Scott 1996). É neste
ponto que entramos com o registro da fantasia: autonomia e independência, o poder de
auto-representação e a posse de direitos foram representados como funções fálicas,
atribuídas àqueles com um pênis biológico. E o nascimento da nação (a inclusão na vida
do contrato social) demonstrava o potencial produtivo do falo: a política era
inteiramente uma tarefa dos homens (Cornell 1991).
Outro exemplo das interconexões entre a política e a diferença sexual vem da
Polônia contemporânea. Lá, argumenta a socióloga Peggy Watson (1993), o advento da
democratização e a transição do comunismo ao capitalismo liberal foram marcados por
uma “ascensão do machismo” na esfera da sociedade civil. Apelos às diferenças
“tradicionais” ou “naturais” entre os sexos foram usadas para rescindir os direitos que as
mulheres desfrutavam como um fato natural sob o estado socialista. A democracia está
sendo saudada como um retorno à normalidade das relações de gênero, neste sentido a
desigualdade social e a diferença sexual foram mutuamente reforçadas. Sob o estado
socialista, Watson aponta:

a falta da sociedade civil e a propriedade privada tiveram um significado


ambivalente para as relações de gênero. De um lado, os constrangimentos no
campo da ação pública autônoma... trouxeram um nivelamento das relações
entre mulheres e homens. Esta dimensão da igualdade foi posteriormente
reforçada pela codificação dos direitos legais para as mulheres baseada na
suposição do pleno emprego. De outro lado, a ausência da sociedade civil
também promoveu a nova organização tradicional da sociedade, um aspecto dos
quais foi a valorização e a consolidação das definições tradicionais de gênero. É
o efeito combinado destes dois conjuntos de influências que é responsável pelo
fato que na Europa Oriental, noções arraigadas da diferença de gênero muitas
vezes andam de mãos dadas com uma falta de qualquer senso real da
desigualdade de gênero. (Watson 1993:71).

No novo arranjo, ela continua, a sociedade civil tornou-se a arena para a


ação dos homens, enquanto a esfera privada da família e do doméstico – uma
vez o centro da resistência a uma esfera pública sinônima de um estado
autoritário – tornou-se limitado às preocupações domésticas das mulheres.
O empoderamento político dos homens não se apóia em alegações de
uma experiência superior (as mulheres foram membros proeminentes do governo
sob os antigos regimes), competências, ou qualificações (oportunidades
educacionais, também foram garantidas a ambos os sexos sob o comunismo),
mas acima de tudo na diferença sexual. Um oficial polonês colocou desta
maneira, “É impossível falar de discriminação contra as mulheres. A natureza
deu a elas um papel diferente daquele dos homens. O ideal deve ser ainda a
mulher-mãe, para a qual a gravidez é uma benção”. (Watson 1993:73). O ataque
ao direito do aborto, na Polônia associado com a ascensão política da Igreja
Católica, é um exemplo de uma tentativa explícita de realizar o ideal. “Nós
nacionalizaremos essas barrigas!” proclamava um membro do senado polonês
(Watson 1993:73). A questão aqui não é simplesmente política populacional
(famílias libertadas da direção estatal) ou reconsolidação econômica (a remoção
das mulheres da força de trabalho e então elas não competiriam com os homens)
ou a reafirmação de crenças religiosas profundamente experimentadas. É, muito,
a evocação de uma associação fantasmática entre o poder estatal, o acesso e a
distribuição desigual destes recursos, e a masculinidade de seus representantes.
Para recordar um velho slogan feminista num novo contexto: o pessoal (no
sentido de processos conscientes e inconscientes profundamente percebidos de
identificação) é o político (no sentido de relações estruturadas de poder) e o
político, o pessoal.

A PRESENÇA DE MULHERES SEMPRE PEDE PELA ANÁLISE DE


GÊNERO?

