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Pensata

VIVER A TESE É PRECISO!


REFLEXÕES SOBRE AS
AVENTURAS E DESVENTURAS
DA VIDA ACADÊMICA

Maria Ester de Freitas


Professora e Pesquisadora do Departamento
de Administração Geral e Recursos
Humanos da FGV-EAESP.
E-mail: mfreitas@fgvsp.br

SOMOS TODOS promoção na carreira acadêmica. É for de profissão, e não de mero


IGUAIS NESSA TESE... verdade que ele é isso também, po- emprego, o trabalho acadêmico
rém, se reduzido a isso, você paga- vai, necessariamente, incluir a pes-
Viver uma tese é uma arte! rá um preço mais caro do que tal- quisa, a investigação, a ousadia e
vez esteja disposto e há aí o risco o risco de não apenas repetir as
Por que alguém faz uma tese? de desistir no meio do caminho. idéias de outros, mas também de-
A resposta mais óbvia é a de que Considerando que a carreira senvolver as suas próprias e, pos-
você escolheu um curso em que ela acadêmica é mais que dar aulas, é teriormente, ajudar na construção
é uma exigência. Se você quer o tí- necessário que você tenha clara a das de seus alunos. Dessa opção
decorrem outras e outras, nem
sempre fáceis.
É NECESSÁRIO QUE VOCÊ TENHA Estou firmemente convencida
de que a natureza do trabalho aca-
CLARA A DIFERENÇA ENTRE DESENVOLVER dêmico determina boa parte das si-
tuações que vivemos na época da
UMA CARREIRA OU APENAS TER tese e as exigências emocionais que
UM EMPREGO COMO PROFESSOR. se nos apresentam. Ela é um proje-
to especial, sem demérito aos de-
mais, que mobiliza todas as forças
tulo e os potenciais benefícios que diferença entre desenvolver uma do sujeito, pois trata-se de uma ta-
ele proporcionará, não tem alterna- carreira ou apenas ter um empre- refa anti-social e excludente, deses-
tiva, terá que fazê-la! Muitas vezes, go como professor. Você pode ter tabilizadora de certezas intelectu-
o título é visto apenas como um re- um emprego como professor e ais, comportamentais e emocionais,
quisito burocrático para ingresso ou exercê-lo bem, mas, se a escolha desenvolvida em longo prazo.

88 RAE - Revista de Administração de Empresas • Jan./Mar. 2002 RAESão


• Paulo,
v. 42 •v. 42
n. 1• •n.Jan./Mar.
1 • p. 88-93
2002
Viver a tese é preciso! Reflexões sobre as aventuras e desventuras da vida acadêmica

