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A VIDA SOCIAL EM TEMPOS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS DO FAZER


CIÊNCIA NO EXERCÍCIO DO PENSAR CRÍTICO

Alba Maria Pinho de Carvalho


Aula Inaugural – FAMETRO
26 de fevereiro de 2014

AGRADECENDO A HONRA DO CONVITE...

Antes de tudo, quero saudar os que fazem a FAMETRO – direção,


professores e estudantes. E, agradecer pelo convite para esta AULA INAUGURAL.
É um convite que muito me honra e que aceito com imenso prazer. Entendo
este momento como um momento de partilha acadêmica, pois encontro-me aqui
entre pesquisadoras e pesquisadores que investigam questões que circunscrevem a
vida contemporânea e que, no seu cotidiano acadêmico, exercem o ofício da
pesquisa. E encontro-me entre estudantes que, no seu processo de formação, são
provocados pelo desafio de entender e explicar fenômenos da vida social no tempo
presente, em curso, e buscam vias e caminhos...

I PRETENSÕES DA FALA...

Assim, proponho-me a fazer desta minha fala uma provocação para o


debate. Para tanto, tentei, ao longo dos últimos dias, qual artesã a manejar o seu
tear, tecer reflexões, com fios de diferentes tons, buscando compor um cenário da
vida contemporânea, no exercício do pensar crítico. E, esta tessitura reflexiva -
que aqui apresento - constitui ponto de chegada, que se faz ponto de partida, nesta
dialética permanente do ofício da pesquisa. E a temática vai além, exigindo um
pensar crítico sobre o próprio ofício do fazer ciência e sobre o processo de
tessitura analítica no desvendamento da realidade. Chega-se, assim, a um
pensar crítico, sobre a produção do pensamento crítico... Assim, o tear da
artesania intelectual – como nomina o mestre Wright Mills – se move em uma dupla
direção: a reflexão substantiva, em uma aproximação analítica da realidade
contemporânea, nos movimentos de sua complexidade: a reflexão
epistemológica da própria produção do conhecimento, do fazer ciência... E nos
lembra Bourdieu, em suas “Lições de Aula”, que a reflexão epistemológica é
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indispensável para que se faça Ciências Sociais, com relevância e fecundidade.


Passemos, então, a apresentar as nossas tessituras reflexivas, na consciência da
sua incompletude, da sua parcialidade, confiando na força iluminadora do debate,
das discussões, tanto após esta fala, mas, sobretudo, nos coletivos das disciplinas,
ao longo das aulas...

II DESENHO, EM ESBOÇO, DO MUNDO QUE VIVEMOS...

Em uma dinâmica que se pretende dialética, tomamos, como ponto de


partida, um desenho, em esboço, com grandes traços, do concreto que nos desafia:
o mundo que vivemos... Vamos contornar, com traços largos, um mapeamento
descritivo do que chamamos MUNDO CONTEMPORÂNEO...VIDA
CONTEMPORÂNEA.

COMO É QUE, HOJE, A VIDA ACONTECE EM NOSSA SOCIEDADE, NESTE


JOVEM SÉCULO XXI?

Vivemos, hoje, personas do século XXI – adultos, jovens, crianças, idosos (e


torna-se difícil estas demarcações etárias) - em um mundo que nos envolve em
seu ritmo acelerado, com novas formas de viver e conviver, novas formas de
sociabilidade, passando pela mediação das máquinas, a encarnarem a
tecnologização sem limites, como marca do nosso tempo... Máquinas de todas
as espécies e gerações na vida doméstica, no trabalho, no lazer e, hoje, sobretudo
na vida pessoal... São máquinas cada vez mais absorventes, em suas múltiplas
funções, com “tecnologia de ponta”, rapidamente superada em um processo
avassalador: celulares; notebooks; tablets; iphones; ipods; ipeds; smartphones;
robôs, cada vez mais artificialmente inteligentes e, em breve tempo, dispositivos a
comandar funções humanas!... São máquinas que passam a ser partes de nós
mesmos, extensões do nosso corpo, impondo a necessidade de conexões
permanentes: Facebook; Twitter; Whatsaapp; Instagram; Google Glass!... Parece
que não podemos mais estar conosco mesmo, estar em silêncio... Temos que está
sempre clicando, digitando, conectando e conectados!...

