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EDUCAÇÃO AMBIENTAL E HERMENÊUTICA: UMA VIA COMPREENSIVA DE

ACESSO AO MEIO AMBIENTE

Isabel Cristina Moura Carvalho

1. Interpretação: para além das "trilhas interpretativas"

São muito conhecidas e utilizadas no contexto da educação ambiental as


"trilhas de interpretação"1[1]. Nesta atividade o educador opera transmitindo
informações relativas àquele espaço natural, objeto da trilha interpretativa. Neste
caso, costumam ter um grande peso os conhecimentos oriundos da biologia sobre o
funcionamento dos ecossistemas, a composição dos diversos elementos da
natureza e suas interações. As trilhas interpretativas ilustram muito
adequadamente o horizonte epistemológico de grande parte da educação ambiental
contemporânea, fortemente marcada pela tradição explicativa das ciências naturais.

Em contraposição a essa perspectiva explicativa da educação ambiental, gostaria


de tematizar a ação da educação ambiental (EA), enquanto ação interpretativa e
via compreensiva de acesso ao meio ambiente2[2]. Para tanto, há que se deslocar
esse fazer educativo de sua acepção técnica e problematizar sua via régia posta nas
ciências naturais, para depreender seus possíveis sentidos, a partir de uma
perspectiva filosófica hermenêutica, ampliando assim o conceito de interpretação
no contexto da educação ambiental.

O conceito de interpretação ocupa um lugar central nas correntes da filosofia


e das ciências sociais que tem buscado incorporar o referencial filosófico
hermenêutico. Neste contexto a hermenêutica vem sendo pensada como um
método de investigação voltado para a compreensão/ interpretação dos sentidos
produzidos historicamente.

1[1] Esta técnica em EA consiste em informar e problematizar temas ambientais a partir


do contato direto com o meio ambiente. A interpretação ambiental é muito usada como
recurso educativo em parques naturais, reservas florestais e outros sítios paisagísticos.
Consiste em, nestes ambientes, preestabelecer um roteiro para caminhada, por onde um
grupo de visitantes ou alunos é conduzido por um guia, ou auto-guiado por um roteiro
explicativo.

2[2] A tradição compreensica, onde se insere a hermeneutica, se opõe ao método


explicativo, modelo das investigações em ciências naturais. Como apontou Flickinger
(ANPED,1997) "Denominada com o termo hermenêutica, deveríamos falar de uma
doutrina de compreensão, ou seja, de uma postura que busca sentido através da
interpretação dos fatos, não se contentando com sua mera explicação".
Pretendo tomar a EA como uma prática interpretativa por excelência, no sentido
lato deste conceito, e discutir as conseqüências pedagógicas desta perspectiva.
Para tanto, farei uma breve incursão no plano teórico com objetivo de situar as
bases filosóficas que permitem operar com um conceito de interpretação que toma
o meio ambiente como signo linguístico.

Na parte final deste trabalho, proponho uma análise das interpretações


estruturantes do ideário ambiental contemporâneo, marcado pela tensão entre o
repúdio e o enaltecimento da natureza.

2. O conceito de interpretação em hermenêutica e o fim da verdade


como correspondência com o real

Inicialmente a hermenêutica se constituiu como uma técnica de


interpretação de textos que remonta a tradição exegética voltada para a
compreensão dos textos bíblicos. Como técnica de interpretação também encontrou
aplicação na filologia e no direito. Como aponta Ricoeur (1978), embora a
hermenêutica estivesse relacionda à filosofia clássica e às ciências históricas no
final do século XVIII e início do século XIX, é apenas nas primeiras décadas do
século XX, com Dilthey e Schleiermacher que o problema hermenêutico transcende
sua dimensão de técnica interpretativa e se torna problema filosófico.

