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Ivan
Marsiglia entrevista Paulo Arantes.*
Enfim concedida a revogação dos aumentos das tarifas de transporte nas duas principais
metrópoles brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, a tarde de quinta-feira se anunciava
como o momento de comemoração para o movimento cívico e apartidário que tomou as
ruas do País nas últimas duas semanas. O que se viu, no entanto, foi a expansão
incontrolável dos protestos, com mais de 1 milhão de pessoas em cerca de cem cidades
brasileiras. E, embora o tom geral das massas de manifestantes se mostrasse pacífico,
cenas de conflito e vandalismo foram vistas por toda parte. Em Brasília, três ministérios
foram depredados. No Rio, 62 pessoas ficaram feridas. No interior paulista, um jovem
manifestante morreu atropelado e, em Belém, uma gari perdeu a vida após inalar gás
lacrimogêneo lançado pela polícia.
Para Arantes, nunca é demais lembrar que o Maio de 1968 na França também eclodiu em
um contexto de crescimento econômico, pleno emprego e políticas de bem-estar social.
Comparação que, no entanto, para por aí. E que se as “jornadas de junho” nacionais, como
o filósofo as chama, referenciam-se de fato em rebeliões altermundistas como a de
Seattle-1999 ou de Nova York-2011, encontram no Brasil ambiente ainda mais explosivo,
“tamanha a desagregação social em que nos enfiamos”. E avisa: para evitarmos o risco
de uma derivação autoritária, será preciso que governantes municipais, estaduais e
federais deixem de lado suas “cabeças de planilha” e levem a sério a reivindicação radical
de cidadania expressa nas ruas.
É verdade, só hoje de manhã li pelo menos três artigos confessando “perplexidade” diante
dessas realmente espantosas “jornadas de junho”. Cada um com o seu assombro diante
da “mais expressiva, surpreendente e rápida vitória popular de nossa história”, nas
palavras do cientista político Rubens Figueiredo, que atribui a rendição dos governantes
locais, Estado e município, à “potência e capacidade de mobilização das redes sociais”.
O que os ideólogos da sociedade em rede estão chamando de autocomunicação, Kant
falaria em uso público da razão. Seja como for, mais um motivo de espanto. Voltemos às
três visões perplexas. O cronista, que admite não estar entendendo nada e exige a mesma
franqueza dos demais, da imprensa, dos políticos e dos próprios manifestantes; o
correspondente internacional, que talvez tenha vivido anestesiado pela rotina da
profissão, cobrindo anos de prosperidade festejada pelos investidores estrangeiros; o
veterano do mundo petista agoniado pelos sinais alarmantes de fadiga da estratégia de
mudanças sem ruptura, com dez anos de conquistas dentro da ordem e níveis coreanos de
aprovação eleitoral arriscando ir para o vinagre à menor gota d’água.
A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao
capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais. Essa a dissonância básica, ainda
mais estridente quando o contexto é de baixo desemprego, como você bem lembrou. Não
seja por isso. Sei que a comparação frisa o disparate, mas não custa recordar que o maior
movimento contestatário da segunda metade do século 20, disparado pelo maio francês
de 1968, ocorreu justamente no auge de um ciclo inédito de crescimento econômico,
pleno emprego e Estado social a todo vapor, sendo que três meses antes da explosão o
mais acatado colunista da época publicara um artigo descrevendo a França como um país
entorpecido pela autossatisfação. A herança do Maio, entretanto, já se disse, é uma
herança impossível. E a moçada do Passe Livre sabe muito bem disto: onde havia um
horizonte de superação, existe uma ratoeira. Essa armadilha é o Brasil do futuro que afinal
chegou. Como disse um poeta, “o horizonte sorri de longe e arreganha os dentes de perto”.
Por exemplo, a brilhante dentadura do PM baixando o porrete no casal de namorados num
bar da Av. Paulista.
De que maneira o Passe Livre, que teve início em 2005, se aproxima e se diferencia
dos movimentos sociais a que estávamos acostumados no Brasil?
Daí a ressonância de uma causa como a da ‘tarifa zero’, tida como inviável?