É a revolução das comunicações, impondo uma metamorfose


comportamental que se faz visível em todos os espaços onde transitamos no
cotidiano, ensimesmados, imersos no click das comunicações virtuais...
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Inegavelmente, o espaço virtual passa a ser parte constitutiva da vida social,


hibridizando-se com o espaço físico, territorial... E esta dominância crescente do
espaço virtual permite, possibilita ampliar o espectro da comunicação aligeirada,
mundo afora, restringindo o espaço da comunicação de vida, da partilha... Amplia-se
o espectro das relações virtuais e restringe-se as relações de vida!!! Estranha
metamorfose dos humanos em tempos virtuais!

E a grande busca dos indivíduos conectados, “plugados” é ser o melhor,


é “ser o cara”, é ser o vencedor...É ter a vida interessante e de sucesso que se
faz existir ao aparecer no Face; portar a felicidade instantânea de comprar as
quinquilharias que tornam os indivíduos poderosos, fortes, dominadores,
conforme promete o mundo encantado do marketing a produzir e controlar
nossos desejos!... E tudo é rápido, fulgaz, descartável... descartam-se objetos,
pessoas, relações... difunde-se a paixão ilimitada pelo novo que, rapidamente,
torna-se superado... E, nesse mundo onde tudo se faz mercadoria, vivenciamos
uma crescente instabilidade, com medo e ansiedade de sobrar, de “ficar de fora”, de
“sair do jogo”, de ser “café com leite”... Estamos submetidos à permanente
concorrência para garantir um bom lugar, de preferência, o melhor... E tudo volta-se
para a vida privada... E, em meio ao individualismo, à mercantilização sem
limites, ao consumismo exacerbado, difunde-se a cultura da violência... são
violências de toda ordem, fazendo crescer a obsessão por segurança, em um
mundo de múltiplas apartações, estruturalmente inseguro...um mundo de
banalização da vida de mulheres e homens, da natureza, da Mãe Terra... É um
mundo onde tudo pode acontecer, onde a vida se faz líquida, rompendo os laços, os
elos entre o individual e o coletivo, como nos ensina Zigmunt Bauman!...

Mergulhamos neste mundo sem pensar nele e sobre ele...a crítica se faz
um bem raro nos tempos líquidos de exaustão de informações. Muitas vezes,
reproduzimos a visão naturalizada do senso comum e/ou as concepções e visões
divulgadas no fantástico mundo midiático, intencionalmente montadas para difundir
uma forma de olhar, um jeito de pensar que reforce determinados interesses
dominantes... E assim parece que mergulhamos num profundo sono, deixamos de
ver, ficamos cegos, como magistralmente denuncia José Saramago no seu “Ensaio
sobre a Cegueira!”
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É preciso despertar deste sono e começar a ver, ouvir, entender,


desvendar, agir, intervir transformar... E, neste sentido, a ciência e a arte
constituem vias privilegiadas do nosso despertar, do nosso pensar crítico...
Hoje, vamos nos voltar para o despertar pela via da ciência, ou, mais
especificamente, das Ciências Sociais, em seu sentido mais amplo e ampliado em
diferentes campos de estudo e investigação: Sociologia, Serviço Social, Pedagogia,
Antropologia, Ciência Política, Direito, Políticas Públicas, História, Psicologia,
Geografia Humana, Ciências da Administração, Economia Política... Enfim, como
“Alice no país das maravilhas”, precisamos abrir-nos, pela via da ciência, para nos
espantar, para ver e desvendar o mundo que vivemos, internalizando a conclamação
do epistemologo Gaston Bachelard: “O mundo é a minha provocação”!!! É preciso
aprender a nos deixar surpreender, sermos provocados pelo mundo social,
despertando do sono, sono fabricado neste mundo de liquidez e fluidez, fetichizado
pelas mercadorias, enebriado pelas cores, cheiros, formas da exacerbação do
consumo!...

