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Experiência da vida com Deus

Lema da IELB - 2010

Introdução
O lema da IELB para este ano de 2010 é: Compartilhando experiências da vida com Deus.
Ele visa ir ao encontro de certos clamores dos congregados por sermões menos dogmáticos e
voltados mais para vivências palpáveis do dia a dia na vida cristã.
Em vista disso, os pastores se esforçam, para em seus sermões, compartilharem experiências.
Pessoas voltam de reuniões, congressos e estudos, afirmando: Foi uma grande experiência.
Mas o que é uma experiência? O dicionário Aurélio o define como “um conhecimento que se
obtém pela pratica”. Isto nos leva à pergunta: É possível adquirir uma experiência “pratica com
Deus”? O que seria isso?
Moisés queria ter uma experiência com Deus, mas este lhe respondeu: Não me poderás ver a
face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá (Ex 33.17-23). Deus é um Deus
abscondito (oculto). Nenhum pecador poderá ver sua face. Quando Filipe, discípulo de Jesus,
pediu: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta! Jesus lhe respondeu: Filipe, há tanto tempo
estou convosco, e não me tens conhecido: Quem me vê a mim, vê o Pai; como dizes tu: Mostra-
nos o Pai... crede-me que estou no Pai, e o Pai em mim; crede ao menos por causa das mesmas
obras (Jo 14.8-15). A grande obra que Cristo realizou por ordem do Pai, foi redimir a
humanidade por sua morte na cruz, e os milagres que Jesus realizou, são chamados de “sinais”,
para mostrar que ele é o unigênito Filho de Deus, o Messias prometido, que a razão humana não
pode reconhecer, devido a sua revelação ao contrário, isto é, em humilhação.

Relação entre fé e experiência


Ao refletirmos sobre o tema: Experiência com Deus, surge a pergunta: O que é a fé cristã e
qual a relação entre fé e experiência?
Antes de entrarmos no tema, vamos lembrar alguns versículos bíblicos e algumas frases
confessionais que precisamos ter sempre em mente nesta reflexão.
- Nada decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado (1 Co 2.2).
- Nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios;
mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus
e sabedoria de Deus (1 Co 1.23-24).
- Pois o Senhor conhece o caminho dos justos (Sl 1.6).
- Creio que por minha própria razão ou força não poso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem
vir a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo evangelho, iluminou com seus dons, santificou
e conservou na verdadeira fé. (Credo Apostólico, 3º Artigo, exposição de Lutero)
- E não somente isto, mas também nos gloriemos nas próprias tribulações, sabendo que a
tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança
(Rm 5.3,4).
Deus se revelou à humanidade em Cristo, seu Filho unigênito. Esta revelação, no entanto, é
uma revelação ao contrário de tudo o que o ser humano imagina e espera de Deus. Por exemplo:
O que vemos na manjedoura de Belém? O que vemos na pessoa e vida de Jesus? O que vemos
na cruz? Pobreza, miséria, desprezo e morte. Os próprios judeus, como povo de Deus,
interpretaram as profecias com sua razão, imaginando o Salvador como um rei poderoso que
subjugaria os inimigos políticos de Israel, e elevaria a nação judaica a uma potência mundial.
Assim ainda hoje muitos pregadores evangélicos pregam dizendo: Deus é poderoso. Ele não
quer ver ninguém sofrendo ou passando necessidades. Quem crer nele terá vida farta e alegre
(teologia da glória). Citam para isso vários exemplos de como Deus abençoou a Israel e como
lhes prometeu vida farta e abençoada (Js 1.7; 1 Rs 2.3; 1 Rs 3.14; Ml 3.10 ). Aos próprios
discípulos custou crer em Jesus como o Messias prometido, o Salvador da humanidade e
compreender sua obra. Mesmo após três anos de instrução, ainda perguntaram: Senhor, será este
o tempo em que restaures o reino a Israel? (At 1.6; Jo 18.36). Jesus os admoesta: Crede! Crede
o quê? Que ele, Jesus, pobre e miserável é o Filho de Deus, o Salvador da humanidade.
Exatamente esta verdade é loucura para a razão humana (1 Co 1.18). Por isso confessamos:
“Creio que por minha própria razão e força não posso crer em Jesus Cisto, meu Senhor, nem vir
a ele, mas o Espírito Santo me chamou, iluminou com seus dons, congrega e conserva”. Esta fé
não é fruto da razão humana, do querer, da vontade humana. Esta fé precisa ser dada por Deus.
E Deus a dá unicamente pela pregação do evangelho da cruz de Cristo (Jo 3.6; 1 Co 1.23).