Um dos importantes efeitos do ativismo feminista e acadêmico tem sido apontar


as maneiras pelas quais categorias aparentemente neutras são de fato sexuadas.
Assim o indivíduo abstrato, o fundamento da democracia liberal, tendo sido
reconhecido como masculino (Elshtain 1981; Fauré 1991; Pateman 1988); as
declarações dos direitos humanos têm se mostrado limitadas na intenção e na
prática aos homens (Reynolds 1986; Okin 1979); certas profissões e atividades
(ciência superior entre elas) têm sido redescritas como masculinas (Keller 1985;
Rossiter 1982, 1995; Glazer e Slater 1987); e a designação “trabalhador” passou
a referir-se à capacidade produtiva e habilidades dos homens, ainda que
raramente carreguem o mesmo significado da qualificação explícita que
“mulheres trabalhadoras” carregam (Phillips e Taylor 1980; Scott 1993). Tem
sido precisamente em tornar explícita a representação implícita de assuntos
relacionados a sexo e diferença sexual que as feministas têm chamado a atenção
de acadêmicos e agentes políticos sobre as desigualdades sofridas por muitas
mulheres. Quer seja uma questão de denunciar a “mentira” de uma revolução
republicana que prometia igualdade e negou a cidadania às mulheres, ou de fazer
visível a barreira invisível do “teto de vidro” (Comissão Federal do Teto de
Vidro 1995), as feministas têm nos capacitado a ver como as divisões entre
mulheres e homens constituíram, e têm sido constituídas pelos arranjos sociais e
políticos das sociedades.
A exposição das maneiras pelas quais a classificação aparentemente
neutra tem mascarado a exclusão das mulheres tem sido importante para o
projeto feminista de inúmeras formas. Este projeto identificou as sutis e
historicamente variadas maneiras pelas quais a discriminação operou e têm
consolidado a identidade das mulheres como um eleitorado político (daquelas
que experimentam e talvez também resistam à discriminação) no presente e no
passado. Desta maneira, as feministas têm encontrado referências para seu
comportamento; elas têm estabelecido “tradições” nas quais elaboram a si
mesmas. Mas a designação “mulheres” como uma categoria inerentemente
política muitas vezes tem tendido a combinar a emergência das mulheres,
digamos, misturada a outros grupos políticos com a existência de uma
consciência feminina coletiva que pode ser analisada em termos de “gênero”,
isto é, como um resultado ou reflexo do tratamento experienciado por elas como
“mulheres” (Ortner 1996; Rosaldo 1980; Tsing 1990; Young 1994). Uma coisa é
argumentar que o surgimento das mulheres nas categorias de manifestantes
contradiz a premissa de que o feminino exclui o ativismo público, e
completamente outra é dizer que sua presença exemplifica uma consciência
peculiarmente “das mulheres”. A presença das mulheres entre o povo que
marchou em direção à Versailles para buscar o Rei Luís XVI de volta à Paris
durante a Revolução Francesa foi motivada por questões econômicas sobre o
impacto dos preços altos nas famílias pobres e os medos quanto à direção
política da revolução. Embora o “gênero” estivesse em jogo (na composição da
multidão e por conta disto), a consciência feminista não estava. Em contraste, a
demanda das mulheres para ser concedido o status de cidadãs ativas através do
direito ao voto era a expressão de um “interesse” específico das mulheres como
um grupo.
O ponto principal é que a presença física das fêmeas da espécie humana
não é sempre um sinal garantido de que as “mulheres” sejam uma categoria
política separada, de que elas tenham sido mobilizadas enquanto mulheres.
Ainda que algum esforço que tente atribuir motivos peculiarmente feminilizados
ou femininos às mulheres nos movimentos sociais assuma exatamente isso. A
projeção de um interesse separado das mulheres numa situação onde isto não
esteja operando naturaliza as “mulheres”, uma vez que seu interesse é tomado
como anterior ao contexto político da ação popular e aos termos de sua
mobilização.
Uma insistência para que sejamos precisos sobre que tipo de análise de
gênero seja apropriado está no cerne do argumento que a socióloga tcheca Hana
Havelkova apresenta sobre os desdobramentos disto no seu país desde 1989.
Como ela busca explicar os desentendimentos entre as feministas da Europa
ocidental e oriental, ela adverte contra pressuposto automático que os problemas
enfrentados pelas mulheres sejam tão somente definidos em termos de
“interesses das mulheres”. Sua escolha da prostituição para ilustrar seu
argumento é particularmente provocativa, uma vez que envolve a venda de sexo
– a exploração dos corpos das mulheres. Ainda, Havelkova insiste que quando
nós examinamos a situação na República Tcheca, outros assuntos além do
gênero são prioritários:

A prostituição... está concentrada na sua maior parte ao redor da fronteira


tcheca-alemã, (e) é considerada primariamente como um problema posto pela
abertura abrupta da fronteira e pela desproporção entre as moedas tcheca e
alemã. Os clientes são alemães, as prostitutas tchecas. As prostitutas relatam que
elas ganham em uma noite mais do que suas mães ganham em um mês inteiro na
fábrica. Então este problema está delimitado pelo problema mais amplo da
posição econômica relativa no país. (Havelkova 1997:57)

Havelkova sugere que, por exemplo, gênero é uma consideração menor para a
análise econômica e política. A prostituição é um dos muitos indicadores de um
relativo empobrecimento econômico que também afeta os homens (no nível de
seus corpos também, na forma de fome, estresse e elevada mortalidade).
Protesto, se isto emerge, e iniciativas políticas quando elas são tomadas, serão
(corretamente, insinua Havelkova) direcionadas não somente às hierarquias
sexuais, mas também econômicas nos termos geopolíticos do interesse nacional.
São enquanto tchecos (em relação à hegemonia alemã) e não separadamente
enquanto homens ou mulheres que as pessoas estão, nesta perspectiva,
experienciando os caprichos do capitalismo de mercado. Se, em minha opinião,
Havelkova desnecessariamente separa as questões de gênero e classe, eu penso
que ela, entretanto, levanta um ponto importante. Por ela insistir que, embora
existam muitas formas pelas quais as mulheres são tratadas diferentemente dos
homens, isto não produziu o tipo de consciência que as feministas ocidentais têm
sido levadas a supor. As mulheres têm participado há muito tempo na força de
trabalho tcheca e elas são usadas para confrontar estrategicamente os problemas.
Além disso, “um efeito da experiência totalitária é que ambos, mulheres e
homens, pensam politicamente mais do que psicologicamente. De um lado, isto
leva a um menor grau de sensibilidade às questões de gênero, mas de outro lado,
isto faz as mulheres se sentirem politicamente iguais.” O resultado disto, ela
conclui, não deve ser subestimado no futuro. “Quando as mulheres... começam a
perceber a relevância política da diferença de gênero, elas vão mais
provavelmente ver isto em seu contexto e em proporção a outras realidades
políticas” (Havelkova 1997:59).
A chamada de atenção de Havelkova para as especificidades da situação
tcheca recusa separar os fatores estruturais da percepção subjetiva. Se ela se
refere às “mulheres” como uma categoria social durante todo seu ensaio, ela o
faz tão somente a fim de disputar com as interpretações das feministas
ocidentais. Mas ela nega existir qualquer “interesse das mulheres” que esteja
inevitavelmente ligado às “mulheres”. Em vez disso, em seu pensamento, a
articulação do “interesse das mulheres” marca a emergência de uma identidade
política separada das mulheres, os termos dos quais se relacionam ao modo no
qual a diferença sexual tem sido articulada num contexto histórico específico.
Havelkova parece ter pouca dúvida que algum tipo de movimento feminista vai
emergir – dadas as pesadas desigualdades de gênero aparecendo em arenas da
política e da força de trabalho (um sinal que as linhas da diferença sexual estão
sendo desenhadas de fato) e dado o cenário internacional (promovido pelas
Nações Unidas) que, desde a Conferência de Beijing em 1995, tem clamado
pelos direitos humanos universais das mulheres. Mas sua insistência que as
percepções de desigualdade são moldadas discursivamente em contextos
históricos significa que nós não devemos considerar a emergência deste
feminismo como um sinal do despertar das mulheres para alguma consciência
pré-determinada – um estado já experienciado, já conhecido pelos habitantes dos
países “avançados” do Ocidente. Mais do que isso, “existe uma história do
feminismo na República Tcheca; isto necessita ser compreendido em seus
próprios termos e em sua variação em relação ao feminismo ocidental”
(Havelkova 1997:61).

