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artigo de revisão / review article / discusión crítica

É possível humanizar a Medicina?


Reflexões a propósito do uso do Cinema na Educação Médica
Is it possible to humanize medicine? Reflections regarding the use of
Cinema in Medical Education
¿Es posible humanizar la Medicina?
Reflexiones acerca del uso del Cine en la Educación Médica

Pablo González Blasco*

Resumo: A questão central do presente artigo traduz-se numa pergunta: É possível humanizar a Medicina? A já longa experiência que o autor
possui no uso do Cinema na Educação Médica –em âmbito nacional e internacional- brinda elementos para responder essa questão vital. E a
resposta chega desdobrada, a modo de fatorial de um produto, em outras questões menores e nas correspondentes respostas. Em primeiro lugar:
O que é preciso humanizar? Projetos de humanização que não atingem a pessoa, o ser humano, restringindo-se ao âmbito de políticas públi-
cas, não são bem sucedidas. A seguir, coloca-se a segunda questão: Como se humaniza com eficácia? Não basta a boa vontade, e a dedicação
entusiasta, para conseguir humanizar de modo sustentável. É preciso metodologia. Em terceiro lugar, uma questão pouco ventilada nos fóruns
humanizantes: Quanto custa humanizar? Enquanto se continue destinando os maiores orçamentos à tecnologia, e se deixem as tentativas de
humanização por conta do voluntariado e sem o apóio de investimentos financeiros, não será possível a transformação que a humanização
pretende. Finalmente, a questão crítica: Queremos, de verdade, ser humanizados? Porque humanizar implica chegar ao âmago do ser humano,
que protagoniza todos os processos de saúde, transformá-lo, criar um compromisso de ordem pessoal, enfrentar desafios profissionais e pessoais.
Humanizar é, pois, recolocar-se na vida como pessoa, assumir uma postura humanística, para deste modo fazer do próprio existir um foco de
humanização efetiva: na medicina, e na vida.
Palavras-chave: Medicina. Humanização. Educação Médica.
Abstract: The central question of this paper is translated in a question: Is it possible to humanize medicine? The already long experience that
the author has in the use of Cinema in Medical Education – in the national and international context – is the source of elements to answer this
vital question. The answer includes a kind of factorial thinking unfolded in other questions and their answers. First of all: What is necessary to
humanize? Projects of humanization that do not reach the person, the human being, and are thus restricted to public policies do not succeed. The
second question is: How do we humanize with efficiency? Good will is not enough, or enthusiastic dedication, to humanize in a sustainable way.
Some methodology is necessary. In the third place, a question little talked about in humanizing forums: How costly is to humanize? Until one use
incredible high budgets to promote technology, leaving to volunteers without financial resources attempts of humanization, no transformation
humanization seeks will be possible. Finally, the critical question: Do we really want to be humanized? Because humanizing implies reaching the
heart of humans, which plays the leading role in all processes related to health, in order to transform it, to create a promise of personal order,
to face professional and personal challenges. Humanizing is thus to replace oneself in life as a person, having a humanistic attitude, in order to
make one’s own life a focus of effective humanization both in medicine and in life.
Keywords: Medicine. Humanization. Medical Education.
Resumen: ¿La cuestión central de este artículo se traduce en una pregunta: Es posible humanizar la Medicina? La ya larga experiencia que el
autor posee en el uso del Cine en la Educación Médica – en ámbito nacional y internacional, él ofrece elementos para responder a esa cuestión
vital. Y la respuesta llega desdoblada, como la factorial de un producto, en otras cuestiones menores y las respuestas correspondientes. En pri-
mer lugar: ¿Lo que es necesario humanizar? Proyectos de humanización que no atingen la persona, el ser humano, restringiéndose al ámbito
de políticas públicas, no son exitosos. Viene en seguida la segunda cuestión: Como se humaniza con eficacia? No son suficientes ni la buena
voluntad ni la dedicación entusiasta para lograr humanizar de modo sostenible. Es necesario haber metodología. En tercer lugar, una cuestión
poco abordada en los foros humanizantes. Cuánto costa humanizar? Mientras se continuar destinando los mayores presupuestos a la tecnología
y se dejar las tentativas de humanización por cuenta del voluntariado y sin el apoyo de inversiones financieras, no será posible la transformación
que la humanización pretende. Por fin, la cuestión crítica: Deseamos de facto ser humanizados? Porque humanizar implica llegar a la esencia del
ser humano, que protagoniza todos los procesos de salud, transformarlo, crear un compromiso de orden personal, afrontar retos profesionales
y personales. Humanizar es, así, resituarse en la vida en cuanto persona, asumir una postura humanística, para, de ese modo, hacer del propio
existir un foco de humanización efectiva: en la medicina y en la vida.
Palabras-llave: Medicina. Humanización. Educación Médica.

* Médico e Doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Membro Fundador e Diretor Científico da SOBRAMFA
(www.sobramfa.com.br) – Sociedade Brasileira de Medicina de Família. Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). Autor dos livros
O Médico de Família, hoje (SOBRAMFA; 1997), Medicina de Família e Cinema (Casa do Psicólogo; 2002) e Educação da Afetividade através do Cinema (IEF – Instituto de Ensino
e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo; 2006). Coautor dos livros Princípios de Medicina de Família (SOBRAMFA, São Paulo; 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide
to using film in medical education (Radcliffe Publishing, Oxford, UK; 2005). É também autor de diversas publicações e trabalhos apresentados em congressos nacionais e
internacionais onde aborda temas de Medicina de Família, Educação Médica, Humanismo e Medicina e Educação da Afetividade através do Cinema e das Artes.
E-mail: pablogb@sobramfa.com.br