Destaca-se atualmente, com a contribuição dos hermeneutas


contemporâneos como Gadamer, Ricoeur, Vattimo, entre outros, a condição da
hermenêutica moderna como um método de análise que, além da filosofia, vai
influenciar importantes correntes em ciências sociais e psicanálise.

É enquanto método filosófico que a hermeneutica vai dar uma contribuição


fundamental para a grande guinada do pensamento contemporâneo que Richard
Rorty (1990) nomeou como "giro linguístico". A expressão "giro linguístico" vem
sendo usada por diversos autores para designar "o abandono do paradigma da
filosofia da consciência, para centrar-se no signo como único ponto de referência do
significado e do sentido" (Aramayo,1995: 288). O giro linguístico, portanto,
demarca fundamentalmente um ponto de clivagem com as bases filosóficas do
projeto moderno, que Heidegger chamou de pensamento metafísico3[3]. Isto
significa a ruptura com as tradições filosóficas que deram sustentação ao ideal
científico da modernidade ocidental, especialmente o idealismo(platônico) e o
racionalismo (kantiano e cartesiano).

O pensamento cientifico, baseado nos procedimentos objetificadores do


método experimental, sustenta um conceito de verdade como correspondência com
o real que tentou impor-se como critério de validade para todas as áreas do

3[3] Habermas (1990) define com precisão e síntese as tradições filosóficas que
constituem o chamado pensamento metafísico: "Caracterizo como metafísico o
pensamento de um idealismo filosófico que se origina em Platão, passando por Plotino e
o neoplatonismo, Agostinho e Tomás, Cusano e Pico de Mirandola, Descartes, Spinoza
e Leibniz, chegando até Kant, Fichte, Shelling e Hegel". Destaca como aspectos comuns
do pensamento metafísico o pensamento da identidade, o idealismo e a filosofia da
consciência.
conhecimento. No plano empírico essa correspondência foi posta na correlação
entre um dado e uma lei geral. No plano filosófico se expressa na correspondência
entre representação (o conceito) e coisa mesma ( o real).

Alguns setores de ponta das ciências naturais, especialmente a física pós


newtoniana, e uma parte significativa da ciências humanas tem se empenhado na
crítica ao paradigma racionalista e idealista que deu as bases de justificação da
ciência moderna. Com isto, tem sido posto sob suspeita a idéia de verdade como
correspondência com o real. Dito de outra forma, tem sido posto em cheque a
crença no pensamento como apreensão de um real inequívoco e "verdadeiro". Esta
crítica epistemológica de longo alcance e profundas conseqüências encontra seus
precursores em Nietzsche e Heidegger. Mais contemporaneamente, o debate tem
avançado com o trabalho de hermeneutas como Gadamer, Vattimo, Rorty, Derrida,
Ricoeur, Geertz, entre outros4[4].

Ao constatar os efeitos da via hermenêutica na reconfiguração do


pensamento social, o antropólogo Geertz refere-se a "giro cultural" e também a
"giro interpretativo". Constata que muitos cientistas sociais tem renunciado a um
ideal de explicação baseado em leis, exemplos, forças e mecanismos, e estão cada
vez mais compreendendo a vida social como organizada em termos de símbolos,
onde se o conhecimento se produz como interpretação, a partir do que chama de
construções ou analogias explicativas5[5]:

"O recurso das humanidades às analogias explicativas das ciências sociais é uma
prova da desestabilização dos gêneros e da ascensão do giro interpretativo, e sua
conseqüência mais visível é a transformação do estilo discursivo dos estudos
sociais. Os instrumentos de validação do pensamento estão mudando e a sociedade
se apresenta cada vez menos como uma máquina ou como um quase-organismo, e
mais como um jogo sério, um teatro de rua, ou como um texto dirigido" (Geertz.
1994:35).

