Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
0323
artigos
para processos de formação em saúde
Figueiredo MD, Campos GWS. Paideia support as a methodology for healthcare education
processes. Interface (Botucatu). 2014; 18 Supl 1:931-43.
This paper analyzes Paideia support Este artigo analisa o apoio Paideia como
as a pedagogical framework for referencial pedagógico num processo
healthcare education processes, with de formação em saúde, cujo desenho
a design combining theoretical offers, combinou ofertas teóricas, discussão de
case discussion and interventions. We casos e intervenções. Avaliamos os efeitos
analyzed the effects of this process on desse processo formativo nas práticas dos
the participants’ practices, with regard participantes, no que se refere à abordagem
to subjective approaches. The empirical da subjetividade. O material empírico foi
material was constructed from focus construído a partir de: grupos focais; análise
groups, analysis of a clinical case and de um caso clínico; e discussão com a
discussions with the team responsible equipe responsável pelo caso. Observaram-
for the case. Changes in clinical practice, se mudanças nas práticas clínicas, de
management and “self-management” gestão, e na “gestão de si”. Os profissionais
were observed. These professionals desenvolveram competências técnicas,
have developed technical, ethical and éticas e relacionais para atuarem nas
relational expertise for working on the múltiplas dimensões dos sujeitos. Conclui-
multiple dimensions of the subjects. It se que a ênfase na troca de experiências e
was concluded that the emphasis on na articulação entre reflexão e intervenção
exchanges of experiences and on linkages contribui para que a formação produza
between reflection and action contributes mudanças nos sujeitos, nas práticas e nos
towards producing changes in the subjects, serviços de saúde.
practices and healthcare services. (a,b)
Departamento
Palavras-chave: Método Paideia. Apoio de Saúde Coletiva,
Keywords: Paideia method. Institutional institucional. Formação. Clínica ampliada. Faculdade de Ciências
support. Education. Expanded clinical Subjetividade. Médicas, Universidade
practice. Subjectivity. Estadual de Campinas
(Unicamp). Rua Tessália
Vieira de Camargo, 126,
Cidade Universitária
Zeferino Vaz. Campinas,
SP, Brasil. 13083-887.
madorsa@hotmail.
com; gastaowagner@
mpc.com.br
Introdução
Apesar dos avanços na ampliação do direito e do acesso à saúde no SUS, ainda permanece o desafio
de qualificar e legitimar a assistência, buscando a produção de saúde de forma integral e resolutiva.
Uma das diretrizes, nesse sentido, é a construção de uma clínica ampliada e compartilhada1-3, que
pressupõe: 1) tomar como objeto de trabalho não somente a doença, mas o sujeito em sua existência;
2) tomar como objetivos do trabalho, além da cura, reabilitação e prevenção, o desenvolvimento da
autonomia; 3) compor o diagnóstico, considerando não só o saber clínico e epidemiológico, mas a
história e os saberes do sujeito; 4) definir a terapêutica, considerando a complexidade biopsicossocial;
5) construir relações baseadas no diálogo, na negociação, no compartilhamento do saber e do poder, no
vínculo e na responsabilização; 6) trabalhar em equipe e em rede.
Entretanto, o enfoque técnico e centrado no paradigma biomédico dos cursos de graduação, assim
como a insuficiência de instâncias de formação permanente nos serviços, não têm possibilitado a
qualificação dos profissionais para analisarem a complexidade das dimensões constitutivas dos sujeitos,
tampouco para operarem com essa concepção clínica. Diversas pesquisas4-6 demonstram as dificuldades
enfrentadas pelos profissionais na abordagem da dimensão subjetiva que toda prática em saúde supõe,
por encontrarem-se sem arcabouço teórico e prático.
Assim, faz-se necessário investir em propostas de formação permanente para os profissionais do
SUS, que aportem uma visão ampliada do processo saúde-doença-intervenção e que os qualifiquem
tanto para lidar com o universo emocional, simbólico e sociocultural dos sujeitos, como para
compreender a prática clínica como prática inter-relacional e operar com os fluxos de afeto e poder.