A fé cristã
O que é esta fé cristã? Lemos na carta aos hebreus: Fé é a certeza de coisas que se esperam,
a convicção de fatos eu se não vêem (Hb 11.1). É o nascer da água e do Espírito (Jo 3.5), a
nova vida que o Espírito Santo opera ao gerar a fé em Cristo. É reconhecer o amor de Deus em
Cristo, e a Cristo como o verdadeiro Filho de Deus, nosso único e suficiente Salvador, e confiar
nele de coração, contra todos nossos argumentos da razão e todo o nosso sentir.
Vemos isto na virgem Maria. Ela era uma jovem pobre, noiva de um rapaz carpinteiro,
também pobre. O anjo apareceu a ela e lhe anunciou que ela fora escolhida por Deus para se a
mãe do Filho de Deus, o Salvador da humanidade (Lc 1.28-38). Que o Espírito Santo viria sobre
ela e ela ficaria grávida. Que problema Deus arranjou para esta jovem? Quem iria acreditar
isso? O anjo ainda lhe falou a respeito de Isabel. Com ela, Maria poderia falar sobre isso. Maria
foi visitá-la. Após três meses, ela retornou. Sem dúvida falou, agora, a seu noivo sobre sua
gravidez, já visível. Que notícia! O que tudo deve ter passado pela cabeça de José? Ele resolve
abandoná-la. Pois era seu dever denunciá-la, para que fosse apedrejado por causa de uma
relação sexual ilícita (Lv 20.10). Ele a amava e resolveu abandoná-la, deixá-la à sua sorte. À
noite, porém, o anjo do Senhor, em sonho o informa a respeito e lhe ordena, da parte de Deus,
tomar Maria como sua esposa e cuidar de ambos, pois o menino gerado pelo Espírito Santo é o
Messias, o Salvador prometido (Mt 1.18-25). Quanta zombaria os dois devem ser sofrido.
Depois, a ordem do recenseamento (Lc 2.1-7). A estrebaria em Belém. A fuga para o Egito, etc.
Como Deus age ao contrário do que nós esperamos ou imaginamos. Para nossa razão, tudo isso
é loucura. Incrédulos em nossa volta o confirmam constantemente.
Este Deus, em sua santidade e majestade diz: Todos quantos, pois, são das obras da lei
estão debaixo de maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece
em todas as coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las (Gálatas 3.10). Ele
realmente amaldiçoa e odeia o pecador, não somente o pecado, mas o que pratica o
pecado, que é culpado de pecado; ao mesmo tempo, em Cristo, Deus ama o pecador e
não quer a sua perdição, mas que o pecador chegue ao conhecimento da verdade, se
arrependa, creia na graça de Cristo e seja salvo (1 Tm 2.4; Jo 3.16; Ez 33.11).