A hermenêutica, diferentemente das tradições racionalistas que pretendem


um domínio completo do sentido real de seu objeto, vai radicalizar a idéia de
compreensão como interpretação. Desta forma, a hermenêutica se apresenta como
método de produção de conhecimento baseado na argumentação narrativo-
interpretativa (Vattimo, 1992: 155). Segundo Vattimo:

4[4] Segundo Aramayo (1995: 289), esta ruptura epistemológica engloba diferentes tradições
entre as teorias que se situam dentro de um referencial linguístico: "Entre estas haveria que
mencionar a tradição anglosaxônica, influenciada por Wittgeinstein, J.L. Austin e G. Ryle; a
francesa, que parte de Saussure e chega até Derrida; e a alemã, que culmina em Gadamer e,
de certo modo, também em Apel e Habermas"

5[5] Para Geertz (1994: 34) "A explicação interpretativa - e se trata de uma forma de
explicação não de uma glosografia exaltada - centra sua atenção no significado que as
instituições, ações, imagens, expressões, acontecimentos e costumes têm para aqueles
que possuem estes costumes, instituições etc. O resultado disto não se expressa
mediante leis como a de Boyle, ou em forças como as de Volta, ou através de
mecanismos como os de Darwin, mas sim por meio de construções como as de
Burchhard, Weber ou Freud: análises sistemáticas do mundo conceitual em que vivem
os condottieri, os calvinistas ou os paranóicos".
"La hermenêutica misma es solo interpretación: no funda su pretensión de
validez en un supuesto accesso a las cosas mismas sino que, para ser
coherente con la crítica heidggeriana de la idea de verdad como
correspondencia, en la cual se inspira, puede concebir-se a si misma solo
como la respuesta a un mensaje, como la articulación interpretativa de la
propria pertenencia a una tra-dicíon" (Vattimo, 1992: 157)".

2.1. A linguagem como experiência humana do mundo

Ao eleger a linguagem como meio privilegiado da experiência humana do


mundo, o método hermenêutico opera com um conceito de linguagem onde esta
não é transparente, óbvia, e onde os sentidos não estão nunca dados previamente,
mas se constituem numa relação dialógica de interpretação. Assim, o sujeito não é
uma consciência solitária a desvendar sentidos prontos, mas ele próprio fala e é
falado pela linguagem, constituindo-se como sujeito no mundo simbólico.

Para Gadamer, "a linguagem é o meio universal em que se realiza a


compreensão mesma. A forma de realização da compreensão é a interpretação.
Todo compreender é interpretar e toda interpretação se desenvolve em meio a uma
linguagem que pretende deixar falar o objeto e ao mesmo tempo a linguagem
própria de seu intérprete". Para o autor "a linguagem é onde se encontram o eu e o
mundo"(Gadamer, 1993:467 e 567)". A linguagem é aqui o meio onde se realiza a
simultaneidade entre a análise e a aplicação, entre a interpretação e compreensão,
e também entre o eu e o mundo ou seja, entre sujeito e objeto. Deste modo, "la
interpretación no es un acto complementario y posterior al de la compreensión, sino
que compreender es siempre interpretar, y en consecuencia la interpretación es la
forma explicita de la compreensión" (Gadamer, 1992: 378).

A perspectiva hermenêutica expõe o intérprete a todos os riscos de um


mundo plural, que flue numa multiplicidade de sentidos constituídos por sua
interpretação. No entanto, é importante destacar que as condições da interpretação
não devem ser subsumidas à mera subjetividade do intérprete, mas este deve ser
entendido a partir de sua condição histórica e inserção num contexto ideológico
específico. Gadamer chama atenção para a importância da historicidade da
compreensão como princípio hermenêutico:

"La lente de la subjetividad es un espejo deformante. La autoreflexión del


individuo no es mas que una chispa en la corriente cerrada de la vida historica. Por
eso los prejuicios de un individuo son, mucho más que sus juicios, la realidad
histórica de su ser" (Gadamer, 1993: 344).

