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Anjos LA et al.

vias promissoras o inegável aumento dos grupos Referências


de pesquisa e a produção de conhecimento nas úl-
timas décadas no Brasil, evidencia-se a “quase au- 1. Valente FLS. Direito humano à alimentação: desafios e
sência”, por assim dizer, da vertente “humana” nos conquistas. São Paulo: Cortez; 2002.
2. Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição. Pro-
estudos localizados, ao menos na parcela ilumina- grama Nacional de Alimentação e Nutrição. Docu-
da pelos descritores de busca que retratam o cam- mento técnico INAN 06-07. Brasília: INAN; 1976.
po. Mas não se trata de segurança alimentar e nu- 3. FAO-WHO. Estrategias Alimentarias y Nutricionales
tricional da população “humana”? en el desarrollo nacional [Serie de informes técnicos
Há algum tempo já vem sendo apontado o nº 584]. Ginebra: WHO; 1976.
4. Prado SD, Sayd JD. A pesquisa sobre envelhecimento
predomínio do paradigma biomédico e dos estu- humano no Brasil: grupos e linhas de pesquisa. Cien
dos quantitativo-descritivos nos estudos do cam- Saude Colet 2004; 9(1):57-67.
po – não por acaso, reconhecido como “Nutri- 5. Prado SD, Sayd JD. A pesquisa sobre envelhecimento
ção”6,7– e a consequente exclusão de outros refe- humano no Brasil: pesquisadores, temas e tendên-
renciais. Observando-se os “agrupamentos temá- cias. Cien Saude Colet 2004; 9(3):763-772.
6. Bosi MLM. A face oculta da nutrição: ciência e ideolo-
ticos”, tanto na polaridade do “alimento” como na gia. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo/ Ed. UFRJ; 1988.
da “alimentação”, mais do que a concentração em 7. Bosi MLM. A nutrição na concepção científica Mo-
uma ou noutra direção, preocupa-nos a ausência derna: em busca de um novo paradigma. Rev. Nutr.
do componente humano que deveria ser realçado, 1989; 2(1):55-87.
sobretudo porque se trata de alimentação huma- 8. Maffesoli M. No fundo das aparências. 3ª ed.
Petrópolis:Vozes; 2005.
na: assim, no que foge aos clássicos estudos de 9. Bauman Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar;
outcomes, evidenciam-se estudos sobre políticas 2001.
como processos dessubjetivados; o direito huma- 10. Bourdieu P. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes;
no figurando em discursos abstratos, ainda quan- 1997.
do se pretende acoplá-los a uma sociedade “triba-
lizada”, complexa, “líquida”, demandando, cada vez
mais, compreensão dos processos comunicativos,
das imagens e do repertório, contexto no qual o Da pesquisa sobre segurança alimentar e
corpo e a alimentação estão na ordem do dia8-10. nutricional no Brasil ao desafio de criação
No âmbito desse breve comentário, não é pos- de comitês de alimentação e nutrição
sível afirmar em que medida isso se dá nas infor-
mações detectadas pelos autores; nosso posicio- From research on food security and nutrition
namento, contudo, não é especulativo, uma vez in Brazil to the challenge of creating
que se ampara nas evidências obtidas em anos de committees on feeding and nutrition
pesquisa no âmbito da alimentação e nutrição que
confluem para muito do que os autores aportam Rossana Pacheco da Costa Proença 3
em seu artigo. Nesse campo, se a inserção das ciên-
cias sociais se dá com certa força no agrupamento O artigo “A pesquisa sobre segurança alimentar
“alimentação”, quase nada se incorporou do con- e nutricional no Brasil de 2000 a 2005: tendências e
junto das disciplinas humanas (para usar a termi- desafios” aborda tema de extrema relevância, que
nologia adotada na base visitada pelos autores), vem sendo discutido cientificamente e incorporado
resultando na exclusão da subjetividade. a políticas públicas no cenário mundial. Partindo
Do exposto se depreende que, ao lado (o grifo da base de dados do Diretório dos Grupos de Pes-
importa, uma vez que não se pretende aqui postu- quisa no Brasil do CNPq (Conselho Nacional de
lar a exclusão de quaisquer objetos que integram a Desenvolvimento Científico e Tecnológico), as au-
SAN) da integração entre os componentes alimen- toras analisaram a área de origem e as temáticas
tar e nutricional, postulamos que a construção de pesquisadas, sugerindo a necessidade de investimen-
uma política de segurança alimentar e do direito tos na integração entre os componentes alimentar e
humano à alimentação não pode prescindir da in- nutricional da SAN (segurança alimentar e nutricio-
tegração de distintos paradigmas e enfoques na
investigação sobre suas temáticas. Caso contrário,
será difícil superar o descompasso, tão bem ex-
posto nesse artigo, entre os desafios que se colo-
cam nesse âmbito e os conhecimentos de que dis-
3
Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde,
pomos para superá-los. Universidade Federal de Santa Catarina.
rossana@mbox1.ufsc.br
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Ciência & Saúde Coletiva, 15(1):19-30 , 2010


