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FB Araújo; JE Reis. VIII CIH.

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NOBREZA E CAVALARIA NAS SIETE PARTIDAS DE ALFONSO


X, O SÁBIO
Doi: 10.4025/8cih.pphuem.3496

Fernando Balbino de Araújo, UEM


Jaime Estevão dos Reis, UEM

Resumo

Presentes na sociedade tripartida medieval, no grupo daqueles que


lutam (bellatores), os cavaleiros certamente desempenharam um papel
fundamental nas batalhas armadas. Desde o fim da Alta Idade Média, a
superioridade bélica dos guerreiros a cavalo despertou o interesse da
nobreza, que em fins do século XI e durante o século XII, acabou por
assumir a instituição da cavalaria. Com a ascensão da cavalaria e o domínio
da nobreza, esse grupo social obteve reconhecimento jurídico. A primeira
formulação jurídica a respeito da cavalaria foi definida na obra Las Siete
Palavras Chave: Partidas, redigida a mando de Alfonso X, o Sábio, cujo título XXI expõe as
Idade Média; Cavalaria; leis relativas à dignidade cavaleiresca. Las Siete Partidas, considerada a
Alfonso X. grande obra jurídica alfonsina, foi escrita por volta de 1256, por diversos
intelectuais, sob a supervisão de Alfonso X. Abordando diversos assuntos
pertinentes à sociedade da época, destacamos a Segunda Partida, que trata
de assuntos que dizem respeito aos reis, imperadores e outros grandes
senhores, na qual os cavaleiros estão inseridos (PARTIDA II, 2003). Com a
fonte citada, pretende-se realizar um estudo da relação entre nobreza e
cavalaria na obra jurídica de Alfonso X, bem como a origem da ordem dos
cavaleiros e sua ascensão à condição de nobre, identificar as qualidades
atribuídas aos cavaleiros e a normatização de sua conduta na obra jurídica
alfonsina, e por fim, refletir acerca dos ideais cavaleirescos nas Siete Partidas
e sua relação com a realidade castelhano-leonesa do século XIII.
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Cardini (1989), os altos custos de


Introdução manutenção dos cavalos, armas,
A cavalaria medieval, tão vestimentas e serviços a serem prestados,
presente em diversos romances e relatos levaram a uma especialização obtida por
de batalhas, foi uma unidade de guerra poucos. Durante os séculos X e XI, nos
eficiente, coordenada e fatal. quais se intensifica a pulverização do
Considerados homens corajosos e fiéis a poder, principalmente na França, o
seu líder, os cavaleiros eram introduzidos profissional de guerra, que a partir desse
na Ordem através de rituais iniciáticos. momento era de origem nobre, passa a
Segundo Franco Cardini, estes rituais fazer parte da escolta armada de grandes
constituíam-se de “duras provas de força senhores feudais.
e de indiferença perante a dor, feridas Esse período, também
rituais e provas de destreza, dentro dos conhecido como “anarquia feudal” 1,
limites que a Igreja cristã podia considerar remete-nos a uma época na qual a
legítimos” (CARDINI, 1989, p. 58). cavalaria representa a violência na
O cavaleiro, montado em seu sociedade, haja vista as constantes guerras
cavalo e vestindo sua pesada armadura, particulares empreendidas pelos grandes
juntamente com sua espada ou lança em senhores, muitas delas em busca de
punho, torna-se um inimigo difícil de ser vingança, que acabavam por afetar aqueles
combatido por um soltado comum. não possuíam meios para se defender.
Devido à sua superioridade bélica no Uma passagem de Ricardo da
campo de batalha, os cavaleiros Costa, em sua obra A cavalaria perfeita e
despertaram o interesse de um grupo as virtudes do bom cavaleiro no Livro da
específico da sociedade medieval: a Ordem de Cavalaria (1275) de Ramon
nobreza. Os nobres, no fim do século XI Llull, exemplifica brilhantemente o terror
e durante o século XII, acabaram por espalhado pelos cavaleiros:
assumir a instituição da cavalaria e, por
vezes, confundiram-se como uma única Este grupo social representava a
coisa, como aponta Guilherme Queiroz de violência, o espírito de agressão e
pilhagem da época, pois qualquer
Souza:
pretexto era motivo para esses
Com uma superioridade bélica homens turbulentos lançarem-se
desde o fim da Alta Idade Média e uns contra os outros. Estavam
temido pelas pilhagens que assim, sempre matando, em
praticava, o miles (cavaleiro) obteve movimento: nas batalhas, caçando
cada vez mais prestígio na o javali, organizando torneios. Mas
sociedade e atraiu os nobiles (nobres) o maior sofrimento que infligiam às
a partir do século XI. De forma populações – especialmente os
gradativa, a nobreza controlou a camponeses – eram as guerras
Cavalaria e fez uso exclusivo dela. particulares, as vinganças,
Um século depois, sobretudo na chamadas de faídas (fehde), isto é, o
França, as duas categorias acabaram direito da vítima de um prejuízo
por se “fundir ou por se confundir” causar ao seu autor prejuízo igual.
(SOUZA, 2015, p. 2). Nestas faídas, a principal estratégia
cavaleiresca era arruinar o inimigo
De fato, o ofício de cavaleiro não matando e aleijando o maior
era acessível a todos. Segundo Franco número possível de camponeses,

cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques. O Homem


1 Para Franco Cardini, os cavaleiros não
Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. p.
respeitavam a propriedade alheia, atacando
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diversos senhores e camponeses, instalando o
caos generalizado. Daí a expressão “anarquia
feudal”. CARDINI, Franco. O guerreiro e o

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além de destruir suas plantações e Reconquista. (REIS, 2007, p. 77). Política


celeiros. O objetivo era reduzir as essa que foi continuada pelo monarca, que
fontes de renda do inimigo dedicou grande parte de seu reinado à
(COSTA, 2001, p. 2). incorporação e organização dos territórios
Para impedir tal comportamento, conquistados. Desde que assumiu o trono
a Igreja intervém, iniciando assim o Alfonso X,
processo de cristianização da cavalaria, [...] Alfonso X deu continuidade à
contando com o apoio de aristocratas e até consolidação do território da
mesmo de guerreiros (CARDINI, 1989, monarquia, ao incorporar
p.59). Com essa intervenção, os atos de definitivamente reinos que até
guerra passam a ser limitados, para então haviam permanecido na
proteger aqueles que eram considerados condição de vassalo de Castela,
indefesos, em sua maioria, camponeses, como Jerez, Niebla e Murcia, ainda
religiosos e mercadores. A cristianização que, com relação a esse último,
provocou uma “sacralização” dos rituais tenha contado com a colaboração
cavaleirescos, assim como a difusão de do rei de Aragão, Jaime I (REIS,
20017, p. 228).
certos ideais.
Com a ascensão da cavalaria e o Com o objetivo de empreender
domínio da nobreza, esse grupo social um projeto de unificação jurídica, que
obteve reconhecimento jurídico. A visava a consolidação e a ampliação do
primeira formulação jurídica a respeito da poder real, o monarca buscou organizar
cavalaria foi definida na Segunda Partida, códigos jurídicos que fossem vigentes em
redigida sob a supervisão de Alfonso X, o todos os reinos que compreendiam a
Sábio, cujo título XXI expõe as leis coroa de Castela, especialmente os
relativas à dignidade cavaleiresca territórios conquistados. Dentro desse
(PISNITCHENKO, 2012, p.2) projeto, podemos destacar três grandes
obras: o Fuero Real, o Espéculo e Las Siete
Alfonso X e as Siete Partidas Partidas. Como afirma Jaime Estevão dos
Reis (2007):
Alfonso X foi um dos monarcas
Com efeito, a tentativa de
mais influentes do século XIII, rei de
centralização do poder real
Castela e Leão (1252-1284), o monarca se tencionada por Alfonso X
destacou em várias áreas, em especial ao esbarrava nas dificuldades impostas
que diz respeito à cultura e a área jurídica. pela pluralidade da legislação
Como afirma Elaine Cristina Senko, vigente nos territórios da Coroa de
Alfonso “promoveu um grande incentivo Castela. Do esforço do monarca em
aos trabalhos legislativos durante o seu superar tais entraves resulta o seu
governo com o propósito de construir e projeto de unificação jurídica,
estimular para si uma imagem de monarca baseado em três obras
sábio e justo” (SENKO, 2014, p.2). Sua fundamentais: o Fuero Real, o
produção de obras com caráter literário, Espéculo e as Siete Partidas. (REIS,
2007, p. 183)
histórico, científico, artístico e jurídico
foram um marco para sua época, e com Las Siete Partidas, fonte desta
justa razão o monarca foi chamado de “o pesquisa, é considerada a grande obra
Sábio”. (REIS, 2007, p. 12). jurídica alfonsina. Foi escrita por volta de
Alfonso X deu continuidade ao 1256, por diversos intelectuais, sob a
trabalho de seu pai, Fernando III. supervisão de Alfonso X. A obra foi um
Considerado pela historiografia como o compilado de leis, onde eram descritos os
“conquistador da Andaluzia”, incorporou mais diversos assuntos. Como afirma
a maior extensão territorial do processo de Elaine Cristina Senko (2014):