Este artigo descreve uma pesquisa realizada no âmbito de um Curso de Especialização com caráter
de intervenção institucional, que foi oferecido, pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, para
profissionais da Atenção Básica do SUS-Campinas (SP). O curso adotou como referencial pedagógico a
concepção teórica Paideia e sua metodologia de apoio à cogestão de coletivos1. A partir da análise do
uso do apoio Paideia nesse curso, pretende-se contribuir para a formulação de propostas de formação
permanente aos profissionais do SUS, como dispositivos para a produção de mudanças nos sujeitos,
nas práticas e nos serviços de saúde.
Historicamente, a formação dos profissionais de saúde tem sido pautada pelo modelo de educação
positivista, que tende a fragmentar o conhecimento e a reduzir o saber à busca pela eficiência técnica.
O conhecimento, nessa lógica, é visto como produção estática, como verdade que está no mundo para
ser descoberta. Dessa forma, os processos de ensino-aprendizagem se restringem à transmissão do
conhecimento de um sujeito que o detém para outro que o retém e deve repeti-lo7,8.
A consolidação de políticas públicas para garantia de cidadania exige outro modelo de educação,
que estimule a construção da consciência crítica, da curiosidade criativa e indagadora de um sujeito
que reconheça a realidade como mutável e busque transformá-la. Além disso, o trabalho em saúde
se dá essencialmente por meio da relação entre pessoas. Portanto, a visão de mundo, os valores, a
postura ético-política e os afetos do profissional comparecem em suas intervenções9. Sendo assim,
devem ser tomados como objeto juntamente com os aspectos técnico-científicos no processo de
formação. O desenvolvimento do SUS depende da formação de profissionais com competências
técnicas, mas também ético-políticas e relacionais; com capacidade crítica e sensibilidade para pensar
as questões da vida e da sociedade, e para atuarem em contextos de incerteza e complexidade10.
Para isso, a metodologia dos processos de formação deveria imbricar teoria e prática, estudo e
intervenção, partindo das experiências e dos problemas concretos para desenvolver a capacidade de
reflexão e ação dos sujeitos. Como referencial pedagógico para esse modelo de formação, propõe-se
o método Paideia, uma rede conceitual e operativa desenvolvida por Campos1 para o trabalho com
coletivos.
O apoio Paideia é a metodologia para operacionalizar essa rede de conceitos e possui vários eixos
artigos
de aplicação. Pode ser utilizado na gestão (apoio institucional); nas relações interprofissionais (apoio
matricial); e na relação clínica (clínica ampliada e compartilhada). Nos últimos anos, o apoio Paideia
também tem sido utilizado como metodologia para a formação em saúde11-13.
Segundo Campos1, o trabalho possui um triplo objetivo: trabalha-se para produzir valor de uso
para terceiros; trabalha-se para si mesmo, para assegurar a própria existência social; e trabalha-se para
a reprodução da própria organização. Dessa forma, além dos aspectos administrativos e financeiros, a
gestão deveria considerar os aspectos políticos, pedagógicos e subjetivos que constituem os processos
de trabalho, isto é, seriam objetivos da gestão a produção de bens ou serviços, mas também a
produção dos sujeitos e coletivos. Ademais, o trabalho se exerce entre sujeitos com distintos graus de
conhecimento e poder, o que torna indispensável a construção de espaços coletivos em que as equipes
possam elaborar projetos comuns e lidar com os conflitos e diferenças por intermédio da construção de
contratos.
O objetivo do Método seria interferir no contexto institucional, visando efetivar a gestão
democrática (cogestão) e ampliar a capacidade dos sujeitos para analisar, tomar decisões e agir sobre a
realidade.