3. A EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO PRÁTICA INTERPRETATIVA

Educar, compreender, tornam-se desde uma perspectiva hermenêutica, uma


aventura onde o sujeito e os sentidos do mundo vivido estão se constituindo
mutuamente na dialética da compreensão/interpretação. Perde-se assim a
segurança de uma consciência observadora e decodificadora que promete
correspondência e controle dos sentidos. O sujeito-observador, situado fora do
tempo histórico, estaria perseguindo os sentidos verdadeiros, reais, permanentes e
inequívocos. Enquanto o sujeito-intérprete estaria diante de um mundo-texto,
mergulhado na polissemia e na aventura de produzir sentidos, a partir de seu
horizonte histórico.

Esta perspectiva implica na recusa da dicotomia entre o plano do


pensamento e o da ação. Os sentidos produzidos por meio da linguagem são a
condição de possibilidade do agir no mundo. Não há ação possível num vácuo de
sentido. Toda ação decorre de certa compreensão/interpretação, de algo que "faz
sentido", num universo habitado por inúmeras chaves de sentido. Assim como
interpretar não seria um ato póstumo e complementar à compreensão; agir não
corresponderia à conseqüência - enquanto desdobramento, ato segundo ou
posterior à reflexão-, mas a ação estaria implicada no ato mesmo de
compreender/interpretar.

As conseqüências desta abordagem em EA são discutidas num interessante


artigo de Flickinger(1994). O autor propõe a compreensão/interpretação
hermenêutica como possível saída para o perigoso dualismo que está na base da
percepção corrente do ambiente físico-natural, cindido entre as leis das ciências
naturais e a lógica dos interesses econômicos e sociais.

"Se buscarmos uma saída que possa superar o dualismo apontado, levando-
se em conta o fato da própria educação reforçar a fragmentação disciplinar
das ciências ambientais, não podemos fugir de duas condições. Primeiro,
seria necessário revincular as questões ambientais ao agir humano que as
originou; e segundo, tal revinculação do homem ao meio ambiente teria que
recorrer a uma postura científica não mais objetificadora, portanto, não mais
reduzida ao modelo de explicação causal de fatos, usadas pelas ciências
"duras" (grifo meu).

Destaco sobretudo como uma pista importante aquela apontada por


Flickinguer quando se refere a revinculação das questões ambientais ao agir
humano que as originou. A busca dos sentidos da ação humana que estão na
origem dos processos sócio-ambientais parece sintetizar bem o cerne do fazer
interpretativo em educação ambiental. Ao evidenciar os sentidos culturais e
políticos em ação nos processos de interação sociedade-natureza, o educador seria
um intérprete das percepções - que também são, por sua vez, interpretações -
sociais e históricas mobilizadoras dos diversos interesses e intervenções humanas
no meio ambiente.

Bem ao contrário de uma possível visão objetivista de interpretação, onde


interpretar o meio ambiente seria captá-lo em sua realidade factual, descrever suas
leis, mecanismos e funcionamento, trata-se na interpretação hermenêutica de
evidenciar os horizontes de sentidos histórico-culturais que configuram as relações
com o meio ambiente para uma determinada comunidade humana e num tempo
específico.

Com isto o que se está abandonando é um conceito "realista" ou


"naturalista" de meio ambiente, onde este é reduzido as suas condições e leis
físicas de funcionamento. Ao adotarmos uma perspectiva interpretativa
hermenêutica a EA passa a operar com um conceito de meio ambiente constituído
como realidade lingüística, passível de diversas leituras. E isto é o que permite
pensar o meio ambiente como um texto. A "realidade ambiental", neste caso, não
se distingue da realidade da interpretação ambiental. Como podemos ver, não se
trata do conceito objetivo de realidade que supõe o real como tendo uma existência
em si mesmo, independente dos sujeitos e da história.