Por que Deus se oculta tão profundamente


Por que Deus age assim? Por que ele se oculta tão profundamente? A resposta a estas
perguntas só teremos na eternidade. Aqui nos cabe crer contra nossa razão, contra o ver
e o sentir, contra as argumentações de nossa razão e a zombaria do mundo.
Como fica então nossa razão, nosso intelecto? Não foi Deus que nos criou como
seres racionais? Não foi ele que deu a ordem: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a
terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo
animal que rasteja pela terra (Gênesis 1.28). O ser humano, por sua inteligência a
sujeita. Sobe até a lua e além, pesquisa micróbios e gens, etc. Em coisas espirituais, no
entanto, após a queda de Adão e Eva em pecado, todo o ser humano nasce em pecado,
isto é, ele é por natureza cego, morte e inimigo de Deus (Sl 51.19; Ef 2.3; Mt 15.19).
Isto nossa consciência também nos diz. Evidentemente de forma mais branda. Ela nos
diz que há um Deus que criou tudo; nossa consciência tenha um conhecimento
elementar da moral. Procuramos Deus nas criaturas e adoramos ídolos. E quando Deus
se manifesta, nós nos revelamos como seus inimigos.
Por isso, entender as coisas celestiais, a palavra de Deus, só é possível pelo poder do
Espírito Santo. Nenhum filósofo, nem psicólogo, nem poderoso deste século pode
entendê-lo. O mistério do amor de Deus revelado em Cristo, só pode ser aceito pela fé.
Não uma fé humana, mas a fé operada pelo Espírito Santo (Mt 16.17). Só quem tem o
Espírito de Cristo, quem renasceu pela água e pelo Espírito Santo (Jo 3.5), está
capacitado de ver as coisas invisíveis, que somente a fé vê, firmada na palavra de Deus.
Mesmo o cristão que renasceu, que tem algo novo em si, a saber, a fé em Cristo,
ainda tem sua natureza carnal que se opõe à palavra de Deus, a questiona e a considera
loucura. Nossa natureza carnal gosta de olhar e seguir o mundo. Por isso o apóstolo
Paulo exclama: Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem
nenhum, pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo... Desventurado
homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? (Romanos 7.18,24). Assim o
intelecto nas coisas invisíveis é somente possível onde o Espírito Santo gerou a fé na
graça de Cristo, isto é, chamou e iluminou a mente. Diz a palavra de Deus: Serão todos
ensinados por Deus (Sl 1.6).
Nossa razão prefere a glória, a cruz; o poder, a fraqueza; a sabedoria, a tolice; as
experiências palpáveis, a fé em coisas que não se vêem e as coisas que se esperam.
Todas as concepções errôneas a respeito de Deus se frustram, no entanto, diante da
cruz. A cruz coloca tudo à prova. A cruz é juiz de toda a glória humana. “A via crucis
significa, por isso, desistir de toda a glória humana para afundar-se na incompreensão”.

Relação entre fé e experiência


Colocado isso, podemos indagar: Qual, então a relação entre fé e experiência. Afirma
o escritor da carta aos hebreus: Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a
convicção de fatos que se não vêem (Hebreus 11.1). O que a fé não vê? Ela não vê, nem
percebe a Deus, que é abscondito (oculto). Não vê o amor de Deus, pois Deus o revelou
e se revela ao contrário do que imaginamos e esperamos. Seus fiéis estão sujeitos a
todas as peripécias neste mundo, como doenças, desastres, acidentes, serem vitimas de
banditismo, serem perseguidos, etc. Como o vemos nos relatos tanto do Antigo como do
Novo Testamento (Veja alguns exemplos: 1 Sm 22.6-19; 1 Rs 21.8-16; At 7; 12). Sim,
seus fiéis foram presos, açoitados, mortos a espada, por causa do nome de Cisto. Lutero
afirma: “Fé e experiência, muitas vezes se excluem mutuamente. Pois crer e ver
encontra-se em nítida oposição”. O objeto da fé é oculto e não acessível à percepção, ao
pensamento racional. Pregadores tentam, muitas vezes, tornar o objeto da fé
compreensível e não notam que caem no moralismo da lei. Seus sermões não são mais
evangélicos, mas simplesmente moralizantes. (Vontade Cativa de Lutero).
Deus dirige seus fiéis na vida e diz: De todos sereis odiados por causa do meu nome.
Contudo, não se perderá um só fio de cabelo da vossa cabeça (Lucas 21.17,18). Tantas
e tantas vezes nem percebemos a presença de Deus em nossa vida, julgando que Deus
nos abandonou. E quando julgamos tê-lo percebido, notamos logo depois, que nos
enganamos. A nós cabe, como Abraão, largar todos os sustentáculos materiais e confiar
unicamente na palavra de Deus, quer eu o sinta ou não. Sim, muitas vezes não temos
nem consciência de nossa fé e julgamos: Não sei se ainda creio. Acho que perdi a fé.
Quem me desse pudesse crer! Lutero afirma com razão: “Deve-se encarar como
tentação de Satanás, quando a pessoa se julga segura naquilo que ela sente dentro de si.
Pois a fé não procura por tais sentimentos. Ela chega a ser “insensível a isso”. A palavra
toma o lugar das “coisas invisíveis”. Não sentir, mas crer, confiar na palavra de Deus.
Infelizmente muitas igrejas evangélicas dirigem seus membros em vez de aos meios
da graça (Palavra e sacramentos), a olharem para dentro do seu próprio coração para ver
se sentem a ação do Espírito Santo, se tiveram ou têm alguma experiência e sinais da
ação do Espírito Santo, para terem assim certeza da graça de Cristo. E se não sentirem
nada que jejuem e clamem a Deus pedindo sua graça e experiência no Espírito Santo.
Neste respeito cumpre lembrar, primeiro: Nós pedimos perdão de Deus e o dom do
Espírito Santo, mas isto pelos meios da graça (evangelho e sacramentos), visto que a
oração, em si, não é um meio da graça. A palavra de Deus, esta sim, opera e gera a fé e
dá o que ela oferece e sela, perdão, vida e eterna salvação. Nós não olhamos para dentro
de nós, o Cristo “em nós”, mas para a palavra de Deus que nos anuncia o Cristo “por
nós”. Este é o fundamento de nossa fé, não nossos sentimentos.