O SUJEITO DOS DIREITOS

Desde o Iluminismo até a Conferência de Beijing, a questão dos direitos


humanos universais tem tido importantes repercussões para as feministas
(Observatório dos Direitos Humanos 1995). A ideia que todos os indivíduos são
(nas palavras da Declaração de Independência Americana) “dotados pelo
Criador com certos direitos inalienáveis” capacita aos homens e mulheres a
imaginar sociedades de perfeita igualdade e se mobilizarem coletivamente para
alcançá-los.
Embora os apelos por “direitos” tenham dado forma aos protestos
feministas – eles são certamente a base das campanhas sufragistas no passado e
têm recentemente provido algo como um solo comum para os movimentos das
mulheres por todo o mundo – não tem havido unanimidade sobre os critérios
destes apelos. Alguns têm argumentado (ecoando debates de longa data entre
socialistas e liberais) que os direitos formais mascaram os antagonismos sociais,
que a atenção aos direitos impede a atenção às desigualdades de classe, gênero e
raça (Gibson-Graham 1996). “A igualdade entre homens e mulheres ou até
mesmo entre mulheres em diferentes circunstâncias podem ser iníquas,” escreve
a educadora e ativista política sul-africana Mamphela Ramphele. “Nós
precisamos problematizar a igualdade e desenvolver um cenário de igualdade
que nos capacite e às nossas variadas sociedades a nos endereçar às necessidades
das pessoas – homens e mulheres – em um caminho igualitário, tendo em mente
o impacto diferencial de raça, classe, idade e outras restrições nas relações de
poder” (Ramphele 1997:36). Outros têm respondido que sem direitos formais
pode não haver atenção a assuntos fundamentais; nas sociedades democráticas
aos menos, a representação das necessidades e interesses dos grupos sociais
depende do acesso dos indivíduos ao poder político. Discutindo sobre o voto em
1881, a sufragista francesa Hubertine Auclert escreveu, “até que a mulher tenha
o poder de intervir para defender seus interesses onde quer que eles estejam em
jogo, qualquer mudança na condição política e econômica da sociedade não irá
melhorar sua condição” (Auclert 1881). Ainda outros têm insistido que as
reivindicações de direitos por grupos sociais (tais como as mulheres) implicam
numa causalidade inversa por causa do processo pelo qual as leis criam os
sujeitos e atribuem agência a eles (Butler 1992; Spivak 1992). “O
reconhecimento legal é um processo real e circular. Ele reconhece as coisas que
correspondem às definições que ele mesmo constrói” (Adams e Minson
1978:99). Por implicar, senão essencializar, as identidades e removê-las dos
contextos históricos que as criaram. Os apelos legais que associam os direitos às
pessoas implicma que os direitos das mulheres, dos pais e dos fetos são
inerentes, quando de fato é a lei que cria os direitos por atribui-los a grupos ou
indivíduos. O reconhecimento legal dos sujeitos e seus direitos também permite
a regulamentação do Estado (dos corpos das mulheres, digamos, em nome do
direito paternal ou do feto). Então os direitos não são um bem absoluto (Brown
1995). Contrariando esta visão está aquele que insiste que os direitos conferem
não apenas identidades sociais específicas, mas um reconhecimento mais geral
de humanidade. Desta maneira Patricia Williams sustenta que “para os
historicamente desempoderados, o conferimento de direitos simboliza todos os
aspectos negados de sua humanidade: direitos implicam num domínio que
localiza cada um dentro de uma faixa referencial de si e dos outros, que eleva o
status de cada um de um corpo humano para um ser social” (Williams
1991:153).
De longe as mais intensas discussões têm se direcionado à questão do
universalismo dos direitos: O universalismo é um conceitos genuinamente
inclusivo, violado apenas na prática, ou é inerentemente excludente, uma
maneira de (sub)representar um conjunto de padrões normativos particularísticos
como se eles fossem neutros? (diferenças 1995). Colocando mais concretamente,
as noções dos direitos individuais são noções historicamente e culturalmente
ocidentais? “Eu deveria gostar de ver a palavra universal banida totalmente da
discussão da literatura africana até que seja como as pessoas parem de usá-la
como um sinônimo para o estreito e egoísta paroquialismo da Europa, até que
seu horizonte se estenda para incluir todo o mundo,” observou o escritor
nigeriano Chinua Achebe (1989:9). O indivíduo abstrato, o detentor destes
direitos, é meramente um sinônimo para homens? Esta é a sugestão das
campanhas feministas francesas pela paridade – uma reforma constitucional que
iria designar metade dos assentos na Assembléia Nacional para as mulheres. (“É
paradoxal, mas interessante discutir que foi o universalismo que mais manteve a
sexualização do poder e que as tentativas de paridade, por contraste, para
dessexualizar o poder ao estendê-lo para ambos os sexos. A paridade seria então
o universalismo real.” [Collin 1995:103; ver também Scott 1997]). Homens e
mulheres pensam com “vozes diferentes,” como sugeriu Carol Gilligan (1982)?
O universalismo é, então, o patriarcalismo ocidental disfarçado? É correto dizer,
como disse Catharine MacKinnon, que “os direitos abstratos autorizarão a
experiência masculina do mundo?” (1983:658).
As posições tomadas nestes debates muitas vezes combinam duas
questões separadas que são, de fato, não reduzíveis entre si: o geral e o
particular, o abstrato e o concreto, o permanente e o histórico, princípio e
prática. Eles são tentativas (fúteis) de resolver um paradoxo no cerne do discurso
universalista que a teórica política Wendy Brown descreveu desta maneira:

A questão da força libertadora ou igualitária dos direitos é sempre


historicamente e culturalmente circunscrita; os direitos não possuem uma
semiótica política inerente nem a capacidade inata para avançar ou impedir os
ideiais democráticos radicais. Contudo os direitos necessariamente operam em e
como um idioma a-histórico, não-cultural e não-contextual: eles exigem
distância de contextos políticos específicos e vicissitudes históricas e eles
necessariamente participam de um discurso de universalidade permanente mais
do que transitoriedade ou parcialidade. Assim, enquanto a medida da eficácia
política requer um alto grau de especificidade histórica e política, os direitos
operam como um discurso político do geral, do genérico e universal.
(Brown 1995:97)

E isto, conclui Brown, é como deveria ser. “Isto é... em sua abstração das
particularidades de nossas vidas – e em sua figuração de uma comunidade
política igualitária – que eles podem ser mais valiosos na transformação
democrática destas particularidades” (1995:134). Em outras palavras, é porque
eles nos permitem imaginar (e assim lutar para criar) uma ordem diferente da
vida social e política, e não porque eles estão ligados a um conjunto específicos
de objetos ou porque eles são uma possessão humana universal, que os direitos
são efetivos.
Aqui a noção de fantasia pode novamente ser útil. “O discurso dos
direitos universais... apresenta um cenário fantasioso no qual a sociedade e o
indivíduo são percebidos como um todo, como não-separados. Na fantasia, a
sociedade é entendida como alguma coisa que pode ser racionalmente
organizada, como uma comunidade que possa ser não-conflituosa se apenas se
respeite os direitos humanos” (Salecl 1994:127). Os direitos então articulam um
desejo que pode nunca ser inteiramente satisfeito, mas cuja articulação envolve a
asserção que a humanidade sobre a qual a igualdade deve repousar. Isto não é
possessão, mas aspiração que provê um solo comum. “Não é o caso que os seres
humanos enquanto tais têm direitos, mas que ninguém permanece sem direitos”
(Salecl 1994:133), isto é, sem a habilidade de desejar ou imaginar autonomia,
agência, transformação. Esta formulação pode ser interpretada para não admitir
exclusões; as operações do desejo não são à primeira vista limitadas pelas
diferenças sociais, embora elas possam ser direcionadas a diferentes objetos.
Neste sentido, esta noção de direitos poderia ser lida como universalista. É
admitidamente abstrata, mas diferente do indivíduo abstrato, esta compreensão
dos direitos não carrega com ela nenhuma personificação necessária, nenhuma
personalidade (historicamente, o homem ocidental branco) que incorpore um
padrão que funcione para excluir aqueles que são diferentes disto. As
reivindicações das mulheres por direitos, nesse sentido, seriam analisadas como
uma insistência em sua posição (simbólica e real) como sujeitos desejantes,
indivíduos cujos desejos repousam não em sua posse de alguma característica
física ou no desempenho de uma função biológica especificada, mas na ausência
associada com a verdadeira constituição de seu ser: um ser conceitualizado
através do reconhecimento de um outro, necessariamente expresso em palavras
que são sempre inadequadas para a completa representação de si e que, portanto,
deixa a cada um o anseio por completude. Tal completude, paradoxalmente,
marcaria o fim da individuação, a morte do sujeito individual, visto que, de
acordo com Lacan, os sujeitos individuais surgem divididos ou alienados de si
porque são dependentes do reconhecimento dos outros para a confirmação de
suas individualidades. Individualidade – autônoma, independente, auto-criativa –