Numa EA interpretativa não poderia estar ausente a dimensão da


historicidade das questões ambientais. O engajamento na historicidade é tratado
por Grüm (1995) em sua análise sobre os pressupostos epistemológicos da EA. Seu
trabalho aponta como um traço marcante da EA uma tendência ao desenraizamento
do contexto sócio-histórico que nomeia como uma "vontade de desacoplamento".

Este "desacoplamento", segundo Grüm(1995), é representado por um


movimento pendular que levaria a EA a oscilar entre a nostalgia de um passado
perdido (arcaísmo) e a busca de um futuro tecnologicamente saneado - igualmente
mítico. Para o autor,

"a hipostasiação, seja do passado ou do futuro reflete a perda da condição


histórica. Retornar a um passado idílico ou arremessar-se brutalmente em direção a
um suposto futuro tecnológico - ambas as posturas fundamentam-se no dualismo
lógico-estrutural presente entre a 'tradição' e o 'tipicamente moderno'".

O problema de um discurso ambiental "desacoplado" das injunções sócio-


históricas é que muito facilmente pode alinhar-se a posições politicamente
conservadoras na medida em que não mobiliza a percepção das diferenças de
valores que se confrontam no ideário ambiental. Ao contrário, convida a um
consenso de observadores, não implicados - ou impotentes - diante do problema
que se apresenta6[6].

3. AS VÁRIAS NATUREZAS DA NATUREZA: PERCORRENDO ALGUMAS


MATRIZES INTERPRETATIVAS DO AMBIENTE NATURAL

De acordo com a preocupação hermenêutica que vimos expondo,


gostaríamos de propor uma breve tematização de estruturas de significado, que
também chamaremos matrizes interpretativas, organizadoras de sentidos atribuídos
à natureza tanto como domínio ameaçador a ser domado pela cultura, quanto
reserva do bom e do belo. Esta tensão interpretativa - que no ecologismo aparece
na polaridade antropocentrismo e biocentrismo - é estruturante de boa parte das
representações e sentimentos de nosso ideário ambiental7[7].

6[6] Um exemplo dos efeitos de uma interpretação que vem se descolando das condições
sócio-históricas de produção de sentido é o consenso encobridor que tem se formado em torno
do conceito de desenvolvimento sustentável. A despeito de toda a disputa ideológica que
permanece na origem deste conceito, o conflito de interpretações sobre os critérios de
sustentabilidade bem como os valores políticos e éticos nas diferentes acepções deste
conceito, tem sido sistematicamente apagado pela ampla generalização e esvaziamento do
termo.

7[7] Estou usando o termo ideológico no sentido amplo de universo de valores culturais
que englobam sua acepção política embora não se restringe a esta. Estou excluindo,
portanto, as definições de ideologia que tomam o conceito como mistificação ou
distorção do real.
3.1. A natureza domada

A natureza como domínio do selvagem, ameaçador e esteticamente


desagradável em contraposição à civilização é a interpretação que está na base do
ethos moderno antropocêntrico. Com a Renascença se afirma um modelo urbano
em contraposição ao padrão medieval, camponês e teocêntrico, a partir de então
designado como "inculto". Elias (1990) descreve com admirável sensibilidade o
processo de profndas mudanças culturais que inaugura a modernidade e o nomeia
de processo civilizatório. Esta grande mudança cultural foi capitaneada por uma
aristocracia que, buscando diferenciar-se da nobreza feudal, investia em novos
valores culturais e padrões de comportamento que formariam as bases ideológicas
da modernidade, reinvindicando para si um papel civilizatório.

A idéia de civilidade e cultura era então construída como o polo oposto da


esfera associada à natureza, ao selvagem, à barbárie, à desrazão e à ignorância. A
civilização estava relacionada a valores ilustrados como cultivo, polimento,
aperfeiçoamento, progresso, razão. E esse era um processo que se aplicava tanto
aos costumes sociais quanto ao próprio cultivo de uma subjetividade individual.
Como afirma Elias (1990), "O que estava em questão, era a domesticado da
animalidade. A natureza das funções corporais. Era preciso construir um mundo
onde se vivesse como se isso não existisse".