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É possível humanizar a Medicina?
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Queria entender do medo e da modo, recordar, um exercício ativo çoamento. O humanismo é inato à
coragem da memória para lembrar quem so- profissão médica. Um médico sem
e da gã que empurra a gente para mos como médicos, o que busca- humanismo não será propriamente
fazer tantos atos, mos, qual é a nossa história. médico. Na melhor das hipóteses
dar corpo ao suceder. O modo mais prático de perceber trabalhara como um mecânico de
O que induz a gente para más esta necessidade é, como em muitas pessoas2.
ações estranhas, outras questões, observar as conse- A humanização da medicina
é que a gente está pertinho do que quências que a sua ausência provo- deve começar, pois, pelo encontro
é nosso, por direito, ca. Assim quando existe um clamor com o paciente: esse é o ponto de
e não sabe, não sabe, não sabe! pela Humanização de uma situa- partida imprescindível em qual-
J. Guimarães Rosa ção, de uma atitude ou profissão é quer tentativa de humanização.
porque de algum modo se reclama Sem contemplar o paciente –coisa
Desumanização, algo que se entende como essen- que todo médico deve fazer, inde-
Humanidades e Resgate cial em determinada circunstância pendente da sua especialidade- não
Humanístico da Medicina concreta. No caso da medicina as há humanização possível. Segue-se
chamadas de atenção costumam o encontro com o estudante, como
A Humanização da Medicina é vir da parte do paciente, como ad- fonte inspiradora. O estudante de
tema cada vez mais presente e ver- vertência que orienta na recupera- medicina que entra nas faculda-
dadeira preocupação dos Educa- ção de algo que, tendo-se o direito des com ideais humanitários, com
dores na Academia, e dos Gestores de esperar do médico e da medi- frequência vai perdendo-os aos
nos diversos Sistemas de Saúde. O cina, não se encontra na prática. poucos, e com isso apaga-se o ver-
motivo é evidente: a Humanização As advertências provenientes dadeiro motivo que o conduziu a
da Medicina é reinserir a ciência do paciente dificilmente recaem ser médico. Entender o quê aconte-
médica nas suas verdadeiras ori- no aspecto técnico da medicina, ce é também uma luz que ilumina
gens; e não é difícil entender que até porque o paciente não possui os nossos desejos humanizantes. É
nos dias de hoje a medicina tem de habitualmente recursos para ava- preciso entender e buscar soluções,
ser forçosamente humana se quer liar corretamente deficiências dessa visto que é isso o que se espera das
pautar-se pela qualidade e pela ex- ordem. As carências que o pacien- instituições formadoras: não se po-
celência. Humanizar a Medicina é, te constata são, em última análise, de assistir à desumanização do es-
assim, além de uma obrigação edu- carências na pessoa do médico, tudante de medicina passivamente,
cacional uma condição de sucesso detentor do conhecimento e inter- sem tomar providências. O resul-
para o profissional de saúde. mediário entre a tecnologia e o pa- tado dessa omissão é o deteriora-
Justo seria perguntar-se o por- ciente. As insuficiências não são de do panorama que contemplamos
quê é preciso Humanizar a Me- ordem técnica, mas humana. E isto diariamente nos serviços de saúde:
dicina, ciência e arte que nasceu porque de algum modo, torna-se o estudante de hoje, é o médico de
no âmago mais profundo do ser necessário “vestir a ciência médi- amanhã, que estará tão desumani-
humano. Ou, talvez, seria melhor ca com trajes humanos, dissolver zado ou mais como quando saiu da
perguntar-se o porquê a Medicina no aconchego humano a técnica e Universidade se não se fizer nada
se desumanizou. A discussão é lon- os remédios que o paciente deverá por remediá-lo.
ga, repleta de matizes e perspecti- utilizar”. Quando tal não acontece, As artes e humanidades são um
vas. Mas o conselho que Guimarães as insuficiências são sempre do pro- elemento clássico na formação hu-
Rosa1 coloca em boca do jagunço fissional, e o prejuízo é do paciente, manística do médico; quer dizer,
Riobaldo ao confessar o quanto que acaba sofrendo de indigestões um recurso para conhecer o ser hu-
gostaria de decifrar as coisas que científicas nada reconfortantes. mano com quem terá de deparar-se
são importantes, traz uma luz a esta Caberá ao médico preocupar-se de por vida. Daí que andem para-
discussão acadêmica: esquecemos com esta temática, que não é em lelas – com sabor clássico – a figura
do que temos perto de nós, não sa- absoluto minúcia ou filigrana. Uma do médico humanista e a do pro-
bemos apreciá-lo. A desumaniza- preocupação que se deve traduzir fissional humanitário3. O univer-
ção da medicina é, sobretudo, um em ocupação ativa; estudo, refle- so das artes é para o médico uma
esquecimento, um olvido lamentá- xão, para aprofundar e, sobretudo, companhia necessária que assegu-
vel do que tendo perto diariamente, analisar o seu comportamento, de- ra sua identidade vocacional. Para
deixamos passar sem reparar. Hu- tectar as deficiências e encontrar o estudante, médico em formação,
manizar a Medicina será, de algum os caminhos do necessário aperfei- é auxilio na construção dessa iden-