Esse conjunto de características mos caminhos, dilemas, fugas, ata- poimento humano... Mas a quem
torna o trabalho extremamente gra- lhos, tentações, manias de persegui- interessa isso? Talvez só aos faze-
tificante quando concluído, pois ele ção e medos. dores de tese. Refiro-me aqui a
consome e produz uma grande dose O objeto de estudo é absoluta- quem faz o trabalho seriamente, e
de energia psíquica e exige enorme mente irrelevante, pode ser um não aos picaretas e aproveitadores
tolerância à ausência de feedbacks modelo matemático, um novo pla- que hoje vendem ou compram tese.
imediatos, além de impor uma se- neta, a ética nos negócios, mulhe- A estes desejo punição e dedico um
vera cobrança de exclusividade, res em empresas familiares, doen- profundo desprezo.
difíceis de suportar por tempo tão
longo.
Uma tese presta-se a várias fi- UMA TESE PRESTA-SE A VÁRIAS
nalidades, inclusive a burocrática
acima mencionada. Ela também FINALIDADES. ELA TAMBÉM PREENCHE
preenche uma função social, a de
avançar no conhecimento de um UMA FUNÇÃO SOCIAL, A DE AVANÇAR
certo assunto. Qualquer que seja o
tipo de trabalho desenvolvido, sem- NO CONHECIMENTO DE UM CERTO ASSUNTO.
pre acrescentará algo ao estoque
existente. A mais modesta das te- ça nos testículos do boi, a fermen- Algumas dores são tabus! Fa-
ses representa mais uma contribui- tação de um vinho, uma âncora zem parte daquela zona proibida,
ção ao saber, seja pela inédita pers- cambial, uma viúva-negra ou ara- sobre a qual ninguém fala ou escre-
pectiva que explora, seja pelo novo nha ordinária. Tampouco importa ve, ainda que sinta ou perceba que
olhar que lança sobre uma biblio- se você é brasileiro, alemão, rus- está sendo sentida pela pessoa do
grafia clássica, ela significa sempre so, francês, argentino, japonês lado. O aluno que está fazendo tese
mais uma possibilidade de provo- (aqui a diferença é do nível de exi- é sempre um incompreendido ou
car novos insights. gência do sistema escolar)... Dá pensa que é. Pensa que é o único
Tem-se ainda que considerar tudo no mesmo, variando apenas que se sente daquele jeito, que a sua
que a tese é parte indissociável da em grau: o que nos irmana é o pro- dor é única e que ninguém passou,
formação de um pesquisador e que cesso. Todos os fazedores de tese está passando ou passará por aqui-
este será um elemento multiplica- são cúmplices e comadres quando lo. Aqui, o inferno é só nosso, ima-
dor onde quer que ele esteja: na o assunto é a tese, pois partilham ginamos!
academia, no laboratório, na empre- do mesmo código e do mesmo de- Mas é maravilhoso quando en-
sa, no governo, nas comunidades lírio. É a pretensão deste artigo contramos alguém para confabular
científicas. A reivindicação de ge- desvendar parte desse processo e sobre a nossa exclusiva “infelicida-
nialidade para toda e qualquer tese é aos fazedores de tese e a seus ori- de” e descobrimos que o outro está
não se sustenta, pois a tese se justi- entadores que dedico este trabalho. no mesmo caldeirão quente. A par-
fica pelo potencial de mudança que Nele exerço a minha cumplicidade, tir dessa hora, temos um código
propiciará. Estou defendendo a porém jamais a complacência. comum: “estamos fazendo tese”.
mediocridade? Em absoluto! A Tornamo-nos íntimos instantanea-
mediocridade não resiste ao rigor mente, conspiradores e cúmplices
metodológico necessário, pois ela COMO ERA VERDE O e a conversa se torna inacessível
é escapista, indisciplinada, arrogan- MEU VALE NA ÉPOCA para os estranhos, que não sabem o
te e impaciente. DOS CRÉDITOS! que é: o objeto, o quadro ou o mar-
Após ter vivido uma dissertação co teórico, o conteúdo, a metodo-
e uma tese, acompanhar vários ami- Diz o Mário Prata, em uma crô- logia, empirismo, qualitativa,
gos e colegas imersos nesse traba- nica belíssima publicada em O Es- paramétrica, correlações, temática,
lho no Brasil e exterior, há quatro tado de S. Paulo, em 1998, que se hipóteses e pressupostos... Uma
anos (ainda sou noviça) orientar faz tese na Sorbone desde 1257; em nova categoria lingüística estabele-
mestrandos e doutorandos, ouvir Coimbra, mais moderna, desde ce-se. Além do jargão institucional:
estórias de todas as cores, dores, 1290. Ele diz que ouviu dizer... Se o programa ou o ppg ou a pós, o
estranhezas e esquisitices, parece- é verdade que toda tese tem uma orientador, as siglas dos órgãos de
me que todos os fazedores de tese história, então, estes mais de 700 fomento à pesquisa, as siglas dos
passam mais ou menos pelos mes- anos de tese dariam um bom de- congressos de área, a bolsa-sandu-

