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Nelson Rodrigues

O GRANDE
COMÍCIO
Tenho dito, obsessivamente, que sou uma flor de
obsessão. Ora, uma coisa muito repetida vai perdendo a
solenidade inicial e tornando-se humorística. Amigos
meus já me saúdam assim: – “Olá, flor de obsessão”,
“Como vais, flor de obsessão?”. Eu respondo com
esplêndida naturalidade:
– “Vou indo. Estou caprichando”.
Agora mesmo, recebo um bilhete do Raul Brandão,
o pintor de igrejas e de grã-finas. Começa assim: –
“Nelson, minha flor de obsessão”.
E de fato, sou um homem de fixações inarredáveis.
Insisto em assuntos e figuras de nossa época com uma
pertinácia quase doentia. Ontem, o Marcello Soares de
Moura passa por mim e adverte: – “Você está falando
muito do comício!”. A princípio, não entendi. E o Marcello,
afobadíssimo, já se afastava, em passadas largas e firmes.
Fiquei dando tratos à bola, sem saber que comício seria
esse, que tanto atribulava o amigo. Até que baixou uma luz
em mim. Só podia ser o comício de 1º de Maio, ali, no
Campo de São Cristóvão.
Realmente, na data universal do Trabalho, as
esquerdas deram uma demonstração de força. Até então,
elas não existiam historicamente, e explico: – não tinham
feito nada. O nosso homem de esquerda bate papo e só.

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Mas não sai do Leblon, não larga a praia e, à noite, vai
para o Antonio’s, gozar a sua boêmia ideológica. Sabemos
que a História faz exigências mais severas. Não basta
namorar no Antonio’s, ou lá babar os pileques libertários.
E eis que as esquerdas resolvem agir. A data
escolhida, e não sem uma intenção óbvia, foi o Dia do
Trabalho. Por coincidência, na mesma data, havia o jogo
Flamengo x Vasco. Seria inevitável a competição. De um
lado, o discurso; de outro lado, a botinada. A retórica teria
que derrotar o chute.
Mas um comício histórico impõe certas provações
amargas. A primeira delas foi o local imposto. Sempre
digo que o nosso esquerdista é um ser do Leblon ou, na
pior das hipóteses, de Copacabana. E as esquerdas nada
conhecem desse Brasil que se esconde para lá da praça
Saenz Pena.
Estava decidido que seria no Campo de São
Cristóvão. Muitos oradores jamais em tal ouviram falar.
Houve quem recorresse aos guias turísticos. (Alguém dirá
que já contei a mesma história umas dez vezes. É possível.
Mas sou ou não sou uma flor de obsessão? E tal assunto
me fascina, eis a verdade, me fascina. A meu ver, o
comício de 1º de Maio ensina a conhecer o Brasil dos
nossos dias. E eu confesso que escreveria um ano inteiro,

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dia após dia, sobre tal acontecimento.)
O que eu queria dizer é que, na hora marcada, não
compareceu ninguém. Minto. Os oradores estavam
presentes. Uns quinze, segundo uma estimativa generosa.
Esperava-se uma massa nunca inferior a 200 mil pessoas.
Muito bem. O último orador já imaginara o seguinte fecho
para o seu discurso: – “Quem for brasileiro que me
siga!”. E os quinze oradores e mais as 200 mil pessoas
partiriam, do Campo de São Cristóvão, para salvar, não o
Brasil, mas o Vietnã.
Os cálculos das esquerdas não estavam tão longe
da verdade. As 200 mil pessoas existiam. Só que estavam
no Estádio Mário Filho. Ao Campo de São Cristóvão, não
foi, repito, ninguém. Cochichou-se: – “Por que é que o
nosso comício não foi preliminar do jogo?”. Era uma idéia
perfeita, mas desgraçadamente tardia. (Imaginem as
esquerdas fazendo as preliminares do futebol. Para
melhor efeito, os oradores poderiam falar de calções e
chuteiras. Seja como for, a platéia estaria garantida.) No
dia seguinte, um dos oradores me procurou. Exalando
uma cava depressão, abriu-me a alma, de par em par.
Disse: – “Nunca mais, nunca mais!”. E contou-me
a sua medonha experiência. Sem sair do Brasil, tivera, em
plena canícula, uma experiência siberiana.