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Disposta em sete partes, como o Ley I Por qué razones la caballería, a los caballeros
hubieron así nombre.
próprio nome sugere, e subdividida
em Títulos e Leis, o trabalho jurídico Ley II Cómo deben ser escogidos los caballeros.
desenvolvido em Las Siete Partidas Ley III Respeitar e guardar os costumes da nobreza e
apresenta ao longo de suas partes da hidalguia, o filho de um homem nobre com
os seguintes tópicos essenciais: 1) uma mulher vilã.
La Primera Partida demonstra o Ley IV Cómo los caballeros deben haber em sí cuatro
significado da Lei, Direito e sobre a virtudes principales
Igreja; 2) La Segunda Partida tem
Ley V Que los defensores deben ser entendidos.
como tema o significado de rei e
imperador; 3) La Tercera Partida Ley VI Que los caballeros deben ser sabidores, para
trata da justiça; 4) La Cuarta Partida saber cobrar de su entendimiento.
discute o matrimônio e a relação do Ley VII Que los caballeros deben ser bien
direito de família; 5) La Quinta acostumbrados.
Partida indica as leis do direito de Ley VIII Cómo deben los caballeros ser arteros, e
propriedade e sobre a regularização mañosos.
do comércio; 6) La Sexta Partida
Ley IX. Cómo deben ser los caballeros muy leales.
trata dos testamentos e das
heranças; 7) La Séptima Partida Ley X Que los caballeros deben ser sabidores para
finaliza com as leis penais para conocer los caballos, e las armas que trajeren
si son buenas, o no.
grupos específicos na sociedade
castelhana (SENKO, 2014, p. 2). Ley XI Quién ha poder de hacer los caballeros, o no.

Ley XII Cuáles no deben ser caballeros.


Abordando diversos assuntos
pertinentes à sociedade da época, Ley XIII Qué cosa debe hacer el escudero, antes que
reciba caballería.
destacamos a Segunda Partida, que trata de
assuntos que dizem respeito aos reis, Ley XIV Cómo han de hacer hechos los caballeros.
imperadores e outros grandes senhores, na Ley XV Cómo han de desceñir la espada al novel
qual os cavaleiros estão inseridos después que fuere hecho caballero.
(PARTIDA II, 2003). Ley XVI Qué deudo han los noveles con los que los
hacen caballeros, e con los padrinos que les
Las Siete Partidas como fonte para desciñen las espadas.

o estudo da cavalaria Ley XVII Qué cosa deben guardar los caballeros,
cuando cabalgaren.

A pesquisa, que ainda se Ley En qué manera se deben vestir los caballeros.
encontra em uma fase inicial, tem por XVIII

objetivo realizar um estudo da relação Ley XIX Cómo los caballeros deben ser mensurados.
entre nobreza e cavalaria na obra jurídica
Ley XX Cómo antes los caballeros deben leer las
de Alfonso X, bem como a origem da historias de las grandes hechos de armas,
ordem dos cavaleiros e sua ascensão à cuando comieren.
condição de nobre, identificar as Ley XXI Qué cosas son tenidos los caballeros de
qualidades atribuídas aos cavaleiros e a guardar.
normatização de sua conduta na obra Ley XXII Qué cosas deben hacer, e guardar los
jurídica alfonsina e, por fim, refletir acerca caballeros, em dichos, e em hechos.
dos ideais cavaleirescos e sua relação com Ley En qué manera deben honrar los caballeros.
a realidade castelhano-leonesa do século XXIII
XIII. Ley Qué mejoría han los caballeros
Nas Siete Partidas, os cavaleiros XXIV apartadamente, más que los otros hombres.

são abordados especificamente na Segunda Ley XXV Por cuáles razones pierden los caballeros
Partida, conforme o quadro abaixo: honra de la caballería.