RAE
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2002, v. 42- Revista
• n. 1de •Administração
Jan./Mar. 2002
de Empresas/FGV-EAESP, São Paulo, Brasil. 89
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íche... E, acima de tudo, os prazos, Ora, todos nós somos talento- extrema severidade em relação a
os prazos e os prazos. Mas, o que é sos, mas nem todos os talentos são qualquer tarefa criativa e desafia-
isso, afinal? distribuídos por igual. Felizmen- dora. Uma tese tem a rara capaci-
No princípio, era a solidão; ago- te, o mundo precisa de tudo, e al- dade de suscitar nossos anjos e de-
ra, é a confraria... Sentimo-nos ten- gumas pessoas fazem melhor cer- mônios, que são revelados a nós e
tados a dividir as pessoas entre as tas coisas do que outras. Desenvol- aos que nos rodeiam.
que fazem tese e as que não fazem. ver uma tese é um ato criador que, Em boa medida, todos quere-
Acreditamos, e penso mesmo que é além de conhecimentos gerais e mos realizar algo importante, bo-
verdade em boa medida, que toda específicos, exige uma paciência nito, duradouro e capaz de atrair
tese deixa uma marca na alma de seu que nem todos estão dispostos a reconhecimento, aplausos, elogi-
autor que só pode ser decifrada por exercitar. Criar alguma coisa signi- os. Faz parte do nosso desenho hu-
alguém que tem uma parecida. Se fica ter humildade e disponibilida- mano a necessidade não só de
auto-aprovação como também a
aprovação alheia, ter o nosso nome
A NATUREZA DO TRABALHO ACADÊMICO associado a algo positivo, correto
e belo. É perfeitamente saudável
DETERMINA BOA PARTE DAS SITUAÇÕES QUE exibir certa dose de narcisismo,
sentir orgulho e gratificação, quan-
VIVEMOS NA ÉPOCA DA TESE E AS EXIGÊNCIAS
do o nosso bom trabalho é devida-
EMOCIONAIS QUE SE NOS APRESENTAM. mente reconhecido.
A produção intelectual é ardilo-
sa, por ser flutuante e escorregadia.
você tenta explicar o que é fazer uma de psicológica para tentar, expor- Ela oscila e tem caprichos. O que
tese para um leigo nesse aspecto, se, errar, recomeçar, modificar, ex- chamamos de inspiração é a capa-
haja paciência de Jó, pois, se o ou- perimentar, observar. Também é cidade de reter e ampliar, com um
vinte estiver mesmo interessado, é verdade que algumas pessoas con- toque próprio e único, um flash ou
quase certo que você ouvirá algumas seguem lidar mais facilmente com um insight, uma coisinha de nada
perguntas indesejadas: “O que é que os diferentes estados de espírito e que atravessa o nosso pensamento