O conteúdo positivo na experiência


Mesmo assim, há também um conteúdo positivo para o conceito: fé e experiência.
Mesmo encontrando-se a fé em constante conflito com a percepção, pois seu objeto não
é perceptível, ela tem um caráter escatológico, e assim não exclui toda e qualquer
experiência. Pois de certa forma, pode-se sentir e experimentar “a graça de Deus”. Ela é
oculta, mas suas obras não. A fé que se concretiza na experiência é o amor.
Ninguém compreende a Deus nem sua palavra, a Bíblia, a não ser pelo Espírito
Santo e ninguém pode tê-la, sem experimentá-la. O Espírito Santo no-la ensina em sua
própria escola, por palavra e sacramentos.
Sendo a fé confiança e esperança, um renascer e vida nova, mesmo assim, a
“sabedoria da cruz” continua uma sabedoria oculta, um mistério.
Eu, como pessoa distante de Cristo, pertenço à morte e ao inferno. Mas agora, pela fé
pertenço a Cristo. Fui enxertado nele, sou membro do seu corpo, templo do Espírito
Santo. Por isso, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim (Gl 2.20). Mesmo
assim, não compreendo como Cristo vive em mim. Nesta união, o meu eu não é
anulado. “O meu corpo não entra numa união mística com Cristo. Não é o justificado
que vive, mas Cristo vive nele. Como? Pela fé temos tudo em comum com Cristo. A
Bíblia fala em: ser vestido com o manto da justiça (de Cristo) (Is 61.10), ser membro do
corpo de Cristo (1 C0 6.15), como duas pessoas unidas no santo matrimônio (Ap 21.9).
“A união não vai além da relação entre fé e Cristo” (Lutero em seu Comentário aos
Gálatas).
Para clarificá-lo melhor, vamos repetir alguns detalhes. No primeiro caso, trata-se da
experiência natural e a percepção (creio que por minha própria razão e força não posso
crer) que se encontram-se “na mais aguda contraposição com a fé”. No segundo, temos
uma experiência, não ao lado da fé, mas como fruto da fé. Sua medida depende da fé.
Assim a experiência é obra do Espírito Santo, não fruto de um movimento psicológico,
de uma empolgação, quer pela música ou devido a um grande ajuntamento. Quando
experimentamos algo da bondade e do amor de Deus, quando uma santa alegria enche
nosso coração, o Espírito Santo no-la concedeu e operou não a nossa razão humana.