Resgatando o pensamento de Aristóteles, Campos14 afirma que o trabalho em saúde é o exercício
de uma práxis, já que se dá por meio de relações entre sujeitos, e por isso não pode se desvincular
da análise da singularidade do contexto. Ao contrário do saber técnico, em que o conhecimento
prévio dispensaria reflexão ou deliberação, na práxis o sujeito não pode se isentar da reflexão e da
prudência: ele deve considerar o conhecimento acumulado, mas equacioná-lo na situação singular,
considerando os sujeitos envolvidos, os diferentes valores e conjunturas.
Toda práxis é uma atividade de transformação de dadas circunstâncias, que nos conduzem a
formar novas ideias, que por sua vez nos auxiliam a criar novas circunstâncias. Portanto, a formação
de pessoas para a transformação do trabalho em saúde deve operar concomitantemente os sujeitos
e as instituições. Considerando que a transformação das pessoas e do trabalho dá-se por meio da
elaboração reflexiva das experiências de interação dos sujeitos com o mundo, a formação deveria
incluir tanto o pensamento como a ação.
O termo apoiador pretende enfatizar a noção de suporte, amparo, auxílio, mas também a noção de
impulso para o movimento. O apoiador deve oferecer suporte à constituição do coletivo, facilitando
a interação e reflexão. Mas, ao mesmo tempo, deve ofertar novos conceitos, categorias e recursos,
empurrando o grupo para atingir seus objetivos15. Seja ele um apoiador institucional, matricial ou um
apoiador num processo formativo, seu trabalho é ajudar o grupo a analisar seus dilemas e impasses,
com um compromisso de passar da análise e da crítica para a intervenção na realidade.
O apoiador está implicado com certo projeto técnico e político e traz consigo seus posicionamentos
a respeito do ideal de um sistema de saúde, dos modelos assistenciais e de gestão. Assim, ele deve
considerar as diretrizes institucionais e clínicas, os resultados da atividade prática e dos processos
de trabalho. Ele autoriza-se a trazer olhares distintos que permitam abalar as verdades instituídas
e contribuir para mudanças nos modos de pensar e agir. Porém, ao invés de impor essas questões,
coloca-as em debate para que o grupo exerça a cogestão.
Nesse sentido, destaca-se como característica fundamental do apoio Paideia a combinação da
demanda do próprio grupo com as ofertas trazidas pelo apoiador, tanto na eleição dos temas a serem
analisados, como nos próprios elementos a considerar na análise e na definição das propostas de
intervenção.
A noção de oferta pretende enfatizar a necessidade de apoiar o grupo a confrontar-se com o
externo, com o diferente e, a partir disso, exercitar sua capacidade de cogestão. Assim, trabalha-se
tanto a partir de temas relacionados aos interesses do grupo, como outros decorrentes do contexto
social trazidos pelo apoiador, que podem ser informações, protocolos, diretrizes, perspectivas distintas
Um grupo de apoio Paideia deve ocorrer num espaço coletivo: um lugar e um tempo que possibilite
encontros periódicos entre os profissionais, de modo que consigam refletir e intervir sobre a prática.
Nesse espaço coletivo, o apoiador deve contribuir para a construção de uma grupalidade que
permita às pessoas se identificarem, em graus distintos, como pertencentes ao grupo e compartilharem
um objetivo ou projeto. Com um contrato de funcionamento do grupo, deve-se criar uma condição
de espaço protegido, onde o grupo pode depositar confiança para falar de sua prática e expor seus
questionamentos e dificuldades.
A dinâmica dos encontros baseia-se na estratégia de discussão de casos reais ou temas de interesse
do grupo e relevantes ao contexto. Em cada encontro se analisa um caso ou tema e se define tarefas
que o grupo deverá desenvolver, exercitando sua capacidade de intervenção. A tarefa pode ser desde
a busca novas informações, até um projeto de intervenção estruturado, que envolva vários atores e
a modificação de dada situação. Então, no encontro seguinte, o grupo faz novo movimento: avalia
o resultado das ações, volta a analisar a situação ante às novas informações e redesenha o plano de
intervenção.