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Imaginem vocês um orador que se prepara para um
auditório de 200 mil sujeitos. Pois bem. E chega lá e vê um
deserto total, sem um mísero camelo, sem uma mísera
bica. Adiar para o dia seguinte, não podia ser. O comício de
1° de Maio exige o 1º de Maio, assim como a parada de 7
de Setembro precisa do 7 de Setembro. Os oradores
esperam quinze, vinte minutos. Fora algumas moscas
vadias e divertidas, ninguém mais. E, súbito, para maior
desprazer dos tribunos, um casal de moscas põe-se a
fazer amor na testa de um deles.
Mas falei em “experiência siberiana” e preciso
explicar. Há na Sibéria uma ilha tão deserta, tão deserta,
que nem micróbios tem. E quando não há nem micróbios,
a solidão é perfeita. Pois cada orador sentiu-se
exatamente em tal ilha. Cada um dos presentes começou
a sentir, na própria carne, um frio horrendo. Todos
tiritavam, rilhavam os dentes. E a aragem fina que
soprava parecia siberiana. Os oradores quase voltaram de
trenó.
O esquerdista do “Nunca mais! Nunca mais!”
perguntava: – “Por que, meu Deus, por quê?”. No Brasil,
há platéia para tudo e o brasileiro é, por vocação, platéia.
Se um camelô vende caneta-tinteiro, junta gente; se
morre um cachorro atropelado, junta gente; e, se passa

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um batalhão, nós vamos atrás. Eis o que dizia eu e aqui
repito: – o brasileiro tem uma alma de cachorro de
batalhão. Não há batalhão sem um cachorro para
acompanhá-lo. Pois do nosso pau-de-arara ao Walther
Moreira Salles, todos aderimos a qualquer passeata. De
igual porte, entramos em qualquer comício. E, no de 1º de
Maio, ninguém parou. Os oradores de esquerda não
conquistaram nem a curiosidade vadia que inspiram os
camelôs e os cachorros atropelados. Daí o deserto
siberiano que se instalou no Campo de São Cristóvão.
Falei nas moscas frívolas, inclusive nas duas que
transformaram a testa do orador em tálamo nupcial.
Retiro as moscas. Tal como na ilha da Sibéria, enquanto
durou o comício até os micróbios sumiram. E o meu amigo
desesperado insistia, monotonamente: – “E por quê?”.
Dei-lhe a resposta, sucinta, inapelável e obtusa: –
“Não sei”. Pela primeira vez, um fato na História do Brasil
deixara de ter a sua platéia. O orador saiu, rosnando como
no poema: – “Nunca mais! Nunca mais!”. E, até ontem,
não conseguira eu entender a Sibéria sem micróbios em
que se meteram as nossas esquerdas.
Ontem, porém, passei de táxi, por São Salvador, a
caminho do túnel Santa Bárbara. Comecei a ver todos os
muros pichados com vivas aos vietcongs, vivas à vitória

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vietcong. Vietcong para lá, vietcong para cá. Só então
compreendi por que as esquerdas do Brasil não atraem
nem os micróbios brasileiros. O que há é um pequeno
engano geográfico. A retórica de 1º de Maio teria platéia
no Vietnã e nunca no Campo de São Cristóvão. Se fosse um
comício sobre uma bica entupida em Boca do Mato, ou um
cano furado na praça Sete, sempre apareceriam umas
donas-de-casa para dizer “bravos bravíssimos”, como na
ópera.

O GLOBO, 17.0
17.05
.05.1968

APEDEUTEKA GUINEFORT – 2014 – 0008

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