Esse movimento de recalque da natureza possue tanto uma face social


quanto subjetiva. Seja na sua dimensão objetiva de ambiente natural, seja na sua
dimensão intrapessoal associada ao instinto, é contra o natural que se afirmam a
sociedade e a subjetividade modernas. É neste contexto que a cultura ilustrada se
ergue como uma parede invisível a demarcar um território humano contra a
natureza selvagem. É nesse momento que constroe-se historicamente a
representação da natureza como lugar da rusticidade, do incultivado, do selvagem,
do obscuro e do feio.

A cidade então se apresentava como locus da civilidade, o berço das boas


maneiras, do gosto e da sofisticação. Sair da floresta e ir para a cidade era um ato
civilizatório. Os homens criados na cidade eram considerados mais educados que os
homens que viviam nos campos. A natureza, tida então como o Outro da
civilização, representava uma ameaça à ordem nascente.

Assim, como nos mostra Thomas (1989) em seu excelente estudo sobre a
mudança das atitudes em relação às plantas e aos animais entre 1500 e 1800, nos
séculos XVI e XVII, terra boa e bonita era sinônimo de terra cultivada. As áreas
silvestres, montanhas e pântanos eram tidos como os símbolos vivos do que
merecia ser condenado. Louvava-se o solo que ha duras penas fora limpo e
conquistado frente a mata, aos arbustos e ervas daninhas. A paisagem cultivada
neste período distinguia-se dos padrões rurais anteriores por suas formas cada vez
mais regulares. A prática de plantar cereais ou vegetais em linha reta não era
apenas um modo eficiente de aproveitar espaços mas também representava um
modo agradável de impor a ordem humana ao mundo natural desordenado.

A produtividade e a utilidade eram belas e o inculto estéril. Esta mentalidade


está fartamente ilustrada no minucioso trabalho de Thomas através de frases
lapidares da época como a do jardineiro Samuel Collis em 1717 que afirmava que
"a melhor de todas as flores era a couve flor"; ou a de um certo Dr. Jhonsonm que
dizia que "o melhor jardim, é o que produz mais raízes e frutas; e a água mais
digna de louvor é a contém mais peixes". As pessoas em geral, observava William
Gilpin em 1791, achavam o campo, em seu estado natural, totalmente
desagradável: "há poucos que não prefiram as diligentes cenas de cultivo às
maiores produções grosseiras da natureza" (Thomas, 1989:306).

De acordo com essa atitude as montanhas improdutivas foram vistas como


desprovidas de atrativos físicos. Eram lugar de gente incivilizada. As montanhas ,
em meados do século XVII eram odiadas como "estéreis, 'deformidades',
'verrugas', 'furúnculos', 'monstruosas excrescências', 'incontáveis tumores' e
'protuberâncias inaturais' sobre a face da terra" (Thomas, 1989:307).

A natureza foi classificada segundo sua utilidade às necessidades humanas.


Assim as ervas silvestres eram vistas como daninhas, nocivas, inúteis e feias. Na
silvicultura da época, daninha era a árvore que restasse da mata nativa. Da mesma
forma, a caça e captura a animais nocivos para agricultura era estimulada através
de prêmios e leis.

É certo que esse pragmatismo antropocêntrico que se expressa na sua


forma mais secularizada na Inglaterra - objeto do estudo de Thomas- também
estava matizado por uma visão religiosa ainda bastante forte nos primeiros séculos
da modernidade na Europa. É o que indica Ferry (1992), quando relata, na França
dos séculos VXI e XVII, os processos jurídicos movidos por camponeses contra
animais, como os carunchos, que ameaçavam as plantações. Os párocos eram os
árbitros destes processos, que não raro davam ganho de causa aos animais, por
reconhecerem sua condição de criaturas de Deus. Ainda que os seres da natureza
fossem considerados em igualdade de direitos, estes processos revelam também
uma primeira regulação sobre a relação sociedade-natureza posta em tensão.