Exato. E são tão afiados no manejo do melhor argumento contra a aberrante insensatez
do atual modelo de transporte coletivo – e socialmente convincentes, como estamos
vendo -, que, em contraste, as planilhas dos governantes parecem, elas sim, cifras
fantasiosas ornamentando o jogo das concessionárias que se conhece. Mas de tanto
levarem às cordas essas raposas das planilhas criativas, a expertise adquirida no processo
foi aos poucos colando, num só personagem, o libertário e o gestor ideal de políticas
públicas “igualitárias”. Não estou insinuando que cedo ou tarde esses jovens estarão
operando do outro lado do balcão – como já o fazem no âmbito da cultura digital, no qual
a livre associação de livres produtores revelou-se o melhor caminho para gerar
empreendedores shumpeterianos e novos formatos de negócios, como se diz no jargão do
capitalismo cognitivo. Não à toa, demonstra-se por a+b que a circulação urbana planejada
à luz de uma tarifa zerada exponenciaria a performance econômica de uma cidade, e
estenderia o direito à cidade. Uma ruptura de época está nos arrastando para uma outra
praia não menos conflagrada e na qual os europeus já vivem há tempos: onde em torno
dessas famigeradas políticas públicas de gestão de um presente congestionado – da
segurança à moradia – um grupo se amotina e as correspondentes instituições coercitivas
fecham o cerco. Por isso na Av. Paulista um dia é pau outro dia é flor.
O estopim da tarifa também passou por aí, e para além do importante movimento dos
atingidos por megaeventos, alcançou a imaginação da massa infeliz condenada à catraca:
queremos transporte com padrão Fifa – bem como hospitais, escolas, creches, no mesmo
padrão Fifa de qualidade. Humor popular direto ao ponto, porém um tantinho inquietante:
então seria esse o metro da “cidadania social” a que se aspira? Luxo e apropriação direta
dos fundos públicos? A proximidade com os Indignados europeus dá mesmo o que
pensar. Fica no ar a dúvida: e se tivermos ingressado finalmente na era dos protestos
desengajados – como os qualificou um sociólogo britânico -, quando protestar se tornou
uma questão estritamente pessoal, e o ativismo, a rigor, um estilo de vida? Em fevereiro
de 2003 1 milhão de pessoas foram às ruas na Grã Bretanha em protesto contra a iminente
invasão do Iraque. Recolhidos cartazes e bandeiras, não deixaram nenhum rastro social
ou político pelo caminho, salvo a palavra de ordem famosa “não em meu nome”, isto é,
não me envolvam nessa barganha de sangue por petróleo. Na mesma linha, outro
conhecedor da cena inglesa observou que os europeus que promovem festa e casamento
durante os protestos o fazem porque sabem que as demonstrations só demonstram para
os próprios demonstradores. Quando a maré virou, e a vara de condão da PM
“transformou” vândalos em indignados pacificamente distribuídos por nichos genéricos
de demandas, a narrativa midiática dos acontecimentos não precisou forçar a mão para
desviar-se do gatilho do movimento – e apresentar a manifestação como um fim em si
mesma. Essa a moldura do imortal “está lindo vocês nas ruas”.
Essa alternância entre vandalismo e cidadania foi o que tornou os protestos tão
difíceis de decifrar?
Acho que há menos mistificação do que supõe a socióloga da FGV Silvia Viana, ao notar,
num ótimo artigo, que são tantas as negativas – “não são só os 20 centavos, não é só o
transporte, não é só a Copa…” – que o movimento parece um protesto por nada. Mas não
é o que diz uma jovem manifestante, ao ser indagada sobre as motivações de sua presença
no ato: “Olha, eu não consigo imaginar uma razão para não estar aqui”. O teórico alemão
Wolfgang Streek traduziria um pouco à la bruta: vim consumir política, no caso, repudiar
um sem-número de “produtos”, a saber tais e tais políticas públicas que não me
satisfazem. Se não me engano, foi esse o ponto da entrevista do professor José Garcez
Ghirardi (Em Trânsito”, 16/6), domingo passado neste mesmo caderno. Alguém observou
que muitas palavras de ordem nos protestos decalcavam slogans publicitários, a começar
pelo “Grande Despertar” de uma marca de uísque.