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tidade; para o profissional, torna-se em Educação Médica. Aquilo que A busca de resposta a todas es-
instrumento de trabalho, fonte de nasceu com naturalidade, sem tas questões foi o motor que ala-
conhecimentos, barreira que pro- buscá-lo, como uma ferramenta vancou as pesquisas posteriores,
tege de desvios. E sempre a arte é auxiliar para ilustrar os conceitos que perfilaram a metodologia com
nutrição para o espírito, têmpera básicos de Medicina Humanística maior precisão7. Trabalhos apre-
que lhe permite tratar com a dor, a converteu-se numa linha de pes- sentados em Congressos Interna-
morte, e toda a gama de limitações quisa que configurou uma meto- cionais, apoiados pelas respectivas
que a condição material humana dologia acadêmica4,5. publicações, mostraram que a me-
impõe, sem perder a perspectiva A partir desse momento, a utili- todologia do Cinema se mostrava
transcendente. A arte não é sim- zação mais sistemática da metodo- eficaz no meio de culturas variadas,
ples refúgio que consola quando logia e a observação das vivências presididas por idiomas e percepções
se apalpa a caducidade da matéria, que o fenômeno – o contato com o diferentes8,9,10. Mesmo em cenários
como um sonho que ajuda a fugir cinema num ambiente educacional educacionais não médicos, a utili-
da realidade. A arte e o humanismo – trazia aos estudantes, confirma- zação do Cinema como recurso
são verdadeiras couraças que nos ram tratar-se de uma nova forma educacional foi constatada11.
permitem mergulhar em cheio na de colaboração no processo forma- Não caberia aqui uma análise
materialidade, misturar-nos com tivo do aluno de medicina6. extensa de todos estes resultados
ela –pois é com ela que os médicos O cinema é uma forma de arte, que, por outro lado, estão con-
lidamos diariamente- para dando e como tal, parecia razoável incluí- venientemente detalhados nas
o melhor de nós como profissio- la nessa série de despertadores da referências, onde se encontra o ma-
nais, ajudar até onde nos é possí- condição humana que são as hu- terial utilizado (cenas de filmes), os
vel, sem infectar-nos com o germe manidades e as manifestações ar- comentários simultâneos, as apre-
do materialismo que conduz, antes tísticas. Mas, afinal, devíamos nos ciações vindas do público (muitas
vezes variado, composto de alunos,
ou depois, à decepção e a perda do perguntar: qual é o poder educa-
médicos, outros profissionais da
entusiasmo profissional. cional do cinema? Ou, em termos
saúde), assim como as conclusões
A utilização do Cinema como mais habituais na pesquisa médica:
que se apontam na discussão dos
uma experiência educacional de qual é o impacto que o cinema traz
artigos publicados.
resgate humanístico da medicina, para o aluno?
No entanto, pode-se apontar
nos oferece um sugestivo campo Esses primeiros resultados, que
a modo de exemplo, como o uso
para as reflexões que aqui se ano- ainda tinham uma divulgação do-
do Cinema amplifica e torna mais
tam. Vale dizer que o Cinema, que méstica no nosso meio, provoca- palpável a tendência que os estu-
sintoniza com o universo do estu- ram necessariamente uma série de dantes manifestam pelas historias
dante onde impera uma cultura questões que nortearam os traba- de vida, sugerindo que o ensi-
da emoção e da imagem, tem uma lhos posteriores. É possível utilizar no pontual – arrancando do caso
particular utilidade educacional. o cinema como recurso educacio- concreto para introduzir depois a
Educar as atitudes supõe mais do nal na escola médica? Com que explicação teórica – traz um maior
que oferecer conceitos teóricos ou objetivo? O que podemos esperar aproveitamento. As histórias de vi-
mesmo simples treino; implica pro- dessa contribuição particular que da e a discussão do caso concreto
mover a reflexão – verdadeiro nú- o cinema oferece? Como é possí- propiciam ao aluno uma integra-
cleo de processo humanizante – que vel viabilizar este aprendizado de ção dos conhecimentos adquiridos
facilite ao estudante a descoberta de modo metodológico? Ou, com pa- na faculdade e, não poucas vezes,
si mesmo, e permita extrair do seu lavras mais simples: como se pode conferem motivação necessária
interior o desejo de um compromis- ensinar com o cinema? Quem pode para abordar matérias cuja aplica-
so vocacional perdurável. ensinar e como aprender a fazê-lo? ção não tinha sido descoberta. O
Na busca de um esforço institucio- paciente concreto, as histórias de
Trajetória da Metodologia nal devemos perguntar ainda: Qual vida personalizadas, trazem sentido
do Cinema na Educação é o espaço curricular em que se po- e unificam o contexto educacional.
de ensinar desta forma? Qual seria Deste modo o aluno seria educa-
Médica
o braço institucional – leia-se setor, do no exercício de pensar e não
As experiências na utilização divisão, departamento, cadeira cur- em aprender regras de conduta. O
do Cinema representam uma tra- ricular- que ampararia a formação moderno ensino baseado em pro-
jetória biográfica bem delineada de professores e a pesquisa com es- blemas não é senão uma aplicação
nos últimos 10 anos de trabalho ta nova metodologia? prática desta conclusão.

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A integração de conhecimento interrompido. Também é apontada compreendido, a família que está


que as histórias de vida e a discus- a figura do monitor ou tutor como em desamparo. Gastam-se recursos
são de casos de pacientes reais tra- aspecto prático nesta continuidade. abundantes nestas tentativas, mas
zem para o estudante assume uma Daí a importância dos projetos que parece que a humanização deseja-
importância particular quando se visam uma formação denominada da não se atinge. Por quê?
trata de abordar questões de natu- longitudinal em ética, amparando O que está faltando é, por dizê-
reza ética. O aspecto mais interes- o aluno ao longo de todos os anos lo com palavras do romance de
sante das discussões que abordam da graduação12,13. Graham Greene, o fator humano.
as questões éticas é o foco onde a E no vácuo das experiências As tentativas humanizantes debru-
dúvida é colocada: sempre a ques- educacionais com o Cinema, sur- çam-se sobre os sistemas e proces-
tão pontual, prática. O ensino éti- gem agora as perguntas vitais que sos, mas não envolvem as pessoas
co deve contemplar, além do corpo não podemos evitar; aquelas que que são a interface de humaniza-
teórico de conteúdo, espaço para pedem resposta e que são o verda- ção entre a medicina e o paciente.
discutir – que é tentar explicar e deiro núcleo de uma tentativa real E não as envolvem, porque não
entender – as dúvidas práticas dos por humanizar a Medicina: Afinal, sabem como fazê-lo. Os processos
estudantes, que abrangem todo o devemos questionar-nos, que é o podem ser medidos e qualificados,
espectro da atuação clínica onde que temos de humanizar? Como mas o interior das pessoas –a boa
sempre surge a dúvida ética. Assim, Humanizar com eficiência? Quan- vontade, a dedicação e carinho- são
os temas que vão desde a dificulda- to custa humanizar? E, finalmente, qualidades que fogem a qualquer
de em cuidar do paciente, e tratar interrogar-nos com sinceridade se auditoria de qualidade.
com a família, até como lidar com queremos de fato ser humanizados. Falamos de cinema, e vale lem-
a morte, a questão da eutanásia, o brar aqui dois exemplos fílmicos
ilustrativos. O primeiro é “A Es-
sofrimento e a medicina paliativa, O que temos de Humanizar? pera de um Milagre” (The Green
sem excluir o relacionamento com
Mile, 1999). Tom Hanks interpreta
os colegas, apontam para a neces- A bandeira da Humanização da
o chefe de guarda de uma prisão,
sidade de discutir significados, ao Medicina campeia como divisa em
um carcereiro diferente, porque
invés de estabelecer protocolos. qualquer projeto moderno de as-
não encaixa no modo truculento
Existe pouco espaço para esta dis- sistência à saúde. Quem se oporia
que essas personagens costumam
cussão no ambiente acadêmico, e hoje à necessidade de humanizar
demonstrar. É um guarda humani-
as experiências aqui relatadas mos- a medicina, os sistemas de saúde,
zado, que adoça na medida do pos-
tram que a discussão amplia a vi- a assistência hospitalar, e mesmo sível os últimos momentos da vida
são. São temas que “pedem espaço” o ensino médico? Mas, curiosa- do condenado, a milha verde que
para serem tratados. mente, o objetivo que é consenso deve percorrer até o patíbulo. Um
É esta uma advertência impor- universal, não parece conseguir-se exemplo romântico de humaniza-
tante que nos chega, mais uma vez, e, na hora de colocar em prática, ção da pena de morte: o sistema é
da mão do aluno, que é o verdadei- tudo é muito mais complicado do ótimo, tem até filmes no processo
ro protagonista do processo edu- que inicialmente parecia, ao has- (inesquecível Fred Astaire, dançan-
cacional: não se trata de implantar tear a bandeira da humanização, e do com Ginger Rogers Cheek to Che-
cursos específicos, mesmo com prestar-lhe homenagem. ek , como os anjos), mas não muda
grande carga horária, mas de per- Busca-se a humanização no nada, a morte chega inexorável.
mitir esta metodologia de discus- sistema e nos processos, medem- O segundo exemplo que vem
são, em caráter oficial, ao longo de se parâmetros de eficiência, certi- à cabeça ao contemplar impulsos
todo o período da formação acadê- fica-se qualidade, mas percebe-se humanizantes de processos, que
mica. As novas situações e contex- que falta algo. Humanizamos co- não atingem as pessoas, é “A Ul-
tos educacionais com que o aluno locando quadros nas paredes dos tima Ceia” (Monster’s Ball, 2001).
se depara ao longo dos anos na es- hospitais, melhorando a hotelaria, Um cenário muito mais duro, onde
cola médica, suscitam os questiona- sintonizando música ambiente, e as tentativas de humanizar a pena
mentos anteriormente apontados, até vestimos os funcionários com de morte – oferecer uma festa-ban-
que pedem espaço para discussão, uniformes que incluem um sor- quete ao condenado na véspera da
reflexão, resolução e autoconstru- riso plástico de vendedor-conte- execução – são tão inúteis como
ção ética de modelos e atitudes. O conmigo, mas o cliente não está falsas, haja visto a tremenda tragé-
aluno manifesta o receio de “esque- satisfeito. O cliente é o paciente dia em que mergulham os envolvi-
cer” estas posturas, se o processo é que sofre, o aluno que não se sente dos na trama.