A estratégia de discussão de casos pretende estimular os profissionais a falarem da prática concreta,
o que possibilita analisar o que é coproduzido na instituição e o que se passa na relação entre
profissional, equipe e usuários. Entretanto, procura-se trabalhar com o sentido que o “caso” adquire na
psicanálise. Para Nasio16, o caso em medicina remete ao sujeito anônimo que representa uma doença:
diz-se, por exemplo, “um caso de tuberculose”. Para a psicanálise, ao contrário, o caso exprime
a singularidade do ser e da fala que ele nos dirige, ou seja, trata-se de “o caso”, “o meu caso”,
implicando também a escuta dos diferentes profissionais que se relacionam com o sujeito.
Desse modo, o relato de um caso nunca é o reflexo fiel de uma situação, mas é uma reconstituição,
uma história reformulada a partir da escuta e da subjetividade do profissional. Portanto, ao solicitar que
os profissionais apresentem um caso para discussão, pretende-se focalizar a relação clínica, os afetos e
conflitos que aí se estabelecem. Além dos aspectos técnicos envolvidos na condução do caso, interessa
a reflexão sobre os motivos da escolha do caso, o modo como os profissionais lidam com os valores e
sentimentos, o modo como a equipe se organiza para resolver as dificuldades.
Essa estratégia de formação, centrada na discussão de casos, foi desenvolvida por Balint17 na década
de 1950, numa experiência com grupos de supervisão com clínicos gerais vinculados ao Sistema
Nacional de Saúde da Inglaterra. Nesses grupos, Balint propunha a análise do que se passava na relação
entre médicos e pacientes e dos aspectos inconscientes que influenciavam a evolução da doença e do
tratamento. No apoio Paideia, a estratégia de discussão de casos foi ampliada em três sentidos12.
Primeiro, ampliou-se o entendimento sobre o que se configura como “caso”. Balint preconizava
o debate sobre casos clínicos e enfatizava a clínica individual (o trabalho médico na Inglaterra não se
dava em contexto de equipe). No apoio Paideia incluem-se casos de Saúde Coletiva e institucionais, isto
é, problemas comunitários, grupos de promoção à saúde e situações de ordem gerencial. Além disso, os
casos podem ser apresentados por um único profissional ou por uma equipe, embora o tema da equipe
seja central em todas as situações discutidas.
O segundo sentido de ampliação refere-se ao papel ativo do apoiador ao trazer ofertas. Balint
trabalhava essencialmente com o que era trazido no relato dos casos, no que se referia às implicações
psicológicas na clínica. No apoio Paideia, o apoiador oferta núcleos de análise não abordados pelo
grupo, e temas teóricos sobre atenção à saúde, trabalho em equipe e organização do SUS, além de
diretrizes, demandas e experiências de outras instâncias.
Uma terceira ampliação refere-se à ênfase na prática concreta. Cada caso é apresentado, discutido
artigos
e analisado, buscando-se uma compreensão coletiva sobre a situação singular e também sobre os
temas que emergem da discussão e que podem ser generalizados em outras situações. Porém, na
sequência, deve ser elaborado um conjunto de propostas de intervenção para orientar a resolução das
dificuldades e conflitos. Essas propostas devem ser organizadas na forma de Projeto Terapêutico (para
os casos clínicos) ou de Projeto de Intervenção (para os casos institucionais ou de Saúde Coletiva).
Com isso, o caso, mais que um exercício de reflexão, transforma-se em um desafio que o profissional e
sua equipe deverão levar à prática, avaliando, ao longo do processo, os avanços e dificuldades.
Assim como nos grupos operativos de Pichon-Rivière18, no apoio Paideia o saber (análise)
aproxima-se do fazer (tarefas), possibilitando que do agir os sujeitos busquem teorias, conceitos,
modelos para analisar e modificar, com certo distanciamento, a si mesmos e suas formas de ação. O
movimento de retomada da análise e do diagnóstico a partir da realização das intervenções permite
criar uma diversidade de interpretações e assim modificar os sentidos já cristalizados pelos profissionais
e afirmar as possibilidades de reconstrução social da realidade.