você viu nesse assunto? Isso vai ser- exigências da tarefa, pois suportam e pode fugir. Boa parte dessa inspi-
vir pra quê? Por que você vai gastar mais facilmente o não-reconheci- ração, porém, é fruto da nossa ca-
esse tempo todo se isso não vai dar mento, agüentam a frustração com pacidade de concentração, de dis-
dinheiro? Você não pode fazer um maior perseverança, reciclam o erro ciplina, de esforço mental e até de
negócio mais simples? Faz alguma mais rapidamente, toleram uma crí- teimosia. Precisamos não de um dia
diferença para o mundo se você fi- tica com maior esportividade, acei- bonito de céu azul, mas de uma boa
zer isso? O que acontece se você não tam refazer algo com maior humil- dose de paciência para produzir al-
fizer? Por que você fica tão nervoso dade e menor desespero e conse- guma coisa interessante, para orga-
com isso, é só um trabalho como guem suportar a sua própria chati- nizar raciocínios, transformar bar-
outro qualquer?” ce com mais paciência. ro em tijolos e tijolos em casas.
Por aí vai... A gente tem sempre Trazemos em cada um de nós Nada nasce do nada e tese tampou-
a sensação de que precisa legitimar estranhos personagens de nós mes- co! A nossa capacidade de pensar
o nosso interesse, a importância do mos, que estimulam, instigam, cen- ordenadamente necessita de treino,
nosso objeto e, pior, legitimar a nos- suram, cerceiam, julgam, conde- um fio condutor e estímulos con-
sa dor. Somos acusados de exagera- nam e absorvem as nossas criações cretos, que provêm em grande par-
dos, melodramáticos, masoquistas, materiais e intelectuais. Às vezes, te de uma boa bibliografia. Ah, mas
carentes dissimulados, o que, às ve- esses estranhos e íntimos persona- reunir, ler, reler e analisar uma bi-
zes, também é verdade! Vamos fi- gens que fazem parte de nossa vida bliografia decente consome tempo,
cando esquisitos e nem nos damos psíquica (chamo-os de racional- energia e dinheiro. Por si só ela não
conta, mas olhares do exterior per- analítico, hedonista, censor e idea- garante um bom trabalho final, mas
cebem e sussurram: “coitado, tá fa- lista irrigados pelo emocional) se é impossível um bom trabalho sem
zendo tese!” Ás vezes, nem sabem alternam, e um ou alguns deles pre- uma boa bibliografia. Qualidade
o que diabos é isso, mas sabem que dominam sobre os demais. Por esse custa caro, mas economizar aqui
alguma coisa acontece naquele co- motivo, vivemos momentos de pode custar mais e de forma
ração. Por que acontece? grande indulgência ou outros de irreversível!