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As tentativas de humanização Compreensão esta que vai além de Para o nosso propósito a ques-
de sistemas e processos – uma hu- um simples desejo, ou até da boa tão é vital, pois quando não existe
manização ambiental, ecológica vontade de uma disposição favo- união de filosofia e vida, e a vida se
nos atreveríamos a dizer – são rável e aberta. Para compreender vai vivendo do melhor modo possí-
inúteis, desgastam o conceito de verdadeiramente, mantendo nosso vel -animada de boa vontade- mas
humanização, e fazem suspeitar discurso no plano filosófico, é pre- sem sustentação em valores filo-
que os desejos humanizadores não ciso aprender a fazê-lo. Trata-se sóficos que trilham caminhos de
sejam sinceros. A vontade determi- de um conhecimento accessível a conhecimento, os resultados cos-
nada de humanizar a medicina – ou qualquer um, e para o qual conta, tumam ser desanimadores. No âm-
qualquer outro campo profissional e muito, a boa vontade de quem bito da educação médica que nos
– tem que priorizar os atores, os se- pretende adquiri-lo. Mas é preci- ocupa, é fácil perceber a impossibi-
res humanos, e não apenas o palco so ir além, e aprender os modos lidade de ensinar a viver - no caso,
e a decoração. Projetos de humani- de compreensão, assimilar este ensinar uma atuação voltada para
zação que não atinjam o âmago do conhecimento, transformá-lo de a compreensão da pessoa-, quando
ser humano – do médico, do profis- algum modo em metodologia que se carece de uma metodologia pró-
sional de saúde – transformando-o, é, afinal, um sistema filosófico que pria, quando não se percorreram
são projetos abocados ao fracasso. governa o agir. pessoalmente os caminhos que
A filosofia, por outro lado, não levam a aprender a compreensão.
é um simples postulado teórico, ou Tudo ficará por conta de uma es-
Como Humanizar com um conjunto de crenças, mas re- pontaneidade -mal chamada de
Eficiência? dunda em posturas concretas dian- carisma- sujeita à fragilidade dos
te da vida. O ato de compreender altos e baixos da vida, em espectro
Nesta altura das nossas refle-
exige uma filosofia que informe a que compreende desde a intuição
xões, não seria aventurado afir-
vida; informar, no sentido metafí- oportuna – que pode vir ou não no
mar que o fracasso das tentativas
sico - isto é, o que dá forma, o que momento preciso – até o trivial dos
humanizantes na medicina não se
formata para dizê-lo com um ter- estados de ânimo, ou do desgaste da
explicam apenas por falta de von-
mo mais atual. Somente quando se condição humana, que nem sem-
tade política ou porque os desejos resolve a tão frequente solução de pre apresenta a boa disposição que
de melhorar não são sinceros. É continuidade entre uma filosofia seria de desejar. A espontaneidade
possível que, mesmo imbuídos da teórica – corpo de conhecimentos débil, desprovida de sustentação
melhor boa vontade, se careça de – e a vida – que, por sua vez, po- metodológica, é incompetente para
metodologia adequada. Para hu- de estar repleta de bons desejos- é educar, para formar pessoas; quan-
manizar não basta querer: é preciso possível atingir o âmago do ato de do muito, estimulará um ou outro
saber fazê-lo. compreender. sonho que se desvanecerá ao con-
O humanismo em medicina Esta unidade de vida, tão difí- tato com o prosaico do cotidiano. E
não é uma questão temperamen- cil como necessária, a expõe com os sonhos desfeitos -fogo de palha-
tal, um gosto individual, ou até maestria um conhecido educador, rendem a cinza do sombrio ceticis-
um complemento interessante. numa obra primorosa. 14 Quase mo, primeiro do aluno, depois do
É uma verdadeira ferramenta de todos os professores –afirma- se próprio professor, que contempla,
trabalho, não um apêndice cul- perguntam o quê tem de ensinar, lamentando-se, a ineficácia do seu
tural. Facilmente se compreende os conteúdos. Alguns param para empenho repleto de bons desejos,
que sendo o próprio ser humano a pensar, como ensinar esses tópicos. mas órfão de metodologia.
matéria-prima da profissão médica, Poucos refletem sobre quem são os Em palavras do poeta15, a vida
tudo aquilo que ajuda a entendê-lo alunos a quem devem ensinar. E que é terra se transforma em lodo
melhor converte-se em instrumen- quase ninguém se atreve a fazer a na hora de vivê-la. O saber navegar
to profissional. Humanismo deve pergunta tremenda: “Quem ensi- e crescer, não apenas sobreviver,
ser, pois, uma atitude científica, na?”. E conclui: “Por que, queira- nesse meio é questão da maneira e
ponderada, fruto de um esforço de mos ou não, acabamos ensinando do modo como se vive. Essa é a di-
aprendizado. o que somos”. É a força do exemplo ferença, e o sustento que oferece a
Surge, assim, uma primeira o que produz o verdadeiro impacto filosofia que informa a vida. Surge,
conclusão de ordem filosófica: a ne- educacional, e nele, no exemplo, assim, outra conclusão, situada no
cessidade de compreender a pessoa se encerra a verdadeira coragem de registro filosófico, que complemen-
– o paciente, o aluno, nós mesmos. ensinar ta a anterior: é preciso aprender os