É fato inconteste: ESTE MUNDO CONTEMPORÃNEO, EM SEU


VERTIGINOSO RITMO, EM SUAS ACELERADAS MUDANÇAS, INTERPELA
PROVOCA A QUEM, POR DEVER DE OFÍCIO, PRECISA DESVELAR,
COMPREENDER A VIDA SOCIAL QUE SE MANIFESTA NO COTIDIANO, NOS
SEUS FATOS E EVENTOS...

De fato, quem trabalha com o campo do social, em suas múltiplas dimensões,


é interpelado a desvendar a vida social, qual “Esfinge de Édipo: decifra-me ou te
devoro”!...

Nesta perspectiva, temos, como pressuposto, que a relevância das Ciências


Sociais, no curso da História, decorre da sua capacidade de interpelar e
decifrar a vida social, atribuindo sentidos e significados ao presente.

EM QUE IMPLICA ESTE DECIFRAR DA VIDA SOCIAL? COMO O

CIENTISTA SOCIAL PODE CHEGAR A ATRIBUIR SENTIDOS E SIGNIFICADOS

AO PRESENTE, NA SUA COMPLEXIDADE, QUE SE REVELA EM MÚLTIPLOS

FENÔMENOS DO COTIDIANO? O QUE SE FAZ NECESSÁRIO PARA ASSUMIR


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ESTE EMPREENDIMENTO REFLEXIVO DE ENTENDER, DE EXPLICAR ESTE

PANORAMA CONTEMPORÂNEO?

E três operações fundantes se impõe neste decifrar, neste desvendar da

vida social em tempos contemporâneos:

PROBLEMATIZAR / DELINEAR VIAS ANALÍTICAS MOVIMENTANDO


TEORIAS / CONSTRUIR CAMINHOS DEFININDO VIAS METODOLÓGICAS. Logo,
decifrar a vida social em curso, consubstanciada no Presente, significa problematizá-
la, definindo vias de estudo no processo de pensar o mundo ao movimentar teorias
explicativas e construindo caminhos metodológicos. E, assim, nos colocamos no
plano da investigação, nos percursos da análise... E, avançamos, então, em
nosso desenho da realidade, no sentido de nos apropriar do concreto na reflexão,
buscando fazer da vida social contemporânea um “concreto pensado”, como
propõe Karl Marx, em seu método de pesquisa.

Neste esforço reflexivo, impõe-se como questão fundante: QUE MUNDO


SOCIAL EMERGE DAS PROFUNDAS TRANSFORMAÇÕES
CONTEMPORÂNEAS EM CURSO NAS ÚLTIMAS DÉCADAS? QUAL A LÓGICA
QUE MOVIMENTA ESTE MUNDO SOCIAL, GESTANDO ESSES FENÔMENOS
QUE MARCAM O NOSSO PRESENTE? COMO A VIDA SOCIAL É TECIDA NAS
DOBRAS E INTERSTÍCIOS DESSAS MUTAÇÕES, A ENCARNAREM NOVAS
CONEXÕES DE TEMPO E ESPAÇO?

É esta uma questão forte, fundante e meu esforço aqui é delinear uma
aproximação analítica que propicie vias e trilhas na compreensão deste mundo
contemporâneo e sua lógica. Para tanto, vou trabalhar no tear reflexivo, tecendo
fios da crítica, movimentando aportes teóricos, nos limites das minhas possibilidades
como pesquisadora e no tempo que ainda disponho nesta noite. E, com certeza,
estas vias e trilhas, que aqui esboço, integram a agenda das disciplinas e, assim, o
processo de aproximações para tornar inteligível o cenário contemporâneo faz-se
permanente e está em movimento, a interpelar professores e estudantes...