O caso de Dna. Ana foi trazido por Arthur(c), médico de uma Unidade Básica
de Saúde (UBS). Dna. Ana era uma mulher de 75 anos, mãe de 12 filhos. Ela (c)
Todos os nomes usados
neste texto são fictícios.
era hipertensa, tomava os medicamentos irregularmente, morava sozinha e não
aceitava cuidados dos familiares. Arthur escolheu esse caso porque Dna. Ana
demandava muito da equipe, trazendo inúmeras queixas, como dores no corpo,
nas costas, nas pernas, cefaleias, insônia, depressão. A agressividade com que ela
se dirigia à equipe havia produzido diversos conflitos entre eles.
Na discussão, o grupo se identificou com a situação: “todo mundo tem uma
Dna. Ana batendo na porta”. Ao analisarem a relação da equipe com o dela,
deram-se conta de que a equipe, ao se referir à paciente como “poliqueixosa”,
não levava a sério suas necessidades e respondia a elas de forma prescritiva. O
grupo refletia a impotência sentida pela equipe, referindo que não dão conta
da complexidade dos casos que incluem diversas questões sociais. Discutiu-se,
artigos
como o sanitário, clínico, político, social, subjetivo.
Como propostas de intervenção, o grupo sugeriu: - Compreender a rede social e assistencial de
apoio; - Fortalecer vínculos da paciente com alguém da equipe; - Restabelecer contato com familiares;
- Propor atividades no Centro de Saúde ou no bairro; - Ajudá-la a descobrir coisas que dão prazer.
Seis meses depois, Arthur reapresentou o caso ao grupo. Uma de suas intervenções produzira
grande mudança na relação com Dna. Ana. Arthur foi à casa dela, numa visita que chamou de
“despretensiosa”: foi apenas conversar, ouvir sua história de vida e, dessa forma, conseguiu
aprofundar seu diagnóstico, incluindo nessa compreensão a dimensão emocional e social. Essa
intervenção, embora aparentemente simples, contribuiu para que Arthur se colocasse como
profissional de referência para Dna. Ana e isso foi dando outro contorno ao contato dela com a equipe
como um todo.
Arthur também chamou um dos filhos dela para conversar, pretendendo ajudar na reaproximação
familiar, de forma que alguém se responsabilizasse por algum cuidado. Os desdobramentos dessas
intervenções puderam ser observados pela equipe durante outras visitas de rotina:
“O marido da neta estava pintando as paredes e trocaram alguns móveis. Dna. Ana estava
serena, disse que não precisava daquilo, mas estava agradecida e feliz. Em outra visita Dna.
Ana nos convidou a entrar, disse estar satisfeita com nossa preocupação. Nos abraçou na
despedida”. (Arthur)
Arthur também contou que o filho tem ido frequentemente à casa dela para lembrá-la de tomar os
remédios para a hipertensão.
Na discussão sobre o acompanhamento do caso, o grupo identificou que a equipe ampliou sua
capacidade de dialogar, negociar e conquistar participação da família e da própria paciente. Contribuiu
para isso a existência de um espaço de equipe com reuniões periódicas no contexto da UBS, em
que Arthur pôde levar as reflexões feitas no curso. O restante da equipe pôde analisar seus próprios
afetos e a necessidade de compreender melhor as demandas de Dna. Ana. A disposição para ouvir e
reconhecer a história de vida da paciente possibilitou que a equipe a acolhesse e, ao mesmo tempo, se
sentisse mais satisfeita com o próprio trabalho:
“A equipe está mais tolerante. Percebemos que é preciso uma escuta e uma atuação menos
impositiva e repreensiva. A equipe está se sentindo mais produtiva e útil. Menos angústia e
mais resolutividade e união”. (Arthur)
A própria equipe de Arthur teve oportunidade de trazer, para a pesquisa, o seu olhar sobre o
acompanhamento do caso:
“Foi ação e reação: em pouco tempo a Dna. Ana teve uma melhora boa. Hoje ela é uma pessoa
diferente daquela que pintava aqui na porta e a gente já saía gritando “socorro”... E isso a
gente conseguiu através de muita conversa, mudamos a abordagem”. (narrativa da equipe de
Arthur)
“Dr. Arthur mudou muito. Ele falava ‘eu não gosto de reunião de equipe, ficar discutindo caso,
não tenho paciência’. E agora ele volta estimulado, sempre nos mostra algo que a gente não está
enxergando. Ele se empenhou e a equipe se contaminou. Até o coordenador voltou a participar de
nossas reuniões”. (narrativa da equipe de Arthur)
Isso é para que diminua a nossa angústia”(d). Outro exemplo são as intervenções são referentes à narrativa
pautadas por valores morais, conceitos e desejos do próprio profissional, e não dos alunos do curso,
construída a partir das
propriamente pela demanda do usuário: “Você tenta ajudar mostrando uma discussões nos grupos
maneira de resolver o problema, mas aquela é a ‘sua’ maneira. Muitas vezes focais.