Título De los caballeros, e de las cosas que les


XXI conviene hacer.

Considerações finais

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Alfonso X (1221-1284), analisar suas origens, ascensão à condição


merecidamente ganhou a alcunha de “o de nobre, além dos valores que lhes eram
Sábio”. Sua produção no campo literário atribuídos – ideais de cavaleiros perfeitos
serve como base para diversas pesquisas – e as regras de conduta que definiam sua
nos mais variados campos de estudo. Seu atuação na sociedade.
interesse pela cultura permitiu um acesso
O presente projeto de pesquisa
maior ao conhecimento, não apenas de
encontra-se em fase inicial de produção.
seus súditos, em sua época, mas também
Atualmente, encontra-se em estágio de
para a humanidade, estudando e
leitura e análise da fonte documental,
analisando os documentos deixados. assim como as obras relacionadas ao
A cavalaria obteve destaque monarca e a situação da Península Ibérica
jurídico na obra denominada Las Siete em sua época de reinado. Após uma
Partidas. Essa obra faz parte de um extenso análise mais profunda sobre o tema
projeto jurídico criado pelo rei Alfonso X, proposto, procuraremos entender a
na tentativa de unificar seu território sob ordem da cavalaria no contexto
um sistema de leis homogêneo, castelhano-leonês e sua relação com a
reforçando assim sua posição de líder e nobreza na época de Alfonso X, o Sábio.
seu controle nas terras conquistadas.
Originalmente chamado de O Livro das Referências
Leis, a obra foi um marco no que diz
respeito à unificação do direito medieval ALFONSO X EL SABIO. Las Siete Partidas.
Madrid: Editorial Reus, 2004.
hispânico e normatiza a sociedade em
todos os seus aspectos, esse código, CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro. In:
todavia, só foi implantado definitivamente LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval.
Lisboa: Editorial Presença, 1989.
no reinado de Alfonso XI (1311-1350),
bisneto de Alfonso X. COSTA, Ricardo da. A cavalaria perfeita e as
virtudes do bom cavaleiro da Ordem da
Dado o papel desempenhado Cavalaria. Disponível em:
pelos bellatores no contexto social e http://www.ricardocosta.com/artigo/cavalaria-
político, essa ordem despertou o interesse perfeita-e-virtudes-do-bom-cavaleiro-no-livro-da-
ordem-de-cavalaria-1275-de-ramon. Acesso em:
da nobreza castelhano-leonesa. Por fim, as 22/08/2017.
duas ordens (nobreza e cavalaria)
REIS, Jaime Estevão dos. Território, Legislação
acabaram por se fundir, transformando-se
e Monarquia no Reinado de Alfonso X, o
em uma ordem forte e poderosa. O ofício Sábio (1252-1284). Assis: UNESP, 2007. Tese
de cavaleiro era deveras custoso para a Doutorado – UNESP, 2007.
época, pois o próprio deveria comprar PISNITCHENKO, Olga. Cavalaria em Castela
suas armas, armadura e cavalo. Logo, a através das obras legislativas de Alfonso X.
nobreza foi a única classe social a obter Disponível em:
acesso a tal status. http://www.encontro2012.mg.anpuh.org/resourc
Com a expansão e o es/anais/24/1339780925_ARQUIVO_Cavalaria1
.pdf. Acesso em: 22/08/2017.
fortalecimento da ordem da cavalaria, ela
foi agregada no conjunto de leis criadas SOUZA, Guilherme Queiroz de. Adoubement e
pelo rei Alfonso X, obtendo assim Cavalaria no Ocidente Feudal: o Eracle (c.
1159-1184) de Gautier d’Arras. Disponível em:
reconhecimento jurídico. A Partida http://www.revistamirabilia.com/sites/default/fil
Segunda, que trata em específico dos es/pdfs/21-21.pdf. Acesso em: 22/08/2017.
diretos e deveres da cavalaria e do
SENKO, Elaine Cristina. O projeto político de
cavaleiro, fornece uma visão importante Alfonso X (1252 – 1284) em seu trabalho
sobre tal ordem, sobre seu jurídico “las siete partidas”. Disponível em:
comportamento e o que era esperado de www2.pucpr.br/reol/index.php/helikon?dd99=p
um cavaleiro. Neste projeto, busca-se df&dd1=12457. Acesso em: 22/08/2017.

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