nal), diminuindo o intervalo entre as discussões bre o que seria esta qualidade do alimento, ou mais
econômicas e sociais da questão. especificamente, o que seria um alimento de quali-
Um primeiro ponto a ser destacado é a inexis- dade. Como já discutido em vários momentos3,
tência do termo na árvore do conhecimento do ressalta-se a percepção de que, quando se discorre
CNPq, demonstrando, mais uma vez, a necessida- sobre qualidade em alimentos e alimentação, está
de de revisão e atualização deste material, tão im- ocorrendo uma supervalorização, praticamente no
portante na classificação e sistematização de infor- mundo todo, da dimensão higiênico-sanitária da
mações da pesquisa brasileira. qualidade. Sabe-se, entretanto, que diversos auto-
Esta questão aparece mais claramente ao ana- res salientam que a qualidade em um alimento pode
lisar-se a temática SAN em relação aos comitês de ser percebida pelo ser humano em múltiplas di-
área que organizam o ensino de pós-graduação e a mensões. Assim, parece pouco defensável que as
pesquisa científica na Capes (Coordenação de Aper- pesquisas, os diversos selos de qualidade e meto-
feiçoamento de pessoal de Nível Superior) e no dologias de busca de qualidade se reportem so-
CNPq. Assim, conforme discutido pelas autoras mente a uma destas dimensões, como se o fato de
do artigo em debate, citando material recente1,2, na o alimento estar limpo e não contaminado – ele-
Capes pode-se vislumbrar as temáticas da SAN mento essencial, mas não o único – garantisse que
incluídas em vários comitês, espalhados por quase todos os outros aspectos estejam satisfatórios.
todas as áreas do conhecimento. Em parte, este Assim, considerando que a qualidade com re-
fenômeno deve-se à própria natureza multifaceta- lação aos alimentos deve ser um processo centra-
da da SAN, bem fundamentada pelas autoras. Mas do no ser humano, propõe-se que ela pode ser
destaca-se a percepção de que isto ocorre, tam- percebida, pelo menos, sob as óticas nutricional,
bém, em função da não-existência de uma área sensorial, higiênico-sanitária, de serviço, regula-
específica de alimentação e nutrição no contexto mentar, simbólica e, mais recentemente, de susten-
da grande área da Saúde. Assim, a inserção da tabilidade. As definições de SAN discutidas, inclu-
Nutrição como uma subárea da Medicina II na sive historicamente, pelas autoras, permitem esta
Capes pode ser responsável por esta diluição de expansão do conceito, podendo refletir a necessá-
grupos, diminuindo as possibilidades de integra- ria integração dos grupos que refletem e pesqui-
ção para a formação e a pesquisa em SAN. sam na temática.
Já no CNPq, com o comitê Saúde Coletiva e Também relacionado a este conceito mais