precisamos ouvir e nos abrir para o que o outro traz”.
Os alunos também referiram que o contato com os usuários pôde mobilizar
“raiva e revolta”, e que aprenderam a identificar e lidar com esses afetos a partir
de um exercício reflexivo, que lança luz à clínica:
- A capacidade de escuta:
As narrativas assinalaram a compressão das demandas do usuário, por meio
de recursos que extrapolam a clínica tradicional:
- A capacidade de compartilhar:
Os alunos pontuaram a singularização das intervenções e a combinação entre
as demandas dos usuários e as ofertas terapêuticas:
artigos
“Às vezes fazemos uma proposta e o paciente não gosta. Aí tentamos entender e se for possível
a gente negocia. Temos que abordar tudo, o biológico inclusive, mas se começamos por outra
abordagem, ele vai confiando e percebe que estamos interessados nele e não só na pressão, no
diabetes”.
“Ele precisa estar junto senão ficamos propondo arrumar emprego, tentando vaga na creche, e
na verdade o paciente não quer nada daquilo. E temos que estar preparados para ouvir que ele
não quer. Nossa tendência é ficarmos indignados porque ele não quis o que sonhamos pra ele”.
Os alunos apontaram que o embasamento teórico sobre modelos de gestão lhes provocou
questionamentos e maior capacidade de identificar equívocos no modo de organização do trabalho em
seus serviços. Demonstraram ter se apropriado do que seria a finalidade da Atenção Básica, indicando
que têm utilizado o repertório adquirido para demarcar posicionamentos:
“Se a gente sabe que visita domiciliar é essencial na Atenção Básica, a gente não deixa mais
de fazer uma visita para atender o paciente que chegou com gripe. Isso o PS vai atender. Mas
se eu não fizer essa visita, algum serviço vai fazer? É nossa prioridade, a gente tem que dar
conta”.
“Estamos fazendo as reuniões serem mais centradas nos problemas. Insistimos que as coisas
sejam levadas pra reunião. Se alguém está organizando um grupo, pedimos para levar pra
equipe, para ser o grupo da equipe. Se a equipe entende aquilo, ela vai cuidar, vai nutrir. E
nesse caminho a equipe vai virando uma equipe de verdade”.
“Quando abraçamos a proposta da Saúde da Família, as coisas vão acontecendo. É claro que
tem fases em que o pessoal está desmotivado. Aí a equipe tem que dar um chacoalhão: ‘Vamos
tentar de novo!’ É um processo”.
Os alunos referiram que o suporte à constituição da equipe é essencial e deveria ser composto nas
instâncias de gestão. Em sua avaliação, essa função apoio deveria ser assumida pelo próprio gestor
e, em alguma medida, pelo apoiador matricial da saúde mental ou pelo apoiador institucional. Foi
apontada a necessidade de um lugar e um tempo para que esse apoio possa se dar, possibilitando
que o processamento dos conflitos e das angústias seja configurado como material de trabalho da
equipe: “que isso se desse num espaço legítimo, não na cozinha, na hora do café, para a equipe tomar
decisões em conjunto e escolher as melhores intervenções”.