A vida do cristão é oculta


Aqui precisamos abordar mais um detalhe em relação à experiência. A própria vida
do cristão é oculta. Como? A fé é a certeza de coisas que se esperam. E mesmo sendo a
fé um novo nascimento, não posso ver a fé, nem prová-la. Por exemplo, se uma pessoa
confessa sua fé, digamos pelo Credo Apostólico, aceitamos sua confissão, mas não
posso olhar para dentro dele a fim de ver se sua fé é verdadeira, se ela de fato tem fé.
Por isso confessamos: “Creio na santa igreja cristã, a comunhão dos santos”, pois
somente o Senhor conhece os seus (2 Tm 2.19). Assim dizemos também no
sepultamento de uma pessoa adulta: Esperamos que nosso irmão falecido, adormeceu
na fé que confessou. Nunca dizemos: Temos certeza que este irmão ou irmã está no céu.
Lutero afirma: “Nossa vida na fé é semelhante a um tesouro oculto num campo. Ela é
tão profunda que os próprios santos não têm consciência de sua verdadeira vida”. E
continua: “Por ser esta a sabedoria da cruz, somente Deus conhece o caminho dos
justos. Ela é abscondita (oculta) aos próprios justos. A mão direita de Deus os conduz
de modo maravilhoso. Este é um caminho do não sentido, da não razão, pois somente a
fé enxerga na escuridão as coisas invisíveis” (Lutero). A vida do cristão é uma realidade,
mas não perceptível. Mesmo pelas obras que são frutos da fé, como afirma Tiago
(2.17.18), não são sinais absolutos, pois podem enganar. A nós, o juízo de Deus sobre as
pessoas está oculto. Pois carne e espírito em nós estão em constante luta. A vida do
cristão ainda está envolta em muita fraqueza. Ela não pode ser delimitada. O novo
homem está sempre oculto no velho homem. O cristão é simultânea e totalmente santo e
pecador. Por isso, julgamos muitas vezes que alguém, devido suas boas obras é um bom
cristão, quando na verdade não o é; a outro consideramos, devido suas muitas fraquezas,
uma pessoa não cristã, quando na verdade é um cristão.

A vida cristã em sofrimento


Em seu estudo Da vontade Cativa (WA XVIII, 633.7), Lutero afirma: “O estado
cristão há que ser oculto sob o contrário, isto é, sua glória tem que apresentar-se na
baixeza; sua grandeza, na ignomínia; sua alegria, em sofrimento; sua esperança, no
desespero; sua vida, na morte”. Jesus disse: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo
se negue, tome a sua cruz e siga-me (Marcos 8.34). E o apóstolo Paulo afirma: Através
de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus (Atos 14.22).
A vontade de Deus pode acontecer quando a nossa não acontece. Lutero escreve:
“Quando Deus nos manda ao sofrimento, ele realiza sua obra alheia; nisso, porém, visa
uma obra própria (nossa salvação), mesmo que não a reconhecemos”. “No sofrimento
Deus vem ao nosso encontro. Por isso, o sofrimento deve ser considerado um santuário
que santifica a pessoa, ou seja, separa a pessoa das obras naturais para o serviço a
Deus”. “Seu sentido não é destruição como no caso dos ímpios, mas graça
purificadora”.
Ser crucificado com Deus, crer contra a esperança, acontece de duas formas: No
interior da pessoa, pela mortificação da carne (Gl 5.24) e de fora, pela inimizade do
mundo.

Paz, alegria e felicidade


O mundo os entende a sua maneira, a saber, coisas terrenas. O pietista e o pentecostal
também se afastam da compreensão bíblica e a interpretam ao nível da psicologia, de
forma material. Mas a Bíblia fala na paz que excede a todo o entendimento (Fp 4.7), a
saber, os sentidos e a experiência ficam sem nada. O mundo não os pode ver. A alegria é
no Espírito Santo. A alegria é na promessa de Deus. Pois ao cristão falta, muitas vezes
tudo o que proporciona alegria ao homem natural. Também a felicidade está oculta sob a
cruz, pois só ela traz verdadeira felicidade aos filhos de Deus. A palavra busca a fé, a fé
dirige-se às coisas oculta.

