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A opinião pública às vésperas

do golpe de 1964
Demian Bezerra de Melo

Pierre Bourdieu, em texto co- Lavareda, em comunicação ao XIII En-


nhecido, não teve muitas dúvidas ao contro Anual da Associação Nacional
dar-lhe o título de “A opinião pública de Pós-Graduação em Ciências Sociais
não existe” (1983), um ponto de refe- (citada em BANDEIRA, 2001: 185), os
rência na abordagem crítica do tipo de dados também informam a enorme
documentação que esta edição da re- aceitação às propostas reformistas de-
vista Marx e o Marxismo apresenta aos fendidas por João Goulart e pelo círculo
seus leitores. As famosas pesquisas de político que o apoiava, dos trabalhistas
opinião pública feitas pelo Ibope às aos comunistas, passando pelos cris-
vésperas do golpe de Estado de 1964, 1
tãos progressistas e algumas alas do
nesse meio século de distância, hoje Partido Social Democrático (PSD). So-
nos colocam diante de um artefato bre os comunistas, as amostragens são
que pode contribuir para a descons- também reveladoras de uma ampla re-
trução da narrativa oficial do regime jeição à proposição de legalização do
ditatorial militar brasileiro. Afinal, em Partido Comunista, o que curiosamen-
inúmeros discursos, não é comum es- te parece dar razão à já mencionada
cutar que “o povo brasileiro pediu a narrativa oficial da ditadura.
intervenção dos militares para deter a Afinal, é preciso ter claro que o
ascensão do comunismo no Brasil”? apoio à legalização do Partido Comu-
Inéditos por mais de vinte anos nista implicava para muitos, mesmo
– notadamente, ao longo de todo o que de forma mediada, algum grau
período ditatorial – o relatório refe- de simpatia pela agremiação e, mais
rente à pesquisa realizada entre 9 a importante, pela proposta comunista
26 de março de 1964 – num universo (ainda que a compreensão desta pu-
de 500 pessoas entrevistadas no Rio e desse ser difusa). No mundo do século
em São Paulo, e 400 nas outras capitais XXI, onde para a maioria das pessoas
(Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Ho- é mais fácil acreditar na destruição da
rizonte, Curitiba e Porto Alegre) – de- vida na terra do que no fim do capita-
monstrou a enorme popularidade do lismo, a opção pelo comunismo como
presidente deposto. Reveladas só em proposta societária pode parecer te-
1989 pelo cientista político Antonio merária, e isso não só é resultado de

1
“Resultados comparados da pesquisa de opinião realizada nas cidades de Fortaleza, Recife, Sal-
vador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.”, 9 a 26 de março de 1964.
Fundo Ibope, MR/0277, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas (SP).
Demian Bezerra de Melo

campanhas ideológicas da direita, mas desconhecido (o eventual pesquisa-


principalmente do próprio fracasso dor do Ibope) uma opinião favorável
das emblemáticas tentativas de cons- à legalização do PCB. Sem considerar
trução de “um outro mundo possível”. as condições de produção de tal docu-
Todavia, nos anos 1960 o cenário era mento, o mesmo pode se prestar tam-
bem outro. Mesmo lá não se tratava bém à mistificação, quase como fosse
de uma opção qualquer, equidistan- uma espécie de retrato dessa coisa
te a outras alternativas, como se estas chamada “opinião pública”. 215
estivessem dispostas num hipotético Ora, se o revisionismo histo-
supermercado de ideologias políticas, riográfico, há dez anos , encantou os
como se a opção pelo conservadoris- meios midiáticos com a reabilitação
mo católico, pela apatia ou mesmo daquela narrativa oficial no que tange
pelo fascismo resultasse no mesmo à ideia de que também Goulart preten-
tipo de consequência para os sujei- dia um golpe, ou mesmo que “as es-
tos sociais que aquela pela revolução querdas não tinham apego à democra-
socialista. É claro, cidadãos de espíri- cia”, nos últimos anos essa operação
to democrático, e até mesmo pessoas revisionista diz estar inovando nosso
não simpáticas ao próprio governo conhecimento sobre aquele período
Goulart, apoiavam o retorno à legali- apontando para a existência de um
dade da agremiação comunista, sem “silêncio” (fabricado) sobre o apoio da
falar do restante do amplo espectro da sociedade ao golpe e à ditadura.
esquerda daquela época (trabalhistas, Em mais de um lugar já tive-
socialistas, trotskistas, católicos da AP mos a oportunidade de desenvolver
etc.). Ideia anatematzada pelo notici- essa crítica, e aqui não seria o caso de
ário político e nos sermões das mais retomá-la (Cf. MELO, 2013 e 2014). A
longínquas paróquias dos grotões do intenção aqui é apenas disponibilizar
Brasil naquela época, no mês de mar- essa preciosa documentação para a
ço de 1964 não era assim uma respos- consulta dos pesquisadores e interes-
ta simples afirmar para um indivíduo sados em geral.

Referências
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil, 1961-
1964. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: Ed.UNB, 2001.
BOURDIEU, Pierre. A opinião pública não existe. In. Questões de sociologia. Rio de Janei-
ro: Marco Zero, 1983, p.173-182.
MELO, Demian Bezerra de. Revisão e revisionismo historiográfico: os embates sobre o
passado e as disputas políticas contemporâneas. Marx e o Marxismo, Niterói, v.1,
pp.49-74, 2013.

Marx e o Marxismo v.2, n.2, jan/jul 2014


A opinião pública às vésperas do golpe de 1964

__________. O golpe de 1964 e meio século de controvérsias: o estado atual da questão.


In. MELO, Demian Bezerra de (org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao re-
visionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014, p.157-188.

Recebido em abril de 2014


Aprovado em maio de 2014
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Marx e o Marxismo v.2, n.2, jan/jul 2014

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