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caminhos de conhecimento para da profissão17,18, abre um espaço balho que a sociedade requer pelas
atingir a compreensão da pessoa. concreto ao ensino das Humani- óbvias necessidades des­cobertas da
Não sendo, pois, novidade o te- dades, as convoca como recurso atenção primária. Acontece aqui
ma do Humanismo na Medicina, a eficaz para promover e perpetuar a como na humanização: o fato de
reflexão converge para um aspec- reflexão do médico, e pode ser ado- que muitos façam e trabalhem nessa
to análogo ao levantado pela com- tado como uma metodologia que área – Medicina de Família, projetos
preensão da pessoa; quer dizer, não sustente eficazmente o projeto de de humanização – não quer dizer
é suficiente querer ser humanista Humanizar a Medicina. que saibam fazê-lo. Os resultados
– no caso, pretender uma prática Dizer que a Medicina de Famí- insatisfatórios em ambos cenários
humanista da medicina – mas é lia é um caminho para humanizar não deixam lugar a dúvida: se re-
preciso aprender a fazê-lo. Se com a medicina19, implica duas coisas quer ciência, formação, sistemática,
o tema da compreensão, anterior- aparentemente óbvias, mas suma- metodologia, enfim, arte médica
mente analisado, geravam-se mal- mente importantes. A primeira é para fazer Medicina de Família e
entendidos mascarados pelo que que a Medicina de Família é um ca- para humanizar a medicina.
denominamos boa vontade órfã minho, mas não é o único, existem Invocamos os filmes de novo,
de metodologia, no presente caso certamente outros. A Medicina de e aparece a cena de “Trezentos”
as imprecisões são do mesmo mo- Família não reivindica, em hipóte- (300, 2007), produção que certa-
do frequentes, até por existir uma se alguma, exclusividade neste em- mente não conto entre as minhas
dificuldade maior na avaliação das penho humanizante. A segunda é preferidas, uma mistura de filme
atitudes. Afinal, intuitivamente, é exatamente esta: a Medicina de Fa- histórico e concurso televisivo de
possível avaliar a boa vontade das mília tem realmente um caminho, luta livre, maquiada de comics. Mas
pessoas, mas torna-se muito mais isto é, um sistema, uma metodolo- a cena é impactante. Leónidas, rei
difícil medir “o grau de humanis- gia própria para abordar o tema da de Esparta, parte com seus 300 ho-
mo”. Ensinar algo difícil de medir, humanização. Este caminho huma- mens para enfrentar os persas de
mesmo de intuir, é de todo ponto, nizante tem como destino os desdo- Xerxes na famosa batalha das Ter-
mais trabalhoso. bramentos naturais do tripé onde mópilas. No caminho, encontra um
Definir o perfil do que seja Hu- se apóia a Medicina de Família: hu- exército que pretende somar-se na
manismo, saber de que Humanis- manizar a relação médico paciente, empreitada, visto que esse peque-
mo estamos falando, é o primeiro com ênfase no cenário da atenção no número de 300 é desprezível
passo para tentar ensiná-lo aos ou- primária; a humanização do ensi- perante os milhares de soldados
tros. Como já foi dito, o Humanis- no médico, na vertente educadora persas. Leónidas recusa a ajuda,
mo surge como uma fonte a mais da disciplina; e a humanização do porque não quer amadores lutando
de conhecimentos para o médico, próprio médico, promovendo a fa- do seu lado. “Qual é a tua profis-
como uma ferramenta de trabalho zer dele um profissional reflexivo e são?” – pergunta o espartano a um
imprescindível, que é tão impor- oferecendo-lhe recursos continua- soldado do exército de voluntários.
tante – não mais nem menos- como dos para incorporar esta postura. É “Ceramista, senhor” – responde o
os muitos outros conhecimentos e por isso a Medicina de Família um interpelado. “E você?” – continua
habilidades que adquire na esco- caminho de respostas sistemáticas perguntando Leónidas. “Eu sou
la médica. O humanismo, para o às questões que o desafio da huma- ferreiro”. A pergunta se sucede, e
médico, consiste essencialmente nização nos coloca diante. nova resposta: “Sou escultor”. Vol-
em adotar uma postura reflexiva A Medicina de Família como ta-se para os seus homens e per-
no seu atuar, adotar um verdadei- Disciplina Acadêmica, possuidora gunta: “Espartanos, qual é a vossa
ro exercício filosófico da profissão, de um corpo próprio de conheci- profissão?” Um grito estarrecedor
independente de qual seja o seu mentos, desenvolve a pesquisa e o das 300 gargantas dissipa qualquer
foco particular de atuação como ensino para aprimorar sua própria dúvida da competência bélica dos
médico16. metodologia20. É algo natural em espartanos. Leónidas sorri e olhan-
Precisamos, pois, de um sistema, qualquer área do conhecimento do o comandante dos voluntários
de uma metodologia consistente médico, mas, por vezes, tem sido afirma: “Parece que eu trouxe mais
para que os esforços humanizantes desprezado quando erradamente soldados do que você”. Há uma di-
não sejam estéreis. E, neste ponto, se pensa em Medicina de Família ferença enorme entre a boa vonta-
entende-se por que a Medicina de como se tratando exclusivamente de, e o profissionalismo.
Família, cujo sistema filosófico se de ações de política de saúde ou, Ian McWhinney18, um dos fun-
situa na órbita da prática reflexiva ainda pior, como um campo de tra- dadores da Medicina de Família