Nutrição, esta questão parece ser menos candente abrangente de SAN, embora o artigo em debate
nos aspectos referentes àquilo que as autoras iden- não tenha aprofundado este ponto, cabe citar a
tificaram como pesquisa de SAN relacionada jus- questão metodológica das pesquisas, que ainda se
tamente com a Saúde Coletiva. Contudo, no que apresenta bastante centrada em estudos quantita-
diz respeito à temática que as autoras denomina- tivos. Considerando, na palavra das autoras, “a
ram “componente nutricional da SAN”, principal- amplitude conceitual e a grandiosidade de ques-
mente nas discussões mais específicas sobre ali- tões relativas a SAN”, observa-se a necessidade de
mentos, também nesta agência a ausência de um incorporação da pesquisa qualitativa neste con-
comitê específico é sentida, pela necessidade de com- texto. Em uma revisão sobre a pesquisa qualitati-
preensão de conceitos e metodologias específicos va em nutrição e alimentação, Canesqui4 reforça
no momento de avaliação dos projetos propos- que muitos dos textos encontrados requerem um
tos. Neste sentido, salienta-se a percepção de que a “aperfeiçoamento teórico-metodológico para su-
criação de comitês específicos de alimentação e perar os estudos descritivos, adequando o seu en-
nutrição na Capes e no CNPq são estratégias im- tendimento”. Concorda-se com esta autora que
portantes para aglutinar esforços e recursos, re- observa, ainda, “a necessidade de apoiar a forma-
forçando a formação e a pesquisa em SAN. ção em Ciências Sociais e Humanas na Nutrição e
Ao discutirem a distribuição dos grupos de incentivar a prática da multidisciplinaridade para
pesquisa em SAN por área predominante, as au- aperfeiçoar aquelas pesquisas”, ponto também dis-
toras identificaram a maioria dos grupos na área cutido no artigo em debate.
de ciência e tecnologia dos alimentos, relacionan- Outro destaque, lançado recentemente sobre o
do esta produção científica com a denominada tema, é representado pelo Suplemento da Revista
qualidade dos alimentos, fixando-se, contudo, so- de Nutrição. Segundo informações da Nota da
mente na questão sanitária. Ora, além da correta e Editora5 e do Editorial6, este suplemento, financia-
necessária discussão realizada pelas autoras das do por edital público específico, apresenta artigos
políticas de ciência e tecnologia e da incorporação com resultados de pesquisas desenvolvidas com
do componente alimentar visto de maneira mais financiamento de editais nacionais e internacionais.
abrangente, sugere-se também uma reflexão so- Esta iniciativa pode ser considerada importante
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Anjos LA et al.