Senão vejamos!
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III VIDA SOCIAL EM TEMPOS CONTEMPORÂNEOS: UMA APROXIMAÇÃO


ANALÍTICA

Nas últimas quatro décadas, mais precisamente, no final do século XX e


início do século XXI, estamos a vivenciar um novo momento na civilização do
capital, marcado pela TECNOLOGIZAÇÃO DA VIDA SOCIAL que se amplia e se
intensifica a cada ano. De fato, como decorrência da Revolução Técnico-
Científica, tem-se, em curso, um desenvolvimento científico e tecnológico sem
precedentes, sem limites e sem controles, apartado das necessidades
humanas e desconectado da ética da sustentabilidade da vida e do cuidado
neste planeta Terra. A revolução da informática e da comunicação, combinada com
a tendência do capitalismo para ampliar a lei do valor, em processos ilimitados de
mercantilização, transformam o modo de organização da vida social. É a
civilização capitalista contemporânea, com novas formas de acumulação e
valorização do capital. Hoje, o sistema do capital mundializado, sob a égide das
forças cibernético-informacionais, é regido pela acumulação rentista, nos termos
marxianos D-D`, ou seja, dinheiro gerando mais dinheiro. É inconteste o poderio do
dinheiro em tempos contemporâneos, permeando a totalidade das relações
sociais. É o que bem sintetiza o pensador marxista César Benjamim, em uma
brilhante síntese da vida social:

Produz-se por dinheiro, especula-se por dinheiro, mata-se por


dinheiro, corrompe-se por dinheiro, organiza-se toda a vida social por
dinheiro, só se pensa em dinheiro. Cultua-se o dinheiro, o verdadeiro
deus da nossa época – um deus indiferente aos homens, inimigo da
arte, da cultura, da solidariedade, da ética, da vida do espírito, do
amor. Um deus que se tornou imensamente mediocrizante e
destrutivo. E que é insaciável: a acumulação de riqueza abstrata é,
por definição, um processo sem limites (2004, p.2)

Em verdade, vivenciamos uma nova temporalidade do capital,


caracterizada pela sua expansão ilimitada pela exacerbação da liquidez, da
instabilidade e da insegurança a explicitarem-se, com intensa e dramática
visibilidade, no cenário mundial, nos anos finais da primeira década do século XXI,
na CRISE DO CAPITAL.

A rigor, esta crise que marca o tempo presente, é grave e profunda, com
raízes fincadas nos novos padrões de acumulação e valorização do capital. Como
avalia o pensador marxista contemporâneo István Mészáros, é uma crise estrutural
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com permanentes desdobramentos e deslocamentos que, por sua própria


natureza, obrigatoriamente, afeta a Humanidade como um todo (MÉSZÁROS,
2009; 2003).

Nenhum país pode evocar imunidade à esta crise estrutural do capital, nem
mesmo a China, com seu superávit de trilhões de dólares que, neste capitalismo de
liquidez e risco, pode evaporar-se de um dia para outro, em meio a uma turbulência
(MÉSZÁROS, 2013). E, especificamente no Brasil, as expressões da crise do capital
ganham visibilidade em 2012/2013, evidenciando a instabilidade e o risco dos
arranjos do modelo brasileiro, nos circuitos híbridos do ajuste e do
neodesenvolvimentismo (CARVALHO; CASTRO, 2013). (Esta é uma instigante
provocação para outra discussão...)