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É possível humanizar a Medicina?
Reflexões a propósito do uso do Cinema na Educação Médica

como disciplina acadêmica, aponta lia seria uma ótima ferramenta para os clientes da seguradora. Hoje vejo
os riscos que entranha negligenciar formar “bons médicos células tron- que eu estava coberto de razão, e
estes aspectos, onde se incluem a co – good stem cell doctors”, de onde que como ainda não conseguimos
pesquisa e o ensino. Sem estas sairiam futuros médicos de família medir – ou não queremos, porque
componentes – comenta McWhin- e ótimos profissionais de todas as hoje se mede tudo a toda hora – o
ney 21 – nunca passaremos das especialidades. que realmente interessa, a huma-
impressões aos fatos, não construi- nização não passa de um sonho por
remos uma metodologia que nos Quanto custa Humanizar a realizar.
permita ensinar este modelo aos Os projetos de humanização –
que venham depois, e ficaremos
Medicina? aqueles que têm consistência, atin-
transmitindo a impressão de que A tão almejada Humanização gem o núcleo da pessoa, apóiam-se
nosso modo de trabalhar depende da Medicina deve, pois, centrar-se num método sistemático – não
apenas do “carisma e da inspiração na pessoa sem distrair-se com hu- saem muitas vezes do papel, por-
indivi­dual”. Em faltando a sistemá- manizar os ambientes. Quando de que não são financiados adequa-
tica e a metodologia, que permita pessoas se trata, é preciso entendê- damente. Isto pode obedecer a
tornar o modelo matéria de apren- las, formá-las, compreende-las dois motivos: um deles, ingênuo,
dizado – fazer escola, como diziam e tudo isso requer metodologia, pensando que humanizar implica
os antigos – permanece-se no indi- sendo a boa vontade condição ne- uma atitude (o que é absolutamen-
vidualismo, o que acaba subtraindo cessária, porém insuficiente. Che- te correto) e as atitudes as pessoas
credibilidade por não ser possível gamos agora num ponto espinhoso as carregam consigo porque prova-
de reproduzi-lo e incorporá-lo na e delicado, consequência lógica das velmente as mamaram na infância
formação universitária. questões anteriormente ventiladas. e na sua educação familiar, e que
A questão aqui levantada, Afinal, qual é o investimento que é seria algo que tem de se dar por su-
que tem o seu foco de atenção na preciso fazer para humanizar? Isso posto. O engano aqui é tremendo,
preparação de docentes e na inte- tem preço? E como se quantifica? porque as pessoas não incorporam
gração de conhecimentos que se Vem a minha memória uma as atitudes de por vida: podem,
adquirem na escola médica, en- conversa que tive, há mais de 30 perfeitamente, abandoná-las em
contra na proposta da Medicina anos, quando inicie minha ativi- situações de cansaço, ou com as de-
de Família uma importante cola- dade profissional como médico. cepções que o dia a dia lhes traz. Por
boradora. Deste modo, a Medicina Minha interlocutora era a gerente exemplo, a falta de agradecimento
de Família na Universidade, seria de uma seguradora de saúde. Su- e a ausência de retorno diante da
um elemento integrante no pro- geri, com a ingenuidade de médico sua dedicação. A indiferença pe-
cesso formativo, e um ambiente de recém formado, que os honorários rante o esforço de alguém provoca
reflexão continua sobre o próprio dos médicos deveriam ser propor- uma terrível erosão das atitudes.
processo de formação médica. Um cionais à qualidade dos serviços O segundo motivo, que é o
espaço que facilitaria o florescer prestados, aqui incluídos a satisfa- mais grave, deve-se mesmo a uma
de um humanismo médico, atua- ção do cliente (paciente), os exa- falta de vontade política dos ges-
lizado, moderno, reflexo do equi- mes complementares solicitados tores, que não abrem espaço no
líbrio no binômio ciência-arte que (apenas os necessários, quando se orçamento nem na agenda para os
o médico deve representar. E deste conhece o paciente porque se lhe projetos de humanização. Eviden-
modo, a Medicina de Família, ins- acompanha habitualmente), a pro- temente, nunca se apresenta uma
talada no âmbito acadêmico, con- cura dos serviços de Pronto Socorro oposição aberta às iniciativas hu-
tribuiria não apenas para construir (muito menores em quem tem um manizantes, mas não são contem-
os futuros médicos de família, com médico de referência, como era o pladas no setor financeiro. Com
a qualidade universitária que de- caso dos meus pacientes). Lembro imensa frequência, comprovamos
les se espera, mas também como que ela sorriu, – um sorriso que sig- como congressos e fóruns de saúde,
uma ferramenta eficaz para formar nificava algo assim como ‘este jo- manejam polpudos orçamentos no
médicos que saibam estar atentos vem idealista ainda não sabe como referente à tecnologia – que é sem-
aos seus pacientes, lidar com eles, é o mundo aí fora’– e disse-me ta- pre o grande negócio – e deixam os
adaptar-se às suas necessidades, in- xativamente: “Doutor, isso que o temas que fomentam a humaniza-
dependentemente da especialidade senhor sugere é impossível de me- ção por conta de alguns idealistas
que os estudantes assim formados dir”. Não me convenceu; a minha que trabalham, na maior parte das
sigam depois. A Medicina de Famí- única reação foi deixar de atender vezes, gratuitamente. A injustiça

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Reflexões a propósito do uso do Cinema na Educação Médica