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Viver a tese é preciso! Reflexões sobre as aventuras e desventuras da vida acadêmica

Uma tese é mais que uma boa disfarçada em forma de mais um cordância no resto do mundo. É cla-
idéia, é, na essência, uma boa per- livro, um caderno, uma folhinha de ro que eu posso sempre considerar
gunta. E não existe tese na cabe- papel, com cara de inocente pousa- só a opinião de mamãe, às vezes, é
ça. “Eu já tenho tudo aqui organi- da na nossa cabeceira. Quando a crucial recorrer a ela, mas temos
zadinho” significa que falta tudo, nossa cama já tem um outro sócio, também que ouvir o que dizem os
pois não é a idéia que será avalia- aí o circo está armado! Ele estará outros. Na maioria das vezes, não
da, mas a nossa capacidade de coberto de razão ao recusar-se a gostamos do que ouvimos, pode-
explicitá-la, analisá-la, construí-la, negociar com essa invasora. Exclua mos ignorá-los e sair de fininho,
destruí-la. Não existe tese sem algumas áreas da casa das andanças fazendo a promessa de nunca mais
transpiração, sem rasgar papel, da tese, caso contrário, você será conversar com gente inculta e ig-
sem rabiscos, sem coleção de pa- transformado em vigia e vai ficar norante. Se o nosso masoquismo
peizinhos, sem mau humor, sem se perguntando: “Onde está este agüentar um tiquinho mais e não
rabugice, sem parecer um pouco maldito livro? Esse miserável já mudarmos de assunto, ficaremos
barata dedetizada... Em certos sumiu de novo! Está brincando de abomináveis, insuportáveis e per-
dias, nossas idéias estão mais cla-
ras, mais organizadas, com amar-
rações mais sólidas. Em outros, são TEM-SE AINDA QUE CONSIDERAR
as ruminações que dominam o pal-
co; tentamos mudar de assunto, QUE A TESE É PARTE INDISSOCIÁVEL
trocar de canal, falamos sozinhos,
DA FORMAÇÃO DE UM PESQUISADOR
xingamos, tentamos dormir e con-
tinuamos ligados num não-sei-o- E QUE ESTE SERÁ UM ELEMENTO
quê. Cada um descobre o seu jeito
de lidar com isso, não tem fórmu- MULTIPLICADOR ONDE QUER QUE ELE ESTEJA.
las e, sim, aquilo que funciona com
você. Não se envergonhe da sua
extravagância, a capacidade de esconde-esconde!” Crie juízo e te- deremos o ouvinte para sempre.
construir a sua saída pode ser es- nha as dores apenas necessárias. Não falo aqui do nosso orientador,
tranha para os outros, mas você Aproveite as muitas lições, que se- que também tem o seu limite de
não precisa da permissão deles. rão utilíssimas pelo resto da vida, e crédito no céu e que, por isso mes-
Acrescente algo às já histórias cri- divirta-se consigo mesmo; ria, faça mo, nos suporta mais que os outros
ativas, divertidas e humanas, que piadas e assuma a sua “anormali- e nos diz claramente quando não
só a nossa caixa-preta poderia ex- dade normal” temporária. Quando nos suporta.
plicar; mas ela nem sempre quer... alguém lhe perguntar se você é doi- Em algum momento da nossa
talvez melhor assim! do ou está treinando para isso, res- tarefa, somos vítimas de um pon-
Uma tese parece ter vida própria ponda: “estou fazendo tese”. Pode to de inflexão que magicamente
e expansionista. Uma das primei- ser que você encontre mais um nos transforma de “simpático e
ras coisas que fazemos é tratá-la cúmplice, que seja generoso e dê- agradabilíssimo” em chato. Três
como uma pessoa, mas não uma lhe bons conselhos (sei que tem fases, em particular, podem ser
pessoinha qualquer. Logo descobri- horas em que é tudo o que não que- caricaturadas: a) “não me pergun-
mos que essa tal pessoa é capricho- remos ouvir) ou pode ser apenas te sobre a tese ou porque na mi-
sa, cheia de vontades, uma bichinha mais um chato sem causa, do qual nha tese...”; b) “pelo amor de
dominadora e autoritária que quer você pode se livrar rapidamente Deus, não me convide...”; c) “a
nos sujeitar (o que acontece na mai- falando sobre a sua tese. E por fa- tese está me vigiando”. Vejamos
oria das vezes). Aprendemos a li- lar em chatices... mais de perto o que acontece em
dar com ela como uma intrusa que cada uma delas.
vem devagarinho e ganha espaço. No primeiro caso, temos uma
No começo, humilde e tímida, fica NÓS, OS CHATOS alternância entre o mutismo e a
circunscrita ao nosso posto de tra- verborréia. Colocamos na catego-
balho, depois ganha o sofá e, quan- Mamãe me achava linda e inte- ria de “inimigos” aquela pessoa
do nos damos conta, a desavergo- ligente; na época da tese, virei bri- que, sem o maior pudor e senso de
nhada já nos acompanha até o ba- lhante! Essas doação e cegueira conveniência, nos pergunta onde
nheiro e invade a nossa cama, absolutas não encontram muita con- quer que nos encontre: “aí, como