Em verdade, o sistema do capital, no século XXI, confronta-se com uma crise


civilizacional, expressando a insustentabilidade do seu modo de funcionamento. É
a própria insustentabilidade do capitalismo contemporâneo, fundada na expansão
predatória e sem limites do capital, a manifestar-se numa articulação de crises:
ambiental, climática, alimentar, energética, financeira, crise do mundo do
trabalho, crise social e uma profunda crise de sentidos. E, múltiplos são os
fenômenos indicadores desta crise civilizatória: uso intensivo e indiscriminado de
recursos naturais, beirando ao “débâcle”; a privatização exacerbada de bens
comuns: a água, o ar, a biodiversidade; a expulsão do próprio processo de trabalho
de centenas de milhões de trabalhadores/trabalhadoras que se tornam supérfluos ao
modo de funcionamento do capital; precarização estrutural do trabalho, precarizando
o modo de vida de homens e mulheres trabalhadoras, capturando a sua
subjetividade; violências e inseguranças sempre em aprofundamento; exclusões
sociais e apartações; consumismo ilimitado como modo de existência social; a lógica
da descartabilidade a perpassar a totalidade das relações sociais; o individualismo e
restrição de horizontes de vida... (Estamos a enfocar alguns desses indicadores
nesta nossa aproximação analítica).

Adentrando nessa lógica expansionista, que comanda o “capitalismo


mundializado com dominância financeira”, em crise, impõe-se a exigência de
pensar o TRABALHO, nesta nova temporalidade do capital.
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No século XXI tem-se, em curso, o que se denomina de PRECARIEDADE


ESTRUTURAL DO TRABALHO, em estreita vinculação com a “tecnologização da
ciência”. Hoje, sem paralelos em toda a era moderna, acirra-se a contradição
circunscrita por Marx, nos Grundrisse em 1857-1858: a crescente substituição do
“trabalho vivo” de homens e mulheres pelo “trabalho morto”, objetivado nas
máquinas. O sistema do capital, ao apropriar-se das conquistas do extremo
desenvolvimento tecnológico, efetiva um revolucionamento da própria relação
homem-máquina, homem-técnica, constituindo o que Giovanni Alves nomeia de
MAQUINOFATURA, fazendo emergir o “homo tecnologicus”, a encarnar a
“ciberhominização”: No plano virtual, repõe-se, contraditoriamente, a relação
homem-técnica: a máquina como instrumento e o homem como vigia da
máquina... De fato, com a mediação da ciência e da tecnologia, o sistema do capital
vai prescindindo da presença física e do próprio “saber” e do próprio “fazer” do
trabalhador, com o predomínio das chamadas “máquinas inteligentes”, nos circuitos
cibernético-informacionais, incorporadas a redes digitais. Gesta-se, assim, o
crescimento e a AMPLIAÇÃO DA PRECARIEDADE LABORAL, materializada no
desemprego e nos múltiplos processos de precarização, a alastrar-se no
conjunto da classe trabalhadora, em seus distintos segmentos e diferentes
categorias profissionais.

É preciso enfatizar que esta precarização laboral ampliada adentra os


diferentes domínios da vida, capturando a própria subjetividade dos homens e
mulheres trabalhadores(as), nesta nova ordem do capital. Assim, a precarização do
trabalho que ocorre, hoje, no século XXI, sob o capitalismo global, seria não
apenas “precarização do trabalho”, no sentido da força-de-trabalho como
mercadoria, mas seria também a “precarização do homem-que-trabalha”, no
sentido de precarização existencial, perpassando a relação trabalho-vida.

De fato, no seio da maquinofatura, o capitalismo mantêm sob tensão o


homem e a mulher trabalhadores, em sua integralidade. Concretamente, homens
trabalhadores e mulheres trabalhadoras vivenciam a precarização laboral e a
precarização da própria existência, comprometendo a saúde, a perspectiva de vida e
a inserção na totalidade das relações sociais. O sofrimento no trabalho, sob
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múltiplas formas, levam ao adoecimento físico e mental, com doenças


características da epidemiologia laboral.