é enorme, porque o chamado do a água com prejuízo de saúde da muito mais fácil colocar a placa no
evento costuma incluir o termo população fazem uma oferta vo- saguão do hospital, ou emprestar o
‘humanização’, visto que tem ape- lumosa de 20 milhões de dólares, nome para o auditório. Pode até ser
lo; mas na hora de fazer as contas, pensando com isso lavar a culpa mais caro, mas certamente aparece,
o Oscar de protagonista vai sempre e deixar todo o mundo satisfeito. brilha, e isso se alinha bem com a
para a tecnologia. Erin (Julia) pára os pés dos advo­ vaidade humana.
Lembro do escândalo que al- gados que queriam resolver o caso Humanizar a saúde tem o seu
guns gestores demonstraram ao como quem dá uma esmola no fa- custo, e este vai acoplado às pessoas
descobrir que um grupo de palha- rol: “Nossos clientes são gente sim- que tem competência em gerenciar
ços, que animava em grande estilo ples, mas sabe dividir. Essa quantia, o projeto, não apenas ao visual de
uma enfermaria de crianças com dividida entre todos, é um lixo. hotelaria como equivocadamente
câncer, atuavam profissionalmen- Queremos gente feliz, que não seja se quer pensar, nem mesmo aos
te. A descoberta deu-se de modo obrigada a fazer histerectomia aos sistemas de tecnologia de informa-
fortuito: alguém se aventurou a 20 anos, como uma delas teve de ção. Querer fugir disso é insensa-
deslizar uns trocados, a modo de fazer, ou que não tenham a coluna tez e gestão deficiente, como seria
gorjeta, no bolso de um dos palha- deteriorada, como outro. Por tan- contratar um regente de orquestra
ços. Este se virou para o benfeitor to, pensem quanto vale sua colu- barato, porque já se gastou demais
e comentou: “Não precisa disso, na, seu útero, multipliquem esse com os instrumentos e com o tea-
meu senhor. Se quiser fazer uma número por 100 antes de oferecer tro; ou um técnico de futebol medí-
contribuição substancial, pode falar outra proposta ridícula”. ocre, porque o salário dos jogadores
com o meu empresário que é aque- A segunda cena traz Harrison consumiu o orçamento. As conse-
le que está lá no canto esquerdo”. Ford, em Uma Segunda Chance quências desse corte de despesas
O mundo desabou. “Vocês não são (Regarding Henry, 1991). Outro fil- são fáceis de adivinhar.
voluntários? Quer dizer que fazem me de advogados, onde o protago-
tudo isto por dinheiro?” O palha- nista acaba de sair do coma, após Queremos, de fato, ser
ço retrucou: “Somos profissionais, levar um tiro no cérebro. Acorda
humanizados?
como certamente o senhor também outro homem, uma lavagem mo-
é. Ou, por acaso, o senhor trabalha ral, para o bem. Começa a revisar Chegamos ao final das nossas
com base na gorjeta?” os processos que o seu escritório le- reflexões sobre a Humanização. E,
Voltamos aos filmes. Encontro vava e assusta-se com a corrupção nesta altura, ao sabor do que já exa-
nos meus arquivos duas cenas que na qual estava envolvido. Levanta minamos, não há mais como fugir
utilizo pouco, até porque o tema o tema num almoço com os cole- da pergunta chave, que entranha
dos custos da humanização não é gas: “Tudo isso que fizemos não é um compromisso vital: fala-se de
tópico frequente nas minhas con- correto. Prejudicamos pessoas, humanização, discute-se a sua im-
ferências. O público de estudantes ocultamos documentos, mentimos portância, mas... será que, de ver-
e professores, e de outros profissio- no processo...”. Os colegas sorriem: dade, queremos ser humanizados?
nais da saúde pouco podem fazer “Para com isso Henry, guarda isso. O tamanho do compromisso que
por mudar esta realidade; e eles são O que fizemos é pagar pelo almoço implica humanizar-se já se desenha
a maior parte das vezes, os que têm que estamos desfrutando”. nos traços das considerações que
a paciência de me ouvir. Mas, em se Quando a humanização chega nos ocuparam até o momento.
tratando de gestores – dos que têm ao setor de contas a pagar, provoca Ensinar humanismo é fomentar
poder de decisão no setor financei- uma revolução. Há quem se escan- a reflexão sobre a condição huma-
ro – não hesito em utilizá-las. Tam- dalize –“Mas,... este é o preço? Não na, situação que envolve não ape-
bém é verdade que este público não pensei que isto custaria tanto”. Há nas o paciente, como os próprios
me convida para falar; ou, melhor quem arquive a fatura no fundo interessados: alunos e professores.
dizendo, me convida para falar a de uma gaveta. Afinal, esse tipo de Não é um processo inócuo, onde
outros, nunca para eles. Devem ter projetos não tem visual nem ser- quem o estuda se situa em posição
seus motivos. vem para se promover. Ninguém isenta. Legisla-se em causa própria,
A primeira cena é por conta consegue colocar uma placa com e as conclusões comprometem, em
de Julia Robert em Erin Brocko- o próprio nome num projeto que primeiro lugar, o próprio legislador
vic – Uma Mulher de Talento (Erin forma pessoas e tira delas o seu me- – o estudioso –, que não tem como
Brockovic, 2000). Os advogados da lhor, pois é disso que se trata quan- furtar-se às consequências das suas
empresa acusada de contaminar do se quer humanizar a saúde. É próprias reflexões. E assim, o que

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Reflexões a propósito do uso do Cinema na Educação Médica