depende para sua existência da distinção e do reconhecimento de um outro.
Além disso, a individualidade (o senso que cada um tem de si mesmo) existe
apenas em sua representação, e por definição, representação não é uma coisa real
ou original. Mas o eu não pode existir sem representação e sem os outros, apesar
de ser concebido como inteiramente auto-suficiente. A realização do ideal de
auto-suficiência dissolveria exatamente aqueles limites entre o eu e o outro sobre
os quais a realização de si depende (Lacan 1959-60). Disto segue que a
comunidade deveria ser concebida não em termos de uniformização, mas como
uma associação de indivíduos paradoxalmente unidos pela dependência na
diferença (Nancy 1991; Teoria Coletiva Miami 1991; Agamben 1993).
Transformar um termo – “direitos” como aspiração mais do que posse -
requer outra mudança – o “ indivíduo” torna-se mais do que menos abstrato. Isto
também nos permite estabelecer uma distância crítica nos debates
contemporâneos sobre direitos e levantar algumas questões históricas sobre eles.
Como os “direitos” vieram a ser entendidos como alguma coisa que os
indivíduos possuem? Como o gênero figurou na articulação deste individualismo
possessivo? O que têm sido, historicamente e transculturalmente, os
relacionamentos entre as noções de posse e representações da diferença sexual?
Como a fantasia do igualitarismo político (a visão democrática) interagiu com
(suplemento? mudança? contradição?) as fantasias da origem humana que, ao
menos no Ocidente, fizeram a diferença sexual fundamental para as identidades
individuais? Como isto aconteceu diferentemente em diferentes lugares em
diferentes épocas? E quais são as implicações das respostas para estas perguntas
para a nossa compreensão da nova “globalização” do feminismo como uma
questão de assegurar os “direitos humanos” das mulheres? (Signs 1996).
Estas questões nos remetem para algumas daquelas que iniciaram este
capítulo. Elas são questões que fazem a articulação da diferença sexual em si o
problema a ser investigado, que tomam as realidades psíquicas seriamente nos
exames não apenas da ideologia e subjetividade, mas também das instituições
políticas, econômicas e sociais e as relações de poder que elas tentam
implementar (Connell 1987). São questões que admitem os caprichos e as
complexidades das identidades sexuais individuais (e outras), assumindo que a
regulação social se baseia na redução da multiplicidade em categorias
normativas gerenciáveis. Estas questões abrem a possibilidade de pensar sobre a
identidade individual como aquela que é restrita por, mas sempre excede alguma
categorização imposta sobre ela. Se as identidades políticas e sociais sempre
operam redutoramente, a questão se torna como? O que é remanescente ou
deixado de lado no processo de produção (e reprodução) das categorias da
identidade coletiva? Quais são as apostas em tais reduções? Elas têm sido
contestadas? Como? E por quem?
Todas estas questões podem apenas serem respondidas em termos de
exemplos históricos/culturais específicos. Elas necessariamente problematizam e
historicizam as categorias (entre elas o “gênero”) que são os nossos objetos de
estudo, assim como aquelas categorias que dispomos em nossas próprias
análises. Por fazermos uma distinção entre nossas construções discursivas e
aquelas de outros tempos e lugares, nós estabelecemos uma certa reflexividade
sobre nossas próprias participações e intenções (concedendo até mesmo o lugar
do desejo num esforço acadêmico sério). Neste caminho, nós nos abrimos para a
história, para a ideia e a possibilidade de que as coisas têm sido, e serão,
diferentes do que elas são agora.

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