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Nelson Rodrigues

O HOMEM
FA T A L
Dois ou três amigos me atribuem uma
fantasia fluorescente das Mil e uma noites. Ainda
ontem, cruzei com um dos meus raros
admiradores. Assim que me viu, correu para mim,
como se fosse me agredir. Agarrou-se a mim e
dizia e repetia, esbugalhado: – “Que imaginação!
Que imaginação!”. Baixei a vista, escarlate de
vergonha. Na véspera, uma vizinha já me
cochichara: – “O senhor é fértil. Não é fértil?”.
Fértil, eu! Quer-me parecer que ela aludia às
minhas invenções, às minhas imagens. Mas, no
primeiro momento, por uma dessas associações
fatais, cheguei a pensar nos “dias férteis” das
senhoras. De uma forma ou de outra, não me cabia
promover minha própria fertilidade. Fiz um gesto
(o brasileiro gesticula muito) e balbuciei: – “Mais
ou menos, mais ou menos”.
E ficamos por aí.
Mas vejam vocês: – sou obrigado a
confessar, de público, o equívoco atroz. A minha
imaginação é rala e, repito, a minha imaginação é
escassa.
Mas sou profissional e tenho que
subvencionar o leite do caçula e o sapato da

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mulher. E que faço? O meu processo é repetir.
Arranquei de mim mesmo, a duras penas, uma
meia dúzia de imagens. E, um dia sim, outro não,
repito a metáfora da antevéspera. A televisão vive
das reprises dos seus filmes, eu vivo das reprises
das minhas imagens. Graças a Deus, o leitor não
percebe que já leu aquilo umas cinqüenta vezes. E
não só repito as metáforas, como os personagens.
Houve um tempo que o Otto Lara Resende estava
em todas as minhas crônicas. Aliás, esta é uma
das fatalidades da vida literária. Cada autor
precisa ter uns personagens obsessivos,
obrigatórios. Ontem foi, como já disse, o Otto; hoje,
é d. Hélder. Mas há personagens ocasionais e
outros definitivos.
Ou muito me engano ou d. Hélder está no
seletíssimo elenco dos personagens definitivos.
Aliás, faço mal quando falo em “meu” personagem.
Em verdade, é personagem de todo o mundo.
Ninguém abre um jornal sem esbarrar, sem
tropeçar no seu nome, no seu retrato, no seu gesto,
na sua palavra. Ele saiu do país e cada um pensou
que íamos descansar de sua ênfase, de sua
inflexão, de sua batina. Ledo engano. A ausência

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de d. Hélder é uma total impossibilidade. Não sei se
me entendem e vou explicar. Havia entre nós e o
bom padre toda uma distância enorme. Andou em
Berlim, Roma, Paris. Mas, insisto: – essa distância
geográfica nada significa. A ausência de d. Hélder
tem a tensão, a força, o apelo da presença física.
Sábado, véspera de Botafogo x Vasco, o
Salim Simão arrancava os cabelos: – “Parece que
o Gerson não joga”. Alguém, ao lado, pergunta: –
“D. Hélder não joga?”. Aí está dito tudo. Como o
arcebispo é um hábito visual e auditivo do
brasileiro, vemos a sua figura e ouvimos o seu
nome por toda a parte. Ninguém se espantaria de
vê-lo no jogo, de calções e chuteiras, ganhando o
“bicho”. Ele está no Velho Mundo e continua aqui.
O Jornal do Brasil não concede uma linha ao papa
e põe d. Hélder na primeira página.
Podemos dizer de d. Hélder, o padre, o que
Victor Hugo dizia de Napoleão, o Grande: – “Ele!
Sempre ele!”.
No momento lá se instala o homem em todas
as conversas. Imaginem que, ontem, fui a um
outro e instrutivo sarau de grã-finos. O sujeito que
quiser saber a quantas anda o destino do Brasil