A questão da sobrecarga e do desgaste dos profissionais apareceu em vários trechos das narrativas,
tanto no que se refere ao contato com o sofrimento, a pobreza e a violência, quanto à pressão de uma
demanda crescente e incongruente à capacidade do serviço. Os alunos destacaram o espaço coletivo
Na avaliação dos alunos, o curso operou nesse sentido e contribuiu para que eles se apropriassem
de seu próprio trabalho, o que produziu alguma mudança na percepção da sobrecarga e do desgaste:
“O curso funcionou como um espaço em que a gente podia discutir as angústias. Nós esperávamos
esse apoio e saíamos muito fortalecidos”.
Para além das mudanças nas concepções e nas práticas profissionais relativas à clínica, à gestão e ao
trabalho em equipe, as narrativas evidenciaram efeitos do curso em outros âmbitos:
“Mudamos na nossa vida pessoal, na maneira de lidar com os filhos. Paramos de fragmentar o
conhecimento, a vida. Muitas coisas que a gente apontava que os pacientes tinham que mudar, a
gente também devia mudar”.
“Alguns assumimos uma postura de mais liderança. Outros, que nunca manifestávamos
opiniões, agora participamos das discussões. O curso potencializou nossa ação como pessoas.
Conseguimos olhar e nos colocar na realidade do outro”.
As narrativas apontaram que o curso exerceu uma função estruturante na identificação dos alunos
com o próprio trabalho, e possibilitou a atribuição de um valor positivo para o trabalho na Atenção
Básica, gerando gratificação e certa alegria:
“O curso foi um estímulo e uma motivação muito grande. Quando resolvemos um caso ou
conseguimos pequenas coisas, nos damos conta de que fazemos diferença, que o nosso
trabalho tem valor. Aquele preconceito, de sermos uma equipe que trabalha no ‘postinho’,
diminuiu muito. Nos orgulhamos desses profissionais que trabalham com amor e dedicação,
anônimos...”.
Ao estimular o comprometimento dos alunos com o projeto institucional da Atenção Básica, o curso
operou como um dispositivo de desalienação e restauração do trabalho em saúde como obra.
“Escolhemos o caso com que tínhamos mais identificação e dificuldade, então fomos aprendendo a
artigos
lidar com as nossas implicações”. Valorizando a singularidade da experiência registrada pelo olhar
e pela escuta do profissional e da equipe, os alunos puderam se situar a si próprios na relação,
defrontando-se com seus preconceitos, angústias e defesas. O empenho em assegurar um setting
protegido para a grupalidade resultou num espaço percebido como continente para que todos
trouxessem as vicissitudes da prática, “as questões mais doloridas, sem medo da crítica”.
Discussão
alterar suas práticas. Essa disposição para a interrogação não se realiza de uma vez por todas, mas
deve ser incessantemente refeita, a fim de se recolocar continuamente em questão as certezas sob as
quais a existência e o saber, os modos de ser e de agir se sustentam. Uma formação-Paideia, em suas
conexões entre política, psicanálise e educação, e em sua íntima relação com a coprodução de sujeitos
reflexivos e interventivos, necessita ser reafirmada cotidianamente.
Colaboradores
Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo
Referências
1. Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos. São Paulo: Hucitec;
2000.
2. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional
de Humanização. HumanizaSUS: a clínica ampliada. Brasília (DF): SAS; 2004.
3. Campos GWS, organizador. A clínica do sujeito: por uma clínica reformulada e
ampliada. In: Saúde Paideia. São Paulo: Hucitec; 2003. p. 51-67.
4. Figueiredo MD, Onocko Campos R. Saúde Mental na Atenção Básica à saúde de
Campinas (SP): uma rede ou um emaranhado? Cienc Saude Colet. 2009; 14(1):129-38.
5. Tanaka OU, Ribeiro L. Desafio para a atenção básica da assistência em saúde mental.
Cad Saude Publica. 2006; 22(9):1845-53.