E avançando no desvendamento deste precário mundo do trabalho, no tempo


presente, neste século XXI, Giovanni Alves (2012;2013) circunscreve uma fecunda
chave analítica ao demarcar, como um fenômeno contemporâneo, a
“universalização da condição de proletariedade”, como condição existencial
de homens e mulheres que vivem em tempos de maquinofatura e de
precarização estrutural da força-humana-que-trabalha. Assim, esta condição de
proletariedade expande-se na vida social contemporânea, atingindo diferentes
segmentos das classes trabalhadores, inclusive os que possuem níveis elevados de
escolarização. Logo, a segmentos da chamada classe média são também incluídos
nestes percursos de precarização de condições de trabalho e vida, sobremodo nos
circuitos da crise estrutural do capital, em seus permanentes deslocamentos...

Esta universalização da condição de proletariedade, a estender-se no âmbito


do capitalismo contemporâneo, no século XXI, constitui um novo segmento da
classe trabalhadora que se impõe como um enigma do nosso tempo, a nos
interpelar: O PRECARIADO.

E QUEM É ESTE PRECARIADO E COMO SE CIRCUNSCREVE NO


CENÁRIO CONTEMPORÃNEO NA CONDIÇÃO DE UMA CAMADA SOCIAL DE
CLASSE?

São milhões de trabalhadores jovens-adultos com alta escolaridade,


desempregados ou inseridos em contratos de trabalho precários que transitam de
uma ocupação a outra, quase sempre com baixos salários, sem projetos de vida e
perspectiva de futuro. É uma multidão de jovens proletários assalariados, vinculados
a camadas médias, com níveis elevados de qualificação profissional, entrando e
saindo de empregos precários, a viver em situação de insegurança econômica e
social, sem identidade ocupacional, sem garantia de direitos e tomados pelo
sentimento de ansiedade perante o futuro. É uma camada da classe trabalhadora
em construção, a vivenciar a precarização do trabalho e da própria vida,
precisamente nesta articulação contemporânea entre faixa geracional (jovens-
adultos), grau educacional (alta escolaridade) e forma de inserção no trabalho
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e no mundo social (precarizada, instável e insegura)(ALVES, 2012; 2013). Logo,


vivenciam uma precarização laboral e uma precarização existencial, imersos na
angústia, na depressão, na restrição de sentidos da vida.

Assim, o precariado configura-se em grupos de juventudes frustradas, e


revoltadas que se disseminam mundo afora, sobremodo nos países capitalistas
globais, nos circuitos da crise, e, hoje, com visibilidade no Brasil, unificados pela
insegurança, pelo medo, risco e desencantamento e pela indignação a expressar-se
de forma crescente. Segundo Guy Standing, este precariado encarna o perigo de
uma “Bolha Educacional Global” (2013).

Este exercício da crítica, aqui esboçado, tentando desvendar a civilização


contemporânea do capital, revela que vivemos em mundo social dominado pela
expansão do capital em detrimento das necessidades humanas. A lógica é a da
acumulação, do lucro, sem limites, acirrando assimetrias e apartações,
desconsiderando qualquer possibilidade da vida plena, do bem-viver.

A lógica de expansão do capital não tem limites e controles e, precisamente,


nesse momento contemporâneo do capitalismo, acentua e agrava a sua tendência
destrutiva, não poupando nada, nem ninguém, a minar as condições
fundamentais de sobrevivência humana e a colocar em risco o planeta Terra.
Neste sentido, István Mészáros alerta para a gravidade dos problemas atuais do
capitalismo no contexto da crise estrutural do capital, a afetar até a “dimensão mais
fundamental do controle social metabólico da humanidade, incluindo a natureza, de
forma perigosa” (2013, p.6). E, contrapondo-se à Schumpeter e sua tese da
“destruição criativa”, afirma estar acontecendo no sistema do capital, nesta nova
temporalidade histórica, uma “produção destrutiva”. O sistema parece atingir o limite
de suas contradições!...