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vai a tese?” A nossa antipatia vai se assim: “na minha tese, eu trato põe às demais, é aquela em que co-
crescendo de forma exponencial e disso quando...” Não tem a menor meçamos a dizer “não” para todos
temos que nos proteger. Adotamos importância que o outro não este- os convites que recebemos. Uma
o silêncio disfarçado e falamos de ja interessado nas nossas descober- parte dessa recusa é devida à nos-
outra coisa ou, perversamente, tas, falamos sozinhos, explicamos sa desorganização pessoal, indis-
abusamos da paciência do outro de tintim por tintim, ignoramos os ciplina ou cronogramas fantasiosos
tal forma que ele fique logo into- bocejos e a sonolência do azarado que não resistem à dura realidade
xicado de nossa tese e nunca mais que temos em frente. dos fatos. Como negligenciamos
nos incomode com perguntas des- Por que nessa hora são poucos os conselhos que recebemos, espe-
cabidas!!! os que procuram o orientador para cialmente sobre a organização da
A recusa de falar sobre a tese discutir as suas preciosidades? Tal- bibliografia consultada desde o co-
pode ser uma retirada estratégica vez por ele não ser um ouvinte tão meço, sobre a agenda dos outros,
do nosso racional que precisa de bom quanto o resto do mundo, tal- que não está à nossa disposição,
um tempo para digerir tudo o que vez por ele esfriar um pouco o nos- sobre o tempo que passa “mais rá-
armazenou e recobrar as forças so entusiasmo nos fazendo enxer- pido” que pensamos, somos sem-
para lidar com a “encrenca”: cul- gar o que ainda não estamos prepa- pre surpreendidos por prazos que
pa por ter perdido tempo; medo de rados para ver, talvez porque essa estão sempre vencendo.
Aí não podemos aceitar ne-
nhum convite. Alguns são de tra-
DESENVOLVER UMA TESE É UM ATO balho, com contrapartida financei-
ra, o que agrava o peso da recusa,
CRIADOR QUE, ALÉM DE CONHECIMENTOS pois dinheiro é problema sério,
principalmente para quem vive de
GERAIS E ESPECÍFICOS, EXIGE UMA PACIÊNCIA bolsa ou se desloca para outro es-
tado ou país. Convidam-nos para
QUE NEM TODOS ESTÃO DISPOSTOS A EXERCITAR. um congresso interessante e fica-
mos tentados a escrever um
dar o primeiro passo e enfrentar o fase seja fundamental para a gente paperzinho sobre aquele capítulo
resto; insegurança quanto à dire- começar a clarear as idéias mistu- que já está pronto, mas isso é re-
ção a seguir; paralisia diante do radas, talvez porque o interlocutor duzir o tempo para os que ainda
assunto, seja porque encontramos real seja o nosso próprio ouvido virão; sabemos que, se desapare-
uma bibliografia enorme, seja para os absurdos que dizemos em cemos de vez, podemos ser esque-
porque não encontramos nada; voz alta, talvez por outra necessi- cidos, se aceitamos tudo o que é
fuga, pois se falamos em voz alta dade da qual nem suspeitamos. interessante, arriscamos a não ter-
estamos formalizando o nosso Como as demais pessoas se to- minar a tese... dilema puro! Se so-
medo; racionalização: “trabalho cam quando estão sendo usadas mos casados, temos compromissos
bem sobre pressão e no final tudo como platéia, elas começam a nos com o nosso parceiro, que, por
dará certo, sempre foi assim co- evitar e, não raro, mudam de calça- compreensivo que seja, vai sentir-
migo”. da quando nos avistam lá longe... se um pouco abandonado e aceitar
Por outro lado, em outros mo- “Puxa, lá vem aquela figura!” Um convites em nome do casal, mas
mentos, sentimos uma necessida- dos meus orientadores, num desses vai ter que se virar sozinho; se te-
de urgente de explicitar as nossas meus ataques, me ouviu, ouviu, le- mos filhos, esses cobrarão a aten-
idéias; qualquer pessoa que cruzar vantou da cadeira e foi para a jane- ção merecida e não querem saber
a linha de fogo na nossa frente é la, pôs as mãos na cabeça, respirou dessa tal de tese, intrusa que veio
uma vítima potencial; tal qual uma profundamente, me encarou e dis- se colocar no seu caminho... Nos-
pessoa apaixonada só enxerga o se: “Você acha que sou Deus para sos amigos, que sentem a nossa fal-
seu objeto de adoração, a nossa ter respostas para isso tudo?” Foi tão ta e não acreditam muito nesse ne-
tese transforma-se na coisa mais espontâneo e tão à queima-roupa gócio de tese, acabam por resolver
importante para nós. Vemos cone- que demos uma maravilhosa garga- a questão antecipadamente: “Ah,
xões e ganchos com todos os as- lhada; lembramos disso como um deixa pra lá, melhor nem convidar,
suntos que qualquer mortal possa dos momentos mais lindos da nossa o cara tá lá naquela coisa de tese.”
mencionar, temos respostas para relação! Verdade também é que alguns não
tudo e sempre começamos uma fra- A segunda fase, que se sobre- suportam mais esse papo, outros