6. Traverso-Yépez M, Morais NA. Reivindicando a subjetividade dos usuários da rede
básica de saúde: para uma humanização do atendimento. Cad Saude Publica. 2004;
20(1):80-8.
7. Nuto SAS, Noro LRA, Cavalsina PG, Costa ICC, Oliveira AGRC. O processo ensino-
aprendizagem e suas conseqüências na relação professor-aluno-paciente. Cienc Saude
Colet. 2006; 11(1):89-96.
8. Souza NA. Formação médica, racionalidade e experiência. Cienc Saude Colet. 2001;
6(1):87-96.
9. Oury J. Itinerários de formação. Rev Prat. 1991; (1):42-50.
10. Mitre SM, Siqueira-Batista R, Girardi-de-Mendonça JM, Morais-Pinto NM, Meirelles
CAB, Pinto-Porto C, et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação
profissional em saúde: debates atuais. Cienc Saude Colet. 2008; 13(2):2133-44.
11. Figueiredo MD. A construção de práticas ampliadas e compartilhadas em saúde: apoio
Paideia e formação [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp; 2012.
12. Cunha GT. Grupos Balint-Paideia: uma contribuição para a cogestão e a clínica
ampliada na Atenção Básica [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências Médicas,
Unicamp; 2009.
13. Furlan PG, Amaral MA. O Método de Apoio Institucional Paideia aplicado à
formação de profissionais da Atenção Básica em Saúde. In: Campos GWS, Guerrero AVP,
organizadores. Manual de práticas de Atenção Básica: saúde ampliada e compartilhada.
São Paulo: Hucitec; 2008. p. 15-33.
artigos
trabalho em saúde combinando responsabilidade e autonomia. Cienc Saude Colet. 2010;
15(5):2337-44.
15. Onocko Campos R. A gestão: espaço de intervenção, análise e especificidades técnicas.
In: Campos GWS, organizador. Saúde Paideia. São Paulo: Hucitec; 2003. p. 122-49.
16. Nasio JD. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001.
17. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu; 1988.
18. Pichon-Rivière E. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes; 1985.
19. Denzin KN, Lincoln YS. Handbook of qualitative research. London: Sage Publications;
2000.
20. Gadamer H-G. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Petrópolis: Vozes; 2003.
21. Ricoeur P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1990.
22. Minayo MCS, Souza ER, Constantino P, Santos NC. Métodos, técnicas e relações
em triangulação. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por
triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005.
p. 71-103.
23. Ricoeur P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus; 1997. Tomo I.
24. Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002;
(19):20-8.
25. Freud S. Análise terminável e interminável (1937). In: Salomão J, organizador. Rio
de Janeiro: Imago; 1975. p. 239-88. Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, v. 23.
26 Castoriadis C. Encruzilhadas do labirinto. Rio de Janeiro: Paz & Terra; 1987.
Figueiredo MD, Campos GWS. El apoyo Paideia como metodología para los procesos de
formación en salud. Interface (Botucatu). 2014; 18 Supl 1:931-43.
El artículo analiza el apoyo Paideia como marco de referencia pedagógico en un proceso
de formación en salud, cuyo diseño combinó ofertas teóricas, discusión de casos y
intervenciones. Se evaluaron los efectos de este proceso de formación en las prácticas
de los profesionales, con respecto al enfoque de la subjetividad. El material empírico
fue construido a partir de: grupos focales, análisis de un caso clínico y discusión con el
equipo responsable por el caso. Se observaron cambios en la práctica clínica, de gestión,
y en el “manejo de sí”. Los profesionales desarrollaron competencias técnicas, éticas y
relacionales para actuaren las múltiples dimensiones de los sujetos. Se concluye que el
énfasis en el intercambio de experiencias y en la articulación entre reflexión e intervención
contribuye para que la formación produzca cambios en los sujetos, en las prácticas y en
los servicios de salud.
Palabras clave: Método Paideia. Apoyo institucional. Formación. Clínica ampliada.
Subjetividad.