Este atingir o limite das contradições bem se expressa no agravamento da


Questão Social que se aproxima da barbárie... É o mundo do trabalho imerso na
precarização estrutural... É a questão urbana, a explodir em tensões e confrontos
em meio às assimetrias, tornando à vida nas cidades insuportável, com extrema
precarização de bens e serviços para a crescente maioria da população que tenta se
equilibrar no “fio da navalha” das exclusões e inclusões precárias... Em verdade,
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tem-se a gestão das cidades para o capital, segundo os ditames da especulação


imobiliária, dos circuitos financeirizados, dos interesses dos representantes do
capital. E as cidades passam a ser geridas em função de eventos (Vide Copa do
mundo e Olimpíadas). E, assim, hoje, para além da destituição de direitos, vivemos
a desmontagem da própria lógica dos direitos... A vida social parece tão impregnada
da liquidez, da descartabilidade, da privatização, da mercantilização que regem a
civilização do capital que não considera a lógica dos direitos como referência
fundante da democracia. E, assim, mergulhamos na desvalorização, na banalização
da vida, sobremodo dos que são descartáveis, são supérfluos para o capital.

E neste cenário-limite vivencia-se a explosão das violências, de toda ordem


e toda espécie, e, então, desenvolve-se a obsessão da segurança, em um mundo
capitalista estruturalmente violento. A pesquisadora Rejane Vasconcelos nos aponta
uma preciosa via analítica quando, em sua tese de doutorado, sustenta ser a
violência uma mercadoria na civilização do capital, sendo, portanto, dimensão
constitutiva do sistema produtor de mercadorias que, sem limites e sem controles,
tudo submete à expansão da lei do valor.

É decisivo considerar que este momento contemporâneo do capitalismo, nos


marcos desta expansão ilimitada e destrutiva do capital, sustenta-se em uma
MISTIFICAÇÃO IDEOLÓGICA que conduz ao extremo individualismo, ao
consumismo com forma de existência, pretendendo restringir a intervenção dos
sujeitos à vida privada, bloqueando e desqualificando alternativas de
organização do coletivo que questione e confronte com a lógica deste sistema.
A rigor, a própria lógica que preside o desenvolvimento capitalista, qual seja, a
lógica da concorrência, do mercado, do produtivismo impõe-se, cada vez mais,
como ideologia dominante (HARVEY, 2011). É o predomínio de uma cultura do
mercado, da produtividade, do consumismo, da descartabilidade. E, mistificação
ideológica impõe o “cardápio da felicidade”, onde a receita é voltar-se para si e para
os seus, na inesgotável ânsia de ter, de atender desejos inesgotáveis do
consumismo, de dotando-se das “mercadorias – insignas do sucesso”: carros;
apartamentos em condomínios sempre mais fechados; roupas de griffes; perfumes;
aparelhos de última geração...
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E na sua crítica a esta sociedade líquida e que nos liquefaz, Bauman alerta
que a felicidade não está na riqueza de poucos, que a felicidade não se mede pelo
que cada um acumula, mas, justamente, pela distribuição. É evidente que Bauman
confronta com a mistificação ideológica que sustenta esta sociedade, no limite de
suas contradições.

No exercício da imaginação dialética é importante focar as RESISTÊNCIAS E


LUTAS EMERGENTES NA CIVILIZAÇÃO DO CAPITAL que se materializam em
movimentos de diferentes perfis e formatos a nos interpelar. São novas formas do
fazer política que encarnam uma cultura política a atualizar o potencial
emancipatório da luta por afirmação de direitos. Nesta perspectiva a 2ª década do
século XXI é particularmente instigante com os movimentos que tomam ruas e
praças em todo o mundo. Cabe discutir as bases sociais destas rebeliões e o que
tais movimentos nos circuitos da História estão a colocar em xeque... (E aí temos
uma temática emergente em nossa agenda de debates!