3.2. A natureza como reserva do bom e do belo

A partir do século XVIII, vão contrastar com as interpretações


antropocêntricas, novos olhares para a natureza que valorizam justamente e
selvagem e o rústico como reservas de integridade biológica, estética e moral.

Esta mudança deve ser compreendida no contexto do século XVIII, com o


advento da Revolução Industrial na Inglaterra que impulsionaria a virada para um
mundo definitivamente urbano e industrial. Era notório a deterioração do ambiente
urbano com a poluição do ar, disseminação de doenças, péssimas condições de vida
dos operários nas cidades. O uso crescente do carvão para fins industriais e
domésticos gerava os chamados "odores fétidos". O carvão queimado na época
continha o dobro do enxofre do usado hoje em dia. A fumaça escurecia o ar, sujava
as roupas, acabava com as cortinas e corroía a estrutura dos prédios. Tudo isso em
meio a uma verdadeira explosão populacional que, transformou a Inglaterra de
1700 com 75% de população rural num país que em 1800 já contava com 85% de
sua população urbana.

A insatisfação com as condições efetivas de vida oferecidas pelo projeto


civilizatório urbano industrial parece ter sido crucial na geração de um forte
sentimento anti-social que fez oscilar o pêndulo dos valores relativos a natureza.
Esse deslocamento vai possibilitar o nascimento do que Thomas (1989) chama de
"novas sensibilidades" e que se traduzem na atração pela natureza e na
valorização do selvagem e do inculto.
Desta forma, o isolamento antes considerado um infortúnio humano era agora
buscado. O culto humanista do indivíduo valorizava reforçava esta valorização de
retiros temporários da sociedade. De outro lado, a facilidade para viajar facilitou o
contato com meio natural estimulava as excursões de lazer ou estudo buscavam
desfrutar de regiões naturais.

O campo então foi tomado como locus da saúde e integridade e beleza,


associado a uma vida saudável, verdadeira, integra. Surge um novo sentimento
estético: a natureza agora é bonita. Os moradores do campo eram vistos não
apenas como mais saudáveis, porém moralmente mais admiráveis que os da
cidade. Tornou-se lugar comum sustentar que o campo era mais bonito que a
cidade.

"Ninguém preferirá a beleza de uma rua à de uma relva ou de um bosque"


afirmava William Shenstone, em 1748. Em fins do XVIII já começava a idealização
de ter uma cabana no campo. Início do hábito de valorizar o ambiente natural como
espaço de lazer e restauração dos males da vida urbana"(Thomas, 1989: 296).

Antes do final do século XVIII a experiência estética da natureza mudou de


forma dramática:

"no lugar do jardim formal aparado como por manicure, que antes fora o
ideal da horticultura, desenvolveu-se um estilo caracteristicamente inglês de
jardinagem paisagística, tão informal que às vezes parecia difícil distingui-lo
de um campo não cultivado; e, ainda mais notável, a paisagem agreste
deixou de ser objeto de aversão para se tornar fonte de renovação
espiritual"(Thomas, 1989:307)

O apreço pela ordem natural não cultivada, converteu-se numa espécie de


ato religioso, que seria aprofundado pelo romantismo no século XIX. A natureza
não era apenas bela mas também moralmente benéfica, porque nela permanecia a
pureza não degradada pela ordem humana. O contato com os ambientes naturais
proporcionavam privacidade, oportunidade de auto exame e devaneio íntimo. Os
habitantes das montanhas deixaram de ser desprezados por sua barbárie e
passaram a ser elogiados por sua inocência e simplicidade. As próprias montanhas
tornaram-se objeto de admiração. O alpinismo para os ingleses se tornou uma
atividade envolta numa verdadeira aura mística.