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não consulte o jornalista, o estudante, o sociólogo,
o educador, o jornal. Esses não sabem de nada. O
sujeito deve recorrer, direto, ao primeiro grã-fino
ou, melhor dizendo, à primeira grã-fina. Não sei
por que, mas o fato é que a grã-fina tem o que
poderíamos chamar de “sensibilidade histórica”.
Sabe qual é o fato ou a figura que vale
historicamente. E nunca se engana.
Quando entrei no sarau, discutia-se,
exatamente, d. Hélder. Ótimo, ótimo. Em Paris,
entre outras coisas, dissera o nosso arcebispo: –
“Não sou um Guevara de salão”. Muito bem: – não
era um Guevara de salão. Seria então que tipo, que
espécie de Guevara? Um dos presentes fala em
“marxismo”. Um outro pula: – “Absolutamente.
Não é Marx, é Freud”. E insistia, no seu fervor
polêmico: – “Sim, senhor, Freud”. Disse mais, que
era um Freud nada misterioso, de uma
transparência ideal.
Lançada a sugestão freudiana, não houve
mais sossego. Ninguém se entendia. Muitos viam d.
Hélder, no mato, dando tiros como um Tom Mix.
Outros o imaginavam varado de balas. Havia
também a dúvida: – ousaria ele trocar a batina

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pelo fuzil, o altar pela barba do guerrilheiro, a
oração pelo palavrão? Digo “palavrão” porque
imagino que a guerrilha induz à linguagem
obscena. E o pior foi quando alguém falou em
Gilberto Freyre.
Como se sabe, o sociólogo não acredita no
assassinato de d. Hélder. Acredita muito mais no
seu atropelamento. Foi um gelo total no salão.
Cada qual imaginou o atropelamento de d. Hélder.
Achando que o passageiro de táxi só é
cumprimentado nos sinais fechados, e
especialmente interessado na própria popularidade
– d. Hélder só anda a pé. O pedestre é apalpado,
farejado, adulado. O diabo é que não há mártir do
atropelamento. E d. Hélder seria o primeiro, sim, o
primeiro mártir, o primeiro herói, o primeiro
Guevara da trombada. Nem Freud, nem Marx,
simplesmente um táxi homicida ou um ônibus
tarado.
Fosse como fosse, a hipótese de Gilberto
Freyre esvaziou a figura de d. Hélder de todo o
patético, de todo o sublime. Na altura das três da
manhã, insinuei um novo tema: – “E os índios? E
os índios?”. Silêncio. Fiz nova tentativa: – “Chato

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o negócio dos índios”. Nenhuma receptividade. E,
então, falei do jogo Botafogo x Vasco. Foi um
impacto. Cada qual teve a sua opinião, o seu
palpite. Em matéria de índios, ou o silêncio, ou o
bocejo. Mas estão matando índios. São nossos
semelhantes e brasileiros como qualquer um de
nós. E estão morrendo. Há de chegar um dia que
não sobrará um índio para contar a história. Mas
como respondemos à matança?
Temos uma esquerda que só treme e só
esperneia quando matam um vietcong, Há uma
carnificina de índios nas nossas barbas cínicas. E
não fazemos nada. Nenhum guerrilheiro do
Antonio’s derramara uma furtiva lágrima. Bem se
vê que, em matéria de índio, nós paramos na
protofonia do Guarani da Hora do Brasil.
Por que não chorar por eles? Odiamos os
norte-americanos. Vá lá. Mas por que não odiar
também os assassinos dos índios? Mataram
mulheres, crianças. Essa matança é uma cordial
rotina. No far west americano, a paisagem está
cheia de ossadas de vacas. Em nossa selva, são
ossadas de índio. D. Hélder está furioso Com a
questão racial dos Estados Unidos. E eu pergunto:

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– “E os nossos negros?”. O branco brasileiro é
subdesenvolvido e o negro, muito mais. Por que d.
Hélder não fala de negro brasileiro? Mas se não
quer falar de negro, fale dos índios. O bom padre
declara, para uma platéia mundial, que não quer
ser um “Guevara de salão”. Ficam-lhe muito bem
tais sentimentos. Pois seja Guevara de verdade.
Compre um fuzil e vá matar assassinos de índio.

[O GLOBO, 30. 04. 1968]

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