Puro agitpub: o autor da boutade acrescentou que se tratava menos de ouvidos treinados
por jingles do que casos de detournement espontâneo à maneira dos situacionistas
franceses. Mas, e se não for bem assim? À notícia da capitulação, o bom senso tático da
esquerda tradicional recomendaria uma pausa para consolidação das conquistas. Parece
não ser mais o caso. Nas palavras de um ativista, não só em solidariedade às outras cidades
que ainda estão na luta, mas porque uma pauta puxa a outra, “a mobilização não pode
parar, a cultura da mobilização não deve parar”. Mas precisamos, sim, parar para pensar,
antes de celebrar o que quer que seja, salvo a derrota acachapante dos reis da planilha.
Um coletivo de estudiosos e militantes da questão social no Brasil poderia muito bem
dizer que essa mobilização permanente tem menos a ver com a mobilização total de uma
sociedade de consumo do que com a implicação, e o “engajamento”, das pessoas
arrastadas pelo novo assalariamento vulnerável, que estão ralando e padecendo e no
entanto engajadas em duas frentes, a do trabalho que ninguém gosta de ver estropiado por
chefias despóticas e avaliações espúrias e a do senso do vínculo social a ser reconquistado
que decorre dessas engrenagens desenhadas para infligir sofrimento. Quem sabe não virá
também dessa outra fonte de energia social o som e a fúria que se vê nas ruas?
Do ponto em que estamos, já é possível vislumbrar em que isso tudo vai dar?
Até agora mais ou menos cem cidades com manifestações marcadas ou já ocorrendo. Era
de 70% de aprovação no Datafolha, segundo consta, o índice do Movimento das Diretas
no seu começo. Como lhe dizer que estou entendendo o que seria inconcebível dez dias
atrás? E olhe que o povo lulista – na acepção precisa que lhe deu o cientista político André
Singer – mal começou a dar o ar de sua graça: tarifa zero dentro da ordem seria demais
para o seu “horizonte de desejo”, para usar a ótima expressão de Wanderley Guilherme?
E quando o desemprego voltar com o tremendo arrocho fiscal pela frente? Deixará de
lado a saída empreendedorista pela ação coletiva? Como reagiria a classe média, que até
agora extravasou seu ressentimento atávico contra um pouco de tudo, na hora em que a
gente diferenciada deixar de ser apenas uma ameaça virtual? Salvo a Copa, o consenso
em torno do Brasil emergente ainda não foi arranhado. Se em algum momento se sentir
sob ataque, reagirá como de hábito, cerrando fileiras em torno de um campo popular ad
referendum, os cenários pré-64 sairão das gavetas mais uma vez, etc. Muitas dissonâncias
portanto nessa unanimidade toda, além do mais fabricada pelos âncoras transmitindo ao
vivo o impensável na pasmaceira dos últimos anos.
Na sexta-feira, já ficava clara não só a apreensão da Fifa em relação à Copa do ano
que vem, mas a do Comitê Olímpico Internacional sobre a Olimpíada de 2016 no
Rio de Janeiro. São preocupações fundadas?
A Copa do Mundo não está indo para o vinagre apenas porque está ficando cada vez mais
claro o engodo da redenção urbana operada por megaeventos do gênero. A ficha que caiu
agora é o escândalo do seu tremendo custo público alavancando lucros privados
inconcebíveis. Temos um ano pela frente, num cenário de retrocesso econômico, de volta
à ortodoxia do primeiro mandato de Lula, tempo suficiente para que amadureça a
percepção pública do real significado da Lei da Copa, essa sim uma verdadeira lei de
exceção. Veremos de perto, entre outras derrogações e violações, o exercício da soberania
corporativa sobre territórios e populações. Não faltarão gatilhos para outra onda de
manifestações em cascata: tem muita gente com coceira nos dedos.
O sr. disse certa vez que o pensamento crítico brasileiro encontrava-se em ‘coma
profundo’. Parafraseando um dos slogans mais cantados nos atuais protestos (‘o
povo acordou’), acha que ele pode despertar agora?
Vasto assunto. Como o dito pensamento crítico brasileiro prestou relevantes serviços à
inteligência nacional, por que não deixá-lo descansar em paz?