Assim como as ervas antes daninhas ganham a defesa dos argumentos da


botânica, que começava a desenvolver-se, as plantas silvestres são objeto dos
primeiros atos de proteção do Parlamento. Também cresce nesse período a
indignação diante da crueldade com os animais e se multiplicam os
comportamentos de defesa dos animais como a condenação do costume da caça, e
o estímulo ao hábito da observação de pássaros.

Para as novas sensibilidades a natureza em todas as suas manifestações já


não ameaça a ordem da cidade, mas é o próprio lastro de beleza e vitalidade de
que a sociedade necessita para restaurar-se dos excessos da vida racionalizada.

4. À guisa de conclusão: interpretando as interpretações


É importante ressaltar o caráter de estruturas de significado das matrizes
interpretativas sobre a natureza acima descritas. Neste sentido, embora estas
matrizes estejam em sua origem associadas a contextos históricos específicos,
transcendem a estes, atualizando-se em outras conjunturas históricas, como efeitos
de longa duração. Por isso seria errôneo tomá-las como interpretações que se
sucederam no tempo, imaginando que as novas sensibilidades erradicariam o olhar
antropocêntrico da natureza domada. Para além das conjunturas e tempos
históricos que as originaram, ambas interpretações permanecem expressando-se
hoje numa luta de forças que demarca, em suas variações de ênfase e intensidade,
o solo onde se ergue o debate ecológico atual.

As duas naturezas da natureza (ameaçadora e restauradora) parecem


demarcar as variações do diálogo da modernidade com seu entorno ambiental.
Corroboro com a percepção (Thomas,K. 1989 e Shama,S. 1995 entre outros) de
que, enquanto o "outro" da cultura, a natureza tende a ser valorizada de acordo
com um movimento compensatório que a faz tanto mais preciosa, bela e boa
quanto a desilusão com as promessas de civilização se acentuam. Assim, à
semelhança do século XVIII, na segunda metade do nosso século também podemos
assistir a difusão de uma nova associação de sentimento anti-social e sensibilidade
ambiental. Desta vez, atualizada na denúncia ecológica do mal estar da civilização
urbano-industrial.

As matrizes interpretativas que tomamos como idéias-força de longa


duração, operam como lentes, modos de ver que se atualizam com variações de
ênfase conforme a balança das relações natureza e cultura em diferentes contextos
históricos8[8]. Conhecer essas "lentes" culturais, é para o educador ambiental
matéria indispensável para atuar nos/e sobre os horizontes de sentidos onde está
inserido. Em outras palavras, seria como acessar uma espécie de gramática dos
valores ambientais da sociedade. É dentro deste repertório de sentidos sociais que
a educação, enquanto prática interpretativa, vai acionar ênfases, e construir, dentro
de sua autonomia relativa, uma via compreensiva do meio ambiente enquanto
campo complexo das relações entre natureza e sociedade. O papel do educador
ambiental, tomado desde a perspectiva hermenêutica, poderia ser pensado como o
de um intérprete dos nexos que produzem os diferentes sentidos do ambiental em
nossa sociedade. Ou ainda, em outras palavras, um intérprete das interpretações.
Assim a EA - enquanto uma prática que compreende e interpreta, desvenda e
produz sentidos - estaria contribuindo para a ampliação do horizonte compreensivo
das relações sociedade-natureza.

8[8] O conceito de longa duração foi introduzido na história pela Escola dos Annales,
particularmente por Fernand Braudel, que buscava fazer uma história que captasse os
efeitos de permanência de estruturas simbólicas geradas em conjunturas históricas
passadas no contexto contemporâneo. Ernest Bloch também operou com esta idéia que
nomeia como "não-contemporaneidade". Para uma aplicação deste conceito de Bloch às
raízes "não-contemporâneas" do sentimento de pertencimento à terra expresso nos
atuais movimentos ecológicos ver Alfanderry (1992).
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