muitas vezes começou como pouco equivalente enunciar os princípios O que de melhor pode se fazer
mais que uma curiosidade cultural, do bem agir –a modo de manual de com o cinema é provocar a reflexão
ou como necessidade instrumen- boas maneiras- ou levar em consi- dos participantes. Este poder torna-
tal da profissão que se quer exercer, deração “o sabor desses princípios” se sobremaneira evidente com a fi-
debruça-se sobre a própria vida, e tentar torná-los palatáveis. gura do clássico “O Rei Leão” (The
envolvendo-a e interferindo sobre Aqui pode se encontrar o fra- Lion King, 1994). Simba está na boa
os próprios valores e perspectivas. casso de tantas tentativas de “ética vida, e não quer assumir que cres-
A competência que buscamos por atacado”, “cursos intensivos ceu. O macaco lhe interroga e lhe
na formação dos futuros médicos de final de semana”, ou mesmo a pergunta “Quem é você?” E esta
implica Humanismo. Sem Huma- pouca eficácia dos códigos de éti- pergunta vira do avesso o confor-
nismo, não há competência possí- ca de muitas profissões: falta-lhes tável Hakuna Matata em que Sim-
vel. Formar médicos humanistas “sabor”, e sobram-lhes conceitos ba vivia para trazê-lo à realidade.
vai muito além de dar um verniz e regras que, por outro lado, são A seguir, o macaco lhe mostra o
humanitário ao futuro medico, mas amplamente conhecidas. Se não caminho para encontrar o seu pai.
instalar um processo de reflexão se praticam não é por desconheci- Simba tem dificuldade porque não
que lhe permita, de modo continuo, mento, mas por falta de motivação. está acostumado a refletir e, no
reavaliar sua opção vocacional, sua Os sentimentos são, pois, como o início, apenas vê a própria imagem
resposta como pessoa e como pro- tempero que facilita a ingestão do refletida na água. “Olhe com mais
fissional. Um elemento essencial alimento, conferindo um toque atenção, Pense. Reflita”. E chega
que se insere na alma do profis- especial e personalíssimo que faz o grande susto: “Simba, você me
sional e se faz vida da sua vida22. do comer – por seguir a metáfora esqueceu. Sim, você me esque-
É neste momento, onde se re- ceu, porque esqueceu quem você
– algo que vai muito além da sim-
quer do profissional – seja estu- é. Você não é um gatinho, mas o
ples nutrição. E os temperos – que
dante, médico jovem, profissional meu filho, o verdadeiro Rei Leão”.
implica elaboração de molhos, con-
maduro – uma adesão voluntária O que de melhor se pode fazer é
dimentos e muita arte – devem ser
que toma corpo na própria vida, promover a reflexão, para que
preparados com alma de artista.
onde a educação com o Cinema o jovem se vá construindo. Algo
A educação da afetividade requer
tem um papel importante, porque muito próximo ao que o macaco
arte de quem educa, criatividade
facilita a reflexão e torna o caminho Rafiki faz com Simba. Não são as
para adaptar-se às necessidades de
mais claro; não o torna indolor – respostas as que devem vir pron-
cada um, ao gosto de cada paladar
como se as emoções anestesiassem tas, fabricadas, mas sim as pergun-
a dor que implicam as mudanças da – como fazem as mães e, nem dizer, tas a modo de provocações que o
vida para melhor – mas o faz visível, ás avós – e que conquista a von- professor, o pai, o formador deve
diáfano, porque injeta motivação. tade, a nutre, e estimula para que continua e serenamente dirigir ao
Despontam, com clareza, os moti- cada um de o melhor de si. A afe- se interlocutor. A ficha tem de cair
vos pelos quais vale a pena mudar. tividade modula o conhecimento por si só – por utilizar uma lingua-
Educar através do Cinema dando-lhe um toque pessoal, como gem moderna. E, nesta empreitada
nos coloca no âmbito afetivo on- um prisma que amplifica, focaliza, de provocar reflexões, o Cinema é
de o personalismo se impõe como dá zoom, destaca ou mesmo defor- um prato cheio, uma oportunidade
condição eficaz de aprendizado e ma a rigorosa objetividade dos con- excelente.
assimilação de atitudes. Explica- ceitos e das ideias. Deve-se esperar O cinema faz refletir, as cenas
mos. Não deve haver muita dife- de quem pretende educar as emo- são verdadeiros questionadores.
rença em expor os conceitos da ções que entre em sintonia com Lembremos de “O Resgate do Sol-
física quântica, da astronomia, ou todo esse mundo subjetivo, que é dado Ryan” (Saving Private Ryan,
da fisiopatologia do câncer gástrico afinal criação e arte. 1998). Tom Hanks, o capitão, está
de modo objetivo ou levando em As possibilidades educacionais morrendo. O soldado Ryan inclina-
conta os sentimentos, que dificil- do Cinema estão amplamente se sobre ele. E o capitão apenas lhe
mente modificarão as informações comentadas – com exemplos de diz; “James, faça por merecer”. 40
científicas. Mas quando se trata de cenas concretas e de comentários anos depois, James Ryan compa-
promover atitudes, tomar decisões, pertinentes – em publicações an- rece ao cemitério acompanhado da
provocar a reflexão, estimular a teriores11. Incluímos aqui alguns sua família: mulher, filhos e netos.
conduta ética, construir, enfim, a exemplos para finalizar estes co- Esse é o seu curriculum vitae, o que
personalidade, não é em absoluto mentários. ele andou fazendo nestes anos. E

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Reflexões a propósito do uso do Cinema na Educação Médica

vem prestar contas: “Todos os dias manhã, tirar o pijama, e colocar promover novos Samurais, mes-
penso no que você me disse aquele uma gravata. Se esse motivo não mo com tecnologia moderna, de
dia na ponte. Procurei viver a mi- se encontra, talvez o melhor seja entre os jovens soldados que ficam
nha vida do melhor modo possí- mesmo ficar na cama. Mas, sim, a atônitos vendo a valentia daque-
vel. Espero que pelo menos diante emoção tem o seu papel, funciona les no combate. Quando acabou a
dos teus olhos eu tenha feito por como motor de arranque, como conferência e os comentários das
merecer aquilo que todos vocês fi- um atalho que chega ao coração cenas, antes de sair, um aluno veio
zeram por mim”. E, não satisfeito, e abre as portas onde a racionali- até a frente, me segurou pelo braço
procura a avaliação doméstica da dade pode depois ir construindo e me disse com os olhos brilhando:
sua vida, de que a sua vida prestou, os alicerces dos motivos profissio- “Professor, eu quero ser um Samu-
foi útil, e convoca a sua mulher e nais. Isto é particularmente nota- rai!!!”.
lhe diz; “Diga que sou um homem do nos jovens. A educação com o Vivemos tempos em que o hu-
bom, , que tive uma vida digna”. O cinema arranca desejos profundos manismo e humanização são tema
capitão – que era na vida civil um do jovem, motiva-o para grandes habitual de conversas, mormente
professor – educou James Ryan sonhos, para novos desafios. Lem- quando os interlocutores estão de
com essa simples frase – “faz por bro uma ocasião, num congresso algum modo congregados na área
merecer” – e com o seu exemplo de universitários, quando proje- da assistência à saúde. Cabe aos
de vida. Para qualquer um que me- távamos a cena da batalha em “O educadores e pesquisadores da
dite nesse contexto, baste lembrar- Último Samurai” (The Last Samurai, área, o compromisso de fazer do
lhe que faça por merecer, para que 2003). Aqueles homens medievais, Humanismo Médico, um caminho
tudo venha à tona na cabeça e no valentes, enfrentam as modernas real, concreto e prático, que pos-
coração. metralhadoras, com a coragem e a sa ser percorrido pelo estudante
Evidentemente nem tudo pode espada. Mas a atitude de serviço – de medicina na construção da sua
se apoiar na emoção. É necessário parece que esse é o motivo de ser vocação profissional. Um caminho
ter convicções, princípios, motivos dos Samurais, servir – e de chegar que possibilite o resgate histórico e
para fazer as coisas ou, como cos- até o fim, arranca do inimigo o re- a integração desse elemento essen-
tumo dizer aos meus alunos, um conhecimento, a veneração e até cial, condição sine qua non na razão
motivo sério para sair da cama de a vitória moral. Esse é o modo de de ser médico.

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Recebido em 29 de julho de 2010


Aprovado em 23 de agosto de 2010

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