para a temática de SAN, no mínimo, por dois as- 2. Kac G, Fialho E, Santos SMC. Panorama atual dos
pectos. Um deles seria a questão em si, de editais programas de pós-graduação em Nutrição no Brasil.
Rev. Nutr. 2006; 19(6):771-784.
públicos estarem financiando tanto as pesquisas
3. Proença RPC, Sousa AA, Veiros MB, Hering B. Qua-
temáticas quanto a divulgação delas, importante lidade nutricional e sensorial na produção de refeições.
prática ainda não muito incorporada à realidade Florianópolis: EDUFSC; 2008.
científica brasileira. Outro ponto é que este suple- 4. Canesqui AM. Pesquisas qualitativas em nutrição e
mento tenha sido lançado pela Revista de Nutri- alimentação. Rev. Nutr. 2009; 22(1):125-139.
ção, periódico específico da temática de alimenta- 5. Medeiros MAT. Nota da Editora. Rev. Nutr. 2008;
21(Supl.):5-6.
ção e nutrição que atualmente se encontra indexa- 6. Pereira RA, Santos LMP. A dimensão da insegurança
do em duas das maiores e mais abrangentes bases alimentar. Rev. Nutr. 2008; 21(Supl.): 7-13.
de dados internacionais, quais sejam, Web of Sci- 7. Yokoo EM, Pereira RA, Veiga GV, Nascimento S, Costa
ence, do sistema ISI (Institute of Scientific Informa- RS, Marins VR, Lobato JCP, Sichieri R. Proposta me-
tion), e Scopus. Assim, pode-se prever um maior todológica para o módulo de consumo alimentar
pessoal na pesquisa brasileira de orçamentos familia-
destaque a esta produção nacional, uma vez que,
res. Rev. Nutr. 2008; 21(6):767-776.
ao ser digitado o tema “alimentação e nutrição” 8. Burlandy L. A construção da política de segurança ali-
nestas bases, demonstra-se que no Brasil existe um mentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios
periódico científico que incorpora a questão da para a promoção da intersetorialidade no âmbito fede-
SAN, inclusive na nomenclatura. ral de governo. Cien Saude Colet 2009; 14(3):851-860.
Finalizando, faz-se necessária uma reflexão
sobre aspectos da SAN ainda pouco trabalhados
na produção científica nacional, considerando o
apontado no artigo em debate. A alimentação fora Pesquisar sobre segurança alimentar
de casa é um deles, que representa uma importan- e nutricional no Brasil: a que viemos?
te faceta do comportamento alimentar atual e, por
exemplo, somente na versão 2008-2009 está sendo
Researching about food security and nutrition
incorporada à Pesquisa de Orçamento Familiar
in Brazil: what is the purpose?
(POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
tística (IBGE)7. Então, pontos como a comida de
Luciana Maria Cerqueira Castro 4
rua, a alimentação em restaurantes comerciais e
coletivos, os patrimônios gastronômicos regionais,
O artigo “A pesquisa sobre Segurança Alimen-
dentre outros, são, comumente, alvo somente de
tar e Nutricional no Brasil de 2000 a 2005: tendên-
pesquisas de qualidade sanitária, reduzindo o foco
cias e desafios”, de autoria de Prado e colaborado-
da contribuição para a SAN.
res, faz um diagnóstico da situação da pesquisa
Outra lacuna são os estudos relacionados ao
em segurança alimentar e nutricional (SAN) no
comportamento do consumidor de alimentos,
Brasil e instiga-nos a perguntar: estamos produ-
considerando a sua segurança de maneira abran-
zindo conhecimento sobre SAN no país? Temos
gente. Destacam-se aqui as possibilidades de estu-
condições de produzir conhecimento e apresentar
dos de SAN com relação às diversas formas de
propostas inovadoras para a SAN no Brasil ou
informação alimentar e nutricional, principalmente
produzimos conhecimento somente sobre algumas
a propaganda e a rotulagem de alimentos indus-
dimensões da SAN no Brasil?
trializados e refeições.
A segurança alimentar e nutricional tornou-se
Assim, as possibilidades de pesquisa em SAN
tema de discussão de âmbito mundial nas últimas
no país, a exemplo da construção da própria polí-
décadas, tendo sido debatida por inúmeros orga-
tica nacional sobre o tema8, ainda têm muitos de-
nismos internacionais, governamentais ou não. Da
safios a serem enfrentados. Mas este enfrentamento
mesma forma, o conceito de SAN passou por vá-
começa pelo reconhecimento do terreno, trabalho
rias alterações. Na década de noventa, devido a
tão bem realizado pelo artigo em debate.
um forte movimento em direção à reafirmação do
direito humano à alimentação adequada, essa di-
mensão, assim como a da soberania alimentar,
Referências

1. Jordão AA, Garcia RWD, Marchini JS. Fator de im-


pacto e pós-graduação stricto sensu em alimentos,
nutrição e ciência e tecnologia de alimentos. Rev.
Nutr. 2006; 19(6):793-802.
4
Departamento de Nutrição Social, Instituto de Nutrição, UERJ.
lucastro@globo.com

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