Em verdade, esses tempos contemporâneos em suas múltiplas dimensões


evidenciam a exigência do “fazer ciência”. E aqui encarnamos um princípio
marxiano: se a aparência e a essência coincidissem, toda ciência seria supérflua. De
fato, é a ciência que chega a essência, considerando as manifestações da
aparência. E, de imediato uma questão de fundo se impõe: DE QUE CIÊNCIA
ESTAMOS, AQUI, A FALAR? Múltiplas são as concepções no interior do debate
epistemológico!... Neste sistema do capital, pensando a ciência com a perspectiva
de desvendamento, decifração da realidade, estamos a pensar ciência no âmbito do
pensamento crítico a viabilizar a imaginação dialética...É Ciência no âmbito da
Práxis: uma ciência contextualizada, em uma dada realidade, a ser compreendida e
explicada, no sentido de contribuir para a sua transformação nos circuitos da
História! É o reconhecimento da natureza política da Ciência como uma construção
que se institui e se desenvolve na teia das relações sociais de um dado espaço, em
um tempo histórico específico. Assim comungamos com Boaventura de Sousa
Santos que a “Ciência é uma forma de conhecimento e uma prática social que
encarna compromissos com nítidas expressões sócio-politicas-culturais (1987;
2004).
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Nesta direção, fazer ciência é um “dever de ofício” dos cientistas sociais que
integram diferentes áreas de estudo, distintos campos do saber... E fazer Ciência
coloca em pauta o exercício da Pesquisa?

E eis que chegamos a uma outra questão-fundante: O QUE É PESQUISA? E


novamente é preciso demarcar uma concepção de Pesquisa, em meio a um
emaranhado de entendimentos.

Valemo-nos novamente de mestres que encarnam uma razão crítica...E, aqui


penso nas reflexões epistemológicas de Pierre Bourdieu e no exaustivo exercício da
Pesquisa de Karl Marx: 15 anos na Biblioteca de Londres investigando o sistema do
capital, refletindo sobre a Economia Clássica e construindo uma matriz analítica na
articulação conceitual. E inspirada nestes dois mestres, podemos afirmar que a
Pesquisa é um OFÍCIO que se aprende, que se tenta ensinar, que exercitamos com
disciplina, com teorias e métodos, com criatividade e sensibilidade...

E vocês aqui tem excelentes mestres e mestras que exercitam a pesquisa no


cotidiano... (Camila Holanda)

Particularmente defendo como perspectiva político-epistemológica do fazer


ciência o que denomino de Racionalismo Aberto e Crítico: razão em movimento a
partir das provocações do mundo, exercendo a crítica, buscando compreender os
fenômenos, os fatos, os eventos interpeladores, em suas determinações e
mediações no exercício do pensar relacional. É um racionalismo a efetivar tessituras
permanentes entre teoria/realidade, abstrato/concreto, objetivando chegar ao
concreto pensado. Para tanto, encarnamos como princípios norteadores: a
construção processual do conhecimento; a perspectiva da incerteza e a busca
incessante do conhecer; a lógica da descoberta em detrimento da lógica de
prova; a ótica da complexidade a exigir transdisciplinaridade e articulação de
saberes; a construção de interlocuções entre diferentes vertentes analíticas.

E este racionalismo aberto e crítico alimenta-se das provocações do mundo, a


despertar o apetite de conhecer sempre mais, mobilizando a fazer descobertas...
Interpela-nos a “ser pesquisador nas circunstâncias do nosso tempo histórico”:
tempo de incertezas e instabilidades no âmbito de inimaginável avanço científico-
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tecnológico; tempo de profusão ilimitada de informações e imagens na chamada


“sociedade do espetáculo”; tempo de reflexões minimalistas e ausências de
pensamento crítico; tempo de vertigem de mudanças e crises que se entrecruzam;
tempos de renascimento da crítica na mais genuína matriz marxiana; tempo de
embates e lutas por uma radicalização da democracia; tempos em que ecoam as
vozes das ruas, impondo a questão da política das lutas libertárias agenda do nosso
tempo. Voltamos a falar e a pensar emancipação!

E cabe refletir:

Para onde apontam os ventos nos Circuitos da História?

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