Humildade, tentação e oração


Lutero destaca três coisas na vida sob a cruz: Humildade, a virtude básica da vida
sob a cruz (Dicatata super Psalterium). A fé ensina a humildade, pois é a negação de
nós mesmos, auto-rejeição total de si mesmo e plena confiança na graça de Cristo.
Quem ostenta sua humildade, não é humilde. Humildade é o renunciar consciente a
todas as qualidades humanas com as quais poderia argumentar. Humildade, como a fé,
não é virtude, mas renuncia a toda a virtude.

Tentação
A vida sob a cruz é uma vida de tentações. As tentações surgem quando não
conseguimos realizar a caminhada da fé. Quando indagamos sobre a razão do
sofrimento e nos sentimos abandonados por Deus, sim, quando parece que Deus nos
odeia. Parece que Deus se contradiz. Esta é a maior das tentações, quando a pessoa se
vê abandonada e rejeitada por Deus. O diabo aproveita esses momentos para nos tentar
para a incredulidade. Nestes momentos não nos resta outra coisa do que agarrar-nos
firmemente, contra todo o pensar e sentir, à palavra de Deus, pois nela Deus nos fala.

Oração
Onde não se ora não há fé. Lutero nos lembra da dificuldade na oração. Não é fácil a
nós pecadores, colocarmo-nos diante do santo e justo Deus. Estremecemos. E ao mesmo
tempo importa, nestes momentos, não olhar para nossa indignidade, mas para as
promessas de Deus e falar ao nosso Pai celestial, como seus queridos filhos, com toda a
confiança em sua misericórdia.
Muitas vezes Deus nos atende ao contrário. Mas o aparente não atendimento, ou ao
contrário, é o melhor atendimento. Não colocamos a Deus medida nem alvo para seu
auxílio. Mesmo o tirar o sofrimento deixamos a seu encargo. Não queremos agir como
as seitas com ordens a Deus o aqui e agora. Firmados na promessa, temos em fé certeza
que Deus nos atende como melhor nos convém.

Teologia da Glória versus Teologia da Cruz

A teologia da glória como a teologia da cruz são uma forma de ler e interpretar a
Bíblia. Eles não são uma doutrina específica, mas focam o acento, o ponto de partida na
interpretação das Escrituras.
A teologia da glória procede do calvinismo e perpassa quase todas as denominações
evangélicas. Faz-se sentir, especialmente, no pentecostalismo e nos neopentecostais.
Eles vêem o pecado como uma doença e negam a corrupção total do ser humano
(pecado original). Eles atribuem à razão humana a capacidade de tomar decisões em
coisas espirituais, como por exemplo: decidir-se por Cristo. São, portanto, sinergistas. O
ser humano colabora em sua salvação. Como sinergistas, eles vêem e falam de Cristo
mais como Senhor que deve ser obedecido, do que como Salvador, que nos remiu.
Recentemente um destes pregadores falou sobre: Atitudes. Ele disse o seguinte: Noé
tomou a atitude de obedecer a Deus e tornou-se o salvador da humanidade. Abraão,
mesmo não sabendo para onde iria, tomou a atitude de deixar-se guiar por Deus e
tornou-se o pai da fé (fé como obediência). José, no Egito, tomou a atitude de não
adulterar, e tornou-se vice-rei do Egito. Moisés tomou a atitude de obedecer a Deus e
tornou-se o libertador do seu povo, e assim por diante. Tudo está na ação humana. Tudo
isso é oposto à teologia da cruz
A teologia da cruz tem seu centro no que o apóstolo Paulo afirma: Nós pregamos a
Cristo crucificado (1 Co 1.23). Certamente a palavra da cruz é loucura para os que se
perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus (1 Co 1.18). Pois muitos
andam entre vós, dos quais repetidas vezes eu vos dizia e agora vos digo até chorando,
que são inimigos da cruz de Cristo (Fp 3.18). A cruz é juízo e consolação. Tudo é
provado pela cruz. Concluímos, pois, que o homem e justificado pela fé,
independentemente das obras da lei (Rm 3.28).
Estamos rodeados pela teologia da glória. Ela invade nossos lares pela mídia e
facilmente pode contagia nosso modo de pensar e a vida congregacional. Por isso
importa vigiar.
Esta teologia afeta especialmente as seguintes áreas da vida congregacional, gerando
ali conflitos com a teologia da cruz.