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Viver a tese é preciso! Reflexões sobre as aventuras e desventuras da vida acadêmica

não suportam nos ouvir dizer que soltos e funcionam melhor sem lacionado ao assunto, mas também
estamos pobres e não podemos pedir a benção todo dia. Não con- dominar as nossas inseguranças,
acompanhá-los naqueles lugares cluir a tese é mais que perda de medos, escapes, defesas, ansieda-
caros, outros sabem simplesmente tempo e dinheiro para todos os des e angústias. Significa também
que vamos desfilar a nossa culpa envolvidos; atendo-me apenas ao experimentar um genuíno prazer e
cada vez que aceitamos um aluno, é como se ele tivesse colo- orgulho quando se escreve uma fra-
drinque... cado o pé em uma posição mais se, um parágrafo, um capítulo ma-
A terceira caricatura é a da cul- elevada e tivesse que descer, pois ravilhoso. Significa aprender a va-
pa. Não existe tese sem culpa, gran-
de ou pequena, merecida ou não!
A tese transforma-se num encosto, CRIAR ALGUMA COISA SIGNIFICA TER
que nos acompanha para onde quer
que vamos e não nos deixa em paz. HUMILDADE E DISPONIBILIDADE PSICOLÓGICA
Temos a nítida sensação de estar-
mos sendo vigiados. Quando não
PARA TENTAR, EXPOR-SE, ERRAR, RECOMEÇAR,
estamos completamente mergulha- MODIFICAR, EXPERIMENTAR, OBSERVAR.
dos na tese, fazemos a contagem do
tempo em que poderíamos estar e
isso se traduz em tempo perdido. a rigor não faz a menor diferença lorizar as nossas conquistas e os
Quanto maior é o prazer que temos dizer: “sou graduado nisso e fiz os apoios diversos que recebemos.
nesses momentos de fuga, maior é créditos do mestrado ou doutora- Muitas vezes, esquecemos de agra-
a cobrança interna. do”, você é só um graduado. decer as muitas pessoas e institui-
Aqui o nosso censor exerce a Enquanto está fazendo a tese, ções que se fizeram presentes; isto
sua autoridade e rigor, dizendo-nos você é um gerúndio, um se fazen- é imperdoável! A tese é sua, mas
que “toda diversão será castigada”. do e a sua vida é vista como pro- ela teria sido impossível se você
Esse sentimento de culpa encontra gredindo. Quando um aluno não estivesse verdadeiramente só. Não
respaldo no mundo real da burocra- conclui o trabalho, ele perde o que é possível, no âmbito deste artigo,
cia da escola e do trabalho, assim iria conseguir e o que conseguiu especificar mais detalhes sobre a
como conta com o endosso incons- durante o período de créditos... Para grandeza, as delícias e os muitos
ciente de quem está se sacrificando as instituições envolvidas, tudo será preços de uma tese. Os preços são
ao nosso lado. É claro que se im- capitalizado como prejuízo nas suas muito altos é certo, mas os prêmios
pomos sacrifícios aos demais, eles estatísticas; para o orientador, será também são.
nos olharão acusadoramente quan- um fracasso pessoal. Quando estamos realmente
do resolvemos dar um tempo, con- abertos a maior autoconhecimen-
templar o universo ou conversar to, podemos aproveitar as lições
com Dionísio. DUAS OU TRÊS COISAS recebidas, pois elas são muito re-
É claro que o orientador é tam- QUE PODERÍAMOS AINDA veladoras. Serão parciais, é verda-
bém um regulador e controlador FALAR SOBRE ELA... de, mas descobriremos que somos
institucional, ele tem o seu nome capazes de suportar conhecer as
ligado ao trabalho e será respon- Toda tese tem uma história, que nossas limitações, conviver com
sável pelo que seu aluno fizer e tem páginas engraçadas, alegres, elas ou procurar reduzi-las. A mai-
principalmente pelo que não fizer. divertidas e outras que são difíceis, or parte dos fazedores de tese sai
Quando um orientando desapare- pesadas, tristes. Aprendemos com dela muito, muito melhor do que
ce, o orientador pode mandar um todas elas e não são lições de con- entrou. Daí, ele vai integrar aque-
e-mailzinho perguntando algo as- sumo imediato, pelo contrário se- le grupo de cúmplices, dar conse-
sim: “Sumiu? O que você anda fa- rão incorporadas na nossa vida. No lhos que não serão ouvidos, em-
zendo? Precisamos conversar...” limite, nós somos o maior objeto da prestar a sua paciência aos “cha-
Geralmente, os orientadores têm tese, pois enquanto sujeito dela vi- tos” e pensar, generosamente e tal-
sensibilidade para saber que tipo vemos um embate de forças inter- vez com um risinho maroto, que
de controle é mais apropriado a nas e externas que nos ensina mui- ele também já foi assim... Existe
cada aluno: alguns precisam de to sobre nós mesmos. uma beleza enorme nesse proces-
uma marcação mais cerrada, en- Fazer a tese significa não ape- so, trate de descobri-la e bem-vin-
quanto outros precisam ficar mais nas dominar parte do conteúdo re- do ao clube! 

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