1. Fé – Ambas as teologias falam em fé. A teologia da glória fala de Cristo como


vencedor e Senhor dos senhores. Fé é submeter-se a Cristo e obedecer. Quem o
adorar e lhe obedecer, este, já nesta vida, será, recompensado com sucesso. – A
teologia da cruz acentua Cristo como nosso Salvador, que nos reconciliou com
Deus Pai. Nele temos perdão dos pecados, vida em comunhão com Deus. Mas,
aqui na terra estamos ainda sob cruz e sofrimentos, em luta com nossa própria
natureza carnal, a glória está nos reservada no lar celestial.

2. Vida santificada – A teologia da glória busca o Espírito Santo por meio de


jejuns e clamores, para obterem sinais visíveis de sua presença como o falar em
outras línguas, a operação de milagres e revelações especiais. – A teologia da
cruz se apega aos meios da graça, Palavra e sacramentos, pelos quais o Espírito
Santo trabalho quando e onde lhe aprouver (CA V), quer eu o sinta ou não.

3. Estrutura congregacional – A teologia da glória defende uma democracia


igualitária, isto é, não há diferença entre leigos e pastores. – A teologia da cruz
reconhece o sacerdócio universal de todos os crentes e também o santo
ministério como instituído por Deus, sendo os ministros não superiores, mas
servos da congregação.

4. Estratégias evangelísticas e missionárias. – Há dois pontos aqui. Primeiro, a


teologia da glória defende a adoção das tradições e da cultura local, julgando que
esta tornará o evangelho mais aceitável; segundo, desenvolvem uma estrutura
social que consideram tão importante na missão quanto a pregação da Palavra -
A teologia da cruz considera a pregação da palavra de Deus de forma clara e
pura, com correta distinção e aplicação de lei e evangelho a missão principal da
igreja. O escândalo da cruz é inevitável. Da fé brota o amor aos necessitados.

5. Ecumenismo. - A teologia da glória promove uniões e cooperações,


independente da unidade doutrinária. Defendem a diversidade na união, pois
crêem que a magnitude organizacional e grandes multidões são um fator para o
sucesso, para estabelecer o reino de Deus (material) no mundo. – A teologia da
cruz sabe-se sob a cruz e que a verdadeira unidade da igreja é invisível, pois é fé
no coração, a nós cape preservar a unidade do Espírito no vincula da paz (Ef
4.3), a saber, a pureza doutrinária.

6. Prosperidade. – A teologia da Glória vê na prosperidade e no crescimento


externo um sinal da bênção de Deus. Com isso colocam a ação de Deus em mãos
humanas. – A teologia da cruz sabe que o Espírito Santo trabalho “onde e
quando lhe aprouver” (CA V), e que nós somos neste mundo peregrinos e
forasteiros sob cruz e sofrimentos.

Conclusão
Este pequeno estudo visou alertar sobre os perigos da teologia da glória, bem como
clarificar em nosso meio o tema: Fé e experiência. Que Deus o abençoe.
São Leopoldo, 04/10/2010
Horst R. Kuchenbecker
Bibliografia
1) Loewenich, Walther von. A Teologia da Cruz de Lutero. Editora Sinodal. São
Leopoldo, RS, 1988.
2) Wengenroth, Karl, The Theeology of the Cross, a theological historical
treatment, apresentado em Antigua, Guatemala, 05/08/1981.
3) Klän Werner e Barnbrock, Christoph. Heilvolle Wende. Edition Ruprecht,
Göttingen, 2010, ps. 114ss.
4) Martinho Lutero, O Debate de Heidelberg. Obras Selecionadas. Vol. I, p. 35ss.
Editora Sinodal, São Leopoldo e Concórdia Editora, Porto Alegre, RS. 1987.
5) Martinho Lutero, Da Vontade Cativa. Obras Selecionadas, vol. IV, p. 11ss.
Editora Sinodal, São Leopoldo e Concórdia Editora, Porto Alegre, RS.1993.
6) Walther, Carl F. W. Lei e Evangelho. Editora Concórdia, Porto Alegre, e Editora
da ULBRA, Canoas. RS. 2005.

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